Terceira parte A JUSTIÇA DO REI

CAPÍTULO X O TÚMULO DO TEMERÁRIO

Foi em Saint-Dizier que Fiora decidiu mudar de caminho.

No albergue onde ela e Florent faziam etapa e onde tomavam a refeição da noite na grande cozinha como os simples companheiros de viagem que eram, tendo decidido usar de novo o fato masculino, a jovem interessou-se pela conversa de uns mercadores da Lorena que iam a caminho de Troyes. Aqueles homens, enquanto satisfaziam as exigências dos seus robustos apetites, cobriam de louvores o jovem duque Renato II de Lorena que, depois da batalha de Janeiro de 1477, onde o Temerário encontrara a morte, se esforçava por reconstruir Nancy, por relançar o comércio e por promulgar as melhores leis no sentido de tentar curar os cruéis ferimentos sofridos pela cidade

Nunca nenhum príncipe dizia um deles foi mais esmoler e mais generoso, enquanto vive com a família num palácio do qual só resta uma parte. Mas a cidade está antes do palácio. O príncipe também se esforça por ajudar os conventos, dos quais alguns sofreram muito, a recomeçar a vida.

Não tem de se preocupar muito com os cónegos da colegial de Saint-Georges. Esses continuam gordos disse o outro.

Mas preocupa-se com os beneditinos que continuam no priorado de Notre-Dame. Eles estão encarregues de rezar pelos mortos das guerras borgonhesas, o que não dá de comer a ninguém.

Eles também rezam pela alma pecadora do Temerário que, esse, bem precisa de orações por todo o mal que fez.

Dizem que monsenhor Renato vai muitas vezes recolher-se à tumba dele, onde ardem velas dia e noite. São os monges de Notre-Dame que estão encarregues da sua manutenção, mas parece que o duque tenciona fundar um convento de franciscanos cuja capela será a sua própria sepultura e a dos seus descendentes. Ele não quer ser enterrado perto do seu inimigo.

Compreendo-o, mas não seria mais simples mandar o borgonhês para Dijon?

Para acordar os entusiasmos? É melhor que, depois de morto, o Temerário fique aqui como prisioneiro!

Não sei se será uma boa solução. Vem gente de toda a parte para ver o túmulo dele. Dentro em pouco será palco de peregrinações.

Os dois homens acabaram a refeição e saíram após uma saudação aos presentes. Fiora seguiu-os com os olhos e depois chamou o estalajadeiro com um gesto:

É longe, daqui a Nancy? perguntou ela.

Umas vinte léguas. Não é grande coisa para as pernas de um cavalo, meu jovem senhor. Também quereis ver a tumba do duque Carlos?

Talvez...

E como Florent, surpreendido, a olhasse de olhos muito abertos, ela sorriu-lhe gentilmente:

Creio disse-lhe ela que vamos fazer um desvio por Nancy No fim de contas, não temos assim tanta pressa.

Quereis mesmo regressar a Nancy? perguntou o jovem, espantado. No entanto, nunca fostes muito feliz, lá.

Na verdade, quando Léonarde e ele próprio, guiados por Mortimer, tinham ido ter com Fiora à capital da Lorena quando ainda nas mãos do Temerário, tinham encontrado Fiora, não apenas prisioneira do duque, mas também ferida e num triste estado.

Quando fostes ter comigo, eu não o era, de facto, mas logo depois da morte do duque, conheci três dias de felicidade. Não é muito, três dias, mas ainda hoje me são infinitamente preciosos. Além disso, vive lá uma pessoa a propósito de quem, em

1 Ver Fiora e Carlos, o Temerário


Roma, fiz uma promessa. Confesso que me tinha esquecido dessa promessa, mas como estamos perto, seria imperdoável não a cumprir.

A jovem calou-se. Florent compreendeu que ela não diria mais nada e não lhe fez mais perguntas, sabendo que não responderia. O jovem contentou-se em escoltar a jovem até ao seu quarto e em lhe desejar boas-noites. No dia seguinte, em vez de continuarem para Joinville e Chaumont, os dois viajantes viraram para leste e dirigiram-se a Nancy.

Um pouco mais de dois anos não eram suficientes para curar as inumeráveis feridas sofridas pelo ducado da Lorena, e os vestígios eram numerosos ao longo do caminho: aldeias incendiadas onde algumas casas cobertas de colmo novo surgiam corajosamente das ruínas, castelos meio destruídos, abadias ou priorados transformados em estaleiros onde os monges, em cima de escadas e de mangas arregaçadas, trabalhavam com colheres de pedreiro, com picaretas ou plainas; caminhos de tal modo danificados pelas carroças militares que a erva, tal como depois da passagem dos cavalos de Átila, não crescia e, nos campos, demasiadas mulheres substituindo os homens que não regressariam nunca mais. Demasiadas cruzes novas, também, nos cemitérios ou até nos caminhos, onde os soldados sem nome tinham caído, amigos ou inimigos. No entanto, sob o sol da Primavera, toda aquela gente a trabalhar e os campos de novo semeados falavam de esperança e provavam a coragem de um povo.

A vista de Nancy também foi reconfortante. Tinham tapado as trincheiras cavadas pelos Borgonheses e nos bairros que tanto tinham sofrido, assim como nas muralhas, trabalhavam numerosos operários. Apesar dos graves e evidentes danos sofridos por uma cidade que se tinha batido até ao limite das suas forças e até à vitória, sob o céu azul salpicado de pequenas nuvens brancas viam-se brilhar os telhados em tempos arrombados. Sobre as muralhas, os soldados de vigia mostravam as suas armas cintilantes, contrastando com as feições tranquilas de homens que sabem não ter nada a temer: nenhum inimigo voltaria a descer das alturas de Laxou, ou de Maxéville, nenhum acampamento gigantesco estenderia de novo os seus pavilhões sumptuosos, dominados por um grande estandarte violeta, negro e prateado. Os rebanhos, que não voltariam a ser dizimados, pastavam tranquilamente nos prados e o lago de Saint-Jean, perto da sua comendadoria em ruínas, estava purificado dos cadáveres que ali tinham sido semeados.

A cidade estava bem guardada. Os dois viajantes aperceberam-se disso quando, ao passarem pela porta de la Craffe, que se abria para a rua principal de Nancy, foram detidos pelo corpo da guarda. Um grande diabo, armado até aos dentes, perguntou-lhes o que vinham fazer à cidade.

Uma peregrinação respondeu Fiora. Vimos rezar ao túmulo do último duque de Borgonha. É proibido?

Não, não... Mas cada vez vem mais gente como vós. Sois da Borgonha, claro?

Quase. Eu sou a condessa de Selongey e monsenhor Renato conheceu bem o meu marido. A mim também, aliás, mas não pretendo obrigá-lo a receber-me. Desejo, apenas, ir rezar ao túmulo...

Onde contais ficar?

Não sei. Não havia muitos albergues quando o duque Renato reconquistou a cidade, mas suponho que exista um ou dois?

Sim. Mas, se estivestes aqui por ocasião do cerco, conheceis alguém?

Aquele interrogatório começava a irritar Fiora, já fatigada, da viagem. Ainda por cima porque, enquanto a interrogavam, outras pessoas, que parecia terem percorrido um longo caminho, entravam sem que ninguém lhes perguntasse fosse o que fosse.

Que significam todas essas perguntas? perguntou ela com altivez. Se vos inspiro qualquer dúvida, mandai um daqueles homens que estão além a jogar tranquilamente aos dados ao palácio para perguntar se posso ir à colegial de Saint-Georges! Disse-vos o meu nome e isso já é uma grande concessão.

O problema é que é difícil acreditar em vós. Pareceis um rapaz e dizeis que sois... como dissestes?

A condessa de Selongey Viajo vestida de homem porque é mais cómodo, mas se não acreditais em mim...

A jovem tirou o capuz que lhe tapava a cabeça, deixando cair sobre os ombros uma grande massa de cabelos negros e brilhantes, para a qual o homem olhou com interesse.

Chega-vos? Poucos homens possuem, parece-me, cabelos assim tão longos?

Sim, sim disse o outro, teimoso mas é justamente o assunto que vos traz aqui que é cada vez menos claro! Uma mulher vestida de homem! Onde já se viu?

Em muitos sítios, mas, aparentemente, vós não sois loreno?

Não sou loreno, eu, que nasci em Toul?

Nunca ouvistes falar de Jehanne Ia Pucelle? Domrémy não fica assim tão longe... A essa nunca a viram de saias!

Sim, sim! disse o soldado, que devia gostar muito daquele advérbio mas ela andava na guerra, ela... ao passo que vós podíeis ser uma espia, o que não me espantaria muito!

Nunca mais acabamos com isto! soprou Florent, farto. Fiora não tencionava deixar-se deter por um militar de ideias curtas. Entrando na casa da guarda, a jovem avistou papel e um tinteiro com uma pena em cima de uma mesa. Sentando-se de través num tamborete, escreveu algumas linhas que assinou antes de as entregar ao porteiro:

Fazeis-me o favor disse ela suavemente de levar isto ao palácio que está a dois passos e que eu conheço bem por lá ter vivido? Espero aqui a resposta!

Indeciso, o guarda virava e revirava a folha de papel nos dedos quando um homem já idoso, elegantemente vestido com um traje vermelho-escuro por baixo de uma grande capa atirada negligentemente para cima dos ombros, entrou na casa da guarda:

Sargento Gachet disse ele venho prevenir-vos de que estou à espera de um carregamento de ardósia que encomendei a meias com messire de Gerbevillers, bailio da Lorena, e que espero que o deixeis passar com mais facilidade do que as minhas farinhas da semana passada.

Mas é claro, messire Marqueiz, mas é claro! disse o outro já todo sorrisos e que, não fora a armadura, se teria dobrado em dois. Eu estou, bem o sabeis, inteiramente às vossas ordens...

Mas o recém-chegado já não o ouvia. Olhava para o falso rapaz e, com um grande sorriso no rosto sulcado por pequenas rugas muito finas, estendia os braços num gesto de boas-vindas:

Donna Fiora! Sois mesmo vós, não é verdade?

Sou mesmo eu, messire Marqueiz exclamou ela, respondendo espontaneamente, também com os dois braços, àquele acolhimento caloroso. Sinto-me muito feliz por vos ver...

Ides a nossa casa, não?

Não me atrevo. Já vos estorvei o suficiente, a vós e a dame Nicole.

De facto, fora para casa do almotacé e da sua mulher que a jovem fora transportada após o ferimento recebido por ocasião do duelo entre Philippe de Selongey e Campobasso. A jovem conhecera ali a melhor das hospitalidades e fora naquela casa que, um ano depois, vivera com Philippe aqueles três dias tão profundamente arreigados na sua memória. Enquanto isso, o almotacé abria a sua residência, uma das poucas que tinham ficado de pé, aos despojos do Temerário, cujo cadáver desfigurado e meio devorado pelos lobos fora encontrado nos caniços gelados do lago de Saint-Jean.

Sobretudo, não digais isso a Nicole! disse o almotacé. Naturalmente, levo-vos comigo! Não vos esqueçais do meu carregamento, sargento Gachet!

Certamente, certamente, messire Marqueiz! Será como desejais!

Um instante mais tarde, Fiora subia a rue Neuve pelo braço do seu antigo amigo seguida de Florent, que levava os cavalos pela brida. Talvez a jovem tivesse preferido passar despercebida numa cidade que desempenhara um papel tão grande na sua vida, mas aquele encontro pareceu-lhe mais do que bem-vindo, inesperado, quando soube que o duque Renato estava ausente e que tinha ido a Neufchâteau. A sua carta nunca teria chegado ao seu destinatário e teria, provavelmente, ficado indefinidamente na casa da guarda, a menos que o sargento Gachet, ingenuamente, a expulsasse.

A casa, próxima da igreja de Saint-Epvre que, ao contrário de muitas outras, não sofrera muito com a guerra, ofereceu a Fiora a imagem das suas recordações doces e amargas, sem que

1 Ver Fiora e Carlos, o Temerário.


ela pudesse dizer se as primeiras eram mais importantes do que as segundas. A jovem convalescera ali de uma ferida no ombro, mas também ali encontrara Léonarde, vinda contra ventos e marés para junto do seu ”cordeiro” Fora ali que vivera o seu radioso encontro com Philippe, mas também, infelizmente, a ruptura, a ruptura que não cessava de censurar a si própria como a maior falta da sua vida.

Dame Nicole acolheu-a com tanta naturalidade como se se tivessem separado há pouco. Aquela grande burguesa, fria e distante, abraçou-a como se a jovem fosse sua própria irmã e Fiora concluiu que era realmente bem-vinda. No entanto, quando a sua anfitriã abriu diante dela a porta do quarto de onde ela tinha saído, numa manhã de Janeiro, envolta num lençol como uma rainha do teatro, ela desatou a soluçar.

Confusa, Nicole Marqueiz passou-lhe um braço em redor dos ombros e quis abraçá-la:

Perdoai-me! murmurou ela. Eu dou-vos outro quarto...

Não... não, peço-vos! Não façais isso! disse Fiora, esforçando-se por reprimir as lágrimas. Isto passa já, é bom para mim recordar assim o passado, mesmo que seja um pouco cruel. De facto, é uma peregrinação ao passado que me traz hoje a Nancy

Não me ides dizer que também vindes em peregrinação ao túmulo do defunto duque Carlos?

Não de todo, mas também um pouco. Lembrais-vos do jovem Battista Colonna, o pajem que me impuseram como guarda?

E que gostava tanto de vós? Lembro-me perfeitamente, tanto mais que ele nunca mais saiu da nossa cidade, tendo entrado para o Priorado de Notre-Dame...

Sabeis se ele pronunciou os votos definitivos?

É difícil saber o que se passa num convento de beneditinos, mas, na ocorrência, não me parece. É verdade que os monges são menos numerosos do que antes da guerra, mas se esse rapaz tivesse recebido a investidura, deixaria de poder sair do priorado, Ora, ele vai rezar todas as manhãs à colegial com dois ou três companheiros, e vela no sentido de que os curiosos que vêm ao túmulo não causem qualquer dano à colegial. Os cónegos, que não gostam muito de fazer esse tipo de guarda, ficaram muito felizes por eles se terem oferecido. Se quiserdes vê-lo, ide a Saint-Georges ouvir a primeira missa. Encontrá-lo-eis de certeza.

No dia seguinte, com a cabeça envolta num véu escuro, Fiora foi à missa da madrugada. Antes de se ajoelhar diante do altar-mor, procurou com os olhos o túmulo ducal e viu-o onde Nicole lhe disse que estaria: uma grande laje gravada e ligeiramente sobrelevada diante da capela de São Sebastião. Alguns

círios, acesos, sem dúvida, pela piedade de antigos soldados, flanqueavam-no como uma guarda brilhante e, sobre o túmulo propriamente dito, ardia uma lâmpada de azeite. Não havia ali ninguém, mas quando, terminada a missa, Fiora se virou de novo naquela direcção, viu uma figura delgada, vestida de burel branco, ajoelhada diante do túmulo e rezando fervorosamente com o rosto entre as mãos. Pousado ao lado do jovem monge estava o frasco de azeite com o qual ele renovara a provisão de azeite da lâmpada.

Fiora aproximou-se sem fazer ruído. Aquele que rezava era maior do que a recordação que tinha do seu antigo pajem, mas Battista devia ter uns dezassete anos e ela não tinha a certeza se seria ele.

Baixando as mãos, ele inclinou-se para beijar a pedra e foi quando ele se endireitou que a jovem lhe pousou uma mão no ombro:

Battista! murmurou ela. Podemos falar por uns instantes?

Ele teve um sobressalto, como se tivesse sido picado por uma vespa e levantou-se tão depressa que prendeu os pés no hábito e quase caiu. Fiora, amparando-o, sentiu o seu coração apertar-se face àquele rosto jovem que ela conhecera tão alegre, tão aberto, também tão belo, mas que dois anos de penitência tinham sulcado, empalidecido, envelhecido. A voz também não era a mesma quando ele exclamou:

Donna Fiora!... Que fazeis aqui?

É a vós, meu amigo, que é preciso fazer essa pergunta. Que vos deu para vos enterrardes vivo aqui, em vez de regressardes a casa, em Roma, onde se encontra toda a vossa família?

Eu decidi dedicar a minha vida ao serviço de monsenhor Carlos e continuo a servi-lo, muito simplesmente.

Ele, onde está, já não precisa de vós.

Que sabeis vós? Aliás, não estou só: olhai para aquele túmulo, ali ao lado! É o de Jean de Rubempré, que foi governador de Nancy ao seu serviço e cujo corpo foi encontrado não muito longe do dele. A piedade do duque Renato, que é um verdadeiro cavaleiro, quis que ele ficasse rodeado pelos seus homens: os outros repousam no cemitério da cidade e alguns até estão no do nosso priorado.

Portanto, tenho razão. Uma sombra guardada por outras sombras, ao passo que em Roma...

Roma não passa de uma cloaca! lançou o jovem com uma violência súbita. E agora deixai-me, donna Fiora! Tenho de voltar para os meus deveres...

Mas...

