Florença nunca vira uma coisa daquelas. Desde o monstruoso Domingo de Páscoa 16 de Abril de 1478 em que o Sol iluminara impiedosamente o sacrilégio e os massacres de que a cidade fora testemunha e depois intérprete forçada, que o céu, envolto em nuvens negras e baixas e cobrindo o horizonte de uma ponta à outra, não parecia capaz de oferecer uma réstia, que fosse, de azul.
Era verdade que a semana santa fora cinzenta, triste e húmida. Era uma coisa demasiado corrente para que as pessoas ligassem. Mas que, desde a manhã da Ressurreição, o tempo se tivesse transformado numa coisa tão terrível, era o suficiente para que os Florentinos sentissem nisso um sinal da cólera divina... Porque a chuva que surgira e persistia não era uma daquelas chuvas de Primavera, doces e finas, que penetram na terra, fazem inchar a seiva e surgir, espessas e vivazes, a erva saborosa dos pastos, o trigo e o centeio, as folhas novas das árvores e os minúsculos grãos verdes das oliveiras sob a sua cabeleira prateada. Era uma chuva pesada, raivosa, trazida pelo sopro furioso de um vento maldito, que arrancava a terra das encostas das colinas apesar dos muretes de pedra e a fazia descer, como um rio amarelo, na direcção da cidade e do rio que não cessava de engrossar.
O Arno transbordava. O seu leito enervava-se, agressivo, e levava para o mar tudo aquilo de que se podia apoderar à passagem: barcos mal amarrados, redes de pesca, barris, pedaços de madeira arrancados às margens, carcaças de animais e destroços de toda a espécie pertencentes às tabernas ribeirinhas ou às caves das lojas das pontes. Os palácios, graças às pedras ciclópicas sobre as quais repousavam, faziam de diques ou até de faróis. A água contornava-os e insinuava-se pelas ruas cada vez até mais longe, cada vez até mais alto. Começaram a ouvir-se orações nas igrejas e, sobretudo, claro, no Duomo, Santa Maria del Fiore, purificado, entretanto, do sangue derramado graças a grandes quantidades de incenso e água benta. Quanto ao povo, andava a cavalo, de burro ou de mula se tinha meios para isso, ou, na maior parte dos casos, ensopava o calçado se tinha necessidade de ir à parte baixa da cidade.
Fiora desceu de Fiesole, nesse dia, apesar dos esforços de Demétrios para a impedir. O isolamento severo a que a sujeitavam a prudência do médico grego e a paixão desconfiada de Lourenço de Médicis pesava-lhe. Três semanas depois de um golpe de punhal ter posto fim a Hieronyma! Três longas semanas a ver, de manhã à noite, a chuva alagar a paisagem e os terraços do seu jardim! Entretanto, a vida continuava na cidade estendida a seus pés. E ela tinha de continuar ali, esperando a noite que lhe traria ou não um amante sobrecarregado de preocupações e responsabilidades. Reduzida ao papel inactivo e até passivo de uma mulher de harém, Fiora decidira que estava farta e que precisava de se mexer sob pena de enlouquecer. Além disso, há muito que desejava ir rezar junto do túmulo do seu pai. Não faltaria mais a esse dever de amor. Assim, por volta do meio-dia, pôs-se a caminho, escoltada por Esteban. Mas teve de prometer que não se demoraria muito, porque desde o assassinato de Giuliano de Médicis durante a missa do Domingo de Páscoa Florença não era uma cidade segura, podendo inflamar-se ao menor gesto infeliz.
A igreja d’Or San Michele, onde Francesco Beltrami repousava entre outros notáveis das Artes Maiores, poderia passar por um palácio medieval sem as admiráveis estátuas de santos, obras de Donatello ou de Lourenço Ghiberti que, nos seus nichos, adornavam as suas quatro fachadas. Construída durante o século xIv no local do antigo oratório Santa Maria in Oito e de um mercado de cereais, era o único santuário florentino a possuir um celeiro sobre a sua nave dupla. Talvez fosse, também, a mais bem ornamentada, porque os mestres mais ilustres das quatro grandes corporações tinham contribuído com dinheiro para o seu embelezamento.
Or San Michele seria sombria, já que as suas aberturas eram raras e estreitas, se as muitas velas a arder não iluminassem, com as suas pequenas chamas douradas, a magnificência da sua decoração interior. O conjunto cintilava, brilhava e aureolava uma maravilha: o tabernáculo gótico de Andréa Orcagna, incrustado de mosaicos e ornamentado com baixos-relevos. Era a glória da nave do lado direito.
A laje sob a qual repousava Francesco Beltrami não estava longe desse tabernáculo, junto do qual ardia um círio. Com uma emoção profunda, Fiora deixou-se cair de joelhos. Era a primeira vez que podia ir ali rezar, já que não tivera o direito, no dia de cólera do funeral, de acompanhar o seu pai. Primeiro prisioneira, depois escondida e, finalmente, levada para longe de Florença pela tempestade que quase a destruíra, sonhara muitas vezes, com lágrimas no coração, com aquele túmulo, profanado pelo ódio supersticioso de Hieronyma, onde repousava um corpo cujo peito fora esventrado para oferecer a um demónio de madeira e cartão um coração que batera ao ritmo generoso de um homem de bem.
Curvando-se até que a sua boca e as suas lágrimas tocassem na pedra fria, a jovem permaneceu prostrada por longos momentos, envolta no seu véu negro, toda a cidade estava de luto por Giuliano de Médícis um véu que, naquele momento, assumia um significado duplo.
Pai murmurou ela meu pai! Eu amava-te, sabes, e continuo a amar-te... Amo-te, amo-te, amo-te... Se, ao menos, as minhas lágrimas te pudessem devolver a vida! Se, ao menos, eu pudesse partilhar a minha! Oh, pai, por que nos separaram? Éramos tão felizes, os dois!...
Sacudida por soluços, teria ficado ali até ao fim do dia sem que a dor diminuísse, se duas mãos, pousadas nos seus ombros, não fizessem menção de a erguer.
Ver Fiora e Lourenço, o Magnífico.
Não faças mal a ti própria, Fiora! sussurrou uma voz doce. Não fiques aqui! Vem comigo!
Um pouco cansada devido à sua longa prostração, Fiora endireitou-se, enxugando com a manga as lágrimas que lhe corriam pelas faces, e ofereceu um sorriso à recém-chegada.
Chiara! És tu? És mesmo tu?
Num impulso, atirou-se para os braços da amiga reencontrada e as duas jovens abraçaram-se com o entusiasmo nascido, sempre, de uma longa separação. Um pouco mais longe, a gorda Colomba, em tempos governanta de Chiara Albizzi e agora sua criada, chorava de alegria, ao mesmo tempo que agradecia aos Céus, com a sua volubilidade habitual, aquela alegria que tinha o privilégio de testemunhar. Fiora também a beijou e depois, levando as duas mulheres por um braço, como se temesse vê-las desaparecer, arrastou-as para um dos bancos encostados às paredes da igreja.
Que alegria, ver-vos de novo! suspirou ela. Como sabíeis que eu estava aqui? Foi o acaso que vos conduziu aqui?
Não disse Chiara. Toda a Florença sabe que tu regressaste. Fala-se quase tanto de ti como dos Pazzi.
E eu que esperava passar despercebida!
Tu... ou Lourenço?
Ah!... Também sabes?
Chiara desatou a rir e Colomba, que se esforçava por parecer que estava a rezar, sorriu para os anjos:
Como toda a Florença! Querida inocente! Esqueces-te que, sempre que o nosso príncipe espirra, toda a cidade pergunta a si própria de onde terá vindo a corrente de ar? Toda a gente sabe que estás em Fiesole.
Nesse caso, por que não me foste ver?
Por discrição e também... por prudência. Lourenço não é o mesmo desde a morte do irmão e tu fazes parte de uma vida secreta que ele preserva ciosamente. O que não é difícil de compreender: quando dois seres se amam...
Mas eu não estou muito certa de que nos amemos! Caímos nos braços um do outro na noite do assassínio e assim temos ficado desde então. Mas esta situação deve-se a que ele precisava de mim e eu dele. De qualquer maneira, não durará muito.
Porquê?
Porque eu devo partir em breve. Tenho, em França, um filho de nove meses.
Tu tens um filho? Oh, meu Deus! Que sorte! Um filho! Eu gostava tanto de ter um filho!
Mas... tu não és casada?
Não. Bernardo Davanzati, com quem eu devia casar, morreu de peste em Roma, o ano passado.
Oh, tenho tanta pena!
Não tenhas! Eu não lhe tinha amor. Porém, representava a minha única hipótese de não ficar solteirona, porque o meu dote não é grande coisa.
A despeito da serenidade do tom, Fiora juraria ter visto uma nuvem passar pelo rosto encantador da sua amiga e depositou-lhe um beijo leve na face.
Perdoa-me! disse ela.
Esqueçamos isso! Tens muito que me contar, sem dúvida? Por que não vens passar alguns dias a nossa casa? O meu tio gostaria muito de te ver de novo. E depois... para dizer a verdade, foi com esse fim que te mandei espiar concluiu Chiara, sorrindo.
Espiar?
Não tenhas medo! Foi uma coisa inocente. Eu sabia que, mais tarde ou mais cedo, virias aqui rezar e assim que soube do teu regresso perguntei por ti ao sacristão, mas ele ainda não te tinha visto. Então, paguei-lhe para que me prevenisse se tu aparecesses... e foi o que ele fez. Mais nada! E agora, levo-te comigo?
Fiora não hesitou. Uma curta estadia em casa de Chiara fá-la-ia recordar os dias felizes de outros tempos. Além disso, sentia-se encantada por ter a oportunidade de afirmar uma certa independência face a Lourenço. Na noite anterior ele mostrara-se distraído e, assim, um pouco menos ardente. Ao ir-se embora, explicara aquela ligeira desatenção, anunciando que não iria ter com ela na noite seguinte: a chuva incessante provocara um deslizamento de terras no vale do Mugello e pusera a descoberto um ombro de mármore branco que devia pertencer, sem dúvida, a uma estátua antiga.
Preveniram-me ontem à noite disse Lourenço, cujos olhos escuros brilhavam de excitação e prometi ir lá esta manhã. E não voltarei a sair de lá, compreendes, antes de o conjunto ser totalmente descoberto.
Compreender? Seria preciso não conhecer Lourenço, a sua busca incessante da beleza, da raridade e o seu amor pelos vestígios dos tempos antigos, para não compreender. Demétrios tinha razão ao comparar Fiora com a flor preciosa roubada do jardim do Magnífico antes de ele a ter podido cheirar, e regressada por uma espécie de milagre. Não era o amor que unia os dois amantes, antes um desejo violento, exaltado pelo orgulho de possuir, um, uma mulher de uma beleza excepcional durante muito tempo cobiçada, a outra um homem prodigioso, que qualquer rainha gostaria de ver a seus pés. Ambos amavam o amor, e os abraços que uniam os seus corpos podiam atingir a perfeição de um poema, mas o coração de Fiora não batia apressadamente à aproximação do Magnífico, mesmo quando o seu corpo se abria às suas carícias na expectativa deliciosa de uma realização que a faria atingir o cúmulo do prazer. Quanto a Lourenço, como conhecer os pensamentos que se agitavam no interior da sua grande fronte abaulada?
Ele escrevia poemas dedicados a Fiora; enchia-a de presentes e divertia-se a ornamentá-la, mas raramente ficava satisfeito com as jóias sumptuosas nas quais se esforçava por engastar a sua beleza, porque ela triunfava sempre. Uma noite, não aparecera só: Sandro Botticelli, com uma cartolina debaixo do braço, acompanhava-o e Fiora, corada de confusão, teve de posar para aquele jovem pintor, nua e de pé sobre um pequeno tamborete, em redor do qual Lourenço acendera umas velas para que a luz dourasse a sua pele e a fizesse brilhar com mais intensidade. Depois, mal o pintor se eclipsara, amara-a com um ardor esfomeado que assustara, até, um pouco a jovem. E como ela lho dissesse docemente, ele suspirara:
Que homem não sonhou em possuir uma deusa na esperança insensata de conseguir chegar à fonte da sua beleza e conseguir roubar-lhe uma parcela? Infelizmente, Vénus não é generosa e guarda tudo para ela.
Não me digas que o lamentas? Tu não precisas de ser belo. O que tu possuis é muito mais poderoso. Elas são muitas, não são, as que desejam atrair o teu olhar?
Porque eu sou o senhor? Mas, se eu não passasse de um moço de fretes, ou de um barqueiro do Arno, quantas delas me concederiam a sua atenção?
Mais do que pensas. Ou então, seria preciso não serem mulheres.
Ele agradecera-lhe com um beijo e acrescentara:
No entanto, sei que a sede de beleza que tenho na alma nunca se extinguirá.
Agora, a sua busca incessante levara-o até uma estátua e se Fiora não se sentira surpreendida, sentira-se, mesmo assim, um pouco vexada. O convite de Chiara vinha mesmo a propósito. A jovem começava a sentir a necessidade de colocar uma certa distância entre si e aquela aventura apaixonante que a invadia e lhe ocupava demasiado o espírito; e que esperava o momento certo, talvez, para se instalar no seu coração. Fiora não queria ligar-se a Lourenço: sabia que sofreria, mais tarde ou mais cedo. Além disso, a sua vida, a sua verdadeira vida, esperava-a algures, junto do seu pequeno Philippe, e o seu dever era fazer dele um homem. E isso não era compatível com a existência de favorita oficial que vislumbrava no horizonte.
De braço dado, as duas jovens amigas saíram da igreja com Colomba nos seus calcanhares. Fiora procurou Esteban com os olhos, que fora fazer umas compras no bairro e que deveria regressar para a esperar. Não o vendo, pensou, com um pouco de aborrecimento, que devia ter ficado numa das suas amadas tabernas. Não devia estar longe, porque as duas mulas continuavam presas no telheiro onde ele as tinha abrigado. Fiora não queria ir à procura dele, mas era preciso dar-lhe a saber que ia para casa dos Albizzi em vez de regressar a Fiesole.
A chuva cessara, mas as nuvens que sobrevoavam a rua estreita prometiam outro aguaceiro e seria uma pena não aproveitar aquela aberta:
Talvez possamos dizer uma palavra aos rapazes que trabalham aqui? segredou Colomba, apontando para uma casa situada em frente do adro da igreja e onde se viam, por uma janela aberta, as cabeças dos empregados inclinadas sobre os grandes registos. Era o palácio em forma de torre, sede da Arte della Lana a arte da lã cujo prior, messer Buonaccòrsi, era amigo dos Albizzi.
As duas jovens iam, em consequência, subir os degraus que iam dar à porta encimada pelas armas da corporação, quando viram chegar Esteban. O servo vinha dos entrepostos de tinturaria, que eram junto d’Or San Michele. Uma ruela, pouco mais larga do que uma passagem estreita separava ambos, escavada ao meio por um ribeiro por onde corriam os restos dos banhos de cor das meadas de lã penduradas de travessas e dentro de uma espécie de jaulas providas de tecto. O ribeiro era de uma cor violeta, encarnada ou azul-escura, segundo os girassóis, a ruiva-dos-tintureiros ou o pastel-dos-tintureiros utilizados pelos operários. Naquele dia era de um vermelho-profundo de rubi quando o castelhano o atravessou de um salto para se reunir às duas damas.
Perdoai-me! disse ele e o seu rosto perturbado estava branco como a cal. Fiz-vos esperar e sinto-me desolado.
Que se passa, Esteban? perguntou Fiora. Sentis-vos mal?
Não... não, mas acabo de ver uma coisa tão terrível que voltei atrás para ver melhor. Ouvis estes gritos?
Com efeito, chegavam por cima dos telhados, e ao longo das ruas, clamores, indistintos mas ferozes: ódio e uma alegria selvagem, transformados em risos dementes. As três mulheres persignaram-se.
Dir-se-ia que o tumulto vem da Senhoria! disse Chiara. Terão encontrado mais gente para enforcar?
Não. Encontraram melhor do que isso!
E Esteban contou como um bando de homens e de mulheres, chegado do campo na sua maior parte, acabava de violar, na igreja da Santa Croce, o túmulo de Jacopo Pazzi, tirando de lá o corpo do ancião que se dizia ter blasfemado, antes de ser enforcado, e ter vendido a alma ao diabo. Aquela gente considerava um sacrilégio terem confiado à terra cristã os despojos de um apoiante de Satanás e atribuía a isso as violentas intempéries que tinham desabado sobre a região de Florença.
Que vão eles fazer? murmurou Fiora com repugnância.
Não sei. Para já, arrastam aqueles despojos horríveis e malcheirosos pelas ruas e vão levá-los perante os priores. Por isso, se me perdoais que vos apresse, penso que é melhor regressar a casa.
Ide sem mim! Eu fico para passar alguns dias em casa de dona Chiara, no palácio Albizzi. Dizei a Demétrios que não se preocupe e, se não vos importardes de voltar aqui amanhã, dizei também a Samia que me prepare alguma roupa.
O sorriso de Esteban foi um sinal de aprovação para a sua escapadela:
Far-vos-á bem estar algum tempo com outras mulheres declarou ele. Mas, no entanto, vou escoltar-vos até ao palácio Albizzi. Ficarei mais tranquilo.
Oh! Vede! exclamou Colomba, apontando um dedo trémulo de excitação para o céu. O Sol! O Sol regressa!
Com efeito, as nuvens acabavam de se afastar, como que rasgadas por um brusco golpe de vento e um raio luminoso acendeu rutilâncias no fundo do ribeiro dos tintureiros. Na Senhoria ouviu-se um imenso grito de triunfo, saudando aquela aparição inesperada.
Eles vão receber este raio como um sinal dos céus e como um encorajamento grunhiu o castelhano. Até que decidam desenterrar outros, vai um passo...
Quando, a caminho da casa de Chiara, chegaram ao Borgo degli Albizzi, cujo mais belo ornamento fora o palácio Pazzi, Fiora não pôde evitar um movimento de piedade. O magnífico edifício, começado nos meados do século por Brunelleschi e terminado por Giuliano da Maiano, sofrera cruelmente a ira popular. As janelas tinham perdido as vidraças. Por cima da porta esventrada tinham martelado as armas da família e subsistiam, por toda a parte, vestígios do incêndio que devastara o interior. No grande pátio quadrado os destroços amontoavam-se, restos sem interesse de objectos antes preciosos, destruídos por falta de conhecimento. Não passava de uma concha vazia, as viúvas e as crianças tinham fugido, em busca de refúgio, para o campo ou para uma caridosa casa qualquer.
Não te comovas! disse Chiara, que seguira o pensamento da sua amiga. Esta gente destruiu o teu próprio palácio, hoje bem mais arruinado do que este. Além disso, as mulheres deles não serão perseguidas, como tu. Com excepção... pelo menos assim espero, da infernal Hieronyma, que as pessoas dizem ter regressado.
Essa está morta disse Fiora. Apunhalada em casa de Marino Betti por um dos meus amigos quando tentava estrangular-me.
Olha, não sabia! exclamou Colomba, que continuava a ser a comadre mais bem informada de Florença. Por que é que não se fala disso nos mercados?