A jovem não teve tempo de dizer mais nada: erguendo o hábito, Battista desatou a correr através da igreja e desapareceu como se o diabo lhe fosse no encalço. Estupefacta com aquela súbita reacção, Fiora ficou a ver aquela fuga desvairada, quase se lançou em sua perseguição, mas renunciou. A jovem ajoelhou-se por sua vez diante da laje e rezou pelo repouso daquele que tanto odiara, mas a cujo encanto, como tantos outros, se submetera, ao ponto de ter aceitado a sua amizade e chorado a sua morte com o coração vazio de qualquer rancor. Via-o tal como lhe aparecera pela última vez, na manhã do último combate: um cavaleiro dourado em cujo elmo assentava um leão erguido nas patas traseiras, desaparecendo lentamente na bruma gelada de Inverno e erguendo o braço num gesto de adeus. O denso nevoeiro não se rasgara para ele senão no momento de entrar nas trevas da morte...

Fiora perguntara muitas vezes a si mesma qual teria sido o futuro do duque Carlos se ele tivesse sobrevivido. Teria ele conseguido encontrar os meios para prosseguir as suas guerras incessantes com uma Borgonha exangue e uma Flandres exasperada?

Certamente que não, mas com os seus últimos recursos teria continuado a bater-se, prosseguindo os seus sonhos de hegemonia até que a morte o apanhasse e, com ele, os seus últimos fiéis cavaleiros. No fundo tudo estava bem assim e a grandeza trágica da sua morte devia satisfazê-lo. Mas não era justo que uma criança ficasse prisioneira daquele drama e da auréola fascinante conferida pelas lendas.

Fiora decidiu que ainda não tinha acabado com Battista. Saindo da igreja, dirigiu-se à praça de la Halle e, detendo um passante, perguntou-lhe o caminho do priorado de Notre-Dame. O homem contentou-se em indicar-lhe uma rua ao fundo da qual, de facto, se via uma capela cujo campanário fora reduzido a metade por uma bala de canhão.

A entrada do convento fazia-se pela abside da igreja e Fiora tocou a uma campainha que pendia de uma velha e rude porta couraçada e cravada de ferro como a entrada de uma prisão e com um postigo gradeado a meio. À figura gorda que apareceu, a jovem disse que implorava ao padre prior daquela santa casa o favor de uma curta entrevista. O postigo fechou-se e ela teve de esperar longos minutos antes que a porta se entreabrisse para lhe oferecer uma pequena passagem. Do outro lado, o irmão porteiro, tão amplo de corpo como de rosto, fez-lhe sinal para que o seguisse e, sem uma palavra, conduziu-a até uma pequena sala de tecto baixo, húmida e desprovida de qualquer móvel. Apenas um crucifixo de madeira negra indicava que não se encontravam numa cave. Toda a casa cheirava a salitre e a mofo, mas aquela divisão, à qual se ia dar descendo alguns degraus, tinha um aspecto miserável, que apertou o coração da jovem. O encantador Battista, prisioneiro daquele túmulo há mais de dois anos, pareceu-lhe um perfeito disparate! Era preciso ter amado muito o Temerário para se condenar a si próprio àquela lenta destruição!

Ao monge vestido de negro e branco bruscamente surgido sem que ela ouvisse os seus passos, ela expôs o seu pedido: desejava ter uma conversa, durante alguns instantes, com o jovem noviço que, no mundo exterior se chamara Battista Colonna:

Eu venho de Roma disse ela com aprumo e trago para ele uma mensagem da família.

A mentira viera-lhe aos lábios muito naturalmente, pela simples razão de que estava pronta a empregar todas as armas para tirar aquela criança de um universo sem esperança, para o qual não podia ter sido criada. Aliás, seria uma mentira? Antónia, que lha entregara, era realmente prima de Battista e pelo amor que lhe votava era-lhe ainda mais chegada...

Não me podeis confiar essa mensagem? perguntou o prior, fixando a visitante com uma insistência que esta achou desagradável.

Não se trata de uma carta, antes de uma mensagem verbal que deixaria de ter o seu significado se passasse pela vossa voz, Reverência. Perdoai-me a franqueza.

Mas o religioso não tencionava render-se facilmente.

Uma família pode ser uma coisa muito vasta. Suponho que, na ocorrência, se trata de um único dos seus membros. Dir-me-eis, ao menos, quem é? Compreendeis, minha filha, eu sou o contabilista da alma desse rapaz e não desejo ver perturbada uma paz que ele conseguiu com alguma dificuldade apressou-se ele a acrescentar ao ver as sobrancelhas franzidas da jovem.

Temeis que essa paz seja frágil? Se, porém, é real, profunda, nenhum sinal vindo do mundo dos vivos a poderá ferir. Posso dizer-vos o seguinte: ninguém, entre os Colonna e digo-vos que a família é muito grande ninguém, dizia eu, compreende por que razão uma criança de quinze anos preferiu ficar aqui, longe dos seus...

Nós sabemos isso há muito tempo, Madame. O príncipe Colonna veio aqui em pessoa e Battista recusou-se a vê-lo... Mas suponho que sabeis isso?

Não foi ele que me mandou.

Então, quem foi?

Com vossa licença, Reverência, di-lo-ei a Battista disse Fiora, que começava a perder a paciência. Quero falar-lhe e não lhe servirá de nada esconder-se por trás destas paredes, ou

Ver Fiora e o Papa Sisto IV


fugir, como fez há pouco. Ou, então, é porque já não é aquele que conheci e porque perdeu toda a coragem e, sobretudo, aquela que consiste em olhar a verdade de frente!

A imponente silhueta do prior pareceu desdobrar-se para deixar ver uma sombra branca: o próprio Battista, que devia ter entrado sem que ela se apercebesse e sem fazer mais barulho do que o seu superior.

É verdade que já não sou o mesmo, donna Fiora, mas não aceitarei nunca que me acusem de falta de coragem...

A despeito da profunda tristeza que reinava naquela pequena sala, Fiora reteve um sorriso. Se conservara o hábito são de escutar às portas, o jovem Colonna tinha mudado muito menos do que imaginava e talvez ainda houvesse esperança.

Por que fugistes de mim, há pouco, na igreja? Nós fomos amigos, há pouco tempo...

Devíeis dizer em tempos. Parece-me que foi há muito tempo...

Dois anos, Battista. Dois anos contam pouco na vida humana.

A jovem calou-se, fixando o prior com uma insistência que lhe fez surgir nas faces cavadas duas manchas vermelhas. Compreendendo que ela não diria mais nada na sua presença, ele decidiu, por fim, retirar-se:

Estarei na capela, meu filho murmurou ele. Eu vou lá rezar para que o Senhor afaste de vós as armadilhas do mundo.

Agradeço-vos, meu pai, mas espero ter as forças necessárias, com a ajuda de Deus, para as combater sozinho!

Que coisa tão bonita! observou Fiora, azeda. Não me parece que vos tenha, alguma vez, estendido uma armadilha?

Eu sei, donna Fiora, e peço-vos perdão se vos magoei... mas também nunca vos ouvi mentir.

Mentir, eu? E quando é que vos menti?

Mas... ainda agora. Não dissestes que vínheis de Roma? Vós, em Roma? E para fazer o quê?

Tereis que pedir desculpa novamente, Battista! Eu não venho directamente de Roma, confesso, mas estive lá, aliás involuntariamente, durante alguns meses. Senão, como poderia ter conhecido a vossa prima Antónia?

Um súbito acesso de sangue devolveu por um instante, ao jovem noviço, o bom aspecto de antigamente e os seus olhos negros puseram-se a brilhar, mas foi só por um instante...

Antónia! suspirou ele. Ela ainda se lembra de mim?

Mais do que supondes.

Eis uma afirmação difícil de acreditar. Soube que a iam casar.

As vossas notícias são muito antigas. Antónia usa agora o nome de irmã Serafina no convento de Santo Sisto, onde nos tornámos amigas.

Religiosa? Antónia? Mas isso é extraordinário!

Quase tanto como eu ver-vos aqui com esse burel monástico. Acrescento que, se ela entrou para o convento, não foi por sua própria vontade. O Papa queria forçá-la a casar-se com um dos seus sobrinhos, Leonardo, o menos bem sucedido do bando. Ela preferiu fazer-se freira. Apesar de o seu pai ter tido, para apaziguar a cólera papal, de ceder a maior parte do seu dote. Acrescento que ela não tomou o véu nesse dia... e que depende de vós ela fazê-lo algum dia. Foi a seu pedido que vim aqui.

Afastando-se de Fiora, Battista foi encostar-se à parede de onde pendia o grande crucifixo, como que para se pôr sob a sua protecção. O jovem ficara ainda mais pálido e a jovem sentiu-se invadida por uma piedade infinita.

Vós escrevíeis-lhe! disse ela docemente. Por que parastes?

Deixei de escrever quando soube que ela se ia casar. Eu amava-a... muito e preferi romper com todos os laços entre nós. Parecia-me que seria mais fácil e, realmente, assim aconteceu, com o tempo. Junto de monsenhor Carlos as coisas eram diferentes, com ele tudo era possível, sobretudo os sonhos de cavalaria. Gostava daquela vida, sentia-me quase feliz. E depois aparecestes vós e junto de vós vivi os dias mais doces da minha vida...

Mas ainda lhe escrevíeis, nessa época, porque lhe falastes de mim! disse Fiora com severidade...

É verdade. Deixei de lhe escrever pouco depois da vossa chegada. Já não tenho notícias há algum tempo e pensei que já estava casada. Por que não me disse nada?

Talvez por lhe terdes falado de mim com demasiado entusiasmo. Foi uma grande tolice, meu amigo!

Mas eu pensava cada palavra que escrevia. Vós inflamastes a minha imaginação... e também o meu coração. Um pouquinho.

Antónia achou que foi muito e a vossa asneira foi essa: porque ela ama-vos, ama-vos com toda a sua alma e uma alma como a dela não se recupera nunca mais!

Sem falsa vergonha, o jovem escondeu o rosto nas mãos. Pelo movimento dos seus ombros, Fiora compreendeu que chorava e aproximou-se lentamente dele. A jovem tinha vontade de o apertar contra si, mas não ousou: ele já não era o mesmo que conhecera e teve receio de o chocar.

Se bem compreendi murmurou ela foi um terrível mal-entendido que vos levou a entrar para aqui? Tínheis muito amor por ela?

Já não sei nada. O que sei é que naquele maldito mês de Janeiro vi morrer o meu príncipe enquanto eu próprio fiquei vivo e... também vos perdi. Foi de mais para mim e a ideia de regressar a Roma horrorizou-me.

Por que não quisestes receber o vosso pai?

Pela mesma razão. Regressar àquela cidade infame... para fazer o quê?

Talvez para vos baterdes ao lado dos vossos disse severamente Fiora, decidida a ir até às últimas consequências. A guerra sempiterna entre os Colonna e os Orsini chegou a uma fase de tal modo perigosa que os últimos conseguiram o apoio total do Papa. Põe-se a vida em perigo ao matar um Orsini, mas não se arrisca grande coisa se se abater um Colonna. O vosso palácio del Vaso foi dado, com desprezo por todo o direito, a um sobrinho de Sisto IV, e eu ouvi dizer que este está decidido a fazer desaparecer o vosso tio, o protonotário, que se permite aborrecê-lo...

Meu Deus! Ignorava tudo isso.

Tê-lo-íeis sabido se tivésseis consentido em ouvir o vosso pai. Amais Deus ao ponto de vos consagrar a Ele neste buraco de ratos? Nunca mais podereis sair daqui se pronunciardes os vossos votos... e sereis obrigado a fazê-lo, um dia. Então, acabar-se-ão as vossas visitas românticas ao túmulo do duque Carlos. De resto, ele vai ficar aqui para sempre?

Sabeis alguma coisa acerca disso? balbuciou Battista, subitamente lívido.

Sei o que se diz nas ruas e albergues de Bruges, de onde venho. A duquesa Maria quer que o duque Renato lhe entregue o corpo do pai para o sepultar no convento de Campmol, perto de Dijon.

Estáveis em Bruges? Viajais muito, donna Fiora!

Mais do que gostaria! Estava em Bruges, de facto, porque, tendo encontrado o grande bastardo Antoine, soube por ele que o meu marido tinha sido visto, no último Natal, no palácio da duquesa. Há meses que corro atrás de Philippe. Procurei-o perto de Avinhão e agora, sem saber o que fazer mais, vou a Selongey na esperança de encontrar lá o rasto dele... Mas deixemos isso! Eu não vim aqui para falar de mim, vim para falar de vós. Compreendestes o que vos disse? Os Colonna precisam de todas as forças e Antónia precisa de vós. Ela ama-vos, não me canso de vo-lo repetir.

Battista ergueu para Fiora um olhar onde brilhava qualquer coisa que devolveu a esperança à jovem, sobretudo quando ele perguntou:

Ela... continua a cantar?

Apenas louvores a Deus. A sua voz é o encanto de Santo Sisto, mas eu acho que ela era capaz de preferir mil vezes trautear para adormecer... os vossos filhos!

O noviço ficou vermelho como uma papoila e desviou o olhar.

Agradeço-vos por vos terdes dado ao cuidado de me vir dizer isso tudo, donna Fiora. E agora, quereis ter a bondade de me deixar? Eu gostava de... rezar, de reflectir um pouco.

É natural. Eu também vou rezar a Deus para que vos ilumine e vos guie pelo melhor caminho. Talvez não nos voltemos a ver, mas... eu gosto muito de vós, Battista Colonna!

Começo a acreditar. Ah, já me esquecia! Onde estais hospedada?

1 De facto, o duque foi sepultado na igreja de Notre-Dame de Bruges, onde continua, junto da filha.


No mesmo sítio. Em casa de George Marqueiz. Penso ficar lá ainda dois ou três dias.

Está bem...

Sem acrescentar mais nada, o jovem foi ajoelhar-se diante do grande crucifixo e, escondendo o rosto nas mãos, mergulhou numa profunda prece. Fiora contemplou-o por um instante, antes de abandonar a sala na ponta dos pés.

Chegada a noite, quando os habitantes da casa Marqueiz iam para a mesa, um criado apareceu com um bilhete para Fiora:

”Estáveis, esta manhã, na primeira missa na colegial, escrevia Battista. Quereis fazer amanhã o mesmo para vos encontrardes comigo no mesmo local? Ficar-vos-ia infinitamente grato...

Nada mais, mas naquela noite Fiora teve as maiores dificuldades para conseguir repousar, de tal modo receava faltar ao encontro marcado pelo seu jovem amigo. Assim, já o dia começava a clarear a leste quando, escoltada por Florent, que se recusava a deixá-la percorrer sozinha as ruas na obscuridade, ela subiu os degraus da igreja de Saint-Georges. O ar estava mais do que fresco, uma chuva fina e persistente gotejava dos telhados e fazia brilhar ligeiramente o pavimento sob a luz amarela de uma lanterna. A jovem teve, mesmo, de esperar que um sacristão mal acordado abrisse o velho batente, enquanto se repetiam, através dos campos vizinhos, os apelos roucos da nova geração de galos, já que todos os seus predecessores tinham conhecido um fim trágico dentro das marmitas borgonhesas.

Ao entrar na igreja, Fiora procurou o túmulo com os olhos. Entre os círios apagados, parecia dormir numa solidão orgulhosa, pela qual velava a lâmpada que nunca se apagava.

Que fazemos agora? sussurrou Florent, impressionado, contra a sua vontade, com a majestade do local.

Vamos assistir à missa disse Fiora, também contra vontade e só saíreis do vosso lugar se vos disser. Compreendido?

Perfeitamente suspirou ele, resignado. Só me mexo se me disserdes...

O som de uma campainha de prata anunciou o padre, que caminhou na direcção do altar mal iluminado com o Santíssimo resguardado sob a estola verde orlada de um galão dourado. Ao mesmo tempo, Fiora e Florent ajoelharam-se nas próprias lajes e o ofício começou.

Após a Elevação, a jovem tomou consciência de uma presença atrás de si. Virando-se ligeiramente, apercebeu Battista, que quase não reconheceu porque o hábito branco desaparecera e com ele a silhueta do noviço. O jovem que ali estava, modestamente vestido com uma túnica usada de pano cinzento apertada na cintura por um cinto de couro, pareceu-lhe, sob aquela pobre roupagem, mais soberbo do que um príncipe de romance porque príncipe já ele era de nascença. A jovem teve de fazer um enorme esforço de vontade para não lhe saltar ao pescoço. Conseguira! Battista abandonava o convento e talvez, dentro de algumas semanas, as portas de Santo Sisto se abrissem diante de uma Antónia corada de alegria. Essa felicidade seria obra sua, de Fiora, uma felicidade que nunca fora capaz de construir para si própria, e foi com o coração pleno de alegria e reconhecimento que recebeu o corpo de Cristo.

Terminada a missa, ela meteu com toda a naturalidade o braço no do jovem para caminhar com ele na direcção da saída.

Dais-me uma grande alegria, Battista... mas vejo que estais mal equipado para uma viagem longa. Espero que permitais que a vossa irmã mais velha trate disso! Depois, faremos uma parte do caminho juntos... pelo menos até à Borgonha!

Aceito, porque, como vedes, estou bastante desprovido, mas creio que não ireis até à Borgonha, donna Fiora.

Por que não?

Dir-vo-lo-ei daqui a pouco. Por agora, vamos, pela última vez, rezar ao túmulo de monsenhor Carlos?

A jovem aceitou com um sorriso e os dois, seguidos de Florent, dirigiram-se para a capela. As velas já estavam acesas, a lâmpada cintilava com um brilho novo e um outro futuro monge estava no lugar exacto onde Fiora vira, na véspera, Battista. Mas aquele parecia muito maior e os ombros que vestiam o tecido branco grosseiro eram largos e vigorosos. Uns cabelos castanhos, curtos, cobriam uma cabeça cujo porte arrogante fez, sem que ela compreendesse porquê, bater mais depressa o seu coração. Em seguida, tudo se precipitou.

Largando-lhe o braço, Battista aproximou-se do seu antigo companheiro e, sem dizer nada, tocou-lhe no ombro. Então, lentamente, o futuro monge virou-se e a mão trémula de Fiora procurou, às apalpadelas, o apoio de um pilar. Aquele monge era Philippe...

Direito, na sua frente, com aquele hábito que o fazia ainda maior e sublinhava o desenho arrogante do seu rosto cujo tom moreno era demasiado profundo para que a sombra do mosteiro o conseguisse empalidecer, ele olhava para ela, mas nos olhos cor de avelã que as chamas das velas tornavam dourados Fiora não viu qualquer sinal da paixão de outrora. E quando, esquecendo o local em que estava, levada pelo amor, ela quis lançar-se nos seus braços, ele estendeu um braço para a manter à distância:

Não Fiora. Não te aproximes de mim.

Ela ficou como que fulminada por um raio, com a impressão de que o seu coração se despedaçava e que a sua vida se desmoronava.

Mas porquê?... porquê? perguntou ela com a voz já entrecortada pelas lágrimas.

Ele encolheu os ombros e meteu calmamente as mãos nas amplas mangas do hábito:

É evidente, parece-me. Nem este local, nem o hábito que eu visto permitem essas efusões.

Nem sempre disseste isso. Já te esqueceste da igreja de Santa Trinita? Preocupaste-te pouco com a santidade do local, na manhã em que me ensinaste o que é um beijo.

Não, não me esqueci, mas não tinha este hábito e a igreja não passava de uma igreja: esta capela está santificada pela presença daquele que aqui repousa...

O Temerário há-de estar sempre entre nós até ao fim dos tempos? murmurou Fiora com amargura. Ele está morto, Philippe, e o culto irrisório que tu te obstinas em prestar-lhe não fará com que ele ressuscite.

Para mim, está mais vivo do que vós todos. Só respiro livremente quando estou junto dele!

Que loucura! Battista, esse, compreendeu que tinha obrigações para com outros...

Virando-se, a jovem procurou o jovem para o chamar como testemunha, mas ele e Florent tinham-se afastado, compreendendo que a sua presença era inoportuna.

Battista, agora, sabe que precisam dele...

Eu eu, não preciso de ti?

Não.

E o teu filho? Porque tu tens um filho, Philippe. Achas que ele não precisa do pai?

Um clarão brilhou, pela primeira vez, nos olhos frios de Selongey e a sua voz dura suavizou-se:

Na prisão, em Dijon, na véspera daquela que devia ser a minha execução, soube que esperavas um filho, mas ignorava que fosse um rapaz. Fico muito feliz... mas, no sítio onde está, não precisa de mim. Não me devias ter falado dele, não sinto qualquer prazer em ser o pai de um futuro mercador florentino.

Um futuro mercador florentino? Mas, onde pensas tu que ele está?

Em Florença, claro. Para onde o levaste o ano passado.

Eu? Eu levei o meu pequeno Philippe para a Toscânia? Sobre esse túmulo que tu pareces venerar, juro que o nosso filho está neste momento na casa de la Rabaudière, perto de Tours, onde a minha velha Léonarde, a minha antiga escrava Khatoun e um casal muito nosso amigo velam por ele.

O sorriso irónico de outrora esticou para a direita a boca desdenhosa de Philippe:

Em Tours! Pouca diferença faz! Enganas-te, Fiora, quando dizes que monsenhor Carlos está entre nós. Aquele que está verdadeiramente entre nós é o Rei de França. Sabes perfeitamente que nunca aceitarei servi-lo, mas educas o teu filho na corte dele.

Eu educo o meu filho em minha casa, na casa que me foi dada...

... como agradecimento pelos teus bons e leais serviços na cama de Campobasso!

Meu Deus! Nunca esquecerás essa história horrível?

Avançando um passo na direcção do túmulo, Fiora deixou-se cair de joelhos perto da lâmpada de bronze:

O Rei transferiu para mim a estima que tinha pelo meu pai. Ele deu-me aquela casa porque sabia que eu não tinha mais nada.

Tinhas Selongey. Era lá que devias estar quando nasceu o meu filho. Mas tu não querias viver longe da agitação e da vida brilhante a que estavas acostumada...

Se eu tivesse aceitado seguir-te, talvez fosse, a esta hora, uma errante miserável. Esqueces que foste condenado à morte porque só sonhavas em recomeçar a guerra, em te dedicares ao serviço da tua bem-amada duquesa Maria. Eu não contava, podias arrumar-me em Selongey como se fosse bagagem incómoda... Dito isto, estou profundamente arrependida por ter provocado entre nós esta ruptura. Porque... Deus é testemunha e vós também, monsenhor, que dormis sob esta grande laje... porque te amo, nunca amei ninguém senão tu, Philippe. Há meses que te procuro!

Há meses? E por que não anos? Creio que, como boa florentina, exageras um pouco. Não me procuravas em Setembro último, quando estavas em Florença, junto do Médicis, o teu amante, para onde levaste o meu filho e todo o teu pessoal.

A indignação e o estupor fizeram com que Fiora se levantasse.

Eu estava em Florença em Setembro último? Mas, quem é que te disse uma coisa dessas?

Um homem que encontrei a dois passos da tua casa... a que chamam a Casa das Pervincas. É isso?

Tu foste... a minha casa em Setembro? É impossível.

A sério? Então, ouve. Quando fugi do castelo de Pierre-Scize, onde o teu Rei me fechou...

Graças à cumplicidade da filha do carcereiro, eu sei...

Dir-se-ia que sabes muitas coisas?

Mais do que pensas. O que eu quero saber é o que fizeste quando saíste do convento de Val-de-Bénédiction, onde foste tratado e onde me disseram que tinhas perdido a memória.

Tu foste lá?

Escoltada por Douglas Mortimer. Deves lembrar-te dele. O dom abade disse-nos o pouco que sabia de ti... salvo que lhe mentiste. Tu nunca perdeste a memória, pois não?

Não, mas nem todos os monges são dignos de confiança e era a única conduta possível para um prisioneiro evadido de uma prisão real. Que sabes tu mais?

Que por ocasião da festa das ladainhas te aproveitaste da passagem de alguns peregrinos a caminho de Compostela para abandonar o convento.

A jovem calou-se. O olhar de Philippe, passando sobre ela, fixou-se em algo que ela não via. Ela seguiu a direcção e viu um grupo de homens, de gorro na mão, que se dirigiam ao túmulo.

Vem! murmurou Philippe. Afastemo-nos! O resto da igreja está vazia a esta hora...

Respondendo com um sinal de cabeça à saudação respeitosa dos fiéis, ele precedeu a jovem no deambulatório e depois esperou que ela se lhe juntasse. Então, começaram a caminhar muito lentamente, lado-a-lado e Philippe contou como se juntara aos errantes de Deus que iam a caminho da longínqua Galiza.

Fui com eles até Toulouse. Era a minha única hipótese de sobrevivência, porque não tinha um vintém e vivi da caridade graças a eles. Pensei em acompanhá-los até ao fim, mas qualquer coisa mais forte me prendia a esta terra onde pensava que vivias. Tinha sofrido tanto que até esqueci o ódio que sentia por Luís XI. O que eu queria era encontrar-te...

Philippe!

Cala-te! Deixa-me acabar! Em Toulouse, fiz de conta que tinha um problema numa perna e deixei seguir os meus companheiros. Fiquei no hospital de Saint-Jacques, ganhando o meu sustento em troca de pequenos serviços. Esperei pela passagem de outros peregrinos de regresso ao norte, de preferência a Tours. Quando eles apareceram, regressei com eles e foi assim que cheguei, finalmente, ao... covil do Aranhiço Universal! grunhiu ele num tom rancoroso que arrepiou Fiora.

O hábito que usas não te incita ao perdão das injúrias e à caridade? reprovou-o ela docemente.

Sem dúvida!... Mas não sei bem se a graça de Deus me tocou verdadeiramente disse ele com um sorriso amargo. No entanto, aproximei-me dos arqueiros de guarda. Queria falar àquele escocês de que tu falaste há pouco e do qual guardava uma recordação de companheiro valente, mas disseram-me que estava ausente. Foi então que se aproximou de mim um homem e me perguntou o que eu queria. Eu disse-lhe e ele propôs-me mostrar-me a tua casa... mas, em caminho, acrescentou que tu já não estavas lá, que a tinhas deixado vários meses antes, sem esperança, para regressar a Florença com o teu filho e os teus servidores. E como eu tivesse ficado espantado por tu quereres regressar a uma cidade que te tinha tratado tão mal, ele desatou a rir: ”Não há nada que uma mulher tão bela como aquela donna Fiora não consiga obter de um homem e Lourenço de Médícis é todo-poderoso. Há muito tempo que é amante dela...”Meu Deus! murmurou Fiora, espantada. Mas, quem te disse uma coisa dessas?

Um homem que, aparentemente, te conhece bem, um conselheiro do Rei e também seu barbeiro, parece... O que não me espanta num sire tão triste como aquele!

Olivier lê Daim! Aquele miserável, que me odeia e que nos tentou matar, a mim e a Léonarde, ousou dizer-te isso? E tu acreditaste nele?

Quase o estrangulei, mas ele jurou por todos os santos do Paraíso que dizia a verdade e como acrescentou que a casa em questão lhe pertencia doravante e que, se eu o desejasse, me ofereceria hospitalidade, deixei-o e fugi a correr. Se tivesse ficado, creio que teria acabado por matá-lo e por pegar fogo àquela maldita casa...

Por que não o fizeste? Terias evitado a ambos muitos sofrimentos. Se te tivesses aproximado de la Rabaudière, terias visto as janelas abertas e Léonarde no jardim com o nosso filho... Juro-te que estava lá! Aliás, se não acreditas em mim, vem comigo: o servidor que me acompanha poderá responder às tuas perguntas sem que eu abra a boca! Vem, suplico-te!

Não... Não me rebaixarei a interrogar um servidor. Prefiro acreditar em ti!

Fiora olhou com desespero para aquele rosto fechado, para aquele perfil imóvel que se destacava com a nitidez de um medalhão nos azuis e púrpuras de um vitral. O seu coração batia com toda a força, a jovem sentia que, em vez de o aproximar dela, cada palavra que trocavam cavava um pouco mais o fosso que os separava. Para dar a si própria tempo para reflectir, Fiora murmurou em voz surda:

Que fizeste depois?

Peguei no meu bordão e pus-me de novo a caminho. Já não tinha vontade de viver. O rio tentava-me, estava mesmo ali, mas um cavaleiro, mesmo reduzido à miséria, não tem o direito de se matar. Podia servir e lembrei-me, então, de um parente da minha mãe cujo castelo se situava perto de Vendôme. Se ainda fosse vivo, talvez me desse aquilo de que tinha tanta necessidade: um cavalo, uma espada e os meios de atingir a Flandres, para retomar o combate pela duquesa Maria...

Suponho que o teu desejo foi satisfeito disse Fiora porque Mme. de Schulembourg viu-te no Natal em Bruges. Eu estive com ela e ela contou-me o que se passou. Penso que amavas Madame Maria há muito tempo...

Foi a vez de Philippe se espantar.

Eu? Eu amo a duquesa há muito tempo? Ah, é verdade acrescentou ele com um sorriso desdenhoso eu estava de joelhos perante ela quando aquele alemão rústico, com quem ela casou entrou, mas não me estava a declarar.

A sério?

Pela minha honra! Suplicava-lhe que retomasse o combate pela nossa Borgonha invadida pela gente do Rei. Suplicava-lhe que me confiasse um grupo de soldados sólido e armas. Desse modo, teria sublevado a região de Selongey e, sem dúvida, as outras ter-se-iam seguido...

Enquanto explicava o seu sonho, a luz invadia de novo os seus olhos, a luz que o amor da sua mulher já não lhe suscitava. Uma constatação que, acordando nela o ciúme, suscitou a cólera de Fiora:

Uma loucura! Nunca o terias conseguido. Os irmãos de Vaudrey, que defendiam o Franco-Condado há tanto tempo, foram, finalmente, vencidos. Tu também o terias sido e dessa vez não terias escapado ao cadafalso.

E depois? grunhiu ele. Não imaginas a que ponto lamento não estar morto. De qualquer maneira, a duquesa não quis ouvir as minhas súplicas porque não pensa, não vê, não respira senão através do marido, aquele efeminado, aquele alemão a quem só interessam a Flandres e Artois.

Isso não tem lógica disse Fiora friamente. Se tivesses conseguido, ter-te-ias batido por aquele alemão. Seria a ele que terias entregado a Borgonha. O grande bastardo não suportou ver a águia negra a esmagar a flor-de-lis. Os teus grandes príncipes, até aquele que dorme aqui, eram Valois, assim como o Rei Luís, e até a mãe da tua duquesa Maria era francesa. Não conseguirás escrever a História à tua maneira, Philippe de Selongey. Agora tens de pensar no teu filho, que está a começar a vida! Como Philippe guardasse silêncio, Fiora, sentindo que tocara numa corda sensível, quis forçar a vantagem que conseguira:

Achas que o próprio irmão do Temerário e seu mais fiel capitão, que homens como Philippe de Crèvecoeur, como os Croy e tantos outros se aliavam ao Rei Luís se não vissem nele um soberano digno de ser servido? Eu não te peço tanto, mas regressa para junto de nós, Philippe! Eu não te obrigarei a viver em Touraine. Iremos para Selongey e viveremos lá os dias que nos restam!

Tinham dado a volta à colegial e tinham regressado ao túmulo, junto do qual não havia ninguém. Maquinalmente, Philippe reacendeu um círio que se tinha apagado...

Eu sinto-me bem perto dele, Fiora! Quando saí de Bruges, agoniado com aquele casal preocupado com a vida familiar e que só pensava na caça e em festas, quis vir rezar a este túmulo para pedir a monsenhor Carlos que me indicasse o caminho. Tinha sede de grandeza, de sacrifício. E vi Battista com o hábito de noviço. Compreendi que era essa a resposta que esperava. Fiquei...

Tu não me amas! Nunca me amaste! exclamou Fiora com as lágrimas a correrem-lhe de novo pelas faces. Se me amasses...

Então, pela primeira vez após longos minutos, ele olhou para ela e Fiora, meio estrangulada de emoção, compreendeu que se enganava, que o amor não morrera. Lentamente, Philippe estendeu sobre a laje a sua grande mão nervosa:

Sobre o túmulo daquele que aqui dorme e pela fidelidade que lhe tinha te juro que nunca amei ninguém senão tu!

Então vem comigo, suplico-te! Regressa comigo! Eu ia para Selongey. Vamos juntos e depois mandamos buscar o nosso filho! Eu não volto a la Rabaudière, mas vem comigo, suplico-te! Não nos condenes a ambos! Ainda podemos ser felizes...

Achas?

Tenho a certeza, meu amor...

Seguiu-se, entre os dois, um daqueles silêncios mais eloquentes do que quaisquer palavras, porque saram as feridas e fazem nascer a esperança. Fiora não ousava mexer-se, esperando um gesto, um sorriso do seu marido.

Então, é a tua vez de jurar ordenou Philippe. Vais jurar sobre este mesmo túmulo e perante Deus que nunca foste amante de Lourenço de Médicis!

Aquelas palavras atingiram de tal maneira a jovem que ela vacilou, ao mesmo tempo que o sangue lhe fugia do coração. A luz que acabava de se acender, apagara-se. A esperança desvanecia-se... A tentação de um juramento falso nem sequer lhe passou pela cabeça: ela sabia que o segredo do nascimento de Lorenza podia escapar-lhe e que até os rumores vindos da longínqua Florença podiam chegar, um dia, aos ouvidos do marido.

Então? impacientou-se Philippe.

Ela não respondeu e desviou o olhar para não ver aqueles olhos que, agora, chamejavam ao mesmo tempo de cólera e desgosto.

Eu... eu não posso! Mas...

Não quero nenhum ”mas”! Adeus, Fiora!

Não!

Foi um grito dilacerante, mas Philippe não quis ouvi-lo. Com um gesto que atirava a jovem para as trevas do desespero, ele meteu a correr pela porta da colegial, que se fechou tão pesadamente como uma pedra tumular.

Só, Fiora deixou-se cair por terra, primeiro de joelhos e depois ao comprido, uma imagem desesperada do seu coração crucificado, como se quisesse integrar-se naquela pedra fria, naquele túmulo sobre o qual acabava de se destruir a sua vida.

Foi ali que, um pouco depois, Florent e Battista a encontraram...