Porque monsenhor Lourenço assim o quis respondeu Fiora. De acordo com as suas ordens, Savaglio e mais alguns dos seus homens fizeram desabar a casa sobre o seu cadáver, que não terá qualquer outra sepultura. Permanecerá pregado ao chão pelo punhal que a atravessou e que o seu possuidor recusou retirar. Parece que foi colocado um letreiro sobre os escombros.
E que diz ele, esse letreiro? perguntou Colomba, extremamente interessada.
”Aqui foi aplicada a justiça de Florença. Passante, afasta-te!”
É quase demasiado belo para aquela criatura abominável observou Chiara. Em seguida, à guisa de oração fúnebre, concluiu com satisfação: De qualquer maneira, é bom que esteja morta.
Mais do que imaginas! disse a sua amiga.
Ver-se de novo em casa dos Albizzi, naquele quadro familiar onde só conhecera bons momentos, deu a Fiora a impressão deliciosa de que o tempo parara e que o passado regressara. Nada mudara, os objectos continuavam no mesmo sítio e o odor da cera virgem e da resina de pinheiro era o mesmo que respirara em tempos. As compotas, obra de arte de Colomba, que lhe ofereceram à entrada, continuavam deliciosas. Até o tio de Chiara, o velho serLodovico, continuava o mesmo, não envelhecera. De regresso para a refeição da noite, beijou Fiora como se a tivesse visto na véspera, felicitou-a pelo seu bom aspecto e desapareceu no seu studiolo com a pressa de um homem cujo tempo é precioso. Era um naturalista apaixonado, que considerava tempo perdido aquele que não consagrava à botânica, aos minerais e às diferentes famílias de borboletas. Bom e simples, ingénuo como uma criança, nunca se esquecia, antes de se atirar ao trabalho, de rezar a Deus para que lhe desse forças e inteligência. Lourenço gostava muito dele, do mesmo modo que o seu pai e o seu avô, e era em grande parte graças a ele que os outros membros do clã Albizzi, em tempos exilados, tinham podido regressar a Florença.
Também incrivelmente distraído, os acontecimentos exteriores passavam por ele sem deixar vestígios. Assim, durante o jantar, durante qual Colomba serviu pombos recheados com ervas finas, uma das suas glórias, mostrou-se extremamente surpreendido por ter encontrado, no seu caminho, ao sair de casa do seu amigo sábio Toscanelli, o cadáver do velho Pazzi, arrastado por um bando de homens e mulheres.
Foi-me difícil reconhecê-lo, o cadáver está em muito mau estado. Aliás, não percebi bem o que estava ali o cadáver do Pazzi a fazer, porque nem sequer sabia que ele tinha morrido.
Meu querido tio disse Chiara, rindo-se que cataclismo seria necessário para te arrancar aos teus estudos e interessar-te pela vida da cidade? Depois da morte do irmão, Lourenço de Médicis e a Senhoria decidiram exterminar os Pazzi. Já te esqueceste que o palácio deles ardeu há quinze dias?
E verdade! Já me lembro, na ocasião pensei que tinha sido uma das nossas chaminés que se tinha incendiado. Em todo o caso, aquele bravo Petrucci desatou a berrar, dizendo que era preciso parar aquele passeio repugnante porque o Sol tinha regressado e então não compreendi mais nada. O que é que o Sol tem a ver com aquilo tudo? O Sol não brilha todos os dias em Florença?
Há mais de um mês que não brilhava, mas parece que não deste por isso? Aquela pobre gente pensava que a chuva incessante era provocada pelo facto de terem enterrado Pazzi, cúmplice de Satanás, numa igreja. Espero, de qualquer modo, que o enterrem noutro lado qualquer!
Ah bom! Ah!... Muito bem! Enterrá-lo? Sim, creio que Petrucci disse qualquer coisa acerca disso. Vão enterrar o velho bandido perto das muralhas, para os lados da porta San Ambrogio, parece. Colomba! Dá-me mais meio pombo...
Terminada a refeição, foi em busca de um grande gato preto e branco que dormitava em frente da chaminé, meteu-o debaixo do braço e regressou ao seu gabinete de trabalho após ter desejado uma boa noite às duas raparigas.
Estas partilharam o leito de Chiara, tal como noutros tempos. Tinham sempre que dizer uma à outra e naquela noite, claro, mais do que nunca. Desse modo se passou uma boa parte da noite. Uma bela noite, tranquila, a primeira desde há muitas semanas e o luar, velado por uma ligeira névoa de reflexos nacarados, iluminava o quarto com uma luz ligeiramente misteriosa. Uma acácia branca metia um ramo pela janela de Chiara, deixando cair no tapete as suas frágeis flores de perfume delicado. Naquela atmosfera plena da doçura de outros tempos, Fiora abandonou o seu coração à amiga como nunca antes, mesmo a Demétrios. Chiara, sendo mulher, podia compreender os arrebatamentos secretos de outra mulher como nenhum homem.
Tal como o médico, Chiara encorajou a sua amiga a manter secreto o seu infeliz casamento com Carlo Pazzi.
Nós vamos ter guerra e Roma vai estar, em breve, muito mais longe de Florença do que está na realidade. Tens todas as hipóteses de nunca mais ver esse pobre rapaz.
Não deixo de estar menos casada e ele comportou-se como um amigo. E sei que se sente infeliz longe da sua querida casa de Trespiano. Se, ao menos, eu conseguisse que lha devolvessem!
Compreendo a tua preocupação, mas espera ainda um pouco. Lourenço parece um esfolado vivo depois do crime. Tu adoças-lhe as noites, sem dúvida, mas deves desconfiar das suas reacções. Por outro lado, como pensas organizar o teu futuro? Não podes continuar nessa situação falsa provocada pela... pela paixão dele!
Queres dizer capricho e eu creio que essa é a palavra certa. Quem era a amante de Lourenço antes de eu regressar? Porque estou certa de que ele tinha uma?
Tinha. Bartolommea del Nasi. Uma bela rapariga, não muito astuta, mas a família é-o o suficiente por ela. Eles podem achar desagradável o facto de a tua presença ter feito secar a sua fonte de rendimento. Arriscas-te a ficar em perigo.
Não me parece que queiram ficar com um crime na consciência. Mais tarde ou mais cedo, afastar-me-ei de Lourenço. Simplesmente, não o quero ferir.
Sê franca! Nem renunciar ao que encontras junto dele?
É verdade. Gostaria que esta situação se prolongasse mais um pouco. Aliás, pelo que diz, também ele deseja que isto dure muito tempo; propôs-me mandar alguém a Plessis para trazer o meu filho e Léonarde, mas eu ainda não me resolvi a aceitar. Não sei porquê, porque seria no interesse da criança. Educado aqui, receberia, naturalmente, toda a educação necessária para continuar os negócios do meu pai.
Não estás a falar a sério?
Estou. Desde que nasceu que desejo fazer dele um homem igual ao meu pai: corajoso, letrado, humano, generoso e aberto à beleza. Parece-te inverosímil?
É a minha vez de ser franca: sim.
Mas porquê?
Não fui eu que casei com messire de Selongey! Esqueces-te que o teu filho também é dele, que tem um grande nome no seu país, mesmo que pertença a um homem que pagou com o cadafalso a sua fidelidade a uma causa perdida. Não podes fazer dele um burguês florentino...
Não vejo que isso o possa diminuir?
É possível que não, mas ele verá, um dia. Quando for grande fará perguntas às quais terás de responder. E então, quem te diz que ele não preferirá uma vida miserável, uma vida de proscrito de acordo com a escolha do pai, à vida faustosa que tu sonhas para ele, mas na qual não se reconhecerá? Tu foste desenraizada e sabes o que isso custa. Não faças com que o teu filho sofra o mesmo! Educa-o no amor e na recordação do teu marido...
E isso é incompatível com a vida de alta personagem da nossa cidade?
Talvez não, na condição de que não sejas então, e há muito tempo, a amante de Lourenço. Eu sei acrescentou Chiara, sorrindo que parece que te estou a votar a uma austeridade para a qual não foste feita, mas creio que, se tivesse um filho, dedicar-me-ia a ele com alegria...
Sem responder, Fiora passou um braço pelo pescoço da amiga, beijou-a e deixou o seu rosto encostado ao dela, sem se dar conta de que as lágrimas lhe corriam pelas faces.
Não chores disse Chiara. Estou certa que ainda tens belos dias pela frente... E agora, se dormíssemos? A alvorada está a chegar.
Não foi o dia que as acordou, antes um verdadeiro uivo lançado por Colomba. Num abrir e fechar de olhos, viram-se de pés nus e em camisa nos degraus de mármore da escadaria, correndo na direcção da grande porta do palácio, aberta, na entrada da qual estava Colomba desmaiada. Uma criada dava-lhe pancadinhas nas faces sem convicção, ao mesmo tempo que, no exterior, um criado erguia o punho e lançava injúrias. Um jovem elegante juntara a sua voz à do servo e de Lodovico Albizzi que, em roupão e com o gato debaixo do braço, batia com os pés no chão e lançava gritos inarticulados.
Ao juntarem-se-lhes, as duas jovens viram um bando de rapazes que se afastava dançando e arrastando uma coisa qualquer na ponta de uma corda.
O que é que se passa, meu tio? perguntou Chiara, inquieta ao ver o ancião vermelho de furor.
Ah, é o velho diabo do Jacopo Pazzi! Continuam a arrastá-lo pelas ruas! Nunca vi um morto mexer-se tanto...
Fiora soube o que se passara pela boca de Colomba, enquanto a obrigava a beber umas gotas de aguardente. Enquanto velava pela preparação da primeira refeição, a governanta de Chiara ouvira, na rua, um bando de rapazes a cantar. Um instante depois, a aldraba da porta era vigorosamente agitada. Colomba fora abrir e fora então que lançara o grito que acordara uma parte da casa: preso na corrente da campainha, balouçava um cadáver meio decomposto, ao mesmo tempo que, em redor, os rapazes riam e gritavam:
Bate à porta, ser Jacopo! Bate à porta! Abri a messer Jacopo di Pazzi!
A chegada intempestiva do elegante jovem a cavalo pô-los em fuga. Apressaram-se a retirar o seu trofeu odioso e levaram-no, arrastando-o, mas o odor pavoroso parecia ter ficado colado às pedras da soleira e Fiora, por sua vez, sentiu-se empalidecer:
Não poderemos levar donna Colomba para dentro? perguntou ela, ao mesmo tempo que Chiara se esforçava por fazer com que o seu tio entrasse também, obstinado em continuar a gesticular e em chamar a Milícia.
Evidentemente exclamou o jovem, que puxou o criado por um dos braços. É para já!
Fiora afastou-se e os dois, entre eles, transportaram Colomba, cujas pernas trémulas pareciam incapazes, para o interior da casa. Mas, ao erguê-la, o seu olhar encontrou o da jovem e não conseguiu suster a doente:
Madona Santíssima! És tu?... Tinham-me dito que tinhas regressado, mas não acreditei.
Porquê? Pensavas que tinha morrido? Seria, evidentemente, mais cómodo para a tua tranquilidade de espírito.
O olhar irónico de Fiora media, com mais divertimento do que rancor, o seu antigo apaixonado. Luca Tornabuoni continuava tão belo como nos tempos em que lutava ardentemente pela mão de Fiora; talvez estivesse, ainda, mais belo, porque, em três anos, perdera aquele aspecto um pouco frágil da juventude e, ao mesmo tempo, o seu lado ternurento. No entanto, Fiora sabia da cobardia que se escondia por trás daquele rosto cujo perfil era digno de ser esculpido em bronze. No dia da catástrofe em que mergulhara a sua vida, Luca apressara-se a desaparecer no meio da multidão sem tentar socorrer aquela de quem, entretanto, se dizia tão apaixonado.
Então, que esperais? exclamou Albizzi, que se decidira a entrar. Um pouco de nervo, que diabo! Ainda deixais cair a pobre mulher. E vós, as raparigas, que estais aí a fazer? acrescentou ele na direcção da sobrinha e de Fiora. Talvez seja distraído, mas não ao ponto de não reparar que estais ambas em camisa! Em camisa! E na rua! Toca a andar! Para dentro!
De mãos dadas, as duas jovens voltaram a subir a escadaria a correr e a rir, ao mesmo tempo que Luca gritava:
Dá-me autorização para te vir ver, Fiora! Tenho de te falar! Diz-me que posso vir!
Inclinando-se no corrimão, a interpelada lançou:
Eu não estou em minha casa. Além disso, não me apetece ver-te!
Aquela declaração definitiva não impediu Luca de regressar durante o dia, mas Fiora recusou recebê-lo, assim como no dia seguinte. A jovem procurou compreender por que razão aquele rapaz, em tempos seu cavaleiro ardente e cujas homenagens ela aceitava porque era belo e decorativo, mas sem lhe retribuir os sentimentos, desejava tanto aproximar-se de novo. Ainda por cima porque, segundo Chiara, era casado e pai de uma criança.
Se começo a ter relações com todos os homens casados da cidade, a minha reputação desaparece num instante confiou ela a Chiara. Além disso, não tenho vontade nenhuma de lhe falar.
O bom tempo regressara e instalava-se para satisfação geral, se bem que as pessoas sérias se recusassem a ver uma relação entre os caprichos do céu e os despojos mortais de Jacopo Pazzi. Que, aliás, abandonara Florença definitivamente pela via do rio, para onde o magistrado de justiça o mandara atirar do alto da ponte Rubaconte.
Nesse dia, as duas amigas, que saíam de boa vontade para as ruas de uma Florença enfim tranquilizada, decidiram subir a San Miniato. O tempo dos espinheiros-alvar e das violetas já tinha passado, mas Fiora e Chiara tinham a mesma predilecção por aquele local encantador de onde se desfrutava, sobre Florença, a mais bela vista da região. As chuvadas recentes não tinham causado grandes estragos em redor da velha igreja e do velho palácio dos bispos. Ciprestes orgulhosos enegreciam o alto da colina, qual barreira erguida contra o assalto da vegetação que três dias de sol tinham tornado exuberante.
Do alto do pequeno terraço da igreja as duas jovens contemplaram por um momento a cidade estendida a seus pés e irisada de uma pequena bruma anunciadora de calor. O perfume das ervas, da erva-cidreira, da hortelã e do funcho subia vindo das hortas situadas mais abaixo. O ar era de uma doçura delicada e no grande céu azul as andorinhas passavam como delgadas flechas negras.
Sentada na erva por baixo de um pinheiro e mascando uma das suas agulhas, Fiora sentia-se entorpecida sob o prazer daquele instante, em que voltava a encontrar a cidade que amava, onde podia, sem ideias preconcebidas, deixar-se invadir pela sua graça e beleza. Nem Chiara, nem ela, sentiam a necessidade de falar, certas da harmonia tranquila por onde vogavam os seus espíritos. Instalada um pouco mais longe, Colomba dormia encostada a uma árvore, o nariz encostado ao grande regaço.
Fiora estava quase a imitar a governanta quando uma sombra se interpôs entre ela e a paisagem. A jovem teve um sobressalto ao reconhecer Luca Tornabuoni, que acabava de pôr um joelho em terra para estar à sua altura. De imediato irritada, a sua reacção foi instantânea:
Vai-te! Já te disse que não te queria ver mais!
Um instante, Fiora! É só um instante! Eu sei que tu me queres mal.
Quero-te mal? Eu já me tinha esquecido da tua existência. Não foi boa ideia fazeres-ma recordar!
Não sejas tão dura! Eu sei que me portei mal contigo, mas tenho sofrido tanto desde então...
Sofrido? Tu sabes lá o que isso quer dizer! Basta olhar para ti para ver como tens sofrido estes últimos anos: tens um aspecto soberbo, aparentas uma bela prosperidade e disseram-me que tens uma esposa jovem e um filho! Na verdade, tudo isso é de chorar.
Deixa-me, ao menos, defender a minha causa! Chiara, peço-te, deixa-me uns momentos a sós com ela.
Mas esta, em vez de se afastar, estendeu-se sobre a erva:
Por minha fé, não! Estou aqui muito bem. De qualquer maneira, ela não te quer ouvir. Ela não gosta de poltrões.
Eu não sou um poltrão e sabei-lo muito bem, as duas! Eu bato-me galhardamente nos torneios.
Isso está ao alcance de qualquer imbecil, desde que tenha músculos, armas e um cavalo bem treinado disse Fiora em tom cortante. A coragem não é isso.
Que devia fazer, então? Afrontar sozinho uma multidão encolerizada? Aquilo foi terrível...
Achas que eu não sei? Que devias ter feito? Correr para mim, estender essa mão, de que eu necessitava tanto, em meu socorro. Ficar a meu lado. Mas fugiste como um coelho perseguido. Se não fosse Lourenço...
Que fez ele de extraordinário, o meu primo? Podia salvar-te e não o fez disse Luca com amargura.
Fez mais do que imaginas e se hoje estou viva, a ele o devo.
E tu pagas-lhe regiamente, pelo que dizem? Tornaste-te amante dele. É verdade, de facto, mas não vejo que isso te diga respeito?
Mas, eu amo-te! Nunca deixei de te amar e estou arrependido. Queria ir em teu socorro, mas o meu pai fechou-me e...
E tu achaste mais confortável continuar fechado. Após o que te apressaste a oferecer os teus votos a outra. Ou o meu amigo Demétrios sonhou ao ver-te na companhia de uma bela ruiva? Acabemos com isto, Luca! Eu ouvia-te com prazer, antigamente, mas não te amava. Nunca te amei. Como queres tu, agora, que me interesse por ti?
A jovem levantara-se para se afastar dele. Ele estendeu as mãos suplicantes para a reter, mas a seda do seu vestido negro deslizou-lhe por entre os dedos. Chiara levantou-se, também ela, e colocou-se entre os dois, naturalmente. Pousou uma mão apaziguadora pelo ombro do jovem:
Esquece-a, Luca! Tu apaixonaste-te outra vez quando a viste, mas pareces uma criança que reclama um brinquedo durante muito tempo desdenhado só porque o dão a um irmão, e que tem uma birra para o recuperar. Não se força o coração de uma mulher...
Ah sim? E ela amava Lourenço, naquele tempo? No entanto, agora é dele!
Eu não sou de ninguém... senão de uma recordação! exclamou Fiora quase a perder a paciência. Talvez, com efeito, eu devesse qualquer coisa ao teu primo, mas a ti não devo nada! Portanto, deixa de me importunar e vai-te embora! Regressa para junto dos teus! Eu não quero voltar a ver-te ou a ouvir-te.
Uma brusca cólera corou o belo rosto de Luca e incendiou-lhe os olhos negros:
Nunca te verás livre de mim, Fiora! E por São Lucas, meu patrono, saberei levar-te aonde quero!
O teu santo patrono era médico. Pede-lhe que te cure, porque estás em vias de perder o espírito. Seria a coisa mais sensata!
Metendo o braço no de Chiara, a jovem encaminhou-se para junto de Colomba que, devido às vozes exaltadas, já há muito estava acordada e seguia a cena com as feições esfomeadas de um amador apaixonado por romances. Compreendendo que não ganhava nada em insistir, Luca Tornabuoni dirigiu-se para o seu cavalo, que estava preso a um dos anéis de bronze do palácio episcopal. O gesto que dirigiu ao grupo formado pelas três mulheres tanto podia significar um adeus como uma ameaça.