CAPÍTULO XI A CASA VAZIA

Fiora nunca imaginara que fosse possível tanto sofrimento. Inerte no seu leito enquanto as lágrimas não paravam de correr, ensopando-lhe os cabelos e a almofada, incapaz de dormir ou de se alimentar, apenas um pensamento lhe inflamava a cabeça e a destruía lentamente.- Philippe rejeitava-a para sempre. Preferia um convento miserável e o túmulo junto do qual tencionava viver o resto dos seus dias. O pecado demasiado doce cometido com Lourenço impunha à culpada uma penitência impiedosa, afastando para sempre o homem que amava.

Não imaginando por um só instante do fundo da sua humilhação que Philippe lutava, talvez, contra os demónios de um ciúme furioso, ela não quis ouvir as consolações dos seus amigos, recusando sair daquele quarto e, sobretudo, daquela cidade onde, pelo menos, ele estava, a dois passos da casa onde ela vivia uma agonia.

Depois de a tirarem da igreja quase inconsciente, Battista e Florent não sabiam que fazer, assim como Nicole Marqueiz, a quem, em poucas palavras, tinham posto ao corrente. Mal Fiora se refugiara no seu quarto, o jovem Colonna precipitara-se para o convento para contar a Selongey o que se passava e tentar comovê-lo, mas chocara com um verdadeiro muro.

Essa mulher está morta para mim lançou Philippe com uma violência que surpreendeu o jovem. Ela fez com que tudo entre nós se tornasse irreparável. Perdoei uma vez, não perdoo segunda.

Ela pensava que estáveis morto e, se bem compreendi, acabava de passar por duras provações...

Ela sabia que eu estava vivo quando se entregou a Campobasso. O facto de pensar que eu estava morto não é desculpa. Se eu aceitasse viver com ela, durante quanto tempo me seria fiel? A sua beleza atrai os homens e ela deixa-se atrair pelo amor deles.

Ela só vos ama a vós.

Talvez porque nunca me teve, verdadeiramente, à sua mercê. Que aconteceria quando sobreviesse a monotonia da vida quotidiana? Como se distrairia? Que homem teria eu de matar... a menos que não a matasse a ela? Não, Colonna, recuso-me a suportar isso! Não quero enlouquecer...

Não enlouqueceis aqui? Vós não fostes feito para a vida monástica... eu também não, aliás, e agora sei que estava enganado.

Vós escolhestes o único refúgio digno de um cavaleiro, mas agora tendes uma razão para viver. Eu vou continuar a minha guarda silenciosa junto do único senhor que jamais aceitei. Se não encontrar a paz, parto e vou, como foi minha intenção, durante algum tempo, procurar a morte combatendo os Turcos.

E... o vosso filho? Resignais-vos a nunca o conhecer? Subitamente, o olhar de Philippe brilhou, mas logo a seguir apagou-se:

Morro de desejo de o conhecer! grunhiu ele. Mas, se o conhecer, se lhe tocar, não terei coragem de me afastar. Teria, então, de o privar da própria mãe. Prefiro não correr esse risco... Ide-vos, Colonna! Ide ao encontro do vosso destino, deixai-me com a minha solidão...

Não me dais uma única palavra para lhe levar? murmurou Battista, magoado.

Dizei-lhe... que lhe confio o meu filho e que conto com ela para fazer dele um homem digno dos seus antepassados. Sei que ela tem um coração nobre e que é corajosa. Não é culpa sua se o seu corpo é fraco. Dizei-lhe, enfim, que rezarei por ela... por eles!

Foi tudo. Um instante depois, Philippe de Selongey transpunha a porta que ia dar ao claustro e desaparecia. Battista, desencorajado, regressou para junto de Fiora, mas não teve coragem de lhe entregar a mensagem austera e desoladora de que era portador. No dia seguinte, por sua vez, Florent, levado por uma cólera furiosa, correu ao priorado, decidido a fazer com que o obstinado ouvisse a voz da razão e a dizer-lhe o que pensava dele. Mas não foi recebido e regressou de mãos vazias. Georges Marqueiz, que tentou a experiência por amizade para com Fiora, também não teve mais sorte. Philippe parecia ter decidido emparedar-se por trás do silêncio.

Na manhã do quarto dia de reclusão de Fiora, dame Nicole, Battista e Florent decidiram de comum acordo que era preciso intervir. A jovem estava decidida a deixar-se morrer de fome.

Recuso-me declarou a mulher do almotacé a vê-la morrer em minha casa. Vinde comigo, os dois, e não vos zangueis se a minha linguagem vos parecer um pouco rude.

Armada com um tabuleiro de comida ligeira e um jarro de vinho, ela subiu as escadas que iam dar ao quarto da desesperada seguida pelos dois rapazes.

A despeito do fogo aceso na chaminé para lutar contra a humidade de um mês de Maio chuvoso, o quarto estava na obscuridade. Dame Nicole fez sinal a Florent para que abrisse as pesadas cortinas. A luz cinzenta e triste que entrou não era muito encorajadora, mas era a luz do dia e iluminou o leito onde Fiora estava estendida, tão inerte como se estivesse morta. Com sulcos profundos provocados pelas lágrimas incessantes, a jovem parecia mais velha e os dois rapazes sentiram apertar-se os seus corações.

Eu era capaz de estrangular aquele carrasco! grunhiu Florent. Quando penso que ela não bebe senão água há mais de quatro dias! É de dar com a cabeça nas paredes!

Matar messire Philippe não resolvia nada. Ela não ficava menos infeliz.

Entretanto, Nicole pousou o tabuleiro em cima do leito e começou a endireitar Fiora, colocando-lhe as almofadas atrás das costas.

Já chorastes o suficiente! decretou ela. Agora ides comer, mesmo que vos tenha de alimentar como a um bebé.

A voz que se ouviu pareceu surgida das profundezas do leito. Era uma voz fraca, mas obstinada:

Deixai-me, Nicole!... Eu não quero comer! Eu... nunca mais quero comer.

A sério? Nesse caso, escutai bem o que vos vou dizer! Vós quereis morrer, não é verdade? Simplesmente, eu recuso-me a ter, um destes dias, o vosso cadáver nos braços. Ide morrer onde quiserdes, mas em minha casa, não!

Apesar da sua fraqueza, Fiora esbugalhou uns olhos surpreendidos e dolorosos:

Que quereis dizer?

É evidente, parece-me? Eu recebi, há uns dias, uma amiga com todo o prazer. Ora, essa amiga manifesta, agora, a vontade de se deixar morrer sob o meu tecto e eu não posso aceitar. O orgulho que sinto na minha hospitalidade não vai ao ponto de permitir que decidam suicidar-se em minha casa. Existem muitas maneiras de morrer neste mundo, mas nenhuma delas em casa de Georges Marqueiz. Portanto, se quereis mesmo sacrificar-vos por causa de um homem obtuso, ide executar essa decisão para outro lado qualquer!

Quereis que eu me vá embora? Oh, Nicole!...

Escutai, Fiora, a escolha é simples: ou aceitais alimentar-vos e dou-vos o tempo necessário para que recupereis as vossas forças, ou nós damos-vos de comer à força, estes rapazes e eu, para que possais aguentar algumas léguas de viagem.

Como podeis ser tão cruel?

Cruel, eu? Mas, olhai para vós!

Nicole foi buscar um espelho, que colocou em frente do nariz de Fiora:

Olhai para o vosso rosto após quatro dias só a água! Qual é o homem que merece essa destruição voluntária? Estais a fazer um farrapo da mulher mais bonita que eu conheço. E se pensásseis um pouco no vosso filho? Ele já não tem pai e quereis agora tirar-lhe a mãe?

Um pai ser-lhe-ia bem mais útil do que eu!

Livrai-vos de pensar assim! Pela minha parte, acho que já chorastes de mais messire de Selongey. Se ele quer desculpar-se com a sua dignidade e continuar a chorar um príncipe cuja morte muitos consideram uma libertação, é com ele! Mas vós, vós sois jovem... e bela apesar de estardes a agir como uma imbecil e tendes a vida toda diante de vós. E se escutásseis aquilo que Battista tem para vos dizer?

Vós falastes com ele, Battista? Viste-lo?

Vi-o. Falei-lhe... mas não vos direi nada enquanto não tiverdes comido qualquer coisa consistente! declarou o pajem, firmemente decidido a seguir o caminho aberto por dame Nicole.

Quereis mesmo obrigar-me a viver?

Exactamente! E agora, comei! Falamos depois. Amparada por um Florent transbordando de piedade e que, não sabendo que fazer, preferira guardar silêncio, Fiora comeu algumas colheres de uma açorda açucarada com mel à qual Nicole juntara dois ovos batidos, bebeu alguns goles de um vinho de Nuits singularmente caloroso, rilhou uns damascos de conserva e deixou-se cair nas almofadas, sem forças. As suas faces tinham, agora, um pouco de cor:

Obedeci-vos suspirou ela. Falai agora, Battista. Fazendo os possíveis para suprimir o que não podia ser ouvido, o jovem entregou a mensagem de Philippe e concluiu:

Deveis obedecer-lhe, donna Fiora, mas, sobretudo, deveis pensar em vós e no vosso filho! Deus é testemunha de que tenho pelo vosso marido um respeito e uma admiração absolutos, mas ele é um homem de outra era e vós sois jovem. Deveis viver! Podem, ainda, florir tantos dias sob os vossos passos!

Fiora guardou silêncio por um momento, enquanto ouvia dentro de si o eco das sábias palavras do seu antigo pajem. Depois:

Que conselho me dais, nesse caso?

Primeiro, deveis regressar a casa. Por mais generosa que seja a hospitalidade de dame Nicole, nunca recuperareis em sua casa! Estais demasiado... perto dele. Parti! Quando estiverdes longe, tornareis a ser vós própria e isso é o que todos nós, que estamos convosco nesta aflição, desejamos.

Pela primeira vez, um sorriso débil distendeu os lábios brancos:

Já devíeis ir longe, Battista! Não foi para tratardes de mim que vos exortei a abandonar aquele priorado.

Eu sei, mas só vos abandonarei quando vos vir a caminho da vossa casa, em Touraine.

Com o olhar, a jovem abraçou os três rostos ansiosos que rodeavam o seu leito e procurou a mão de dame Nicole para a atrair a si:

Vós sois uns amigos terríveis! suspirou ela. Nunca agradecerei suficientemente aos céus por vos ter encontrado...

Dois dias mais tarde, depois de ter agradecido calorosamente aos Marqueiz a sua hospitalidade e amizade, Fiora e os seus dois amigos deixavam Nancy. Como os rapazes se tinham firmemente oposto a que a sua companheira efectuasse uma última visita à colegial de Saint-Georges, contornaram o mercado para, pela rue du Four Sacré, passarem pelo palácio ducal e pela comprida rue Neuve que terminava na porta de la Craffe. Corajosamente, Fiora impôs a si própria não virar a cabeça quando transpuseram o Fosso dos Cavalos, para o qual davam as paredes do priorado de Notre-Dame. Tinha de tentar esquecer Philippe apesar de saber que era impossível, mas achava que, com o tempo, a imagem tão querida e tão cruel consentiria, talvez, em esfumar-se.

Informados por Georges Marqueiz, que viajara muito, os três companheiros deveriam fazer caminho comum até Joinville, onde os seus destinos divergiriam. Battista, reequipado e provido de uma bolsa que deveria ser suficiente para o fazer chegar a Roma, viraria a sul e, por Chaumont, Langres, Dijon, Lyon e Vale do Ródano iria embarcar a Marselha. Fiora e Florent virariam para oeste e, por Troyes, Sens, Montargis e Orleães reencontrariam o grande caminho do Loire, que ambos conheciam tão bem.

Para não fatigar demasiado Fiora, mal refeita ainda do seu jejum voluntário, levaram dois dias a percorrer as vinte e quatro léguas que separavam a capital da Lorena das colinas de Joinville. As grandes chuvas tinham cessado e o tempo, se bem que ainda não radioso, estava quase agradável.

Ides encontrar o azul do mar e o Sol de Roma suspirou Fiora quando, aos pés do castelo dos príncipes de Vaudémont, se despediram, esperando que não fosse para sempre...

Há tanto tempo que estou fora disse o jovem. É natural que não os consiga suportar.

Nesse caso, lembrai-vos que tendes amigos em França e se, depois de casardes com Antónia, quiserdes viver num clima mais fresco... ou se precisardes de escapar aos esbirros do Papa, não hesiteis em ir ter connosco.

Podeis estar certa de que não me esqueço. Deixai-me abraçar-vos por Antónia e por mim! Deus vos abençoe, donna Fiora e vos conceda, por fim, a felicidade que mereceis!

Teria de se dar a muito trabalho. Creio que não fui feita para ser feliz. Mas tentarei...

De pé no cruzamento e segurando no seu cavalo pela brida, ela ficou a ver o jovem partir a galope ao longo do Marne, cuja água límpida reflectia as nuvens esbranquiçadas do céu. A jovem pensava que os desígnios do Senhor eram mesmo insondáveis, porque lhe tinham permitido devolver a Battista o gosto pela vida, ao mesmo tempo que destruíam a sua irremediavelmente.

Então? perguntou Florent, que se mantivera a alguma distância por discrição. Que fazemos agora?

Mas... regressamos a casa, Florent.

Isso sei eu, mas depois?

Depois? Não sei, a sério que não sei... Tenho de reflectir e, sobretudo, de repousar. Nunca me senti tão cansada...

É natural. Vamos por pequenas etapas, já que não temos pressa...

Fiora era sincera quando dizia que ignorava como iria conduzir doravante a sua vida. À sua dor misturava-se, agora, alguma cólera contra aquele que a abandonava às suas responsabilidades com uma única recomendação: fazer do seu filho um homem digno dos seus antepassados, o que, no seu espírito, devia excluir o bom Francesco Beltrami, que nunca tivera qualquer título de nobreza. Mas, reflectindo bem, Fiora ignorava o passado dos Selongey e apesar de amar apaixonadamente o único espécime dessa família que jamais conhecera, reconhecia que ele não era um modelo de caridade cristã, nem de simples humanidade para além dos deveres de cavaleiro, que respeitava à letra. Quanto aos seus ancestrais, os verdadeiros, os Brévailles, o exemplo do velho Pierre não era das mais encorajantes.

Por outro lado, não estaria nos planos de Philippe, certamente, que o seu filho entrasse para o serviço do Rei de França. Que fazer, então? Que decidir? Que escolher?

Ao longo do caminho que a levaria a casa através do brilho caloroso da Primavera, Fiora começou, pouco a pouco, a esboçar um projecto para o futuro. Pouco importava o que Philippe pensava do seu sogro florentino, pouco importava o desprezo mal disfarçado que ele sentia por uma nobreza que considerava o negócio como uma das belas-artes! A jovem sentia renascer dentro dela a florentina e pensou que seria agradável, se Lourenço de Médicis ganhasse a sua guerra contra o Papa, regressar a Florença com os ”seus” filhos, com Léonarde e com aqueles que a quisessem seguir. A ideia de poder ficar com sua pequena Lorenza enchia-a de alegria. Uma voz secreta dizia-lhe que tirá-la aos bons dos Nardi seria uma crueldade, mas ela mandava-a calar-se, argumentando que, no fim de contas, Agnolo poderia muito bem terminar os seus dias na sua cidade natal e que, muito certamente, Agnelle também gostaria. Iria ser preciso estudar o problema. De qualquer maneira, a guerra, de que ela não sabia nada, estaria, provavelmente, longe de estar acabada.

Assim meditava Fiora enquanto as léguas deslizavam por baixo dos cascos do seu cavalo, mas à medida que se aproximava do Loire a pressa era cada vez maior de ver a sua pequena mansão cujo jardim devia estar todo florido, perfumado, de se enroscar efeminadamente naquele paraíso pessoal e, sobretudo, de não se mexer dali durante longos, longos meses...

Assim, quando, transposta a porta oriental de Tours, saiu do ”Pavê” que ia dar ao castelo real de Plessis-lès-Tours para entrar no caminho que ia dar a sua casa, Fiora, como se respondesse a um grito de à carga, lançou um grito que fez voar as gralhas que estavam pousadas numa seara e lançou o seu cavalo a

1 Ver Fiora e Carlos, o Temerário.


galope. Por cima do verde das árvores viu os telhados de ardósia e a guarita que cobria o pequeno torreão da escadaria. Sem abrandar, entrou pela alameda ladeada de carvalhos cheios de musgo e foi somente à vista da ”sua” porta que deteve o cavalo, que escoiceou o ar com os anteriores.

Léonarde! Péronnelle! Khatoun! Étienne!... Chegámos! Ninguém lhe respondeu...

Então, de repente, surgindo da cozinha, apareceu Péronnelle, que correu para os recém-chegados a gritar e a chorar:

Salvai-vos! Por amor de Deus, salvai-vos! Não deixeis que vos prendam!

Nem Fiora nem Florent tiveram tempo de lhe fazer qualquer pergunta: dois arqueiros do prebostado saíram atrás dela, tentando apanhá-la. Os dois soldados chamaram e outros dois apareceram vindos da parte de trás da casa. Correndo para a frente dos cavalos, estes apoderaram-se das bridas dos animais a despeito dos esforços dos dois viajantes para os impedir.

Que quer isto dizer? gritou Fiora, furiosa. Que me quereis?

Os soldados tinham conseguido apanhar Péronnelle e arrastavam-na, mais do que a levavam, soluçando e lançando gritos inarticulados.

Quer dizer que estais presa... disse uma voz, na qual Fiora pensou ouvir a alegria do triunfo.

Com efeito e apesar de ela mal acreditar no que os seus olhos viam, era Olivier le Daim que, seguido por um sargento, acabava de transpor a bela porta abobadada e se aproximava, sem pressa, de Fiora. Dois arqueiros, depois de a terem obrigado a desmontar sem grande suavidade, mantinham-na de pé entre ambos.

Presa? Eu? Mas porquê? exclamou a jovem.

O Rei, nosso sire, explicar-vos-á... talvez. Quanto a mim, só vos posso dizer que o vosso caso é grave... e que se trata, pelo menos, de traição...

Onde está o meu filho? Onde estão Dame Léonarde e Khatoun?

Em lugar seguro, não tenhais receio! E muito bem tratadas...

E eu? exclamou Florent, que tentava, em vão, afastar Fiora. Também estou preso?

Tu? disse o barbeiro real com desdém. Tu não passas de um... criado. Vai fazer com que te prendam noutro lado qualquer...

Nunca! Nunca abandonarei donna Fiora e se quiserdes levá-la, tereis de me levar a mim também.

Sargento! suspirou lê Daim, dando-se ares enfastiados de grande senhor importunado. Desembaraçai-me deste rapaz! Colocai-o na cavalariça enquanto pensamos no que fazer dele...

Enquanto levavam o jovem, que oferecia uma defesa vigorosa, Fiora, de mãos atadas, viu-se enquadrada pelos arqueiros. O golpe fora tão brutal que nem sequer pensou em oferecer qualquer tipo de resistência, mas deu a si própria o prazer de provocar desdenhosamente o homenzinho escuro e com cara de fuinha, que exultava de maneira desavergonhada:

Conseguistes o que queríeis, não é verdade? Se bem percebi, eis-vos instalado em minha casa!

Vossa casa? O Rei tem o direito de recuperar o que dá quando lhe traem a confiança.

Porque vós não o traís?

Não muito... não. Mas se isso vos dá satisfação, sempre vos digo que ainda não estou instalado, o que lamento porque a casa é verdadeiramente encantadora. E mobilada com tanto gosto! Vim só dar uma volta, mas podeis ter a certeza de que a minha entrada definitiva não tarda...

Não vos alegreis demasiado depressa! É sempre má política vender a pele do urso antes de o ter matado. Dito isto, para onde me conduzem? Para Loches?

Infelizmente, não! Eu teria preferido, mas o Rei ordenou que vos prendessem assim que chegásseis e que vos conduzissem para a prisão de Plessis. Creio que ele prefere ter-vos à mão...

Uma brusca angústia apertou o coração de Fiora e abateu um pouco o seu orgulho:

Já que pensais ter ganho, podíeis, pelo menos, mostrar-vos, senão generoso, pelo menos humano e dizer-me onde está o meu filho? Deveis compreender que estou inquieta?

A sério? No entanto, não vos ocupais muito dele! Assim como da vossa filha...

Fiora conseguiu não acusar o golpe, mas o homem acertara no alvo. Como é que aquele demónio sabia de Lorenza? Teria sido seguida, espiada desde a sua partida de la Rabaudière e durante todo aquele tempo? Era quase impossível, no entanto ela sabia que Luís XI apagara há muito tempo a palavra impossível do seu vocabulário. Renunciando a fazer outras perguntas que pudessem alegrar aquele miserável, ela virou-se para o sargento:

Já que vou para a prisão, quereis conduzir-me já para lá? Seja onde for, preciso muito de repouso...

Puseram-se em marcha em contraponto, os gritos furiosos de Florent, que deviam ter fechado na cavalariça. Uma meia hora mais tarde, Fiora e a sua escolta penetravam no pátio de honra do castelo. A jovem pensou que a iriam fechar na grande torre isolada do primeiro pátio, aquela a que chamavam a ”Justiça do Rei”, mas enganou-se. Limitaram-se a atravessar aquela espécie de esplanada onde se achavam os alojamentos da Guarda Escocesa e onde, no meio de gritos e encorajamentos vários daqueles filhos das Terras Altas se mediam, armados. Ela procurou, em vão, a alta silhueta do seu amigo Mortimer e, não a vendo, deixou de se interessar pelo que ali se passava.

Uma outra prisão, mais pequena, encontrava-se no ângulo do pátio de honra e dos jardins, encerrada na espessura da cintura de muralhas que defendia os aposentos reais. Devia ser reservada aos prisioneiros especiais e a recém-chegada, que esperava uma masmorra, ficou agradavelmente surpreendida. O quarto no qual a introduziram não possuía qualquer luxo: o chão era de grossas lajes, a porta era barrada com ferrolhos e enormes gonzos de ferro deixavam ver um pequeno postigo engradado. Quanto à janela, estreita e colocada suficientemente alta para desencorajar qualquer escalada, tinha duas barras em cruz da grossura do braço de uma criança. Mas era, mesmo assim, um quarto com um leito com cortinas, lençóis e cobertores, uma mesa para a toillette, uma outra para tomar as refeições, uma arca para a roupa e dois assentos: uma cadeira de braços e um escabelo. Por fim, o carcereiro, que acolheu a prisioneira, parecia-se com um ser humano e não com um molosso prestes a morder: quando abriu a porta, ofereceu-lhe a mão, recomendando-lhe que tivesse cuidado com ”degrau”. Ela agradeceu-lhe com um sorriso e depois, avistando o leito, atirou-se para cima dele para dormir como um animal estafado, mergulhando de uma só vez num sono profundo que foi, certamente, uma manifestação da misericórdia divina: aquele golpe tão inesperado, aquele golpe terrível, que a atingia após o calvário que acabava de suportar, teria sido capaz de a levar às portas da loucura.

Só acordou no dia seguinte de manhã com o barulho dos ferrolhos, quando o carcereiro entrou no seu quarto para lhe entregar a primeira refeição:

Deveis ter fome disse-lhe ele com aquele sotaque elegante que é apanágio das gentes de Touraine. Ontem trouxe-vos um tabuleiro, mas vejo que não lhe tocastes. É verdade que dormíeis tão bem...

É verdade disse Fiora. Tenho fome, mas se pudesse ter água para me lavar, ficar-vos-ia reconhecida.

Vasculhando na sua bolsa, ela tirou uma moeda de prata que lhe quis dar, mas ele recusou-a:

Não, obrigado, nobre dama! As ordens do Rei nosso sire são que não vos falte nada. Só cumpro o meu dever...

Que não me falte nada? Receio que não me possais dar aquilo que mais falta me faz: o meu filho...

O bravo homem fez um gesto de aflição:

Infelizmente, não! Não posso dar o que não me autorizam. Podeis crer que lamento... Vou buscar-vos água quente, toalhas e sabão. Entretanto, comei! A comida arrefece.

A refeição era constituída por leite quente, pão estaladiço e ainda morno, mel e uma pequena noz de manteiga envolvida numa folha de videira, para a qual Fiora olhou com verdadeiro estupor:

Vós alimentais assim tão bem todos os prisioneiros? Sei de muitos albergues de renome que não tratam assim os clientes!

Acontece que vós sois, neste momento, a única prisioneira e a minha mulher está autorizada a ir buscar a nossa comida às cozinhas do castelo. A vossa também. Além disso, esta prisão não é como as outras e recebe pouca gente. É bastante diferente do torreão do primeiro pátio. Enfim, repito, recebi ordens.

Estou autorizada a receber visitas? Gostaria de ver o sargento Mortimer da Guarda Escocesa.

La Bourrasque? perguntou o carcereiro, rindo. Toda a gente aqui o conhece. Infelizmente, não é possível. Primeiro, porque, senhora condessa, ninguém sabe que estais aqui. Depois, porque ele não está em Plessis... Vou buscar a vossa água.

Só mais uma palavra! Podeis dizer-me, ao menos, o vosso nome?

Grégoire, Madame. Grégoire Lebret, mas o primeiro nome é suficiente. Estou às ordens da senhora condessa!

E com uma espécie de pequena reverência, o surpreendente carcereiro deixou Fiora a devorar a pequena refeição ainda mais surpreendente. Enquanto comia, a jovem esforçava-se por pôr as ideias em ordem. Era evidente que a tratavam com certo favor, mas, no entanto, não tinham hesitado em lhe arrancar o filho, a querida Léonarde e a casa. E, lembrando-se da brutalidade com que, na véspera, os arqueiros tinham impedido Péronnelle de lhe falar e o tom usado pelo abominável Olivier lê Daim, era evidente que o Rei dera, no que lhe dizia respeito, ordens precisas, ordens que o barbeiro se coibia de transgredir, por mais vontade que tivesse de o fazer, mas porquê? Porquê? Que crime cometera? Lê Daim pronunciara a palavra traição e acrescentara que o caso era grave. Mas como, em que pudera ela trair o Rei, ou até a França? A abominável personagem também fizera alusão a Lorenza e, nesse momento, Fiora estremecera. No entanto, aquele nascimento, que era preciso manter secreto, não podia ter ofendido Luís XI ao ponto de a conduzir à prisão? Não se tratava senão de um mal-entendido habilmente explorado, sem dúvida, pelo barbeiro ou por qualquer outra pessoa que lhe queria mal. Ou então uma calúnia? Fiora sabia que o Rei era extremamente desconfiado e capaz, quando se julgava enganado, de passar de uma grande bonomia a um extremo rigor. Se fosse o caso, teria de se explicar com ele o mais depressa possível...

Quando Grégoire regressou com os diversos objectos anunciados, Fiora pediu-lhe se aceitaria mandar dizer ao Rei que ela lhe suplicava que a recebesse logo que possível. Mas o carcereiro também não podia fazer aquilo: o Rei não estava em Plessis, estava em Amboise, junto da Rainha, que estava preocupada com a saúde do delfim.

Achais que ele vai ficar lá muito tempo?

Geralmente não, mas quem sabe? Não se sabe se a doença do príncipe é grave! Tende paciência, senhora condessa. Espantar-me-ei muito se, assim que regressar, o Rei não vos mandar chamar...

Paciência! A virtude tão gabada por Demétrios e que Fiora nunca conseguira dominar, sobretudo quando se encontrava numa situação desagradável! Ela gostava que as coisas andassem depressa depois de tomar uma decisão. Os nove meses de gravidez sempre lhe tinham parecido nove séculos. Uma atitude que divertia Léonarde. Desta vez, a paciência era mais uma provação. Que mãe era capaz de suportar por muito tempo a ignorância do local onde se encontrava o seu filho? No entanto, foi preciso esperar. As horas pareciam intermináveis àquela jovem cheia de vida e reduzida à inacção total, já que Grégoire era incapaz de lhe arranjar livros, a única coisa que lhe tornaria o tempo de espera mais agradável. Na verdade, não era a primeira vez que se encontrava cativa, mas nunca sofrera àquele ponto, porque então as suas angústias diziam respeito a si própria, não aos seus. Onde estariam Léonarde, Khatoun e o pequeno Philippe? O Rei sabia que, separando-a deles sem lhe dizer onde estavam, infligia-lhe a provação mais penosa, o que tornava inúteis as sevícias corporais e explicava, em parte, pelo menos, a cela decente, a boa alimentação e até a roupa que ela deixara em la Rabaudière e que encontrara na arca da sua prisão. Uma única consolação: Luís gostava de crianças e respeitava-as o suficiente para não fazer mal ao seu filho. Philippe era, certamente, mais bem tratado do que a sua mãe. Mas como as horas lhe pareceram lentas durante os oito dias que teve de passar na única companhia do seu carcereiro!

Fiora obrigava-se a uma apresentação irrepreensível, a uma toillette minuciosa todas as manhãs, a usar roupa branca e um vestido limpo. A mulher de Grégoire encarregava-se de lavar a roupa e de a passar. Era uma maneira como outra qualquer de manter a dignidade; depois, não queria ser apanhada de surpresa em trajos menores quando, finalmente, a fossem buscar para a conduzirem perante o seu juiz... ou juizes...

Grégoire apareceu, na noite do nono dia, todo esbaforido:

O Rei senhora condessa! O Rei! Está a chegar!...

Fiora já o sabia. A jovem ouvira o rufar dos tambores, as trombetas de prata e todo o barulho produzido por um grande grupo de cavaleiros, sobretudo quando escoltado por cães. E o seu coração bateu com mais força. Enfim, enfim, ia saber de que a acusavam!

No entanto, dois dias, dois dias ainda mais intermináveis do que os outros se passaram sem que ela pudesse saber se tinham intenção de se ocupar dela, ou se iam, simplesmente, abandoná-la no fundo da sua prisão.

Naquela noite, após uma curta toillette e as orações, ela deitou-se com o coração infinitamente pesado, não sabendo que mais pensar. O seu espírito tenso recusava-lhe o sono. Deitada no leito, triturando nervosamente a longa trança negra que lhe deslizava pelo peito, ouvia o bater das horas no pequeno convento que, no primeiro pátio, estava encostado às paredes do palácio propriamente dito. Como todos os prisioneiros, a jovem vivia segundo o que os seus ouvidos lhe diziam... Subitamente, sobressaltou-se e sentou-se bruscamente: estavam a abrir a porta, quando devia ser quase meia-noite.

Com efeito, Grégoire apareceu armado com uma lanterna e antes que ele tivesse podido empurrar o batente, Fiora pôde ver que, no exterior, estavam, pelo menos, dois alabardeiros iluminados por archotes...

Depressa depressa! exclamou Grégoire. Vesti qualquer coisa, Madame, o Rei quer ver-vos!

Fiora, saltando da cama, viu-se perante a figura sobressaltada do carcereiro, a lanterna que ele segurava iluminando os dois rostos.

A esta hora? perguntou ela.

Sim. Graças a Deus, ainda não dormíeis! Suplico-vos, apressai-vos!

Fiora enfiou um vestido à pressa, calçou-se e, renunciando a pentear-se, envolveu a cabeça num véu. Tudo aquilo não lhe exigiu mais de dois minutos e a jovem dirigiu-se para a porta onde, de facto, a esperava um piquete de soldados. Dois marcharam na sua frente, dois seguiram-na e, daquele modo, desceu os dois andares que separavam a prisão do nível do solo antes de desembocar no pátio de honra, vazio e silencioso àquela hora tardia. Só se ouvia o passo cadenciado das sentinelas de guarda sobre as muralhas e os sons dos campos próximos. A noite estava linda, clara, cheia de estrelas e Fiora, após a sua reclusão, respirou os seus odores frescos com um prazer inesperado. Como cheirava bem a tília e a madressilva!

Com excepção de uma luz brilhando nos aposentos do Rei e dois archotes acesos à entrada da pequena torre octogonal que encerrava a escada, Plessis estava mergulhado na escuridão. Um cão ladrou, algures para os lados do Loire e no interior do castelo um outro cão, depois dois, e depois três, responderam-lhe.

Alguns instantes mais tarde, a porta do quarto real, guardada por dois escoceses, abriu-se pela mão de um criado, que convidou Fiora a entrar e se eclipsou logo a seguir, fechando atrás de si o batente de carvalho trabalhado.

Agasalhado, apesar da temperatura doce, com um casaco preto forrado de pele de marta e com um capuz de lã enfiado até às espessas sobrancelhas, Luís XI estava sentado na sua grande cadeira guarnecida com almofadas, ao canto da monumental chaminé onde ardia um fogo brilhante. Juntamente com o candelabro de ferro forjado de cinco braços pousado perto do Rei, aquelas chamas iluminavam a vasta divisão que, assim mergulhada em três quartos da sua dimensão nas trevas, pareceu imensa à prisioneira.

O Rei não olhou para ela. O soberano olhava para o fogo e o seu terrível perfil de nariz pontiagudo queixo pesado obstinado e boca desdenhosa recortava-se no fundo flamejante que lhe fazia sobressair as maçãs ossudas do rosto e as pálpebras pesadas, enrugadas como as das tartarugas, por entre as quais se filtrava o brilho sombrio do olhar. Estendia para o fogo as mãos nervosas, miraculosamente poupadas pela idade e, de tempos a tempos, esfregava-as uma na outra.

Como ele continuasse a não virar o olhar para ela, Fiora deu alguns passos abafados pela espessura dos tapetes, nos quais estavam deitados os cães. Todos eles tinham virado as cabeças; farejando o ar modificado por aquela presença estranha, esperando, talvez, uma ordem que não surgiu, ao mesmo tempo que Fiora esperava uma palavra que, também ela, não surgiu.

Sabendo como a sua cólera podia ser terrível, ela não ousou romper aquele silêncio sufocante. A jovem saudou profundamente e esperou, com um joelho em terra, que lhe fosse permitido levantar-se. O Rei continuava calado. Então, meio estrangulada pela angústia, ela murmurou, a despeito da tempestade que lhe podia cair sobre a cabeça:

Sire... Ignoro por que razão o Rei desvia de mim o olhar e que falta terei cometido para incorrer na sua cólera, mas suplico-lhe humildemente que me diga... pelo menos, o que é feito do meu filho?