Podes dizer-me o que lhe deu? perguntou Fiora, encolhendo os ombros.
Vá-se lá saber! Talvez seja sincero quando diz que nunca te esqueceu, se bem que Cecília, a mulher dele, seja encantadora. Sobretudo, acredito que a sua atitude actual se explica de três maneiras: viu-te de novo, sabe que Lourenço é teu amante... e aborrece-se, como acontece quando se é rico, pouco culto e não se sabe o que fazer do tempo de que se dispõe. No entanto, tem cuidado: o amor de uma criança estragada pode tornar-se uma fonte de sarilhos. Sobretudo se decidires instalar-te aqui.
Veremos! Posso sempre regressar a França.
De regresso ao palácio Albizzi, Fiora encontrou um bilhete que lhe tinha sido enviado à hora do meio-dia. Continha apenas algumas palavras e ela corou um pouco ao lê-las, sem poder conter um sorriso:
”Só penso em ti! Vem! A estátua é muito menos bela do que tu. Ou estás amanhã à noite nos meus braços, ou vou-te buscar. L.
A jovem dobrou o bilhete e meteu-o no corpete com um gesto um pouco nervoso de mais. Chiara desatou a rir:
Ele reclama-te?
Sim.
E... tu não tens vontade nenhuma de o fazer esperar?
Não...
Entendido! Amanhã acompanhar-te-emos até às muralhas, Colomba e eu, e dar-te-ei dois criados para te acompanharem o resto do caminho.
Por que não vens, tu, passar uns dias comigo a Fiesole?
Talvez mais tarde... Lourenço não gostaria nada da minha presença e a mim não me apetece nada desagradar-lhe.
No dia seguinte, na via Calzaiuoli, Fiora, Chiara e Colomba, que tinham ido comprar tecidos ligeiros a pensar nos calores do Verão, saíam de uma loja e encaminhavam-se para as suas mulas guardadas por dois criados quando a rua se encheu de uma multidão aos berros e gesticulando, armada de paus, de facas e objectos diversos, que gritava ”Morte aos Pazzi. Justiça!... Liberdade!... À morte o Pazzi e a rapariga amarela!”
Jesus! gemeu Chiara. Ei-los que recomeçam! Dir-se-ia que encontraram mais um!
O efeito dos gritos foi mágico. Num abrir e fechar de olhos, os artigos foram retirados das montras, as persianas estalaram e o local ficou deserto.
Talvez fizéssemos bem em fugir, também nós? tentou Colomba, que tentava subir para a sua mula ajudada por um dos criados. Mas Fiora, já na sua sela, não a ouviu. Pelo contrário, a jovem fez avançar o seu animal alguns passos na direcção da multidão.
Não! gritou Chiara, inquieta. Vais fazer com que te façam em postas!
Olha quem lidera a multidão! disse ela, apontando com a chibata para o cavaleiro que marchava à cabeça da horda e que se virava para vigiar qualquer coisa.
Chiara juntou-se à amiga.
É Luca! sussurrou ela, estupefacta. O que é que lhe deu para brincar aos caudilhos? E um caudilho bem encarniçado!
Com efeito, a voz de Tornabuoni parecia dar ordens:
Ainda não! Não vamos matá-los já! Degolá-los-emos sobre a tumba de Giuliano e levaremos as suas cabeças ao meu primo Lourenço!
Um grito de aprovação saudou aquelas palavras ferozes que encheram de repugnância a alma de Fiora. Nunca imaginara que o seu antigo apaixonado fosse capaz de esconder sob um rosto de deus grego uma alma negra e os apetites dos mesmos Pazzi que queria degolar. Resolutamente, a jovem avançou para ele e colocou a sua mula de través na rua. Chiara seguiu-a e os dois criados fizeram o mesmo, abandonando a pobre Colomba, persuadida de que as duas jovens iam ser massacradas e invocando os santos do Paraíso com grandes gritos e lágrimas.
Esta é, sem dúvida, uma das facetas da tua coragem? lançou Fiora, desdenhosa, quando ficou suficientemente perto para se fazer ouvir. Quem pretendes tu degolar?
Olha! Fiora? Pensei que não quisesses dirigir-me mais a palavra? disse Luca com um sorriso que ela achou medonho.
Não é a ti que eu estou a falar: é a um assassino em potência...
Subitamente, a jovem sentiu-se desmaiar, porque acabava de reconhecer os dois infelizes, um homem e uma mulher, que uns brutos obrigavam a caminhar à força a despeito da sua evidente fraqueza. Estavam ambos cobertos de poeira, esfarrapados e tinham os rostos cobertos de sangue. Mas eram, incontestavelmente, Carlo Pazzi e Khatoun. Com um grito de horror, Fiora forçou a sua mula através da multidão sem se preocupar com o que os cascos do animal pudessem esmagar. Como Chiara e os dois criados a seguissem, as pessoas afastaram-se, tanto mais que alguns sussurravam à sua passagem: ”É a Fiora!... a amiguinha de monsenhor Lourenço... Chegada junto das duas vítimas que, esgotadas, se tinham deixado cair por terra de joelhos, a jovem desmontou e agarrou-se a Khatoun. E como um dos brutos tentasse impedi-la, ela lançou-lhe:
Atreve-te a tocar-me e serás enforcado! Esta jovem nunca foi uma Pazzi. Chama-se Khatoun, é tártara e é minha escrava.
Em seguida, virando-se, furiosa, na direcção de Luca que se tinha aproximado:
Não me digas que não a reconheceste? Viste-a mais de cem vezes em casa do meu pai!
Oh, é possível! grunhiu ele mas, que faz ela com ele? Não me digas que ele também não é um Pazzi? É o lamentável Carlo, o aborto que a família escondia com tanto cuidado. Reconheci-o quando o vi atravessar a ponte com a rapariga.
Nesse caso, a culpa disto tudo é tua?
Pois claro! Nenhum Pazzi deve ficar vivo nesta terra que eles sujaram lançou ele com grande eloquência. Reconheço que posso ter cometido um erro no que diz respeito à tua escrava e, como tal, devolvo-ta. Leva-a e deixa-nos, para acabarmos com o outro!
Chiara já se tinha apoderado da pobre pequena e os seus criados levavam-na para a loja de um boticário que acabava de se abrir para ela. Dava pena olhar para o pobre Carlo. Com as longas e esguias pernas dobradas, os olhos fechados e o rosto da cor da cinza, respirava com dificuldade e só o punho dos seus carrascos o impediam de se abater. Fiora compreendeu que o combate ainda não terminara:
Está fora de questão tu e os teus... amigos disporem da sua vida. Essa decisão pertence a monsenhor Lourenço.
Já disse que lhe levaremos a sua cabeça.
Mas eu não tenho a certeza, de que isso lhe agradará. Ele proibiu os actos de justiça demasiado expeditos e mais vale não desencadear a sua cólera.
A sua cólera? Por esta escória da humanidade? Estás a esquecer-te de uma coisa: foi a sua fortuna que pagou os assassinos de Giuliano.
Uma fortuna de que ele não dispunha. Ele era refém de Francesco Pazzi e é por isso que eu digo que só o Magnífico pode decidir da sua sorte. Estais a ouvir? acrescentou ela, erguendo a voz. Vamos, todos juntos, conduzir Carlo Pazzi ao palácio da Via Larga! Podeis estar certos de que o nosso príncipe ficará mais reconhecido perante uma homenagem viva do que perante uma homenagem morta!
Os gritos de descontentamento que se tinham erguido quando ela se tinha atirado para a batalha apaziguaram-se sensivelmente. A jovem falava em nome do senhor de Florença e aquela gente pensava que ela tinha esse direito. Fiora conseguiu, até, alguns grunhidos de aprovação ao acrescentar que, provavelmente, Lourenço saberia recompensá-los. Mas as coisas quase pioraram de novo quando ela pediu que Carlo fosse içado para a sua mula.
Ele aguentou até aqui, pode muito bem aguentar até ao palácio! exclamou uma espécie de colosso cujos braços nus, ostentando braceletes de couro e cuja túnica, manchada de sangue enegrecido, o classificavam como pertencente à corporação dos carniceiros.
Fiora encolheu os ombros:
Então, leva-o tu! És suficientemente forte para isso. Não vês que ele está meio-morto? Um cadáver não te renderá nenhuma moeda.
A jovem conseguiu o que queria: Carlo foi atirado como um saco para a garupa da mula cujas rédeas ela mesma segurava. Fiora sabia que a situação era difícil, mas por nada deste mundo, mesmo que tivesse de perder o amor de Lourenço, abandonaria àqueles brutos o estranho rapaz que se declarara seu amigo quando a terra inteira se unia contra ela. Nesse instante, Chiara saiu da loja do boticário e abarcou a cena com um simples olhar, mas Fiora não lhe deu tempo para emitir a sua opinião.
Leva Khatoun para tua casa, por favor! pediu ela docemente. Eu vou lá ter daqui a pouco.
Não vais regressar a Fiesole?
Não. Preciso de ver, antes, Lourenço.
E a jovem retomou o seu caminho à cabeça de uma multidão agora mais curiosa do que verdadeiramente excitada. Luca Tornabuoni marchava a seu lado com feições amuadas e o carniceiro ia do outro lado da mula. Ninguém disse uma palavra até que, ao virar de uma esquina, a silhueta imponente e familiar do palácio Médicis apareceu com as suas enormes pedras aparelhadas e as suas janelas abobadadas. Em tempos, qualquer um teria podido transpor a soleira e penetrar, pelo menos, no grande pátio quadrado, mas agora o portão era guardado por guardas armados. A nobre morada devia ao assassinato de Giuliano o facto de ter perdido o carácter amável e bondoso que a tornava tão atraente. Ganhara a severidade altiva que Fiora vira nos palácios romanos. Decididamente, Florença mudara muito! Bem entendido, os soldados cruzaram as armas à chegada daquela multidão sombria e vagamente ameaçadora. E só as descruzaram quando Luca Tornabuoni se deu a conhecer, mas Fiora reclamou Savaglio e o capitão da guarda apareceu. Fiel ao seu hábito, este foi de um humor massacrante:
Que se passa? gritou ele. Eu já disse que não queria reuniões em frente desta casa. Dispersai! Deixa-me, ao menos, entrar com esta mula e estes dois homens lançou Fiora. Quero ver monsenhor Lourenço.
O olhar de Savaglio, vivo e acerado, deteve-se em cada uma das três fisionomias e depois no corpo inerte:
Ser Luca. não precisa de autorização para ver o primo e tu também não, donna Fiora, mas esses dois outros não me parecem familiares. E essa gente?
Eles esperarão tranquilamente enquanto eu lhe falo a sós
- insistiu a jovem. Ele está?
No seu gabinete. Eu levo-te lá...
Eu também quero ir! exclamou Tornabuoni e não percebo por que...
Vamos! Primeiro as damas! disse o chefe da guarda e o seu sorriso de lobo dizia da pouca estima que sentia pelo jovem. Estou certo que donna Fiora não demorará muito. Tu podes bem esperar mais um momento...
Sempre a falar, Savaglio deu a volta à mula, procurando aperceber o rosto do homem que o animal transportava:
Está morto?
Não. Simplesmente desmaiado, creio eu, mas talvez precise de alguns cuidados! É Carlo Pazzi, messer Savaglio. Acabava de entrar em Florença quando foi atacado...
Cuidados a um Pazzi! Dás-te conta, Savaglio?
Fiora aproximou-se de Luca, o suficiente para que ele ouvisse o seu sussurro:
Toda a gente, aqui, sabe que ele é um inocente disse ela entredentes. No entanto, lembra-te, Luca, que uma das irmãs de Lourenço está casada com um Pazzi... e que esse não foi inquietado... Só Lourenço poderá julgar este... e eu inclinar-me-ei perante a sua decisão.
Sem esperar pela resposta, a jovem dirigiu-se em passo rápido para a íngreme escadaria que ia dar aos andares superiores logo seguida por um criado encarregado de a anunciar, já que Savaglio decidira, em última instância, ficar de olho naquele bando que não lhe inspirava nenhuma confiança.
Atrás do dorso solene do criado, Fiora percorreu as divisões cuja magnificência lhe era familiar. A jovem conhecia, há muito, as grandes tapeçarias tecidas a ouro, os móveis preciosos dispersos numa desordem propositada sobre espessos tapetes vindos da Pérsia ou do longínquo Cathay os aparadores atafulhados de objectos de ouro, de prata ou de cobre, incrustados de pedras preciosas, todo o luxo que uma grande fortuna e um gosto sem defeito podiam reunir em torno de um homem. Fiora penetrou, enfim, numa divisão onde uns grandes armários pintados, subindo até ao tecto armoriado e dourado, deixavam ver uma profusão de livros encadernados a couro, a pergaminho, a veludo e até a prata cinzelada. No momento da sua entrada, Lourenço de Médícis saía tão impetuosamente que quase a atirou por terra. Ele reteve-a e apertou-a um instante contra si:
Tu? Que bela surpresa!... Espera por mim um instante, tenho de ir ver que tumulto é este...
Eu venho, justamente, falar-te dele. Este tumulto é um pouco por minha causa. Anda ver!
Ela levou-o até à galeria que dava para o pátio e mostrou-lhe o pequeno grupo formado por Luca, a mula que Savaglio livrava da sua carga sem grande suavidade e o carniceiro.
Exigi que o teu primo e a horda que ele reuniu para degolar aquele infeliz sobre o túmulo de Giuliano o trouxessem primeiro até aqui para que tu decidisses.
Parece-me que o conheço disse Lourenço, semicerrando os olhos míopes para ver melhor. Dir-se-ia que é Carlo Pazzi, o Inocente É ele mesmo. Acaba de chegar de Roma na companhia de Khatoun, a minha antiga escrava tártara que Catarina Sforza me deu. O teu primo e um bando de brutos estavam a maltratá-los quando eu intervim com Chiara e dois criados. Khatoun, a esta hora, já deve estar no palácio Albizzi, onde estão a tratar dela. Agora, cabe-te a ti decidir da sorte de Carlo, mas devo prevenir-te que não suportarei que lhe façam mal.
Sem responder, Lourenço debruçou-se na balaustrada e ordenou ao seu capitão que levassem o prisioneiro até ele. Em seguida, levou Fiora pelo braço até à biblioteca, onde a fez sentar perto de um grande vaso de ametista incrustado de pérolas, a principal maravilha daquela divisão.
De onde conheces tu Carlo Pazzi? perguntou ele, por fim, e a sua voz incisiva tinha aquela ressonância metálica de que Fiora aprendera a desconfiar.
De Roma. Foi ele que me ajudou a fugir a meias com a condessa Riario. Tenho de te lembrar a carta que te trouxe? Ambos desejavam ardentemente que o atentado falhasse.
Donna Catarina tinha uma razão disse o Magnífico com um encolher de ombros. Ela amava o meu irmão. Mas ele, que razão poderia ter?
Tu foste bom para ele, ao ponto de o quereres confiar aos cuidados de Demétrios. Ele estava persuadido de que tu eras o seu único amigo nesta cidade.
A entrada de Savaglio, seguido dos dois guardas segurando Carlo, interrompeu a jovem. Com os olhos fechados, o infeliz respirava com dificuldade e no seu rosto magro o sangue deixara, ao secar, traços negros. Estenderam-no sobre uma espécie de banco guarnecido de almofadas. Com o pescoço torcido que o obrigava a manter a cabeça inclinada e os longos membros franzinos privados de vida, parecia-se com um fantoche desarticulado. Cheia de piedade, Fiora foi ajoelhar-se junto dele reclamando água fresca, ligaduras, sais e um pouco de aguardente. Um criado trouxe o que ela pedira e juntou os seus esforços aos da jovem para tentar reanimar o infeliz. De pé por trás de ambos, Lourenço, com o olhar carregado de nuvens, observava-os. Por fim, quando já começavam a desesperar, o ferido exalou um profundo suspiro e abriu penosamente os olhos. Mas qualquer coisa brilhou nas profundezas azuis ao reconhecer o rosto inclinado sobre si.
Fiora! sussurrou ele. É um milagre! Estais... estais bem?
A pergunta, feita com voz infantil mas comovedora, fê-la sorrir. Apesar de meio-morto, o primeiro pensamento daquele estranho rapaz fora para a sua saúde.
Muito bem, Carlo... e graças a vós. Com efeito, é um milagre estarmos os dois juntos, mas, que viestes aqui fazer? Não sabíeis o perigo que corríeis?
Oh sim! Mas não podia ficar em Roma. O Papa está furioso com os Médicis... e convosco. Só fala de guerra! Quanto a mim, já não era senão um vestígio das suas esperanças defuntas e teria sido morto se donna Catarina não me tivesse escondido. Foi ela que nos deu os meios para que Khatoun e eu pudéssemos sair de Roma. Khatoun queria juntar-se a vós...
E vós? Queríeis assim tanto encontrar-me?
Seguiu-se um pequeno silêncio e o rosto ferido esboçou a sombra de um sorriso tímido.
Não. Eu sabia que não teríeis nenhum prazer em me ver de novo. O que eu esperava... era regressar ao meu jardim de Trespiano. Vivi lá os únicos dias felizes da minha vida. Quanto à comédia que nos fizeram representar, gostaria que a esquecêsseis e que continuásseis a viver como se eu não existisse...
Qual comédia?
Aquela pergunta fora feita pela voz áspera e brutal de Lourenço. Erguendo a cabeça para ele, Fiora viu a prega amarga da sua boca e a luz inquietante acesa pela cólera nos seus olhos negros. A jovem conhecia-o demasiado bem para ignorar que o Magnífico não se contentaria com uma meia verdade. Sem largar a mão de Carlo que, cansado de falar, se abandonava à fadiga, Fiora declarou com uma voz que só o Magnífico poderia ouvir:
Na véspera do dia em que fugi de Roma, o Papa casou-nos na sua capela privada...
Nesse momento, como se o céu estivesse à espera daquelas palavras para manifestar a sua desaprovação, um violento trovão rolou de uma ponta à outra da cidade e uma chuva diluviana abateu-se, saudada de imediato por um clamor rancoroso da multidão aglomerada diante do palácio:
À morte o Pazzi! Que no-lo entreguem! Apavorada, Fiora apertou ainda mais a mão franzina que segurava e murmurou:
Se o entregas, Lourenço, terás de me entregar também...
O instante que se seguiu foi aterrador. De pé diante do grupo formado pelo ferido estendido e a jovem ajoelhada junto dele, Lourenço, cujo traje negro fazia maior ainda, dominava-o com a sua sombra ameaçadora. Os seus punhos cerrados e o seu rosto crispado traduziam uma cólera muda que se aproximava talvez, até, do desejo de assassínio. Fiora, fazendo apelo a toda a sua coragem, ergueu-se lentamente e fez-lhe frente, consciente de desafiar um potentado desejoso de vingança e já não o homem que, por vezes, delirava de amor nos seus braços.
Decide! disse ela. Mas decide depressa! Estás a ouvi-los?