De novo o silêncio assustador. A jovem sentiu um nó na garganta e as lágrimas, que se esforçou por reter, subirem-lhe aos olhos. Então, bruscamente, Luís XI virou a cabeça e ela recebeu em pleno rosto o olhar agudo, cintilante, de uma cólera que apenas a vontade reprimia:

O vosso filho? grunhiu o Rei com um desprezo que esbofeteou a jovem. Já é tempo de vos preocupardes com ele! Desde que ele nasceu, há quase dois anos, quantos dias passastes junto dele?

Muito poucos, mas o Rei sabe...

Absolutamente nada! E levantai-vos! Pareceis-vos demasiado com a condenada que ainda não sois!

E devo sê-lo? Em que é que ofendi o Rei?

Ele desviou de novo o olhar daquela delgada silhueta negra, demasiado graciosa, talvez, e daqueles grandes olhos cinzentos, demasiado brilhantes para não estarem molhados.

Ofender? A palavra é fraca, Madame! Vós insultastes-me, traístes-me tanto quanto o pode ser um soberano, tramastes a minha morte!

Eu?

O grito fora tão espontâneo que o Rei estremeceu. Um tique nervoso repuxou-lhe a boca e agitou-lhe as narinas sensíveis, de homem nervoso.

Sim, vós! Vós, que eu acolhi quando Florença vos rejeitava, vós, que eu recebi nos meus domínios, quis na minha vizinhança e a quem, Deus me perdoe, concedi alguma amizade! Como se um homem são de espírito pudesse conceder uma coisa parecida com amizade a uma mulher!

O soberano escarrara a palavra com tanto desprezo que Fiora que sentiu que um princípio de cólera lhe secava as lágrimas.

Sire! O ventre que transportou o Rei não era o de uma mulher?

O olhar que ele virou para ela era pesado de rancor e talvez, também, de desgosto:

A Senhora Rainha, minha mãe, era uma santa e nobre mulher que não conheceu a felicidade atrás da qual vós todas correis por uma simples razão: era feia. Mas a minha avó, Ysabeau la Bavaroise, não era outra coisa senão o que vós chamais, na vossa língua italiana unagrandputana e, não contente com isso, vendeu, no seu tempo, a França à Inglaterra! E eu, que não queria mulheres no meu séquito, agi como um louco, permitindo-vos que entrásseis nele. Foi por isso que vos tirei la Rabaudière...

Mas o meu filho, o meu filho?

Será educado como convém ao nome que tem. Confiá-lo-ei ao grande bastardo Antoine, que saberá fazer dele um homem...

Respeito profundamente monsenhor Antoine, mas nego-lhe o direito, comigo viva, de educar o meu filho!

- Convosco viva? Tendes a certeza de que o sereis ainda por muito tempo?

Ah!... O Rei está a pensar... mandar matar-me?

Vós tramastes a minha morte, Madame!

Nunca! Juro pela minha alma que nunca vos desejei, sequer, a morte. Seria preciso que fosse louca!

Ou demasiado hábil! Vós não nascestes em Florença, Madame, mas tornastes-vos florentina e parece que a intriga não tem segredo para vós. Negais ter escrito, o Verão passado, uma carta que tereis confiado ao núncio do Papa em Avinhão?

Ao cardeal della Rovere? Sem dúvida, Sire e não tenho razão nenhuma para o negar.

A quem se destinava essa carta?

A uma amiga querida, que me permitiu sair de Roma viva, chegar a Florença e, de certa maneira, salvar a vida a monsenhor Lourenço, entregando-lhe a espada de que tinha grande necessidade: a madonna Catarina Sforza, condessa Riario...

Que tínheis de tão urgente para lhe transmitir?

O meu reconhecimento tardio. Aliás, foi a pedido do cardeal que escrevi essa carta.

Muito verosímil disse o Rei, encolhendo os ombros. Por que vos teria della Rovere pedido isso?

É muito simples. Ele tem pela prima uma profunda afeição e parece que esta sofreu muito por causa da ajuda que me prestou. O cardeal desejava que, como prova da minha profunda afeição por donna Catarina, lhe prometesse intervir junto do Rei para que ele fizesse cessar a guerra entre Roma e Florença...

E de uma maneira muito simples: assassinando o ”velho diabo!” porque é assim que a vossa pena me trata o que privará Florença de uma ajuda preciosa em ouro e canhões...

Eu nunca escrevi nada de semelhante! gritou Fiora fora de si. E por que razão teria eu imaginado esse horror?

Na esperança de que o Papa vos desse mais do que o que o pobre Beltrami vos fez perder! Aqui tendes!

De uma das suas grandes mangas, ele tirou um grande papel desdobrado que devia ter viajado muito, porque os vincos estavam sujos e o selo de cera quebrado. O soberano entregou-o a Fiora:

Esta carta é vossa? É a vossa letra, não é? E também é o vosso selo: cera verde com essas três pervincas que escolhestes como emblema pessoal?

A carta, com efeito, parecia-se, até ao mais ínfimo pormenor, com a que entregara a Giuliano della Rovere. Era, de facto, a sua letra, o seu pequeno selo verde, mas o texto estava longe de ser o mesmo e Fiora, ao lê-lo, sentiu-se empalidecer, porque era a sua própria perda que tinha nas mãos. A jovem leu e releu várias vezes as terríveis frases para se convencer de que os seus olhos não estavam a traí-la e que não estava a enlouquecer:

”... e posso assegurar a Vossa Santidade e a Vossa Excelência a minha dedicação total, com a qual podeis contar absolutamente. Dentro de alguns meses porque preciso de falar com alguns elementos rebeldes à ocupação francesa das nossas terras da Borgonha farei com que o velho diabo, que merece as chamas do inferno, deixe de prejudicar a alta reputação do Mui Santo Padre. Então, a França, nas mãos de uma criança, deixará de importunar os príncipes de quem esse Rei miserável não passa de uma grotesca cópia...

Seguia-se, evidentemente, um pedido de recompensa por um tão grande serviço. Fiora ergueu para o Rei um olhar espantado mas límpido, e entregou-lhe a carta com uma mão que não tremia.

O Rei crê-me capaz de escrever uma tal infâmia? Eu, que odeio o Papa e o seu séquito, com excepção de donna Catarina?

Vós sois mulher, e uma mulher muito bela. As mulheres da vossa espécie são capazes de tudo para obter a fortuna que lhes permita cuidar dessa beleza entretanto tão ilusória e assegurar-lhe uma moldura digna.

Eu sou rica, não preciso das benesses do Papa. Monsenhor Lourenço devolveu-me a quase totalidade da minha fortuna. E ia pactuar com aqueles que querem a sua perda?

A guerra entre o Papa e Florença está longe do fim. Escaramuça-se muito, sem dúvida, mas a cidade da flor-de-lis vermelha perde forças, ao passo que Roma as adquire. Aliás, a balança não estava equilibrada à partida e eu receio muito...

Então exclamou Fiora, levada por uma cólera brutal que esperais para os ajudar? Enviai tropas, enviai mais ouro ainda, mas não deixeis perecer Florença!

Um leve sorriso esticou os lábios espessos de Luís XI, ao mesmo tempo que as suas mãos aplaudiam vigorosamente:

Bravo! Que comediante me saístes, donna Fiora! Na verdade, quase me convenceis. É tentador.

Aquele desdém desarmou Fiora, mais do que o teria feito uma cólera violenta. A jovem deixou-se cair de joelhos:

Então matai-me, Sire!Matai-me agora mesmo... mas não me insulteis! Pelo meu filho vos juro que essa carta não é minha!

Esqueceis que já me escrevestes? A comparação é fácil...

É uma falsificação, não? O Papa e a corja que o rodeia são capazes de tudo e os copistas não faltam... Com... com que palavras, em que língua posso jurar-vos que nunca escrevi essa... esse lixo?

Subitamente, veio-lhe uma ideia surgida das profundezas da sua memória:

Sire! Estava uma pessoa junto de mim quando me pediram que escrevesse essa carta...

Quem?

Dame Léonarde, que me criou, sem dúvida, mas que não vejo há várias semanas e cujo paradeiro desconheço. Confesso, tive bastante dificuldade para redigir essa epístola, não por causa dos sentimentos de amizade e reconhecimento que menciono nela, mas porque sabia que incitar-vos a pôr fim à guerra estava para além dos meus poderes. Como me teríeis recebido se eu tentasse intervir na vossa política?

Muito mal. Ter-vos-ia dito que vos metêsseis no que vos diz respeito... Dame Léonarde, dizeis vós?

Sim, Sire!

O Rei bateu as palmas, o que acordou os cães e fez aparecer o criado que introduzira Fiora. Fazendo-o aproximar-se com um gesto imperioso, o soberano murmurou-lhe algumas palavras ao ouvido. O homem fez sinal de que compreendera e saiu tão depressa como tinha entrado. O Rei parecia ter-se acalmado um pouco, mas mordia o lábio inferior enquanto olhava para a jovem sempre ajoelhada entre um épagneul louro e uma cadela galga branca, que formavam com ela uma figura heráldica de uma beleza surpreendente:

Em todo o caso disse ele ao cabo de um instante já vos aconteceu enviar-me, pelo menos, uma carta mentirosa. Lembrais-vos da que escrevestes antes de partir para Paris? Que me enforquem se não é um chorrilho de mentiras!

Fiora baixou a cabeça sem responder, lembrando-se das palavras de Olivier lê Daim. Se o barbeiro sabia que ela dera à luz uma rapariga, também o Rei sabia.

Confesso, Sire. Menti.

Ah! disse ele com ar de triunfo. Admitis? Então, dizei-me onde estivestes durante esse longo Inverno!

Fiora levantou a cabeça: não ia renegar as suas entranhas, mesmo que isso lhe custasse a vida.

Primeiro em Paris, e nisso não menti. Depois, em Suresnes, numa pequena casa pertencente ao meu velho amigo Agnolo Nardi, o irmão de leite do meu pai... Dei lá à luz uma filha, que entreguei a Agnolo e à sua mulher.

Ah! Finalmente! exclamou o Rei, que saltou da sua cadeira como se impulsionado por uma mola e se pôs a andar de um lado para o outro diante da chaminé. Uma filha! E de quem é essa criança? Não vos deis ao cuidado de mo dizer, fá-lo-ei por vós: é do vosso marido, Philippe de Selongey que, a despeito do que me dizíeis, foi ter convosco secretamente. E é nisso que essa maldita carta não mente! Tínheis razão quando faláveis em ”elementos rebeldes”, por outras palavras no vosso marido, mas, evidentemente, era difícil anunciar-me que estáveis grávida, quando eu não sabia onde se encontrava esse demónio do Selongey. Foi por isso que vos fostes esconder... Como vedes, sei tudo! Atordoada, Fiora deixou-se cair sentada nos calcanhares, com desprezo por todo o protocolo:

Que estupidez é essa? exclamou ela com mais sinceridade do que cortesia. Eu ter-me-ia dado ao trabalho de esconder o nascimento de uma filha do meu marido? De uma filha a quem dei o nome de Lorenza Maria?

Lorenza?

É claro. Os que me são próximos poderão dizer-vo-lo: não só essa criança não é fruto da minha união com um rebelde, como é desse rebelde que eu quero ardentemente escondê-la... porque é fruto dos meus amores com Lourenço de Médicis. Escondi-vos que fui amante dele?

De facto não, mas...

A esta hora, o meu marido não ignora nada das minhas relações com Lourenço e, como o perdi para sempre, não tenho razões para me privar do amor da minha filha. É minha intenção reavê-la.

Portanto, é verdade que encontrastes o conde de Selongey? Onde? Quando?

Mais ou menos há três semanas, em Nancy, no priorado de Notre-Dame...

Santo Deus! Então, é lá que ele está escondido?

Fiora pôs-se de pé num salto, impulsionada por uma manifestação de orgulho.

Se o disse ao Rei, é porque ele não está escondido! Ele escolheu viver lá para poder, todos os dias, rezar no túmulo de monsenhor Carlos duque de Borgonha e único senhor que ele alguma vez aceitou servir. Um dia, talvez não muito longínquo, pronunciará lá os votos perpétuos.

Lentamente, Luís XI regressou à sua cadeira e ficou meio deitado, meio sentado nela, cobrindo com as duas mãos os dois leões esculpidos nos braços de madeira de carvalho. O soberano parecia mergulhado em profunda meditação. Depois:

Ele quer fazer-se monge, ele? Portanto, já não vos ama? acrescentou ele com uma ironia cruel que feriu a jovem.

Eu podia tê-lo trazido comigo suspirou ela. Mas... à custa de um perjúrio.

Qual?

Ele pediu-me que jurasse... perante Deus, que nunca pertenci a Lourenço. Não pude...

Gelada pela recordação daquele instante cruel, Fiora nem sequer virou a cabeça quando a porta se abriu de novo com um ligeiro ranger, mas logo se ouviu um grito:

Meu cordeiro!

No instante seguinte, Fiora estava nos braços de Léonarde, onde se abrigou com uma maravilhosa sensação de libertação e apaziguamento:

Léonarde! Minha Léonarde!... Oh meu Deus!

Ordeno-vos que vos separeis! ordenou Luís XI em voz alta. Mulher, eu não vos fiz vir aqui para assistir a uma cena de ternura, antes para que respondais às minhas perguntas!

E eu quero fazer-vos uma, Sire exclamou Léonarde. Que lhe fizestes, para que esteja neste estado?

Siderado, Luís XI ficou sem voz perante aquela velha solteirona que ousava interrogá-lo no tom que um oficial da guarda teria utilizado para com um ladrão apanhado no meio da rua.

Por Deus, comadre, esqueceis quem sou?

Não... e sois um grande Rei. Mas ela, esta pobre pequena, a quem a felicidade neste mundo parece ser recusada, representa mais para mim do que se fosse carne da minha carne! E agora fazei as perguntas que quiserdes... mas não nos separeis mais!

Como hei-de chegar à verdade? resmungou o Rei. Enfim! Tentemos!... Primeiro, que sabeis da criança nascida em Suresnes no princípio da Primavera?

O que é possível saber, Sire. Chama-se Lorenza. Isso diz tudo.

Seja, seja. Passemos a outra coisa! Tendes conhecimento de uma carta, escrita há cerca de um ano por madame de Selongey a donna Catarina Sforza e por ela confiada a Sua Eminência o cardeal-núncio...

A monsenhor della Rovere? Tenho! Essa carta deu muito trabalho a este pobre anjo...

Nesse caso, sois capaz de a reconhecer. Ei-la! Léonarde, obrigada a largar Fiora, pegou respeitosamente na carta que lhe estendiam, leu-a e atirou-a, enojada, aos pés do Rei...

Pua! Que coisa tão feia! Espero, Sire, que não acrediteis que donna Fiora é responsável por esse papel desonroso?

É a letra dela, é o selo dela e...

E é, sobretudo, obra de um grande falsário! Se o encontrardes, sire, mandai-o para o patíbulo mais próximo. Quanto àquele que vos entregou essa porcaria, aconselho-vos a que o junteis a ele.

É um dos meus mais fiéis conselheiros!

Sem o menor receio e para grande pavor de Fiora, a velha solteirona desatou a rir:

Aposto que esse grande conselheiro é o vosso Olivier le Daim... ou o Diabo, como dizem as pessoas daqui?

O... Diabo? disse o Rei, persignando-se precipitadamente duas ou três vezes antes de beijar a medalha que lhe pendia do pescoço.

É preciso dizer que a palavra lhe assenta que nem uma luva. Além disso, faria não importa o quê para ficar com aquela bela Casa das Pervincas, onde nós fomos tão felizes. Até tentou matar-nos!

Deixemos isso, por agora. Pretendeis que esta letra é falsa?

Ponho as mãos no fogo, Sire! Aliás... se me permitirdes, regresso dentro de instantes.

E, pegando nas longas saias de veludo púrpura, Léonarde abandonou os aposentos reais tão depressa quanto lho permitiam as pernas que há muito tinham perdido a juventude, deixando o Rei e Fiora estupefactos.

Mas... onde é que ela vai? murmurou a jovem, falando mais para si própria.

E Luís XI respondeu com um ar muito natural:

Ao sítio onde a pus com o vosso filho: aos aposentos que as minhas filhas utilizam quando vêm a Plessis, o que é raro.

Depois, subitamente furioso:

Espero que não tenhais pensado que sou cruel ao ponto de atirar com uma criança de dois anos para a prisão?

Uma grande alegria inundou Fiora, fazendo-a esquecer o que a sua própria situação tinha de incerto e até de perigoso, com um homem com o carácter daquele estranho soberano. O seu querido Philippe estava ali perto, talvez até conseguisse permissão para o abraçar, ao menos uma vez?

Faltou-lhe o tempo para o perguntar. Léonarde estava de regresso com uma pilha de papéis. Desembaraçando-os da fita que os atava, a velha solteirona entregou-os ao Rei com uma reverência talvez um pouco tardia.

Eu, Sire explicou ela nunca deito nada fora. Sobretudo papéis escritos.

O que é isto? Dir-se-ia um rascunho?

É um rascunho Sire! Da maldita carta que donna Fiora escreveu naquela noite. Santo Deus! Ela não conseguia escrevê-la, mas o Rei pode ver que não há aí nada de ofensivo para Sua Majestade! Vede, Sire! Sobretudo este aqui! Só lhe falta a parte final... mas caiu-lhe uma mancha de tinta! Então, foi preciso escrever outra.

Cuidadosamente, o Rei examinou o que lhe tinham dado, voltou a pegar na carta, comparou e enrolou tudo:

Fico com isto... mas dissestes há pouco, dame Léonarde, que messire lê Daim tentou matar-vos?

Sem Messire Mortimer e o messire grande preboste teria acontecido e a esta hora estaríamos a apodrecer por baixo de alguns palmos de terra na floresta de Loches.

Como é possível Tristan L’Hermite não nos ter dito nada? perguntou o Rei com severidade.

Léonarde encolheu os ombros:

Porque está na mesma posição que nós, Sire: não tem provas. Nada, senão as confissões de um bandido que ignorava o nome do seu cliente.

- Estou a ver! Bem... podeis retirar-vos, dame Léonarde. O Rei agradece-vos...

Posso levá-la comigo?

A velha solteirona rodeara com os braços os ombros de Fiora que, terrivelmente cansada, apoiava a cabeça contra ela.

Não. Temos de reflectir nisto tudo. Por agora, donna Fiora vai regressar à sua prisão...

Sire! suplicou a jovem deixai-me, ao menos, abraçar o meu filho! Ou então... permiti que Léonarde venha comigo. Khatoun basta para olhar pela criança.

Khatoun desapareceu! disse Léonarde com o rosto subitamente fechado. Não sei para onde foi.

Ah? Nesse caso ide depressa, Léonarde. O meu pequenino precisa mais de vós do que de mim... Ide, estou a dizer-vos! Não se pode contrariar o Rei! Não esqueçais que o meu destino está nas suas mãos!

É assim que o entendemos! Guardas! disse ele com voz forte, o que fez com que a porta se abrisse de imediato.

Fiora saudou profundamente e depois, com a morte na alma, seguiu os soldados que iam reconduzi-la à prisão. A jovem levava consigo a imagem de Luís XI, um cotovelo apoiado no braço da sua cadeira e o queixo apoiado na mão. Jamais Fiora vira rosto tão duro nem olhar tão gelado. Teria ele compreendido alguma coisa do que ela lhe dissera? Não juraria...

E ainda menos quando, na tarde do dia seguinte, os guardas, sob o comando de um sargento a foram, de novo, buscar. Dessa vez, foi para a grande sala de honra do castelo que a conduziram. Quando a jovem transpôs a soleira, parou por um instante, espantada perante o espectáculo que se lhe oferecia.

O Rei, vestido com mais elegância do que de costume, estava sentado no trono coberto pela flor-de-lis e com o grande colar de Saint-Michel ao pescoço. Junto dele a sua corte, a corte exclusivamente masculina que o rodeava quando a Rainha Carlota não estava presente. No entanto, Fiora sentiu uma certa alegria ao reconhecer Philippe de Commynes de pé num dos degraus que sustentavam o trono. Um piquete da Guarda Escocesa postava guarda junto das janelas e, junto à porta, o capitão Crawford mantinha-se a alguns passos do soberano, apoiado na sua grande espada...

Quando a prisioneira entrou, o silêncio foi completo e ter-se-ia ouvido uma mosca enquanto, lentamente, ela avançava para o Rei, parando apenas a três ou quatro passos do estrado real para saudar como convinha. O coração batia-lhe no peito com toda a força. Fiora estava certa de que se ia desenrolar, no meio daquele aparato todo, o seu julgamento. Uma audiência tão solene só podia ter um significado ameaçador...

No entanto, um pequeno incidente distendeu um pouco a atmosfera tão pesada. Cher Ami, o grande galgo branco, o cão favorito de Luís XI, que se deitava habitualmente aos seus pés sobre uma almofada, levantou-se e, num passo indolente, acercou-se de Fiora e lambeu-lhe docemente a mão.

Tocada por aquele sinal de amizade, ela acariciou a cabeça sedosa, ao mesmo tempo que as lágrimas lhe subiam aos olhos. Aquele belo cão era, portanto, o seu último, o seu único amigo naquela assembleia? O próprio Commynes olhava obstinadamente para a ponta dos seus sapatos...

Aqui, Cher Ami! ordenou Luís XI, mas, em vez de obedecer, o grande galgo, como se tencionasse fazer de advogado da jovem, sentou-se tranquilamente a seu lado.

O Rei não renovou a sua ordem. Com um gesto, fez sinal a Fiora para que se levantasse, tossicou para aclarar a voz e, por fim:

Meus senhores, reunimos-vos aqui, nesta nobre assembleia, para serdes testemunhas do valor que damos à nossa justiça. A senhora condessa de Selongey, nascida sob o nome de Fiora Beltrami e aqui presente, foi acusada de traição à nossa coroa e de querer matar a nossa pessoa. A principal prova de acusação é uma carta, que a dame de Selongey nega em absoluto ter escrito. Outros elementos foram-nos fornecidos por uma terceira pessoa e esses ditos elementos tenderiam a inocentar a dita dama.

O soberano fez uma pausa, tirou um lenço e assoou-se ruidosamente, o que provocou um som de tempestade na assembleia silenciosa. Ninguém disse palavra. Então, ele continuou:

Dados os sinais de amizade que tínhamos dado à dame de Selongey, dado também o facto de o seu marido, cavaleiro do Tosão d’Ouro, ter agido sempre como um rebelde obstinado ao nosso governo, o nosso espírito encontra-se extremamente perturbado e não pode decidir capazmente num assunto tão delicado. Assim, resolvemos apelar ao julgamento de Deus!

Aquilo foi de tal modo inesperado que o silêncio se transformou em diversos murmúrios e Commynes, erguendo a cabeça, exclamou:

Sire! O Rei vai remeter-se a práticas de uma outra era?

Se quereis dizer, messire de Commynes, que Deus Todo-Poderoso passou de moda, não fareis parte durante muito mais tempo do meu séquito! disse Luís XI com um olhar assassino. Paz, portanto, e não interrompais mais! Pelo julgamento de Deus não entendemos o juízo de Deus. A dama condessa não será atirada à água, convidada a caminhar com um ferro em brasa nas mãos nem entregue a qualquer uma dessas práticas, das quais nunca pensámos bem. Mas as acusações que pendem sobre ela foram-nos entregues por duas personagens... Messire embaixador de Florença, dignai-vos comparecer perante nós!

Houve um movimento na multidão para a qual Fiora não olhava e Luca Tornabuoni, magnificamente vestido como era seu hábito, inclinou-se perante o Rei, que lhe sorriu gentilmente. Ao vê-lo, Fiora nem sequer estremeceu. Que o seu antigo apaixonado estivesse ali, diante dela, e que fizesse parte dos acusadores, não a surpreendia. Devia ter conseguido, com muita dificuldade, o papel de enviado de Lourenço junto do Rei de França e, por ocasião do seu último encontro, ela sentira que ele se tornara seu inimigo e que faria tudo para vingar o facto de ela o ter desdenhado... E como ele lançasse na direcção dela um olhar acompanhado da sombra de um sorriso, ela desviou os olhos com um desdém esmagador...

Dissestes-nos saber de fonte segura, messire embaixador, que a dame de Selongey que vós conheceis há muito tempo...

Desde a infância, Sire, e...

Que a dame de Selongey, dizíamos nós, deu à luz secretamente, em Paris, uma filha que seria ilegítima se a sua concepção não provasse que ela se juntou em segredo àquele notório rebelde que é o seu marido para conspirar contra nós?

De facto, Sire. Digo e repito, porque a minha fonte é das mais seguras...

Uma serva, parece? Uma antiga escrava que teria uma... inclinação por vós?

Falais de Khatoun? exclamou Fiora, incapaz de se conter. De Khatoun, que vós quase matastes em Florença? Ela, agora, é vossa amante?

O sorriso trocista deu-lhe vontade de lhe saltar para a garganta:

Por que não? Ela é encantadora e especialista no jogo do amor. Encontrei-a um dia por estas bandas, muito magoada por a terdes abandonado e terdes preferido percorrer essas estradas com um criado. Simplesmente, ela sabia por que razão íeis a Paris...

Sabia, de facto, mas também sabe que eu não vejo o meu marido há dois anos. Ignoro por que razão terá dito essa mentira...

Mentira? Vós é que o dizeis, bela Fiora. Pela minha parte...

Pela vossa parte continuou o Rei com uma voz subitamente severa esperamos que sejais capaz de defender a vossa... verdade de armas na mão contra qualquer campeão que se apresente para defender a causa da dame de Selongey

Um duelo? Mas eu sou um embaixador, Sire!

Um embaixador que se mete onde não é chamado deve submeter-se às nossas leis, assim como aos nossos costumes. De qualquer maneira, tencionamos prevenir o nosso querido primo, o senhor Lourenço de Médicis, da nossa intenção de vos obrigar a defender as vossas declarações em campo fechado.

Sire!

Ficai tranquilo! Não ireis só. Eu falei em duas personagens e penso, messire Olivier le Daim, que estais pronto, também vós, a submeter ao julgamento divino esta carta que vós mesmo nos entregastes, certificando a sua autenticidade... e reclamando uma certa casa como preço por este serviço.

Por sua vez, o desvairado barbeiro apareceu em cena:

Mas, Sire, nosso Rei... eu não sou cavaleiro, não sou capaz de me defender!

Não sois cavaleiro? Vós, que nós fizemos nosso embaixador na cidade de Gand? Eis uma falta grave, pela qual nos reprovaremos durante muito tempo, mas ficai descansado, temos muito tempo para vos treinar antes do recontro...

O Rei tenciona mesmo... enviar-me para a liça?

Na companhia de messire Tornabuoni. Sereis dois contra um único campeão. Fazemos esta escolha estranha porque tendes pouca experiência com a espada...

Pelo contrário, com o punhal e de preferência pelas costas, ele não teme ninguém! clamou Douglas Mortimer que, abandonando o seu posto de guarda, se foi colocar diante de Fiora. Com a vossa graciosa permissão, Sire, serei o campeão de donna Fiora! E matarei esses dois miseráveis, tão certo como chamar-me Douglas Mortimer, dos Mortimer de Glenlivet... E mais ainda, se o Rei quiser ter a bondade de mandar contra mim mais cinco ou seis desses malvados libertinos!

Oh! A alegria de sentir junto de si aquela força tranquila, aquele amigo seguro! Fiora ergueu para Luís XI um olhar cheio de esperança... mas este franziu o sobrolho:

Paz, Mortimer! Por Deus, vós estais ao nosso serviço, não ao das damas! O vosso sangue só deve correr pela França. Por isso, recusamos a vossa proposta... Que outro campeão se apresente. Do resultado do combate depende a sorte da dame de Selongey... Ide para o vosso lugar!

Com um gesto imperioso, Luís XI deteve Philippe de Commynes, visivelmente pronto a oferecer as suas armas...

Num assunto tão grave continuou o Rei não pode haver precipitações. Aquele que se apresentar perante nós, dentro de exactamente um mês, deve saber que, se for vencido, a dame de Selongey será executada, e que o combate será até à morte. Portanto, meus senhores, examinai e pesai bem a vossa decisão...

Está decidido resmungou Mortimer entredentes. Nenhuma força humana me impedirá de combater por ela, mesmo que tenha de pedir a minha demissão!

Entretanto, suficientemente perto do escocês, o Rei, como se não tivesse ouvido nada, continuou:

Que a dame de Selongey seja reconduzida à prisão! Ninguém está autorizado a falar-lhe.

O silêncio era ainda mais profundo do que por ocasião da sua entrada quando Fiora se dirigiu para a porta escoltada pelos seus guardas. Um silêncio onde entrava, sem dúvida, muito de espanto perante aquela decisão tão estranha: um duelo judiciário, no qual um homem teria de enfrentar dois adversários? Mesmo pouco hábeis, era, mesmo assim, uma maneira curiosa de ver a igualdade de oportunidades, sem falar do Senhor que, naquele assunto, via o seu papel um pouco diminuído.

A única consolação de Fiora, antes de abandonar a sala, foi ouvir o Rei ordenar que Tornabuoni e Olivier le Daim fossem guardados dia e noite nos seus aposentos até à manhã do combate. Magra consolação, porque se nem Mortimer, nem Commynes, estavam autorizados a bater-se por ela, só lhe restava um mês de vida...

CAPÍTULO XII O ULTIMO DIA

O Rei, no entanto, parecia sentir alguma piedade pela sua prisioneira. No dia seguinte, depois de o carcereiro Grégoire ter levado o tabuleiro da sua primeira refeição na qual Fiora não tinha, praticamente, tocado o soberano regressou, muito alegre:

Venho anunciar-vos uma visita! exclamou ele. Uma boa visita...

Abrindo de par em par a porta que tinha voltado a fechar nas suas costas, Luís XI afastou-se para dar passagem a Léonarde, que transportava nos braços o pequeno Philippe. O grito de alegria da prisioneira fez subir aos seus olhos de homem bom uma lágrima de ternura e o Rei ficou um instante a contemplar o belo quadro formado por Fiora apertando o seu filho nos braços.

Meu querido! Meu amor!... Meu tesouro!

A jovem cobria de beijos apaixonados o pequeno rosto, as mãozinhas, os curtos cabelos castanhos que se encaracolavam no alto da cabeça redonda de Philippe, dando-lhe o ar de um anjinho... o que ele não era de todo porque, pouco habituado a efusões tão intensas, desatou a protestar. Fiora afligiu-se:

Magoei-o?

Não disse Léonarde, rindo mas vós quase o sufocais... Pronto, ponde-o no chão!... E vós, messirePhilippe, saudai a vossa mãe como vos ensinei!

O pequenito apoiou-se nas suas pequenas pernas e esboçou uma espécie de reverência tão desajeitada que Fiora ficou encantada.

Bom dia, senhora minha mãe disse ele muito sério. Estais bem?

Mas como Fiora se tinha acocorado diante dele, o pequeno atirou-se-lhe ao pescoço, gritando:

Mãezinha, mãezinha!... Aborrecia-me tanto sem vós!

No entanto, ele conhece-me mal! disse Fiora por cima da cabeça do filho.

Conhece-vos melhor do que pensais. Falávamos-lhe de vós todos os dias e, nas suas orações, ele nunca se esquece de pedir a Deus que lhe devolva a sua mãezinha...

E o meu paizinho também! rectificou o pequenito. Quando é que ele vem, mãezinha? Não sei, meu querido. O teu paizinho partiu para uma longa viagem, mas tu tens razão em rezar ao bom Deus para que ele regresse...

Deixemo-nos de choraminguices! disse Léonarde. E ponde um pouco de lado esse jovem para me abraçar. Ainda nem me dissestes bom dia!

As duas mulheres abraçaram-se calorosamente, ainda por cima porque a velha solteirona trazia com ela uma boa notícia: o pequeno Philippe e ela estavam autorizados a visitar todos os dias Fiora na sua prisão e até a tomar na sua companhia a refeição do meio-dia.

O Rei quer suavizar os meus últimos momentos? suspirou Fiora. É uma atenção que me sensibiliza muito...

Não pensais que vos vão arrancar a cabeça e que os que vos amam vão permitir que isso aconteça?

Aqueles que me amam não terão permissão para me defender e não vejo quem quererá correr, por uma desconhecida, um risco tão considerável.

E messire Philippe, o vosso marido? Encontraste-lo?

Sim e não. Viu-o, de facto, mas perdi-o para sempre...

E, com grande sobriedade, Fiora contou o que se passara em Bruges e depois por que acaso extraordinário encontrara Philippe onde menos esperava. Enfim, o que disseram um ao outro e como ele decidira ficar no convento.

No convento! Ele!... Que disparate! Já não vos ama, então?

Ama... pelo menos é o que ele diz, mas não sei se será verdade. Ele ilude-se, ou finge, para me poupar. Vede vós, Léonarde, eu não passei de um episódio no grande sonho cavaleiresco do conde de Selongey. Um episódio que, primeiro, o envergonhou, mas que aceitou por devoção ao seu duque. Depois deste morto e da sua Borgonha perdida, nada mais lhe interessa. Não falemos mais dele, Léonarde! Preferia que me dissésseis o que aconteceu a Khatoun!

Se eu soubesse! suspirou Léonarde...

A jovem tártara desaparecera de la Rabaudière na noite do regresso de Léonarde. Ao saber que Fiora não vinha e que, pelo contrário, ia a caminho da Flandres na companhia de Florent, fechara-se no quarto e recusara-se a sair, até para comer. Na manhã seguinte aperceberam-se de que ela tinha fugido da maneira mais clássica do mundo, atando os lençóis da cama uns aos outros.

E não deixou umas palavras, umas linhas?

Nada! Péronnelle disse-me que nos últimos tempos, durante a nossa ausência, ela se encontrou secretamente, disse ela, mas numa aldeia é difícil impedir que as línguas comecem a trabalhar com um senhor jovem e belo...

Luca Tornabuoni, meu antigo apaixonado, que depois da conspiração dos Pazzi quase fez com que os carrascos de Florença a retalhassem. Se não tivesse ouvido aquele miserável com os meus próprios ouvidos, não teria acreditado...

Oh. Eu soube umas coisas que podem explicar esse facto surpreendente. Aquela pobre Khatoun e Florent eram... digamos, muito amigos. Além disso, creio que pensava não ter, na vossa casa, o lugar a que tinha direito e tinha alguns ciúmes de toda a gente.