Os uivos iam-se amplificando. O aguaceiro não dispersara a multidão que, pelo contrário, devia ter engrossado, mas Lourenço parecia não ouvir os gritos de morte. O seu olhar vasculhava o da sua amante, como se procurasse arrancar-lhe uma qualquer verdade escondida.
Uma Pazzi! disse ele, por fim. Tu, uma Pazzi e esposa deste miserável dejecto...
A indignação que ela sentiu misturou-se com uma amarga decepção. Que motivo, senão um ciúme primitivo de macho, o mais baixo, já que não tem a desculpa do amor animava aquele espírito geralmente brilhante para a insultar daquela maneira?
Um casamento forçado não vale perante Deus, mesmo que abençoado pelo Papa disse ela. Quanto a Carlo, não me tocou.
Em seguida, com um desdém que fez corar as faces de Lourenço:
Tinhas obrigação de me conhecer melhor, mas apercebo-me de que não sou para ti mais do que um corpo para te satisfazeres, pouco mais do que uma cortesã. Nesse caso, podes entregar-me sem arrependimentos, porque não me submeterei mais aos teus desejos.
Que quer dizer isso? grunhiu ele.
Que partirei amanhã para França... na condição, evidentemente, de não ser massacrada dentro de uma hora com Carlo.
Não me desafies, Fiora! Não ganhas nada com isso.
Eis que reaparece o banqueiro. Alguma vez tentei aproveitar-me de ti? O que me deste, não o levarei, podes ter a certeza! Deixarei tudo com Demétrios. E se és incapaz de reconhecer os teus amigos, se a piedade te é desconhecida, o meu lugar não é junto de ti.
Com um gesto imperioso, a jovem afastou-o do seu caminho e dirigiu-se para a porta. Ele juntou-se-lhe:
Onde vais?
Vou dizer a verdade a Luca Tornabuoni. Vou-lhe dizer que Carlo é meu marido e que, se o quiser matar, terá de me matar também a mim.
Mas, enfim, por que razão queres tanto que ele viva, como pretendes, se foste casada à força? A sua morte libertar-te-ia e tu sabe-lo bem.
A minha liberdade? Foi ele que ma devolveu ao conduzir-me ao palácio Riario e ao regressar para sua casa com Khatoun vestida com as minhas roupas. Quanto a pôr em dúvida a minha palavra, é indigno! Lembra-te do homem que era Philippe de Selongey Eu amava-o, ainda o amo e tu tens o descaramento de dizer que casei de boa vontade?
Oh, não o esqueci!
Agarrando em Fiora por um braço, Lourenço arrastou-a, mais do que a conduziu, até um valioso espelho de Veneza que, colocado perto de uma janela, reflectia sobre a ordem calma e harmoniosa do jardim interior. A sua dupla imagem surgiu:
Olha! Olha bem!... Eu sou feio, Fiora, sou, até, horrendo e Carlo não é mais do que eu. No entanto, deixaste que te pôssuísse vezes sem conta! Melhor ainda, foste tu que te ofereceste na primeira noite. Lembra-te! Foste tu que me conduziste ao teu quarto, foste tu que desataste os cordões da tua camisa. Foi por amor ao teu marido que me revelaste o teu corpo, que me atraíste?
Desejava-te... e esse desejo não está saciado, senão teria partido...
Tu gostas do amor que eu te dou, mas é nele que continuas a pensar, nesse borgonhês insolente, mesmo depois de morto, cuja recordação eu pensava ter exorcizado.
Certas recordações são impossíveis de apagar, Lourenço!
A sério? Somos assim tão parecidos, ao ponto de aceitares as minhas carícias... e até as provocares no mesmo quarto onde ele fez de ti uma mulher? É nele que pensas quando gemes por baixo de mim? No entanto, a tua boca diz o meu nome quando atinges o êxtase...
Então, foi por essa razão que foste ter comigo na noite que se seguiu ao crime? murmurou Fiora com amargura. Pela alegria da vingança, por poderes triunfar de um morto? E eu que pensava que tu precisavas de mim como eu precisava de ti! Isso prova apenas que foi tudo um mal-entendido... Mas, que esperas tu provar ao dizer que Carlo ainda é mais feio do que tu? Que me basta fechar os olhos para acolher qualquer homem a partir do momento em que ele seja mesmo homem?
Uma voz fraca, que parecia sair do próprio chão de madeira preciosa, fez-se ouvir, uma voz que dizia:
Lourenço, Lourenço!... Quando tu respiras o perfume de uma rosa, perguntas-lhe se ela se lembra das mãos que a fizeram desabrochar? Para onde foi a tua filosofia? Agarrar o momento, não é verdade? Parece-me que estás bem longe disso!
Com sincero estupor, Lourenço olhou para o ferido. Apoiado num cotovelo, este endireitara-se e olhava para os dois amantes com, no fundo dos seus olhos azuis, uma pequena chama irónica.
Carlo! murmurou o Magnífico. Eu pensava que eras um idiota!
Eu sei. E eu pensava que tu eras inteligente. Portanto, é preciso ser um deserdado como eu para saber apreciar um presente fabuloso da vida? Nós somos amigos, Fiora e eu e isso dá-me tanta alegria que aceito ser entregue àquela gente que continua a esganiçar-se à chuva, enquanto tu, privilegiado entre os privilegiados, feliz entre os felizes porque ela se te entregou, continuas à procura do que pode estar escondido por trás das tuas noites de felicidade...
À custa de um violento esforço que o fez empalidecer ainda um pouco mais, Carlo conseguiu sentar-se.
O que eu perguntaria a mim próprio, se estivesse no teu lugar, seria como conservá-la. Mas, ao fim e ao cabo, talvez não estejas muito interessado.
Carlo procurava um apoio para se poder pôr de pé. Fiora precipitou-se, sentou-se junto dele e, passando-lhe um braço em redor dos ombros, obrigou-o a ficar imóvel, enxugando com a ajuda do seu lenço o suor que lhe perlava a fronte.
Onde tencionais ir?
Servir de pasto àqueles corvos aos gritos disse ele com uma pequena risada. Mas não vão ter grande coisa: eu já estou meio-morto. Até certo ponto, fazem-me um favor...
Vamos juntos, Carlo. Monsenhor Lourenço nunca foi capaz de impor a sua lei quando Florença se incendeia. Uma maneira como outra qualquer de a fazer acreditar que ainda é uma república...
O desdém que vibrava na voz da jovem esbofeteou Lourenço:
Dispenso os teus sarcasmos, Fiora! Ficai ambos tranquilos! Já é tempo, com efeito, que se saiba quem manda aqui!
Dez minutos mais tarde, a via Larga reencontrava o seu aspecto habitual. A chuva cessara tão subitamente como surgira e os guardas do palácio retomavam a cadência do seu lento passeio. Um pouco por toda a parte, na grande artéria, as persianas desciam sobre as lojas. Os comerciantes saíam das suas casas, como os outros homens, porque era a hora sagrada da passeggiata, hora a que, enquanto as suas mulheres se afadigavam na preparação da refeição da noite, os florentinos juntavam-se diante do Duomo, da Senhoria ou no Mercato Vecchio para discutir os negócios do dia ou falar de política. Os jovens elegantes,
1 Passeio
esses, escolhiam antes a ponte Santa Trinita, que conhecia sempre, ao pôr do Sol, a mais brilhante das animações. Paradoxalmente, era também a hora em que os muros da cidade pareciam ressumar uma estranha melancolia, aquela morbidezza que tinha um certo encanto e que os sinos do Ângelus acompanhavam como outras tantas vozes celestes. As dos homens suavizavam-se e um doce murmúrio erguia-se sobre a cidade.
Encostada a um dos armários marchetados que aumentavam a profundidade das seteiras, Fiora deixava o seu olhar divagar pelos grupos de trajes e gibões de cores escuras que, em passo tranquilo, se dirigiam para o encontro vespertino conversando polidamente. Aquela cidade parecia, na verdade, incompreensível, uma cidade que fazia da arte de viver e dos sábios preceitos da filosofia o supra-sumo da civilização e que, ao mesmo tempo, paria uma multidão uivadora ávida de sangue e capaz de cobrir as suas ruas e praças de despojos humanos.
Carlo, deitado de novo no seu banco, tinha os olhos fechados. Parecia sofrer e, com toda a evidência, o seu estado necessitava da presença de um médico... Quando Lourenço regressou, encontrou Fiora de pé junto dele e segurando-lhe na mão:
Dir-se-ia que conseguiste dispersá-los? constatou a jovem. Que lhes disseste?
Que ele morreu disse ele, designando com o queixo o corpo estendido.
Fiora teve um leve sorriso, suficientemente desdenhoso para traduzir o seu pensamento, melhor do que quaisquer palavras. Lourenço encolheu os ombros, furioso:
Ainda não estás satisfeita, pois não? Que significa esse sorriso?
Nada... ou muito pouco! Simplesmente, pergunto a mim própria se ousarás algum dia, um só, opor a tua vontade a um tumulto. O que me espanta é eles não terem reclamado o corpo para o fazerem em fanicos sobre o túmulo de Giuliano!
Eles reclamaram-no. Sobretudo aquele burro do Luca. Mandei-o para casa, acrescentando que, se o visse outra vez a brincar aos caudilhos, o atirava para a Stinche como rebelde.
1 A prisão de Florença
E depois?
Não te ponhas com esse ar de juiz presidindo a um tribunal, Fiora! Estás a irritar-me! Lembrei a minha interdição de tocar em qualquer sepultura, seja ela qual for. E, para o provar, disse que Pazzi seria enterrado secretamente onde eu achasse que devia ser enterrado... E agora vou mandar levá-lo para um quarto.
Para que os teus criados saibam que mentiste? Rica ideia! Não podias, também, pensar na tua mãe e na tua mulher?
Nem uma nem outra estão cá. Mandei-as para a villa di Castello assim que o bom tempo regressou, para que possam encontrar paz e sossego. Quanto aos meus criados...
Esquece-os! Ou antes, diz àqueles em quem mais confias que preparem uma liteira que feche bem e que reunam uma escolta comandada por Savaglio. Vou levar Carlo para minha casa, para Fiesole. Ninguém o tratará tão bem como Demétrios.
Queres partir esta noite? Isso é uma loucura! O povo vai fazer perguntas ao ver uma liteira tão bem guardada!
Não fará perguntas nenhumas pela simples razão de que, aqui, ninguém ignora que eu sou a tua favorita do momento. Ninguém se mostrará surpreendido por tu mostrares alguma solicitude.
Ele reflectiu por uns momentos e depois, aproximando-se da jovem, tomou-a nos braços sem parecer aperceber-se da sua ligeira resistência e escondeu-lhe o rosto no pescoço:
Então, façamos melhor ainda! murmurou ele. Savaglio fica aqui e eu próprio te escoltarei.
Queres?...
Por que não? Já que toda a gente está ao corrente, não há razão para não agirmos à luz do dia. Arrisco-me apenas, ao longo do caminho, a receber algumas piadas lascivas sobre os prazeres que vou ter à noite. Não, não digas nada! Lembra-te da minha carta: não quero ficar sem ti mais uma noite...
Ora, nessa noite, Fiora não reencontrou a felicidade indolente que conhecera durante as últimas semanas. Talvez porque não se sentisse verdadeiramente livre. No quarto vizinho, vazio até àquela noite, Carlo repousava, profundamente adormecido graças à droga administrada por Demétrios para lhe acalmar as dores. O jovem sofria, de várias costelas partidas, sem contar com as diversas esfoladelas no rosto e no couro cabeludo. Mas a sua presença no outro lado da parede incomodava Fiora e nem toda a arte amorosa de Lourenço foi capaz de a descontrair...
Após se saciar uma primeira vez, este apercebeu-se e após algumas tentativas para acordar naquele belo corpo um ardor igual ao seu, acabou por se deixar cair no leito, os olhos fixos no dossel cujas cortinas brancas os envolviam com uma luminosidade rosada provocada pela vela.
Devias ter-me dito a verdade - suspirou ele. Já não me amas?
Eu nunca te disse que te amava murmurou Fiora. Tu também não, aliás...
Estou a prová-lo, parece-me?
Não. Estás a provar o teu desejo, o teu coração não é para aí chamado.
Mas estou cheio de ciúmes e, há pouco, teria estrangulado aquele infeliz.
E isso será mesmo ciúme? Tu sabes que ele não fez nada e que nunca poderia haver nada entre nós. Não será antes por ele ser um Pazzi?
Talvez... se bem que ele me inspire, antes de mais, piedade. Mas tu, Fiora, que te diz o teu coração acerca de mim?
Honestamente, não sei. Eu gosto do amor que tu me dás e o meu corpo excita-se quando tu te aproximas...
Esta noite não, em todo o caso!
Concordo... mas não me queiras mal por isso: o dia foi difícil.
Além disso, não suportas a ideia de uma presença no outro lado da parede?
Também. Sinto um incómodo bizarro... como se fôssemos verdadeiramente casados.
De repente, a jovem ouviu-o rir-se:
Se é só isso!
Saltando do leito, ele enfiou os calções e as botas, enrolou Fiora num lençol, atirou-lhe para cima com algumas almofadas apesar dos seus protestos e depois, agarrando no todo saiu do quarto, desceu as escadas, atravessou o vestíbulo e desatou a correr através do jardim ainda molhado da última chuvada até à pequena gruta onde Francesco Beltrami gostava de se refugiar durante os dias quentes de Verão. Uma tina e uma bica com cabeça de leão ocupavam o centro e a canção da água acalmava o espírito muitas vezes acabrunhado do grande negociante.
Lourenço pousou Fiora no chão, espalhou as almofadas e deixou-se cair em cima delas com a jovem, que desenrolara, entretanto, do lençol, como se fora um pião:
Pronto! declarou ele alegremente. Acabaram-se os vizinhos incómodos! Doravante amar-nos-emos aqui.
Fiora não pôde resistir. Arrebatada por uma sarabanda louca de carícias, deixou que a sua necessidade de amor e a sua juventude levassem a melhor.
No dia seguinte, através da magia do Magnífico, a pequena gruta, vestida com grandes lírios de água, de cetins irisados, de cristais glaucos e com um tapete sedoso que lembrava erva azul, assemelhava-se aos retiros encantados dos contos orientais. O amor experimentou ali um sabor novo porque se libertava dos constrangimentos impostos pela grande villa e dava aos dois amantes a impressão deliciosa de estarem sós no coração do primeiro jardim do mundo.
Uma noite em que, após se terem banhado e feito amor na tina e enquanto Lourenço enxugava com um cuidado devoto o corpo de Fiora, esta, que molhava os lábios numa taça de vinho de Chipre, suspirou, estendendo-a ao amante:
Tenho vergonha de mim própria, Lourenço... Nunca conseguirei arrancar-me a ti...
Espero bem que não. E por que razão nos havíamos de separar?
Esqueces que tenho um filho, que não o vejo há meses... e que tenho saudades dele.
Eu mando-o vir em breve. Sabes, eu penso muito em nós e não me faltam projectos. Até dei ordens para que reparem, para ti, o antigo palácio Grazzini. Viverás lá com o teu filho e os teus criados sob o nome de Selongey. Não... não digas nada! Farei do teu filho um dos primeiros homens de Florença. Será rico, poderoso e nada o impedirá, chegada a ocasião, de ir servir com as suas armas o soberano que quiser escolher... Quanto a nós, ficaremos juntos, minha flor preciosa, e poderei continuar a rodear-te de cuidados... e de amor.
De amor?
Claro. Se o que nos une não é isso, parece-se terrivelmente. Florença vai viver dias sombrios, Fiora. Eu vou precisar, mais do que nunca, das horas incomparáveis que tu me dás. Quanto a ti, desempenharás, no coração dos meus súbditos, o papel que pertencia a Simonetta, porque a sua natureza profunda é atraída pela beleza perfeita. A eles, parece-lhes que Florença não pode brilhar se não estiver encarnada numa mulher deslumbrante... Não te preocupes com nada! Deixa-me agir! Juntos, ganharemos a batalha contra este Papa indigno, que quer o nosso extermínio.
Sisto IV abrira as hostilidades. Uma breve, datada de 1 de Junho de 1478, excomungava ao mesmo tempo Lourenço, ”filho da iniquidade”, cujo maior defeito, aos seus olhos, era estar ainda vivo e os priores da Senhoria, ”possuídos de sugestão diabólica e dominados, como cães, por uma raiva delirante”, por terem ousado enforcar um arcebispo nas suas janelas.
Lourenço recebeu a notícia sem pestanejar. As cóleras de um Papa indigno não o interessavam. Contentou-se a reenviar para Siena, sob uma boa escolta, o jovem cardeal Rafaele Riario que, após o assassínio cometido na catedral, vivia num estado de estupor profundo. O que não acalmou, de modo nenhum, o pontífice ulcerado. Os Florentinos receberam ordem de entregar Lourenço de Médicis a um tribunal eclesiástico, diante do qual ele responderia pelos seus crimes. Uma ordem que não teve sucesso. O povo recusou todo e qualquer convite à revolta: não aceitava nenhuma ordem do Papa de carácter temporal. E fechou-se de corpo e alma em redor do príncipe a quem se entregara, partilhando o desgosto que lhe causava a morte do irmão, aquele Giuliano em quem todos os Florentinos viam a imagem acabada do encanto e arte de viver da sua cidade.
O Papa preparou-se, então, para a ”guerra santa”. Ao mesmo tempo que recrutava condottieri e reforçava a sua aliança com Nápoles e Siena, escrevia a toda a Europa, convidando os príncipes cristãos a tomar parte no cerco final.
O resultado desse fulminante correio pontifício foi muito diferente do que o seu autor esperava. Os soberanos da Europa não viam qualquer motivo para se lançarem ao ataque de Florença apenas para agradar a um papa que queria punir, através do extermínio de uma cidade, um atentado sacrílego cometido numa igreja. As mensagens chegadas ao Vaticano, plenas de reverência e fórmulas atenciosas, demonstravam uma vulgaridade desencorajante. Um só destinatário não respondeu: o Rei de França, decidido a dar a conhecer, assim, a sua opinião.
Numa tarde de meados de Junho, Fiora, sabendo que Lourenço, retido pelos negócios, não iria ter consigo nessa noite, passeava-se no jardim com Demétrios e Carlo, este sustido por ambos, um de cada lado. Admiravelmente tratado pelo grego, livre dos impiedosos constrangimentos impostos a si próprio desde a infância a fim de sobreviver, o jovem abandonava-se à simples alegria de viver. Naquele enquadramento, parecido com o que amava, Carlo podia receber cuidados atentos, sentir a amizade e passar os dias entre um homem de espírito profundo e de grande cultura e uma mulher encantadora que lhe testemunhava uma afeição de irmã. O jovem não ignorava, evidentemente, o que acontecia muitas noites na pequena gruta, mas, como nunca se considerara marido de Fiora, limitava-se a sorrir, feliz por, após tanto sofrimento, a sua amiga encontrar, finalmente, um pouco de felicidade. Entretanto, era demasiado fino para não sentir o lado precário daquele romance apaixonado.
Dois solitários que um naufrágio atirou para um mesmo barco! disse ele um dia a Demétrios. Ambos encontraram nele víveres e, porque o mar acalmou, porque o céu ficou azul, esperam chegar a uma qualquer costa encantada para ali viverem um amor e uma juventude eternos.
Crês, na verdade, que o amor deles está ameaçado?
Não pode deixar de estar; são demasiado diferentes um do outro. Fiora é demasiado nobre, demasiado orgulhosa para este papel de favorita, publicamente declarado, que Lourenço lhe impõe. Além disso... ela não o ama verdadeiramente. Se os seus olhos não brilham quando ouve pronunciar o seu nome, é porque não ecoa no seu coração.
Poderá vir a ecoar, um dia? Por vezes, uma paixão carnal transforma-se em sentimentos profundos.
Enche um tambor de areia e bate depois nele! Nunca vibrará. O coração de Fiora é esse tambor e a recordação de um outro amor enche-o por completo.
Mas esse amor está morto.
Talvez, mas isso não muda nada. Lourenço, apesar de não o saber, limita-se a ajudar Fiora a passar os dias de modo agradável enquanto ela espera reencontrar, no fim do caminho, para a eternidade, a mão que ela escolheu...
A partir desse momento, Demétrios votou ao jovem enfermo uma amizade que se assemelhava a uma verdadeira afeição. Uma vez curado dos seus ferimentos, já que não podia fazer grande coisa por aquele corpo desgraçado, prometeu a si próprio ajudar a desabrochar uma inteligência que conquistara o seu respeito.
O médico pensava nessa conversa enquanto os três desciam lentamente os degraus largos e suaves que ligavam os diferentes terraços do jardim. Entretanto, Fiora parecia feliz. Sustendo o braço esquerdo de Carlo, falava alegremente, explicando os melhoramentos que contava fazer na sua casa e arredores. O seu perfil fino, velado por um ligeiro e frágil véu azul, destacava-se com a nitidez de uma antiga cinzelagem nas longínquas colinas cor de malva e o grego interrogou-se: Carlo teria razão ao crê-la ainda habitada pelo amor de outros tempos? A jovem parecia de tal modo viver a hora presente! Era como se tivesse esquecido aqueles de quem estava afastada há meses: a sua casa de Touraine, a sua velha Léonarde e, sobretudo, o seu filho. Aquela que se regozijava em segredo a chamar de filha tornara-se naquela criatura superficial, unicamente preocupada com as suas noites ardentes com Lourenço, não esperando outra coisa da vida?
Estou a ficar velho, pensou Demétrios com alguma tristeza, já não sou capaz de ler o seu coração e, sobretudo, os olhos do meu espírito perderam o poder de perfurar as brumas do futuro. No entanto.
Um som de passos rápidos no cascalho do jardim acordou-o da sua meditação. Descendo a alameda onde umas laranjeiras envasadas, recentemente saídas da sala da villa onde tinham passado o Inverno, alternavam com loureiros metidos em altos vasos de barro vermelho, Esteban, que vinha da cidade, acorria a toda a pressa.
Trago notícias! gritou ele de longe assim que viu os passeantes. O Rei de França enviou um embaixador a monsenhor Lourenço!
O castelhano vinha esbaforido e as últimas palavras perderam-se um pouco no vento da tarde, mas Fiora tinha percebido o principal: Isso é bom, ou mau? perguntou ela sem procurar dissimular uma certa inquietação.
Muito bom, certamente! E melhor ainda porque se trata de um dos vossos amigos!
Um amigo? Quem? Falai, Esteban, fazeis-nos morrer de ansiedade!
Messire Philippe de Commynes, donna Fiora! Não ides dizer-me que não é um amigo! Chega pelo São João. Monsenhor Lourenço, com quem estive há uma hora na Badia, foi avisado por um cavaleiro rápido logo a seguir ao meio-dia.
Quem é esse Philippe de Commynes? perguntou Carlo, que se interessava cada vez mais, a cada dia que passava, pela vida exterior.
É o melhor conselheiro do Rei Luís a despeito da sua pouca idade, porque ainda não chegou aos trinta. Durante muito tempo ao lado do defunto duque de Borgonha, abandonou-o ao perceber a política rígida que este queria exercer. Conheço-o bem, com efeito e creio poder afirmar, como Esteban, que é para mim um excelente amigo.
A sua visita dá-vos prazer, então?
Evidentemente. Espero ter, através dele, notícias recentes do meu filho...
Não quero diminuir a tua alegria, Fiora cortou Demétrios mas, como pode messire de Commynes trazer-te notícias? Ele ignora, certamente, que tu estás aqui.
Demétrios tinha razão e o olhar da jovem encheu-se de sombras. As últimas notícias dela chegadas a França deviam ter sido levadas por Douglas Mortimer. Mortimer, que assistiu, na capela papal, ao seu casamento com Carlo Pazzi...
Demétrios seguira o fio do pensamento no rosto móvel da jovem. O médico sorriu e segurou-lhe numa das mãos.
Não fiques triste! Eu procuro, apenas, poupar-te a uma desilusão. Mas o teu rapto de Plessis-les-Tours deve ter feito algum barulho e o nosso amigo Commynes poderá, pelo menos, dizer-te o que se passou depois.
Não estou muito certa. Ele estava, então, exilado em Poitou por ter ousado criticar a crise de violência que o Rei Luís atravessava. No entanto, o facto de ser ele o embaixador já é, em si, uma boa notícia. Isso prova que ele reencontrou a confiança daquele a quem ele gosta de chamar o ”nosso sir. E que chegue pelo São João, a nossa grande festa, é um bom augúrio.
De regresso ao seu quarto onde Khatoun, curada dos seus pavores e escoriações, a esperava comendo pistácio, Fiora sentiu-se estranhamente sobreexcitada. A ideia de rever Commynes sorria-lhe: não era ele um dos de quem mais gostava entre os que deixara para lá dos montes? Graças a ele, podia conhecer as disposições actuais do Rei para com ela. Que Luís fizera muito para a tirar da má situação para a qual a cupidez de Riario e de Hieronyma a tinham atirado era um facto, mas ela sabia-o inconstante e, sobretudo, exigente: como teria reagido ao seu casamento com Carlo?
Para Florença, fosse como fosse, a notícia não podia deixar de ser boa. Fiel há muito à aliança com os Médícis e pouco dado a indulgências para com um Papa que não cessava de o ofender, Luís XI, ao enviar o seu melhor conselheiro, procurava, certamente, tranquilizar os seus amigos florentinos...
Enquanto Khatoun a ajudava a despir-se, Fiora pensou que Lourenço não teria oportunidade de se encontrar de novo com ela antes do São João. Os preparativos da festa mais importante já que se tratava da festa do santo patrono da cidade, aquele a quem esta fora dedicada com o Baptistério, a sua jóia mais preciosa açambarcariam o Magnífico, sobretudo depois de ele saber da chegada de um embaixador amigo. A jovem não sentiu qualquer pena. Pelo contrário, coisa curiosa, sentiu, mesmo, uma espécie de alívio e, nessa noite, só sob as cortinas cor de neve do seu grande leito, prometeu a si própria mandar um bilhete no dia seguinte a Lourenço, pedindo-lhe que não aparecesse antes da festa. Precisava de reencontrar a serenidade, porque o pensamento de enfrentar o olhar perspicaz de Commynes ainda quente dos beijos do amante era-lhe penoso. A sua posição de favorita oficial, de que ela se orgulhara até então, começava a envergonhá-la a despeito do precedente estrepitoso constituído pelos amores de Simonetta Vespucci com Giuliano sob os olhares do próprio marido.
Assim, foi com uma certa alegria que ela recebeu, na manhã seguinte, um pequeno bilhete de Chiara convidando-a para passar o São João em casa dela. Com o apoio da amiga, arranjaria a força necessária para reencontrar o embaixador. Mas os seus preparativos foram extremamente minuciosos: para aquele dia de festa, a jovem queria ser a mais bela! Mas não sabia porquê...
O dia que nasceu em Florença proclamou a perfeição da arte do Criador. A uma aurora que parecia reflectir as rosas de todos os jardins nos seus matizes diferentes mas harmoniosos, sucedeu a imensa ventura cambiante de um céu de um azul inefável que o Sol, no solstício, acariciava sem lhe quebrara cor profunda. Sob aquele dossel fabuloso, Florença, lavada de fresco e vestida como uma mulher recém-casada, parecia-se, no guarda-jóias verde das suas colinas sarapintadas de villas brancas, de ciprestes negros e da musse prateada dos olivais, com um cofre aberto exibindo o tesouro de um imperador.
A festa apoderou-se da cidade às primeiras horas do dia. Todas as casas, mesmo as mais pobres, estavam ornamentadas com tudo o que possuíam, nem que fossem simples ramos de folhagem, ou uma grinalda de amores-perfeitos rodeando a efígie do santo.
No palácio Albizzi, Chiara fizera uma obra de arte: das janelas do primeiro andar caíam grandes peças de cendal vermelho e branco, separadas por grandes galões dourados e no rés-do-chão, de um lado e de outro da porta, quadros religiosos cujas personagens davam mostras de um orgulho e de um fausto dignos de uma corte real, representando, no entanto, cenas da vida de São João, ao lado de estatuetas de marfim com a efígie dos santos protectores da família, prestando homenagem ao herói do dia. Tudo enfeitado com grinaldas de rosas e jasmins exalando um odor requintado e trepando até ao grande tecto plano, onde o estandarte dos Albizzi flutuava sobre as telhas redondas de um rosa delicado. Estava soberbo.
Assim, foi com alguma surpresa que Chiara, tendo saído à rua de madrugada para dar uma última vista de olhos ao conjunto, viu o seu tio, vestido com um bibe de grossa tela verde, um velho chapéu na cabeça e provido dos seus apetrechos para a caça às borboletas, transpor a soleira da casa puxando atrás de si a sua mula. A jovem lançou-se, literalmente, sobre ele:
Onde é que tu vais vestido dessa maneira?
Ao Mugello. Olha para este céu! É um dia ideal para as borboletas. Tenho a certeza que vou fazer uma boa recolha e...
Segurando-lhe no braço, Chiara fê-lo dar meia volta para lhe mostrar a fachada da casa:
Olha para a casa! Isto não te diz nada?
Sim, minha filha: está muito bonito... Estás à espera de convidados?
Mas, meu tio, francamente, é dia de São João e tu deves ocupar o lugar que te pertence nas cerimónias!
Achas? O São João...
E, de repente, o ancião compreendeu:
Ah! O São João! Onde tinha eu a cabeça, meu Deus? É verdade, eu tenho de... Tens a certeza que é preciso estar lá?
Absoluta, tio Lodovico! Tu és um dos primeiros notáveis desta cidade. Não podias lembrar-te disso de vez em quando?
Claro... sim, claro! Mas é uma pena sacrificar um dia tão bonito por causa de uma festa! Bem, vamos ataviar-nos!
E reentrou no palácio seguido por Chiara, que achou mais prudente acompanhá-lo até aos seus aposentos, receosa de o ver fugir para a cozinha. A jovem ria-se quando entrou no seu quarto, onde Khatoun acabava de vestir Fiora. O riso cessou de imediato ao ver a amiga:
Por todos os santos do Paraíso! Como estás bela!
Nada mais simples, de facto, do que aquele grande vestido de tafetá espesso de um belo vermelho-escuro que sussurrava a cada gesto e que, sem o decote onde sobressaía o longo e esbelto pescoço da jovem, se assemelhava a uma samarra cardinalícia. Nem um bordado, nem um ornamento naquele vestido de linhas puras cuja única audácia residia nas mangas amplas e tufadas que se detinham na harmonia do ombro meio descoberto. A jovem só tinha uma jóia: um rubi no meio da testa. A massa de cabelos negros e lustrosos estava fechada numa longa rede dourada que lhe descia abaixo da cintura.
De joelhos no tapete entre uma caixa de alfinetes e um nécessaire de costura, Khatoun contemplava aquilo que era um pouco obra sua:
O Lis vermelho de Florença! declarou ela, encantada.
Tens razão suspirou Chiara e o povo vai pensar a mesma coisa. Que procuras tu demonstrar, Fiora? Que a cidade pertence a Lourenço, tal como tu?
Sim e não. Quero surpreender o embaixador francês. Ele é demasiado fino de espírito para não compreender o que significa este vestido vermelho: eu sou filha de Florença e tenciono continuar a sê-lo.
Ah!... Nesse caso, tomaste a tua decisão?
Sim. Commynes é o homem capaz de fazer com que o Rei compreenda as minhas razões. E veremos, com ele, a melhor maneira de mandar vir o meu filho e Léonarde nas melhores condições. Di-lo-ei a Lourenço esta noite... por ocasião do baile, claro, porque de outra maneira será impossível.
Reflectiste bem?
Sim. Vê tu, Chiara, eu pertenço a esta cidade. Até à morte do meu pai, fui uma das suas pedras. Uma tempestade arrancou-me a ela e atirou-me para longe. Se Deus permitir que a pedra retome o seu lugar, não vejo qualquer razão para ir contra a Sua vontade...
Portanto, de que serve mentires a ti própria? Tu amas Lourenço, é tudo.
Não, nada mudou desde a última vez que falámos. Repito-o: o meu corpo é que o ama e eu sinto-me bem junto dele, mas não vejo nenhuma razão para virar costas a uma vida, a uma cultura que amo, por uma outra que tem a sua beleza, sem dúvida, mas que é menos doce para o meu coração.
O teu filho não pertence a essa cultura?
Tanto quanto eu lhe pertencia quando o meu pai me trouxe para aqui de Borgonha, com Léonarde e Jeanette. Ainda é um bebé e amará Florença tanto como eu.
Sem responder, Chiara beijou a amiga. Os seus olhos brilhavam de alegria:
É a melhor das novidades disse ela, enfim. Custou-me, sabes, fazer de advogado do diabo, mas o facto de quereres ficar connosco enche-me de alegria. Ficas com Carlo?
Claro! Ele é feliz em Fiesole e entende-se às mil maravilhas com Demétrios. Como todos o supõem morto, é a melhor solução. E se te fosses preparar? Está quase na hora da procissão.
E por nada deste mundo a perderia. Quero ver como é o embaixador francês.
Enquanto Chiara se precipitava para os seus vestidos de cerimónia, Florença festejava o São João. Tudo começara, logo às primeiras horas da manhã, pelo desfile de oferendas que as corporações, as ”artes florentinas”, levavam ao santo patrono da cidade, cada uma delas oferecendo os produtos do seu fabrico: a Calimala com os tecidos finos e sedosos, verdadeiros produtos de luxo saídos das suas oficinas; a arte da Lã com os mais belos fustões e os suaves tecidos de lã cujo segredo fora trazido de Velenciennes; a da Seda dos cendais, dos cetins e dos tafetás cintilantes; os Ourives dos pratos e jarros de prata, e assim por diante até aos pães dourados e pastéis leves dos modestos padeiros. O desfile durou quase até ao meio-dia, tendo-se formado uma grande procissão: o clérigo de Florença e as delegações das cidades vassalas juntaram-se às ”artes”, assim como grandes grupos de rapazes e raparigas que, vestidos de anjos e transportando no dorso grandes asas brancas cuja realização dera grande trabalho a Sandro Botticelli, suportavam nos ombros azulados os relicários dourados da cidade. Em seguida, toda aquela gente se precipitou no Duomo para ali ouvir missa.
Era a primeira grande cerimónia celebrada na catedral profanada pelo assassínio de Giuliano. Na antevéspera, o arcebispo de Florença purificara cerimoniosamente a igreja-mor com grandes quantidades de água benta e incenso.
Depois da missa, toda a gente regressou a suas casas para recobrar forças com vista às cerimónias da tarde e à grande corrida que teria lugar ao fim do dia. Àqueles que não podiam oferecer a si próprios uma refeição digna de um grande dia, uns cabazes, em plena rua, distribuíam graciosamente empadas e pastéis. E, para acompanhar esse festim, os fontanários da cidade deixavam escorrer vinho de Chianti em vez de água. Para ajudar à alegria geral, bandos de músicos, tocando viola, pífaro ou tamborim, percorriam as ruas e detinham-se nos cruzamentos... o mais perto possível dos fontanários.
Da tribuna das damas, onde tinham tomado lugar para apreciar a procissão e seguir o melhor possível o ofício divino através das portas completamente abertas, Fiora viu Lourenço vestido de negro como era seu hábito, mas usando ao pescoço uma cadeia de ouro e rubis que valia um tesouro real. Uma jóia brilhava no seu gorro. Junto dele caminhava um homem louro em cujo capuz brilhava uma flor-de-lis e Fiora não teve qualquer dificuldade em reconhecer Philippe de Commynes. Caminhava com a dignidade própria de um embaixador de França. Logo a seguir a jovem viu, sobre a multidão, um certo gorro vulgar encimado por uma pena de garça-real que lhe acelerou o coração. Seria possível Douglas Mortimer ter feito, também ele, a viagem? Por que não, no fim de contas? Luís XI gostava demasiado do seu conselheiro para o deixar partir sem uma guarda sólida para aquela Itália turbulenta. E que guarda mais sólida, mais eficaz, do que o sargento la Bourrasqué?
Teve vontade, subitamente, de ir ter com os seus amigos, mas não podia imiscuir-se na ordem rigorosa das cerimónias. Era preciso regressar ao palácio Albizzi para a refeição do meio-dia na companhia de ser Lodovico, que não cessava de resmungar contra a futilidade das manifestações mundanas que estragavam um dia que o Criador tinha, forçosamente, destinado especialmente às alegrias austeras da ciência. O ancião ia tanto mais rabugento quanto tivera que trocar o seu bibe de tela verde, tão cómodo, por um soberbo traje de espessa seda escarlate com uma orla de pele de marta negra, a despeito da estação e por um capelo do mesmo tecido, cujo pano se enrolava graciosamente em redor do seu pescoço. Uma pesada corrente de ouro, terminada por quimera, completava um traje que, evidentemente, ele detestava:
Ainda se fosse Inverno, mas durante a tarde vou transpirar tanto que a minha camisa e a minha pele ficarão da mesma cor desta maldita túnica!
Podes tirá-lo para dormir a sesta e eu dei ordem a Colomba para refrescar o teu vinho favorito disse Chiara, consoladora. Mas tu não enganas ninguém, tio Lodovico. Tu és demasiado Albizzi para te mostrares senão vestido de acordo com a tua posição.
Apesar do calor, o ancião fez as honras ao repasto composto de melões e fegatelli, pequenas salsichas de fígado com ervas, que regou com grandes copázios de Chianti. Um festim que o obrigou a repousar um pouco na frescura do seu quarto enquanto não chegava a hora de ir para uma das tribunas de onde os notáveis da cidade contemplariam a corrida do Palio.
Após a manhã, reservada às corporações que davam a Florença toda a sua riqueza, a tarde pertencia aos diferentes bairros da cidade, cujos campeões se defrontavam numa corrida de cavalos, montados sem sela e sem estribos num percurso preparado antecipadamente. O prémio era o palia, uma magnífica peça de tecido, a mais bela de toda a cidade, que o Magnífico entregava ao vencedor.
Cada bairro apresentava quatro estandartes sob cujas cores corriam quatro cavaleiros. Os estandartes do bairro San Giovanni (São João) eram o Leão Negro, o Dragão, as Chaves e o Esquilo; os da Santa Croce o Carro, o Boi, o Leão de Ouro e as Rodas; os de Santa Maria Novella a Víbora, o Leão Vermelho, o Leão Branco e o Licórnio; por fim, os do Santo Spirito, o bairro da outra margem do Arno, a Escada de mão, a Concha, o Chicote e a Quimera. E todos esses estandartes, alegremente coloridos, com os seus servos e muitas velas, iam em procissão até ao Baptistério.
1 Apenas Siena conservou esse fabuloso espectáculo admirado em toda a Europa.
A reunião acontecia diante da Senhoria, vestida com os adereços dos grandes dias de festa. O Velho Palácio cinzento estava cheio de estandartes e sedas. Entre as suas seteiras, uns mastros erguiam para o céu azul os emblemas das cidades vassalas, o de Florença ocupando o topo da torre como convinha a uma rainha. Em redor da praça onde tinham sido erguidas torres de madeira dourada representando as cidades vassalas ou aliadas, as janelas mostravam rios de brocados ou tapeçarias. A calçada, essa, parecia uma pradaria na Primavera com a mistura de trajes de gala e estandartes. Um largo espaço vazio, marcado por cordões de seda, cortava a praça: a passagem por onde galopariam, dentro em breve, os cavaleiros. O ar estava cheio de alegria, da excitação dos desafios lançados pelos portadores dos imensos estandartes. Estes faziam dançar e voar, a despeito do seu peso, os pesados tecidos pintados e bordados.
Na praça do Duomo, onde as grandes portas de bronze dourado do Baptistério deixavam ver a floresta de círios que o iluminavam, o espectáculo era diferente. Ali erguiam-se as tendas furta-cores dos proprietários dos cavalos que iam correr e, em redor, uns mastros, tão altos como as casas, ostentavam, alternadamente, o estandarte branco com o Lis vermelho de Florença e o estandarte azul com os Lis dourados do Rei de França.
A música dos grandes órgãos, das violas, das flautas, dos oboés e dos tamborins da catedral, apoiando o coro com maestria, enchia a praça e de cada lado do arcebispo, cuja capa de ouro era mantida aberta por dois diáconos, os acólitos balouçavam uns incensórios de prata. Estes deviam estar cheios até às bordas, porque as espessas volutas de fumo que se escapavam pelos orifícios subiam até à grande tribuna vermelha onde Fiora e os Albizzi estavam sentados, em lugares singularmente próximos das altas poltronas onde se iam instalar o Magnífico e o seu hóspede privilegiado.
Mais uma vez, o tio Lodovico praguejou. O incenso fazia-o tossir não era o único e pensar, com amargura, na frescura do vale do Mugello. Chiara acabou por repreendê-lo:
Pára de resmungar, tio Lodovico! Tens a sorte de escoltar a mulher mais bela da cidade e passas o tempo a pensar nas tuas borboletas! Está toda a gente a olhar para nós.
Era verdade. Todos os olhares estavam pousados em Fiora, verdadeiramente imperial no seu vestido púrpura. À passagem, suscitara aplausos e cumprimentos entusiastas: ”Longa vida à mais bela!” ”Tínhamos a estrela de Génova, mas agora a de Florença também brilha!” ”Feliz aquele que te possui!” E até, gritado em voz alta por um descuidado ou por um qualquer ignorante das catástrofes que o nascimento irregular fizera cair sobre Fiora: ”Bendita seja, entre todas, a mãe que te deu à luz e te fez tão bela!”...
A jovem respondia com um sorriso ou com um gesto gracioso da mão, feliz por saber que estava no coração daquele povo cuja versatilidade, no entanto, pudera avaliar. Mas as nuvens tinham desaparecido, expulsas pelo amor de Lourenço e a cidade inteira estava pronta a prostrar-se a seus pés, da mesma maneira que, em tempos, se prostrara aos de Simonetta. O senhor bem-amado elegera-a e isso era o suficiente para a coroar.
Aposto disse Chiara com satisfação que vais ser tu a entregar o palio ao vencedor.
Achas?
Tenho a certeza, senão, por que razão havíamos de estar na primeira fila e tu separada de Lourenço apenas por um curto espaço? E logo à noite vais ser a rainha do baile!
Esta tarde, talvez, mas logo à noite, no palácio Médicis, portanto em casa da mulher e da mãe de Lourenço, a situação pode tornar-se delicada.
Nem penses! Desde a morte de Giuliano que as mulheres da família não participam em qualquer festa. Elas ouviram missa esta manhã na capela privada, porque Madonna Lucrezia não quer entrar no Duomo onde o filho foi assassinado... Olha! Eis o teu príncipe!
As longas trombetas de prata, ornamentadas com um pendão de seda com as armas dos Médicis, soavam, com efeito e, rodeados por um brilhante cortejo, o Magnífico e o seu hóspede francês dirigiam-se para a tribuna onde todos se levantaram para os aplaudir. Ambos seguiam de mão dada para simbolizar o entendimento perfeito entre os dois países e saudavam com a outra mão. Por trás de Commynes, Fiora reconheceu Mortimer cuja alta estatura ultrapassava a maior parte dos homens presentes.
Alguns arqueiros da Guarda Escocesa escoltavam-no, juntamente com uma comitiva que parecia bastante numerosa. Visivelmente, o Rei Luís fazia questão de que o seu embaixador desse uma ideia do seu poder e dizia-se que toda aquela gente vinha carregada de presentes fabulosos para os amigos florentinos.
Chegados à base da tribuna, os dois senhores pararam para saudar em redor. Quando se viraram para ocupar os seus lugares, Fiora viu os olhares de ambos fixarem-se em si com uma admiração que a fez estremecer de alegria. O de Lourenço ardia com o fogo que ela tão bem conhecia, mas o sorriso de Commynes não conseguia apagar a espécie de melancolia que lhe enchia o olhar... Deve estar a pensar sussurrou Chiara que é pena a França ter perdido uma dama tão bela!
Nós somos amigos e ele nunca perderá essa amizade. Eu gosto muito de messire de Commynes, sabes?
Ele também, sem dúvida. E talvez mais do que pensas.
Não sejas tola! Tens uma imaginação...
Durante aquele curto aparte, os dois homens tinham subido os poucos degraus cobertos por um tapete vermelho, mas, em vez de se sentarem, viraram-se para Fiora, que mergulhou de imediato numa profunda reverência, oferecida tanto a um, como a outro. A voz de Lourenço soou, curiosamente metálica:
Falastes-me, sire embaixador, da amizade que vos une à mais bela das nossas damas e eu creio adiantar-me ao vosso desejo, conduzindo-vos a ela sem mais demoras.
É verdade, monsenhor e eu agradeço-vos. Senhora condessa de Selongey acrescentou ele em francês sinto uma profunda alegria por vos encontrar e saúdo-vos em meu nome e no do Rei meu senhor.
Seguiu-se um silêncio. Fiora, perturbada por ouvir aquele nome que já não era o seu, permaneceu durante um instante sem voz e apertou com força as mãos trémulas sem sequer retribuir a saudação ao visitante.
Sire Philippe murmurou ela. Vejo por trás de vós messire Mortimer. Ele deve ter-vos dito que eu já não tenho direito a esse nome...
É verdade, é verdade sussurrou Commynes. Mas... para que já não sejais a esposa do conde de Selongey seria preciso que ele estivesse morto. Ora... ele não está.
Que dizeis?
A verdade. Pelo que sei, messire Philippe está vivo. Vamos, minha amiga, componde-vos! Talvez eu tenha sido um pouco brutal, mas estava tão certo de vos provocar uma grande alegria...
E não duvidais, espero? Oh!... parece-me que tenho a cabeça perdida. Aquela execução...
... não chegou ao seu termo sangrento. O governador de Dijon tinha ordem de a parar no momento supremo. A espada do carrasco não degolou o vosso marido.
Sem se preocupar com o protocolo, Fiora deixou-se cair na sua cadeira, lutando contra a vontade de chorar e rir ao mesmo tempo. Vivo. Philippe estava vivo! Continuava a respirar, algures sob aquele céu infinito! Vê-lo-ia de novo, tocá-lo-ia, reencontraria os seus olhos, o seu sorriso, o calor das suas mãos! Com os olhos rasos de água, a jovem olhou para Commynes, que se debruçava sobre ela com inquietação:
Madonna! Estais muito pálida... e chorais!
De alegria! Oh, meu amigo, fostes bem imprudente! Não sabeis que uma felicidade assim pode matar?
Perdoai-me, então! Falaremos mais tarde, porque tenho muito para vos dizer...
Deixando Fiora com a sua amiga, que lhe ofereceu um lenço embebido em perfume, o embaixador juntou-se a Lourenço já instalado no seu lugar. As trombetas soaram de novo.
Não vais desmaiar, ao menos? perguntou Chiara, inquieta. Está toda a gente a olhar para ti, sabias?
Que olhem! Ao menos uma vez têm ocasião de olhar para uma mulher feliz, loucamente feliz!
Até ao momento não me parecias infeliz!
A sério? É verdade que me sentia bem e que sentia uma espécie de alegria, feita de muito orgulho, acho eu... mas isto é tão diferente! Como explicar-te? É como se tudo, dentro de mim, acabasse de explodir de repente...
Chiara não respondeu. O seu olhar procurou Lourenço e, cruzando o deste, pensou ler nele algo que se parecia com dor.
Fiora, essa, não o via, já não o via... o seu pensamento estava longe, já, a centenas de léguas da cidade que, no entanto, tanto amava e onde apenas alguns instantes antes desejava ficar para sempre. Mas a jovem já tinha partido ao encontro do homem que não conseguia deixar de amar.
Nessa noite, Fiora não compareceu no baile do palácio Médicis. Depois da corrida, fez-se acompanhar a Fiesole por dois criados dos Albizzi:
Dirás a messire de Commynes que espero a sua visita confiou ela à amiga.
Não podíeis conversar esta noite?
Não. Não num baile! Eu preciso de tranquilidade, Chiara. Tenho de regressar a casa.
Algo me diz que já regressaste...
Onde está ele?
Philippe de Commynes descruzou as longas pernas e, apoiando os cotovelos nos braços da cadeira, juntou os dedos das duas mãos, desenhando no espaço uma espécie de pirâmide à qual apoiou o nariz, como alguém que reflecte profundamente.
Não sei suspirou ele, por fim.
O seu olhar azul, procurando o de Fiora no outro lado da mesa, parecia pedir perdão, mas a jovem não se deixou enganar por aquela candura diplomática. De facto, Commynes tentava retardar uma cólera que sentia vir.
É impossível! disse ela friamente. Como é possível não saberdes, vós, que sabeis tudo?
Não me façais mais hábil do que sou, minha amiga, nem mais bem informado. E lembrai-vos que estive exilado durante vários meses. Tudo o que posso dizer-vos é o que o Rei me encarregou de vos dizer: o vosso marido recebeu a sua graça no momento em que ia morrer.
Demétrios abandonou a mesa para ir buscar um jarro de malvasia que estava em cima do aparador, com o qual encheu uma grande taça antes de a entregar ao seu hóspede:
Só um gole disse ele com um meio sorriso.
Quereis dizer com isso que uma vez descido do cadafalso pediram-lhe, simplesmente, que se fosse deixar enforcar noutro lado qualquer e que se perdesse no meio da multidão? Isso nem parece coisa do Rei Luís.
Não. É claro que não. O vosso marido foi levado para a prisão de Dijon e depois foi transferido para outro sítio. Mas não me pergunteis para onde, porque ignoro. O nosso sire reserva-se o direito de vo-lo dizer quando vos encontrardes com ele. Porque, evidentemente, ele está à vossa espera.
Um sorriso quente iluminou o rosto fino da jovem. Tinham-se acabado as hesitações e as esperas. Uma enorme vontade decidia por ela, chamando-a para o que não podia deixar de ser uma grande felicidade reencontrada.
Será um prazer fazer a viagem convosco. Gosto tanto da vossa conversação.
Douglas Mortimer, que pilhava ao mesmo tempo um tabuleiro de amêndoas, uma tigela de mel e uma taça de passas, desatou a rir:
Tereis de vos contentar com a minha, donna Fiora. Eu é que estou encarregue de vos levar. E só estou aqui para isso. Messire de Commynes continua a sua viagem para Roma.
Para Roma! Que ides vós lá fazer?... Se não sou indiscreta, claro.
De todo. Tendes, simplesmente, de compreender. Encontrar-vos aqui foi, para mim, uma grande alegria e um grande alívio, porque a minha missão simplificou-se. Eu tinha ordens, com efeito, de vos procurar em Roma e de vos embarcar no primeiro navio com partida de Civicita Vecchia, fosse a que preço fosse. Só assim se explica a presença da espécie de exército que veio comigo.
Quereis dizer disse Demétrios, que íeis intimar o Papa a entregar-vos Fiora?
Exactamente. O Rei não gosta que os seus enviados desapareçam sem deixar rasto, ou sejam vítimas de um clima insalubre. Por esse lado, tudo está bem quando acaba bem, mas ainda não terminei com Sua Santidade.
O Rei de França irá oferecer os seus bons ofícios para apaziguar o conflito entre Roma e Florença? não deixou Demétrios de perguntar, a quem os jogos políticos apaixonavam desde que vivera perto de Luís XI.
De maneira nenhuma. A minha embaixada a Itália tem dois objectivos políticos: assegurar a Florença que o apoio da França se mantém e dar a entender ao Papa a irritação do seu Rei. Para este tenho uma carta que o deverá levar a uma compreensão mais sã das coisas. O Rei explica-lhe que, devido à sua atitude, se propõe reunir no próximo mês, em Orleães, a Igreja do reino para restabelecer a Sanção Pragmática em tempos decidida em Burges sob o reinado de Carlos VII e exigir a realização de um concílio geral, no qual poderá muito bem exigir a destituição de Sisto IV. Por fim, o Rei deseja que, no seu ódio para com Florença, o Papa não esqueça o Turcol O perigo cresce, por esse lado! Demétrios deixou ouvir um ligeiro assobio:
Sim senhor! Espero que consigais sair de lá vivo!
Não estou nada inquieto. Se me acontecer alguma coisa, o nosso sire tenciona ressuscitar o velho direito de herança ao reino de Nápoles e enviar um exército para o arrancar aos Aragão. Um exército, que, claro, passaria por Roma.
Para um soberano que não gosta da guerra disse Fiora dir-se-ia que ele está com pressa?
- Não se trata de uma ameaça, Madonna. O Rei é demasiado esperto para querer entrar numa aventura e a Itália não o interessa senão em função das suas boas relações com Florença e Veneza. O importante, para ele, no imediato, é saber se a Senhoria, o povo... e o clérigo florentino estão dispostos a agrupar-se em redor de monsenhor Lourenço para enfrentar as provações que Sisto lhes prepara.
Os Florentinos não são cobardes exclamou Fiora com uma voz onde vibrava todo o amor que sentia desde criança. A excomunhão de Lourenço e dos priores só aumentou a sua indignação. Quanto à guerra, todos sabem que ela vem aí e estão preparados. Não vos deixeis enganar pela alegria das nossas festas.
A guerra, sim... mas, e a interdição?
1 Primeira manifestação do galicanismo, A Sanção Pragmática libertava, de certa maneira, a Igreja de França da tutela temporal de Roma, que deixava de ter o direito de nomear bispos, abades e, sobretudo, receber os benefícios. Luís XI abolira-a no início do seu reino.
O facto de a Igreja ter um papel preponderante na Idade Média fazia com que a interdição representasse a morte espiritual de um Estado e, frequentemente, uma verdadeira catástrofe; igrejas fechadas, sinos calados, sacramentos, casamentos e funerais cancelados (os mortos não eram enterrados) e doentes sem tratamento, já que os hospícios estavam, sempre, sob controlo religioso.
O Papa não ousaria! disse Demétrios.
Os nossos espiões em Roma dizem que ele pensa seriamente nisso. Dizeis bem, esse homem, se bem que extremamente devoto, está pronto a tudo para fazer vergar Florença, abater os Médicis e estabelecer a fortuna e poder dos seus sobrinhos. Que vai fazer a cidade, nesse caso? Submeter-se?
Certamente que não! disse Demétrios. Uma cidade marcada pela filosofia grega não se vergará perante as iras arcaicas dos séculos bárbaros. E posso mesmo prever o que acontecerá se o clérigo executar as ordens do Papa: será expulso, será atirado para fora das muralhas como uma boca inútil. Ela tratará dos seus doentes e enterrará os seus mortos.”De qualquer maneira, ficarei muito surpreendido se o arcebispo obedecer...
É um prazer falar convosco, Demétrios! disse Commynes, rindo. Tudo parece apontar nesse sentido, com efeito, e o arcebispo põe todas as suas esperanças nesse concílio que o Rei de França pretende convocar. Creio que esta guerra, se vier a estalar, não durará muito e monsenhor Lourenço, príncipe sábio e hábil quanto baste, tem diante de si longos anos de paz... mas chega de falar de política! É de um gosto deplorável após um repasto tão delicioso.
De que quereis falar, então? perguntou Fiora com um sorriso. A política devora três quartos da vossa vida.
Falemos da vossa e do vosso futuro. Disse-vos há pouco que na Casa das Pervincas tudo vai o melhor possível na vossa ausência e que sois ansiosamente esperada. Suponho que tendes pressa de regressar?
Muita! Pensei tanto neles durante todos estes meses. O meu filho nem sequer me conhece, já que fui raptada pouco depois do seu nascimento. Se calhar, nem vai gostar de mim!
Seria preciso ter muito mau gosto suspirou Mortimer que, tendo comido demasiado, abandonou a mesa e se pôs a caminhar através da grande sala. Mas, por esse lado, não estou preocupado e vós, vós ficareis louca: é um belo homenzinho, que o próprio Rei gosta de ir ver. Passa muitas vezes por vossa casa quando regressa da caça.
A sério? Ele vai ver o meu pequeno Philippe?
Vai, pois! Sabeis como ele se preocupa com monsenhor, o Delfim, que é de fraca constituição e pouca saúde! Então, aquele pequenito sem pai nem mãe comove-o profundamente. Faz um pouco de avô com ele.
Quem diria que ele é tão delicado e atencioso? murmurou Fiora, comovida. Não sei se mereço tanta bondade, mas também vou gostar muito de o ver novamente...
Óptimo! Portanto, quando partimos? concluiu alegremente o escocês.
Decidiram que a partida teria lugar na semana seguinte, para dar tempo a que Fiora pusesse os seus assuntos em ordem e se despedisse... coisa que não podia ser feita precipitadamente para não ofender o Magnífico. Ela e Commynes deixariam, assim, Florença, no mesmo dia em direcções diferentes, ele para regressar porque o Rei desejava que ele permanecesse ao lado dos Médicis durante os meses difíceis que se anunciavam e ela... sem saber se regressaria um dia, porque a decisão pertenceria a Philippe.
Após o regresso dos seus hóspedes à cidade, Fiora tomou Demétrios pelo braço e levou-o para o jardim. Naquele começo de Verão, este encontrava-se na plenitude do seu desenvolvimento e ao acariciar com os olhos os tufos de rosas e os grandes ramos de loureiros carregados de flores, a jovem sentiu o seu coração apertar-se um pouco. De repente, aquele local, assim como a casa, tomava o aspecto frágil e ameaçado das coisas que se vão abandonar dentro de pouco tempo. Ao ver uma lágrima perlar-lhe as pestanas, Demétrios, que a observava sem que ela disso se apercebesse, apertou com força o braço pousado no seu:
Tens pena de partir?
Um pouco, sim... No entanto, não imaginas a pressa que tenho para me juntar a Philippe. Temos tanta felicidade estupidamente desperdiçada para recuperar. Cada vez me é mais difícil compreender-me a mim mesma... É como se houvesse duas mulheres a viver dentro de mim...
Não é ”como se”. É uma certeza. Tu amas Florença por causa das raízes de uma infância e de uma adolescência felizes e amas o teu marido por causa da maravilha de um amor apaixonado.
E se sofres por partir, é porque temes um pouco o que te espera. Tenho razão?
Tu tens sempre razão. Nós conhecemo-nos tão pouco, Philippe e eu e, no entanto, somos capazes de provocar tanto sofrimento mútuo!
Queres dizer que, se não fosse o teu filho, hesitarias em partir?
Não, não, nem por um instante! A minha vida é Philippe e sejam quais forem as provações, nunca renunciarei a ele.
Os passos dos dois passeantes tinham-nos conduzido à parte baixa do jardim, até junto da gruta que Demétríos apontou com o queixo:
E... este?
Ele esquecer-me-á. Tanto mais depressa quanto vai ser preciso defender a cidade. Além disso, elas são numerosas, as florentinas que sonham com ele. Bartolommea del Nasi... e quantas mais?
Talvez tenhas razão. E tu és capaz de o esquecer?
Nunca... no entanto, já o esqueci.
Eis uma resposta interessante, mas talvez um pouco difícil de compreender! Mesmo para um homem que pensava conhecer as mulheres!
Sem dúvida porque é difícil de explicar. Lourenço permitiu que eu sofresse menos de uma ferida que eu acreditava ser incurável e que o era. Simplesmente, devolveu-me o calor e o gosto pela vida, assim como eu o ajudei a acalmar o sofrimento causado pela morte do irmão.
E... se ele desejasse ficar contigo contra tudo e contra todos?
Queres dizer... à força?
Por que não?
Não. Ele não. Tu sabes que ele gosta de dizer que é preciso ter pressa para se ser feliz, porque nunca se sabe o dia de amanhã. Ele sabe agarrar o momento presente e gozá-lo intensamente. Mas não sei se ele compreendeu que... o amanhã chegou.
Demétrios não respondeu. Durante um momento, ele e Fiora caminharam em silêncio até ao olival que se estendia pela parte baixa do jardim e que marcava o seu limite. Caminharam os dois por um instante sob a folhagem prateada e depois o Grego deteve-se junto de um tronco nodoso, partiu um pequeno ramo de onde pendia um pequeno fruto verde e olhou-o por um instante antes de o estender à jovem:
Guarda este ramo preciosamente: para que te lembres de mim.
Tu... vais-me deixar partir sozinha? perguntou ela, subitamente contristada. Esperava que tu e Esteban regressásseis também a França?
Não, Fiora. A vagabundagem terminou para mim. Estou demasiado velho e se tu me permitires continuar a viver nesta casa com o meu fiel Esteban, não pedirei mais nada à vida. E depois... não sei se a dama Léonarde estará disposta a dar um banquete em minha honra.
Ela ficará tão feliz por me ver que te acolherá de braços abertos. No fundo, creio que ela gosta muito de ti.
Vê se perdes esse hábito de emprestar aos outros os teus sentimentos! Léonarde nunca gostou de mim e creio, até, que tinha medo de mim. Talvez com alguma razão, mas a questão não é essa. Eu quero ficar aqui, porque este belo país é o que se parece mais com o meu... e foi aqui que, por fim, encontrei a paz.
Com a ponta do dedo, Fiora acariciou o pequeno ramo e depois sorriu:
A paz cujo símbolo acabas de me oferecer?
Sim, e é mais sério do que pensas. Prometes-me uma coisa, Fiora?
Se quiseres.
Quero muito. Primeiro, não digas a Lourenço o que me disseste. Se calhar, ele ama-te mais do que pensas e, de qualquer maneira, é demasiado orgulhoso para aceitar ser um último recurso.
Eu nunca disse isso! exclamou Fiora, indignada.
Talvez, mas, grosso modo, foi esse o sentido das tuas palavras. Além disso...
É uma promessa dupla, então?
Não de todo, as duas resumem-se numa só: o silêncio. Nunca dirás a Philippe de Selongey que o Médicis foi teu amante.
Eu quero preservar a tua vida, mais do que a tua paz. Ele é capaz de te matar.
Ele não me perdoou por causa de Campobasso?
Eu desconfio desses perdões e não juraria que ele não voltará a falar disso. Portanto, peço-te, nada dessas confidências de travesseiro de que vocês, as mulheres, têm a mania! Eu conheço bem o teu marido: ele ama-te apaixonadamente. Pode ter passado uma esponja sobre... os acasos da guerra, mas não perdoará à mãe do seu filho por se ter consolado nos braços do Magnífico. Mesmo que ela tenha acreditado ser sua viúva. Prometes?
Prometo. Tu és mais sábio do que eu.
Mais uma coisa: tens a certeza de que não estás grávida? Fiora ficou tão verde como o pequeno ramo que acabava de meter no corpete. Nem por um instante imaginara, no decurso das horas ardentes vividas com o seu amante, que aquilo pudesse acontecer...
Eu... eu não creio. Não.
Basta olhar para ti para ver que não tens a certeza. Portanto, escuta-me bem: daqui a pouco vou dar-te uma poção. Ao menor sinal de gravidez, bebes o conteúdo de uma só vez com um pouco de mel. Ficarás doente de morte durante dois dias, mas, depois, poderás, sem medo, enfrentar o olhar do teu marido!
E isso não é... um crime?
Do alto da sua estatura, o grego olhou para a jovem cujos admiráveis olhos cinzentos se erguiam para ele carregados de incerteza, mesmo de medo. Nunca estivera tão bela. Simplesmente vestida de fina tela branca bordada com pequenas flores por causa do calor e com os cabelos erguidos, fazendo uma grande trança que deslizava ao longo do ombro, era a própria imagem da Primavera. O seu rosto, cuja palidez um pouco rosada ela protegia com a ajuda de um guarda-sol de seda, tinha a delicadeza de uma camélia e o seu longo pescoço uma graça infinita. Através do repouso, dos cuidados e da paixão atenta de Lourenço, o corpo esbelto e nervoso parecia ter-se polido, adoçado, e exalava aquela sensualidade involuntária que, juntamente com uma beleza excepcional, é própria daquelas raras mulheres capazes de mudar a face de um reino. E Demétrios pensou que o Magnífico, com quem tantas belas criaturas sonhavam, teria, talvez, alguma dificuldade em esquecê-la. Mais tarde, aliás, teria essa confirmação no decurso das suas numerosas conversas com Lourenço.
Possuir Fiora é possuir toda a beleza do mundo. Os antigos Gregos teriam feito dela uma estátua divina, mas é preciso tê-la tido nos braços para perceber o brilho doce que ela atinge no amor e nenhuma mulher me deu o que recebi dela...
O silêncio do seu amigo inquietou a jovem:
Então? Não respondes? Não é um crime contra a natureza expulsar uma criança do nosso corpo?
Sim. É um crime, mas aquele que, por ciúme, te matasse, cometeria um ainda maior... e destroçar-me-ia o coração. Portanto, guarda para ti o que o teu marido não precisa de saber.
De regresso ao terraço delimitado pelos muros da villa, Demétrios e Fiora encontraram Carlo muito ocupado a instalar umas colmeias com a ajuda do jardineiro. O jovem gostava de abelhas e interessava-se desde sempre pela sua vida e criação. Gostava de repetir que as de Trespiano davam um mel sem rival em toda a Toscânia. Vestido com um bibe de tela, de socos, com as mangas arregaçadas, os cabelos em desordem e o rosto corado, terminava a quarta colmeia destinada às abelhas e parecia totalmente feliz.
Nenhuma força humana teria conseguido convencê-lo a tomar parte no pequeno-almoço que Fiora oferecera aos amigos Commynes e Mortimer:
A mim, chega-me o que o escocês pensa de mim dissera ele a Fiora à guisa de desculpa. Não quero que o embaixador me veja junto de ti. Sentir-me-ia... muito infeliz.
Porquê? O nosso casamento é nulo, já o sabeis, mas nós continuamos unidos por uma verdadeira afeição. Eu nunca tive um irmão, Carlo, tendes de aceitar esse papel!
Que fiz eu, meu Deus, para merecer tanta alegria? Nenhuma mulher terá tido um irmão tão ternamente dedicado. Mas não me peçais para comparecer a essa refeição.
Ao ver aproximarem-se os passeantes, ele afastou com o braço as mechas húmidas de cabelo que se lhe colavam à testa e fez-lhes um sinal jovial. Desde que reencontrara a vida campestre, Carlo parecia menos enfezado e o seu longo rosto pálido retomava, pouco a pouco, as cores da saúde.
Tu não podes levá-lo para França, pois não? murmurou o grego.
No entanto, seria a melhor solução. Não esqueças que as pessoas pensam que ele está morto...
Ninguém virá aqui procurá-lo enquanto Lourenço e eu formos vivos. Lá em baixo, estaria como um peixe fora de água. Só a natureza deste sítio lhe pode dar as alegrias simples de que ele necessita. Além disso, ele possui uma grande sede de cultura e eu creio ser capaz de saciar, em parte, essa sede.
Por outras palavras, entre ele e eu, escolheste-o a ele? concluiu Fiora, sorrindo. Fico cheia de ciúmes.
Se assim fosse, sentir-me-ia imensamente lisonjeado. Mas, a sério, é melhor que nós, ele, Esteban e eu, fiquemos aqui. Mesmo por ti, porque, vê lá tu, ninguém pode dizer nem mesmo tu o que te espera em França. Talvez a felicidade, o que eu desejo de todo o meu coração, mas também outras provações, porque os tempos que vivemos são sem piedade. É bom que saibas que tens aqui a tua casa e os seus guardiães: uma espécie de família sempre pronta a acolher-te... E agora vamos ver como vai o trabalho de Carlo!
Subitamente, vindo da cidade tão tranquila no instante precedente, ouviu-se o som frenético da Vacca, o grande sino das horas difíceis, de imediato imitado pelos campanários de todas as igrejas. Depois, ouviu-se aquela espécie de rugido abafado pela distância que Fiora e Demétrios nunca esqueceriam por o terem ouvido uma certa noite em que Florença se revoltara para conseguir a sua condenação à morte. A despeito do Sol doce e da graça da imensa paisagem estendida a seus pés, não puderam evitar, ambos, um arrepio. Passava-se qualquer coisa de grave, mas o quê?
Esquecendo Carlo, que, aliás, já não pensava neles, precipitaram-se para a velha torre, vestígio das antigas fortificações etruscas, no topo da qual o médico grego tinha instalado os instrumentos que lhe permitiam observar o céu. Mas, desta vez, foi para a cidade que ele dirigiu o seu grande óculo e, sobretudo, para as portas do sul para ver se, por acaso, não se aproximaria um exército de Florença, mas não viu nada de inquietante.
Teremos de esperar pelo regresso de Esteban suspirou Demétrios. Ele trar-nos-á notícias frescas.
Com efeito, o castelhano acompanhara os Franceses quando eles tinham regressado ao palácio dos Médicis, com o pretexto enganador de renovar a provisão de velas. Na realidade, queria ir ter com uma bela roupeira do bairro Santo Spirito que ele protegera durante os motins, num momento em que ela quase fora esmagada contra uma parede. Depois disso, os seus passos conduziam-no frequentemente a casa dessa encantadora Costenza, à qual parecia dedicar-se. O que preocupava um pouco Demétrios, persuadido de que o comércio de roupa branca não passava da hábil fachada de um outro, velho como o mundo e muito mais lucrativo.
Assim, os habitantes da villa Beltrami não ficaram surpreendidos por Esteban não ter regressado quando as trombetas soaram para o fecho das portas. Era evidente que preferira passar a noite em casa da amiga e Demétrios, encolhendo os ombros com aborrecimento, contentou-se em formular o desejo de que aquela escapadela não custasse demasiado cara ao seu fiel servidor.
E nós não saberemos nada senão amanhã lamentou Fiora. A paragem do toque do sino não a deixara tranquila, porque o rugido surdo continuava a ouvir-se vindo do vale, mais distinto até, agora que o som dos sinos não o cobria.
Fiora enganava-se. Por volta da meia-noite, quando todos se dispunham a recolher aos seus quartos, o galope de um cavalo abalou os ecos da noite antes de se deter diante da porta da villa. Fiora e Demétrios esperavam-no porque a jovem já sabia que o visitante não era outro senão Lourenço.
Quando ele se aproximou, Fiora, branca e luminosa sob o halo da sua lâmpada, reviu-o tal como na noite do assassínio de Giuliano: o gibão negro aberto até à cintura, os cabelos desgrenhados pelo vento da corrida, a fronte perlada de suor e cada um dos traços do rosto marcado pela poeira. Mas a expressão não era a mesma. Lourenço não ia em busca de refúgio, não esperava encontrar um momento de esquecimento entre dois braços macios. O seu ar era o de um homem determinado, que acaba, de tomar uma resolução.
Venho dizer-te adeus disse ele simplesmente. Já? Mas eu só parto dentro de alguns dias!
Eu sei, sou eu que me vou embora. E talvez seja prudente partir antes de ti.
Mas porquê? Não há pressa e Commynes...
Commynes parte amanhã para Roma. Eu acompanho-o.
Em algumas frases breves, Lourenço contou o que se passara e por que razão Florença se inflamara. Um arauto pontifício, ao cair da noite, trouxera a declaração de guerra de Sisto IV, acompanhada de uma carta endereçada aos priores, na qual o Papa declarava não ter qualquer agravo contra a Senhoria nem contra a cidade, unicamente contra Lourenço de Médicis, assassino e sacrílego. Se Florença expulsasse o tirano indigno, não seria atacada! A cidade recuperaria os favores do Santo Padre que, de futuro, lhe dedicaria uma afeição muito particular.
Então, propus entregar-me concluiu o Magnífico a fim de poupar a esta cidade, que me é muito querida, os horrores de uma guerra. Os priores recusaram a minha proposta, mas eu pedi-lhes que reflectissem até amanhã de manhã, que consultassem os seus bairros, as suas famílias e os mestres das diferentes artes.
Parece-me que já te responderam! disse Demétrios. Nós ouvimos o toque dos sinos e também o rumor...
Essa foi, com efeito, a sua primeira reacção e eu senti-me muito feliz. Entretanto, muitas coisas podem acontecer durante a noite, quando as trevas trazem consigo o silêncio... e o medo.
Tu não podes entregar-te! exclamou Fiora, indignada. Tu, nas mãos daquele Papa iníquo, que ousou mandar assassinar o teu irmão em plena missa do dia de Páscoa? Ele mata-te sem hesitar... e Commynes não poderá fazer nada.
Longe de mim colocá-lo numa posição falsa. A sua missão já é suficientemente difícil.
E tu achas que a tua morte será suficiente para acalmar o furor de Sisto? Ele próprio não fará nada, talvez, mas enviará o seu querido sobrinho e Riario depois de arrancar a Florença todo o seu ouro, depois de lhe tirar todo o seu sangue se ela não se rojar aos seus pés. É isso o que tu queres para a tua cidade? Achas que aquele miserável poupará os teus filhos, a tua mulher, a tua mãe e todos os teus parentes? És louco, Lourenço!
Não, Fiora. É a única coisa que posso fazer. Eu disse o que a minha consciência me ditou. Agora, cabe a Florença responder e decidir a sua sorte.
Aceitar a autoridade de Riario ou bater-se por ti? disse Demétrios. A mim parece-me que, se tivesse alguma influência, não hesitaria um só instante. Não precisaria de noite nenhuma...
Mas eles precisam! murmurou Fiora. Que descaramento!
Não, porque o que está em jogo é muito grave. Se eu não me entregar, a cidade sofrerá a interdição.
E depois? Se a Senhoria rejeitar o Papa, como ele merece, que lhe importam as suas decisões? Commynes não te informou sobre os projectos do Rei de França?
O concílio? Sim, eu sei... mas é preciso tempo para reunir um concílio. Aguentar-nos-emos até lá?
Não há ouro suficiente para contratar condottieri? Florença não tem armas, não tem muralhas, não tem outra força senão a dos seus comerciantes? Ela bater-se-á, ou deixará de ser Florença!
O ardor apaixonado de Fiora fez sorrir Lourenço que, num gesto de ternura, a puxou para si:
Tu falas como a minha mãe disse ele, pousando-lhe na fronte um beijo suave mas...
E como todas as mulheres da cidade, espero?
Quem sabe? Mas tu, tu és bem uma das nossas e isso torna ainda mais penosa a ideia da nossa separação... É difícil dizer-te adeus, Fiora...
Por um momento, permaneceram ambos face a face, presos apenas pelo olhar.
Também é difícil dizer-te adeus, Lourenço... Se bem que nunca se deve dizer adeus...
O barulho suave dos pés de Demétrios, recuando na direcção da casa, não quebrou o sortilégio que os mantinha cativos, nem o barulho surdo da porta ao fechar-se. O grego levara consigo a lâmpada de óleo e o casal ficou só na escuridão da noite, no meio de um mundo adormecido que os envolvia com os seus sussurros, a sua brisa doce e os seus aromas. Fiora estendeu a mão e tocou no ombro de Lourenço:
Só há uma maneira de nos separarmos, se queremos suavizar a amargura que sentimos sussurrou ela. É unírmo-nos uma última vez...
Ela sentiu-o estremecer, mas ele deu um passo à retaguarda:
Eu não te vim pedir caridade grunhiu ele. Tu já não és uma mulher livre...
Eu sei...
Algures, no norte, está um homem que te ama... e que tu amas.
Eu sei.
Se te entregares a mim, agora, serás culpada de adultério, tal como eu.
Também sei isso, mas, tal como na primeira noite, ofereço-me a ti porque quero. Se calhar, nunca mais te vejo, Lourenço, por isso esta noite só pode ser tua. Se o desejas, evidentemente...
Ainda perguntas?
Lourenço pegou-lhe na mão, virou-a para lhe beijar a palma e depois, sem a largar, conduziu Fiora através do jardim até à gruta dos seus amores. A luz que vinha das estrelas e que dava ao céu um tom azul-leitoso iluminou o seu caminho através do dédalo das alamedas e curtas escadarias que ligavam os terraços. Diante da soleira do seu refúgio detiveram-se e, num único movimento, abraçaram-se sob um enorme tufo de jasmim que fazia cair sobre eles o seu perfume e as suas pequenas flores brancas.
O céu está tão belo, esta noite! murmurou Lourenço contra a boca de Fiora. Só o quero a ele por cima de nós...
Ambos se despiram e, nus, deixaram-se cair sobre um tapete de erva ainda verde, que abrigava um maciço de grandes peónias claras.
O canto do primeiro galo afastou Lourenço. Com uma paixão desesperada, ele apertou Fiora contra si uma última vez e deu-lhe um longo beijo:
Deus te guarde, meu amor!...
Era a primeira vez que ele dizia aquela palavra e Fiora, perturbada, quis retê-lo, mas Lourenço já tinha partido. A sua longa silhueta escura, parecida com a de uma fera, corria na direcção da gruta para ali recolher as suas roupas. Incapaz de se mexer, Fiora, com os braços em redor dos joelhos, viu-o desaparecer na ligeira bruma que subia do vale. Algo se enovelou na sua garganta e ela desatou a soluçar. A jovem tinha a impressão horrível de que a felicidade de rever em breve Philippe sofrera uma fenda... e que lhe seria difícil esquecer Lourenço, admitindo que isso fosse possível...
No entanto, uma coisa era certa: mesmo que o Magnífico não fosse obrigado a sacrificar-se para a tranquilidade de Florença, nunca mais o veria. Mesmo que, como ela dissera, nunca se deva dizer ”adeus”.
Foi o que ela quis explicar a Demétrios quando o encontrou um instante mais tarde, na soleira da casa onde ele a esperava, passeando de um lado para o outro no chão de cascalho, as mãos no fundo das suas grandes mangas. Ele fê-la deter-se:
Não deves desculpas a ninguém, Fiora! A ninguém!
Não me condenas?
A que título? Não tenho o direito, nem quero.
Ele vai, talvez, morrer, sabes?
Não vai nada morrer. Florença não o deixará partir e vai bater-se por ele. Quanto a ti, acabo de to dizer, não te escondas por trás de desculpas e cessa de mentir a ti própria. Tu desejáva-lo, tal como ele te desejava... e tanto melhor se deixares aqui um pouco do teu coração. Talvez, um dia, venhas cá buscá-lo.
Demétrios tinha razão. De regresso por volta do meio-dia, Esteban trouxe notícias consigo. A Senhoria, por unanimidade, ia responder ao Papa, dizendo-lhe que não recebia da Santa Sé ordens de carácter temporal. Lourenço não cometera qualquer falta, e o povo amava-o. Estava-lhe reconhecido por ele o ter defendido contra aqueles que procuravam tirar-lhe as suas liberdades... Quanto ao clérigo toscano, com os prelados à cabeça, afirmava a sua intenção, caso a interdição fosse lançada, de recusar aplicá-la e de reclamar a convocação de um concílio geral.
Melhor ainda. Fora oferecido um corpo de guarda a Lourenço, um corpo que o seguiria para toda a parte e Savaglio marcharia à sua frente, de espada nua, porque se sabia de que armadilhas era capaz o ódio de Sisto IV. Quanto à guerra, todos começavam, já, a preparar-se e o ouro afluía para comprar tropas tão numerosas quanto possível.
Eu não vou poder fazer nada, já que me vou embora...
Rezarás por nós disse Chiara, que aparecera com Colomba para uma derradeira visita, já que Fiora não regressaria à cidade. Assim o decidira Lourenço no decurso da sua última noite, a fim de evitar que ela fosse apanhada pela turbulência do povo.
Eu não tenho o hábito de rezar, sabes?
Léonarde ensina-te: ela fá-lo muito bem. Vou ter saudades tuas. Tive a impressão de regressar aos dias de antigamente!
Por que olhar para trás? Nós somos jovens e temos, espero, muitos anos diante de nós. Talvez possas ir ver-me a França? É um país magnífico, diferente deste, claro, mas tu gostarias de o conhecer. Além disso, terias enorme sucesso!
Não digo que não. Mas, primeiro, tenho de convencer o tio Lodovico sobre o interesse das borboletas francesas!
De braço dado e seguidas por Colomba, que fungava para o seu lenço, as duas jovens seguiam pela longa alameda de ciprestes que ia dar à inlla e que a dissimulava, ao mesmo tempo, de olhares estranhos. Um criado levava, pela rédea, as mulas das visitantes. Subitamente, Fiora viu uma pedra caída na erva, que vinha, sem dúvida, do alto do muro que sublinhava a dupla fila de árvores de um verde quase negro. A jovem pegou nela e, de repente sonhadora, segurou-a na concha da mão por um instante:
Lembras-te do que te disse na manhã de São João?
A pedra arrancada?
Sim. Sabes, eu pensava que ela tinha retomado o seu lugar no muro a que pertencia. Mas estava enganada. Esta pedra é um sinal...
Não. Repara! O lugar dela está marcado... ali! Só tens de a pôr lá.
Não. Ela voltaria a cair. Seria preciso um pouco de argamassa para a fixar e eu não tenho nenhuma. Creio que vou guardá-la e levá-la comigo como recordação.
O seu lugar vai, portanto, ficar vazio, como o teu? Espero que regresseis um dia, uma e outra, para o ocupar.
E Chiara, de lágrimas nos olhos, beijou a amiga, saltou para a sua mula e fugiu como se houvesse um incêndio, perseguida pelos gritos que Colomba lançava sem qualquer cerimónia. Fiora ficou só no fim da alameda.
Assim, os laços que a ligavam à sua querida Florença, uns menores, outros maiores, cediam um após outro, sem que ela pudesse saber se voltariam a unir-se um dia. Tivera de renunciar a regressar ao túmulo do seu pai e essa decisão fora-lhe penosa, mas Chiara prometera-lhe ir lá rezar todas as semanas em seu nome. No entanto, o mais duro foi, na manhã da partida, a última separação, o adeus à casa e àqueles que nela iam ficar.
A partida teve lugar no décimo quarto dia do mês de Julho, dia de São Boaventura, doutor da Igreja e companheiro de Francisco de Assis. Para celebrar a ocasião foi rezada uma missa no pequeno convento franciscano de Fiesole onde, numa noite de Inverno, Philippe de Selongey e Fiora se tinham unido. Esta, antes de se fazer ao caminho, o caminho que a levaria ao seu marido, queria ouvir missa por uma razão que lhe era obscura, mas parecia-lhe que, assim, renovaria, no local do primeiro juramento, os laços que acreditava quebrados pela morte. De manhã cedo, quando o dia nascia, ela ajoelhou-se perante o tribunal da Penitência, na sombra fria da capela, para ali lavar o seu pecado carnal. A jovem desejava sinceramente apagá-lo da sua alma, sabendo ao mesmo tempo que não sentia arrependimento e que a sua contrição não passava de uma fachada. No entanto, as palavras sagradas da absolvição agiram no seu espírito como ela esperava e restituíram-lhe o bem-estar. A amante de Lourenço deu lugar à condessa de Selongey e foi em passo firme que se juntou a Douglas Mortimer, que a esperava na villa com os três homens que constituiriam a sua escolta.
Fiora abraçou um a um, com os olhos enevoados e a voz rouca, aqueles que deixava para trás. A Esteban, disse:
Confio-vo-los, Esteban, porque sois o mais forte. Velai por eles, sem vos esquecerdes de vós próprio. Não vos esqueçais que sois meu amigo.
A Carlo:
Não tivemos muito tempo para nos conhecermos, meu irmão, mas o pouco que tivemos foi suficiente para que eu vos fique, para sempre, profundamente dedicada. Espero, de todo o meu coração, que voltemos a encontrar-nos.
Por fim, a Demétrios:
Tu foste e continuas a ser como um pai para mim e custa-me muito deixar-te. Suplico-te, diz-me que isto não é um adeus e que em breve nos voltaremos a ver!
Tomando-a nos braços, ele apertou-a contra si sem conseguir reter as lágrimas:
Os meus olhos obscurecem-se, pequena Fiora, e o livro do Destino abre-se cada vez mais raramente diante de mim, mas eu sei que não estaremos verdadeiramente separados. E agora vai, depressa! Um filósofo grego deve permanecer impassível em todas as circunstâncias e, neste momento, não me sinto nada filósofo...
Girando nos calcanhares, o médico correu a fechar-se na velha torre que lhe servia de observatório. Fiora foi ter, então, com Mortimer. De pé junto do seu cavalo, ele segurava-lhe o estribo e ela subiu para a sela enquanto o escocês prestava o mesmo serviço a Khatoun de uma maneira um pouco diferente: contentou-se em pegar nela e pousá-la no dorso do animal sem mais esforço do que se estivesse a pegar num simples saco e acompanhando o seu gesto com um sorriso beato que fez corar a jovem tártara e divertiu Fiora. O temível sargento la Bourrasque interessava-se, como era evidente, por aquela pequena criatura frágil e doce que não tinha o ar de pertencer ao mesmo planeta que ele. Mortimer estendeu delicadamente o seu manto sobre o cavalo, sorriu de novo e depois foi ter com a sua própria montada sem se aperceber de que Fiora escondia um sorriso sob o véu que lhe cobria a cabeça. Que a viagem começasse sob uns auspícios tão amáveis parecia-lhe um bom presságio.
Abandonando Fiesole, o pequeno grupo desceu tranquilamente a colina até ao vale do Mugnone, pelo qual seguiriam até à estrada de Pisa e Livorno. O tempo estava bom e uma brisa vinda do mar deixava esperar que o dia não seria muito quente. Fiora, junto de Mortimer, olhava para diante e fazia um esforço para não se virar mau grado a vontade que tinha, para que o arrependimento não invadisse a sua recente serenidade.
Subitamente, ao atingirem a aldeola de Barco, a jovem estremeceu. Todos ao mesmo tempo, como se obedecessem a uma ordem precisa, os sinos de Florença, de uma Florença excomungada, de uma Florença atingida pela interdição, começaram a tocar a um ritmo alegre no ar azul da manhã. Khatoun aproximou-se de Fiora, que parara para melhor escutar:
É ele que te está a dizer adeus murmurou ela.
Talvez... Mas há outra coisa. Os sinos não tocam um adeus, tocam um hino de esperança. Florença está a dizer-nos que a aventura não lhe mete medo, que continua forte e livre e que nada nem ninguém a fará mudar... E agora, vamos! Temos de continuar!
Toda a emoção daquele instante evitou que ela reparasse num homem que a espiava, escondido por trás de um tronco de oliveira. Esse homem era Luca Tornabuoni...
Dois dias mais tarde, no momento em que, no porto piscatório de Livorno, a caravela que ia conduzir o pequeno grupo até Marselha içava nos seus três mastros as grandes velas, Philippe de Commynes, em Roma, fazia soar, sob os tacões das suas botas, as lajes de mármore da sala do Papagaio. Ao fundo, escondido no seu trono como um animal emboscado, Sisto IV via-o aproximar-se por entre as pálpebras semicerradas. Ao lado do embaixador francês, o traje púrpuro do cardeal-carmelengo Guillaume d’Estouteville deslizava sem ruído... Diante deles trotava o mestre-de-cerimónias Patrizi, mais do que nunca parecido com um ratito aterrorizado.
Após o ritual solene das saudações protocolares, o Papa, sem romper o silêncio de mau agoiro em que se mantivera após a entrada do enviado de Luís XI, olhou por um momento para o rosto cheio e tranquilo do flamengo cujos olhos azuis não se privaram de o examinar com uma certa curiosidade. Philippe pensou que aquele homem gordo correspondia à imagem que se fazia dele: parecia tão tinhoso quanto era na realidade. Por fim, do fundo do seu triplo queixo, o Papa grunhiu:
Que nos quer o Rei de França?
Commynes tirou da sua manga uma carta selada com o Grande Sinete, avançou dois passos e, com uma genuflexão, ofereceu-a ao Sumo Pontífice. Mas as suas mãos não deviam ser suficientemente nobres para transmitirem directamente a mensagem, porque foi d’Estouteville quem pegou nela e a estendeu ao Papa:
Abri, Nosso irmão e lede! disse-lhe Sisto IV. Quando descobriu o que tinha entre as mãos, o cardeal ficou tão vermelho como o seu traje. O latim do Rei Luís era, com efeito, suficientemente veemente para justificar todos os receios e enquanto desenrolava a prosa real, Estouteville perguntava a si próprio se o embaixador não deixaria a cabeça em Roma:
”Faça o Céu com que Vossa Santidade tome consciência do que faz, escrevia o rei e que, se não quer defrontar os Turcos, que renuncie, pelo menos, a prejudicar quem quer que seja que não concorde com Seu ministério. Porque eu sei que Vossa Santidade não ignora que os escândalos previstos no Apocalipse caem hoje sobre a Igreja e que os autores desses escândalos não sobreviverão, conhecendo o mais terrível fim, tanto neste mundo como no outro. Preze ao Céu que Vossa Santidade esteja inocente dessas abominações...
A voz do prelado estrangulou-se um pouco ao pronunciar as últimas palavras, mas estas não foram menos inteligíveis. Furioso, Sisto acabava de saltar do seu trono e lançava uma espécie de urro vingador que terminou numa série de imprecações:
Filho da iniquidade! Esse Rei vai saber quanto vale a minha cólera! Ousar insultar-Nos assim? Vamos excomungá-lo, vamos interditar-lhe o reino...
Texto integral da carta recebida pelo Papa das mãos de Philippe de Commynes.
Então, Commynes interveio:
O meu Rei não fez nada que mereça isso, Mui Santo Padre! É dever dos príncipes cristãos chamar a atenção do trono de São Pedro para as suas responsabilidades. Quando as velas turcas se aproximam lentamente das costas adriáticas, Vossa Santidade, em vez de tentar juntar a Itália sob a Sua mão augusta para opor ao Infiel uma força forte e unida, só sonha com a destruição de Florença...
Porque Florença merece ser destruída. Ousar enforcar o arcebispo de Pisa, ousar reter como refém o nosso cardeal-legado de Perúsia...
Monsenhor de Médicis não reteve o cardeal Riario como refém: pelo contrário, ofereceu-lhe o asilo do seu palácio para lhe evitar o destino do arcebispo Salviati. Florença é uma cidade piedosa e fiel a Vossa Santidade, mas não pode aceitar que em plena missa de Páscoa, no instante sagrado da Elevação, lhe assassinem os príncipes. O Rei de França não apreciou nada o... direi o incidente de Santa Maria del Fiore. E não é o único na Europa.
Nós não temos questão nenhuma com ele!
A sério? Que Vossa Santidade reflicta! O Rei não alimenta qualquer intenção hostil para com o papado. Mais, encarregou-me de oferecer a sua ajuda para combater o Turco, uma ajuda a não desprezar. Mas se Vossa Santidade se obstina em querer destruir Florença... ou a oferecê-la pela violência ao Seu sobrinho, o conde Girolamo Riario, essa ajuda irá para Florença. Que Vossa Santidade queira, por outro lado, recordar-se dos direitos familiares que a França conserva sobre o reino de Nápoles, usurpado por Afonso de Aragão. Se o Rei decidisse lembrar-se desse pequeno Estado e desejasse reconquistá-lo, Roma poderia ver-se numa posição enganadora. Por fim, suplico a Vossa Santidade que tome em consideração as suas... finanças.
As nossas finanças? Que significa isso?
Que neste mesmo dia de hoje o Rei, meu senhor, deverá ter publicado uma ordem interditando as gentes da Igreja de se deslocarem a Roma... ou de enviar para cá seja que dinheiro for, sob pena de pesadas multas.
Que dizeis?
A surpresa de Vossa Santidade espanta-me. Ela não deve ignorar que o Rei, que achou por bem abolir a Pragmática Sanção de Burges, está a pensar, muito seriamente, restabelecê-la. Essa ordem é apenas o começo.
E vós ousais vir dizer-Nos isso, cara a cara?
A quem mais poderia dizê-lo? Santo Padre, o meu Rei, o Rei ”Mui cristão”, não usurpou esse título a ninguém. Mais piedoso do que ele, mais devotado aos interesses de Deus e da sua mui Santa Mãe, não se pode encontrar. A sua preocupação está cheia de devoção filial e do desejo profundo de ver brilhar o trono de Pedro, tal como no tempo de Inocêncio, sobre todos aqueles que amam e servem a Cristo. A ameaça turca é real, urgente, e antes de responder por meio do anátema seria conveniente examiná-la com espírito frio e lúcido.
Como o do Rei de França?
Exactamente, porque Luís é soberano antes de ser homem, pai, ou o que quer que seja, e a glória de Deus é-lhe mais querida do que a sua.
Pensando não ter nada a acrescentar, o embaixador dobrou o joelho uma vez mais e, como o exigia o uso, que proibia que se virasse as costas ao Papa, começou a recuar na direcção da porta. Em vez de o acompanhar, o cardeal d’Estouteville tomou o seu lugar junto do trono sem parecer aperceber-se da tempestade próxima que se acumulava sob as augustas pálpebras:
Tendes mais alguma coisa a acrescentar? perguntou o pontífice.
Com efeito, e peço desculpa, mas Vossa Santidade é demasiado amiga da justiça e demasiado preocupada com o bem-estar dos Cristãos para que eu não a informe de um facto, mínimo, sem dúvida, mas ao qual eu A acho susceptível de dar um preço.
Que facto é esse?
Trata-se de... donna Fiora Beltrami, que Vossa Santidade, na maior das boas-fés, casou, há coisa de três meses, com o jovem Carlo del Pazzi.
O rosto sanguíneo de Sisto IV, mais uma vez, ficou da cor de um tijolo:
Isso é um assunto de que Nós não gostamos de falar e vós devíeis sabê-lo, Nosso irmão em Jesus Cristo. Essa mulher respondeu com a mais negra das ingratidões e com uma fuga vergonhosa às indulgências com que Nós a queríamos cumular, primeiro por piedade e depois porque ela Nos parecia digna da Nossa benevolência. Que temos mais a reprovar-lhe?
Nada, Muito Santo Padre, absolutamente nada... mas seria sensato dar a saber à Chancelaria do Estado que ela deverá anular o casamento e até... apagá-lo completamente dos seus registos.
Apagá-lo? E porquê? Um casamento que Nós mesmos celebrámos na nossa capela privada... e na vossa presença, cardeal? Se existia um impedimento a essa união, por que não a destes a saber então, como exige o ritual de uma cerimónia nupcial?
Estava na ignorância, Muito Santo Padre e Vossa Santidade teria rejeitado com horror a ideia de celebrar uma tal união se...
Se o quê? Parai de Nos fazerdes andar às voltas, por todos os santos do Paraíso!
Se soubesse que essa jovem não era viúva, como nós pensávamos... e como ela própria também pensava.
O quê?
Commynes encarregou-se de assestar o último golpe com um júbilo interior que necessitou, para não ser demasiado evidente, de todos os recursos da sua diplomacia:
Nada mais verdadeiro, Mui Santo Padre. O conde Philippe de Selongey, condenado à morte, subiu, com efeito, ao cadafalso de Dijon... mas voltou a descer são e salvo, porque as ordens do Rei eram para só lhe darem a conhecer a sua graça no instante supremo.
Seguiu-se um silêncio pesado, perturbado apenas pelos pios das aves que ocupavam, na sala vizinha, um grande viveiro dourado. O Papa lançou um profundo suspiro-.
E... ela? Onde está ela neste momento?
Segundo o que consegui saber, vai a caminho de França, Mui Santo Padre...
E Commynes, com uma última e profunda reverência, abandonou a sala do Papagaio.