Eu não lhe confiei o meu filho? Que outra prova de estima poderia dar-lhe?

Estima, estima! Ela queria amor... e, sobretudo, nenhuma responsabilidade! Quer queirais, quer não, Khatoun foi feita para a vida preguiçosa de um harém, para uma vida de doçuras e carícias...

Receio bem que não as consiga junto de Luca! Ele é um egoísta refinado. Se, ao menos, soubéssemos onde ela está!

Não, Fiora! Não conteis comigo para a procurar, mesmo que eu pudesse. Ela já tem idade suficiente para continuar sozinha e acaba de vos fazer mal!

Pouca coisa, comparada com tantos anos de dedicação! Oh, Léonarde! Fico tão preocupada com ela...

Léonarde não disse que preferia ver Fiora preocupada com Khatoun do que com ela própria. Aquele caso do julgamento de Deus não lhe agradava nada. No entanto, a angústia ainda não a oprimia, porque acabava de ter uma ideia: enviar uma carta à princesa Joana para o castelo de Lignières, pedindo-lhe que interviesse. Era verdade que a princesa não tinha grande poder sobre o seu terrível pai, mas a velha solteirona sabia que, perante o seu olhar verdadeiramente celestial, o Rei ficava pouco à-vontade. Podia-se pedir tudo àquele coração angélico. À falta de Mortimer, enviado, assim parecia, na véspera, em missão pelo Rei, à falta de Commynes, expedido da mesma maneira, sem dúvida para lhes tirar a vontade de entrar na liça por Fiora, Léonarde pensou confiar a sua carta a Archie Ayrlie, aquele escocês que ensinara Florent a montar. Era bom rapaz, que fora mais de uma vez esvaziar alguns jarros à Casa das Pervincas. Se ele não pudesse ir a Lignières, arranjaria forma de mandar Florent. Quanto a encontrá-lo, Léonarde não teria dificuldade, já que o via muitas vezes quando ia ao jardim com Philippe, onde o pequenito tinha autorização para passear.

O combate teria lugar na terça-feira do dia 29 de Junho, festa de São Pedro e São Paulo. Com o seu perfeito conhecimento do calendário, Luís XI escolhera aquele dia porque o Papa, sucessor de São Pedro, estava mais ou menos implicado, na pessoa do seu sobrinho, naquela história sombria. O Rei nunca perdia uma ocasião para se reconciliar com o céu, ou de o chamar em seu socorro. Pelo seu lado, Léonarde, quase tão piedosa como o soberano, acrescentara aos dois príncipes dos Apóstolos a longa lista dos hóspedes do Paraíso que ela invocava todos os dias em prol da paz e felicidade do ”seu cordeiro”...

No entanto, à medida que os dias se iam passando, Léonarde ia perdendo o sono. A velha solteirona escrevera a sua carta e Archie Ayrlie encarregara-se dela de boa vontade. Ao mesmo tempo, tomara mil precauções para não ser vista por ninguém ao entregar-lha no jardim, o único sítio onde beneficiava de alguma liberdade. Não voltara a ver o escocês e não possuía nenhum meio de saber se a sua missiva chegara a bom porto.

Com efeito, Léonarde também se encontrava submetida a estreita vigilância, não podendo sair do seu alojamento senão escoltada por um arqueiro e na companhia do pequeno Philippe. Era-lhe proibido sair sozinha. Para além desse guarda, que a levava todos os dias à prisão para se encontrar com Fiora, ou ao jardim para as saídas do pequenito, não tinha afinidades senão com as duas criadas encarregadas de a servir. Nem uma única vez se encontrou com o Rei, cujas trompas de caça se ouviam frequentemente no pátio de honra. Da sua janela podia ver aqueles que entravam ou saíam, mas como não os conhecia, essas idas e vindas não tinham grande significado. Então, quando não estava junto de Fiora e quando o pequenito dormia, passava horas a olhar para a pequena janela com grades do austero edifício em frente, que iluminava a prisioneira, e rezava, rezava para que um homem de bem, um cavaleiro digno desse nome aceitasse arriscar a sua vida para que a jovem não perdesse a sua...

Pela sua parte, Fiora preocupava-se muito menos, entregue a uma espécie de fatalismo que lhe retirava todo o medo dessa morte a mesma que o seu pai e a sua mãe tinham sofrido à qual tinha poucas hipóteses de escapar. Nem sequer queria mal a Luís XI pelo jogo cruel que inventara. O Rei sabia-o, temia tanto mais a morte quanto avançava na idade e se a sua coragem física permanecia a mesma quando ia para a guerra, o assassinato manhoso, pérfido, causava-lhe um verdadeiro horror. Talvez porque, após os seus dezoito anos de reinado e até antes, quando não passava de um delfim ferozmente hostil ao seu pai Carlos VII a sua inteligência aguda lhe permitira evitar armadilhas, traições e emboscadas. Ora, aquela carta infeliz falava no seu assassinato. No fundo, o Rei dera mostras de uma grande brandura ao propor o duelo judiciário, podia ter mandado executar em segredo a pseudoculpada ou pô-la a apodrecer, com os ossos partidos, no fundo de uma masmorra qualquer...

Então, Fiora esforçou-se por atirar para longe de si a evocação desse dia ameaçador, para se consagrar por inteiro ao seu filho. Não vivera muito tempo junto dele e descobria-o com delícia, encantando-se com a sua beleza e inteligência precoce. Nunca tendo visto outra coisa que não sorrisos e não tendo recebido outra coisa que não carícias, o pequenito era uma criança muito alegre. A despeito de um carácter já em afirmação, tinha uma grande alegria de viver e transbordava de ternura pela sua mãe, a quem apelidava, por vezes, de ”minha bela dama”.

Para explicar o facto de Fiora não o acompanhar nunca ao jardim, tinham-lhe dito que ela estivera doente e que precisava de repouso. Apesar de aceitar a explicação sem discutir, Philippe não conseguia compreender por que razão a sua mãe não vivia com Léonarde e ele no castelo, antes no ”quarto reles” que, na sua lógica infantil, não era próprio para uma convalescença. O pequenito não dizia nada, mas demonstrava a Fiora ainda mais amor. Ele, tão turbulento, ficava horas sentado nos joelhos da mãe, encostado ao seu peito, ouvindo histórias e recebendo beijos...

Meu Deus! rezava interiormente Léonarde. Fazei com que depois deste combate idiota a nossa Fiora recupere a liberdade. Senão... oh, nem ouso pensar no que acontecerá!

O mês de Junho passou, doce e florido, com as manifestações alegres da festa do Corpo-de-Deus, que despojaram por completo as roseiras dos arredores e do São João que acendeu, chegada a noite, grandes fogueiras nas praças de todas as aldeias e no pátio de todos os castelos. Em Plessis, Fiora, se ouviu os cânticos e os gritos de alegria, não viu o reflexo da imensa fogueira que a Guarda Escocesa acendeu no primeiro pátio, em frente dos seus aquartelamentos. O seu quarto permaneceu obscuro, como se quisessem fazer-lhe sentir que estava na antecâmara da morte.

Quando pensava no Rei, era com mais tristeza do que cólera, porque se sentia ligada àquele homem a envelhecer, cuja grande fronte abrigava um espírito tão subtil, uma inteligência tão universal. E eis que aquele cérebro excepcional permitira que o medo do assassínio vencesse a amizade, a quase afeição que sentia por ”donna Fiora”. Aquela amizade, depois de ter ajudado a jovem a viver, quebrara-se por causa de uma simples folha de papel, por causa de umas simples linhas cuja letra o Rei não quisera ver que era falsa. Pior ainda, o Rei recusara os dois campeões que se tinham, espontaneamente, oferecido para defender a sua causa e para ter a certeza de que não perturbariam a sua festa macabra, mandara-os para longe. Então, quando esses pensamentos lhe vinham à mente, Fiora ajoelhava-se e rezava...

Chegou o último dia...

Quando Léonarde levou o pequeno Philippe, bem disse que a poeira lhe irritava os olhos, mas era evidente que chorara durante toda a noite. E, de facto, as notícias não eram tranquilizadoras: nem Commynes, nem Mortimer, tinham aparecido e Archie Ayrlie confiara à velha solteirona que, tanto quanto sabia, não se apresentara nenhum campeão. O escocês acrescentara que eram muitos aqueles que, na Guarda, desejavam oferecer as suas armas à prisioneira, mas era de temer que o Rei os rejeitasse, tal como rejeitara Mortimer.

O dia foi longo e penoso para as duas mulheres. Pelo pequenito, mantiveram a atitude habitual, sorrindo-lhe e brincando com ele. Fiora conseguiu-o melhor do que Léonarde, talvez porque não tivesse, realmente, medo. A jovem só lamentava deixar os que amava, não poder abraçar pela última vez a sua querida Lorenza que, essa, nunca conheceria a sua mãe.

No momento de se separarem, ela abraçou Léonarde com uma ternura infinita.

Vós, que sois tão piedosa sussurrou ela, sentindo as lágrimas da velha solteirona na face devíeis ter mais confiança em Deus. Ele é que vai decidir amanhã e, se não quiser que eu morra, nem o Rei nem ninguém poderá fazer o contrário...

É verdade, meu cordeiro, tendes razão e eu não passo de uma velha tola. Mas vou rezar, rezar, rezar tanto que o Senhor há-de ouvir-me! Tenho confiança e se amanhã à noite não vos puder apertar nos braços como agora, quererá dizer que Deus não existe. Mas, nesse aspecto, estou tranquila...

Então, Fiora apertou o seu filho contra o coração e guardou-o ali um instante, cobrindo de beijos ligeiros os caracóis sedosos e a pequena fronte tão suave.

Porta-te bem, coração! Se não me vires amanhã é porque parti para uma grande viagem... por causa da minha saúde!

Ides ver o meu paizinho?

Sim, meu anjo, prometo-te: hei-de ir ver o teu paizinho e talvez, então, te leve comigo...

As lágrimas estavam demasiado próximas e ela não queria que o pequenito as visse. Entregou-o a Léonarde e, suavemente, empurrou ambos na direcção da porta que Grégoire mantinha aberta. O guarda esperava no patamar.

Quando a porta se fechou, Fiora ficou imóvel no mesmo lugar, escutando, nos degraus de pedra, os passos curiosamente pesados de Léonarde a desaparecerem. Depois, ouviu o som da pesada porta que dava para o pátio... Fiora ficou só, só perante si mesma, perante o seu passado, perante os seus pecados, perante os seus amores reais ou simulados.

Tudo aquilo, disse ela para si própria, não passava de uma terrível embrulhada e mais valia que no dia seguinte à morte do seu pai tivesse morrido no juízo de Deus pela água que Hieronyma, certa de sair incólume, pedira para as duas. Há muito que o seu corpo, levado pelas águas amareladas do Arno, se teria fundido no mar azul. Philippe não teria nascido... nem Lorenza, mas Fiora sentia-se menos inquieta pela filha do que pelo filho. Lorenza viveria protegida pelo amor duplo de Agnolo e de Agnelle e talvez também pelo poder do seu pai... se Lourenço de Médícis conseguisse vencer a guerra ímpia a que o Papa o forçava. Enquanto que Philippe, se o seu pai não abandonasse o refúgio ilusório do priorado onde estava para velar ele próprio pelo seu filho, só teria Léonarde, já idosa, e a boa gente de la Rabaudière. Não teria o Rei piedade daquela criança duplamente órfã?

Quando o superior do pequeno convento encerrado nas muralhas de Plessis-lès-Tours penetrou na sua prisão para a ouvir em confissão, encontrou Fiora sentada no seu leito com as mãos pousadas tranquilamente nos joelhos.

A confissão durou muito tempo. Para ser compreendida por aquele homem simples que só ouvia os pecados dos guardas criados do castelo, Fiora teve de lhe contar uma grande parte da sua curta vida. À medida que ia falando, pareceu-lhe tudo tão estranho, tão anormal, que a jovem compreendeu perfeitamente o ar espantado do monge...

Tens a certeza, minha filha, que não estás a inventar nada? perguntou ele, horrorizado quando ela evocou as suas estranhas relações com o Papa. Será possível o nosso Santo Padre ter um comportamento tão negro?

Não me sinto surpreendida com a vossa reacção, senhor abade. Mas vós não sois italiano. A diferença está aí. Eu estou, simplesmente, a tentar fazer-vos compreender por que razão tive de cometer tantos pecados e peço-vos que mos perdoeis com a mesma sinceridade com que eu os lamento. Pensai que amanhã vou comparecer perante o tribunal de Deus. Mas Ele não terá necessidade de explicações...

Depois de o religioso ter abandonado a sua cela, Fiora, recuperada toda a sua coragem, comeu com apetite o fricassé de pato e o patê de vitela que o bom do Grégoire lhe serviu com uma bela salada e uma massa açucarada frita, tudo acompanhado com um vinho de Orleães fresco. Um pequeno cesto de cerejas terminava aquele festim a que a jovem fez as honras, recusando-se a ouvir as fungadelas do seu carcereiro e a olhar-lhe para os olhos, tão vermelhos como os de Léonarde. Após o que se deitou e adormeceu tão tranquilamente como se o dia seguinte fosse um dia como outro qualquer...

Acordando de madrugada para fazer uma longa e minuciosa toillette, Fiora voltou a vestir o vestido de que gostava particularmente, de espesso cendal branco e bordado com pequenos ramos verdes e cordões dourados entrelaçados. Incapaz de fazer a si mesma um daqueles penteados para os quais era necessária a ajuda de uma companheira, escovou cuidadosamente os seus espessos cabelos negros e fez duas tranças, que pregou na nuca com a ajuda de alfinetes, fazendo um pesado carrapito que nenhuma lâmina seria capaz de atravessar. Era a sua maneira de desafiar a morte. Em seguida, pegou num véu branco, colocou-o sobre a cabeça e enrolou-o em redor do seu longo e delgado pescoço como outrora no decurso das suas longas cavalgadas, quando viajava de vestido. Depois, esperou que a viessem buscar.

Fiora sabia que estava autorizada a ouvir missa na pequena capela dedicada a Notre-Dame de Cléry, o oratório preferido do Rei, que se situava a oeste do primeiro pátio, perto do torreão. Tornabuoni e lê Daim, esses, ouvi-la-iam na do castelo, que se situava a seguir aos aposentos reais.

Fiora apreciou aquela disposição, que a punha ao abrigo de um encontro com aqueles dois homens encarniçados na sua perda. Ao atravessar o pátio de honra para se deslocar à primeira, ela apercebeu, nos aposentos reais, uma tribuna decorada com as cores de França. Fora preparado um vasto espaço, delimitado por cordões de seda ligando quatro lanças espetadas no solo. De facto, o combate seria efectuado com espadas e adagas, para que se soubesse que não se tratava de um torneio. Sob aquele belo sol matinal, as tapeçarias azuis e douradas davam, apesar de tudo, um ar festivo àqueles preparativos.

Entretanto, tinham sido dadas ordens para que, à excepção da sua escolta armada, Fiora não se encontrasse com ninguém. Na capela só se encontravam um velho padre e o seu acólito, diante de quem ela se ajoelhou para seguir piedosamente o ofício divino e receber a Santa Comunhão. Depois, pelo mesmo caminho, levaram-na de volta à sua cela sem que encontrassem vivalma. O castelo, para além das sentinelas nas muralhas, parecia mergulhado num profundo torpor.

Uma refeição ligeira de mel, leite, pão e manteiga esperava-a e ela consumiu uma boa parte para se assegurar de que nenhuma fraqueza a trairia. O combate teria lugar ao fim da manhã, durante a última hora antes do meio-dia e já não faltava muito tempo. Assim, a jovem verificou o seu penteado e depois lavou as mãos. Estava pronta para se submeter ao seu destino, fosse ele qual fosse. E sentiu a alma em paz. Só necessitava de um pouco de coragem e pensou na sua mãe, Marie de Brévailles, que subira para o cadafalso com um sorriso nos lábios. Era verdade que partira com aquele que amava e, desse modo, as coisas tinham-lhe sido, sem dúvida, facilitadas. Fiora teria de morrer só e sem dar mostras de fraqueza. A jovem pensou que devia esse comportamento ao seu nome e à memória dos seus pais verdadeiros, assim como à do seu pai adoptivo.

O aspecto do pátio, encerrado entre os edifícios cor-de-rosa e brancos do castelo, pareceu-lhe bem diferente do que algumas horas antes quando, à hora prevista, foi conduzida ao lugar preparado para ela: uma cadeira em cima de um estrado, situada à direita e um pouco afastada da tribuna real, agora cheia de homens vestidos de escuro em redor da cadeira de braços sobrelevada de Luís XI. Este tinha ao pescoço o colar de Saint-Michel e as suas roupas, extraordinariamente, eram de veludo negro, tal como o chapéu ornamentado com medalhas e cuja aba, baixada à frente, fazia sobressair a linha do seu nariz.

Fiora saudou-o como convinha e dirigiu-se ao seu lugar. Só então a jovem viu o carrasco. Todo vestido de vermelho e com a espada ao ombro, devia ter seguido o pequeno grupo quando este saíra da prisão, mas Fiora não reparara nele.

A despeito da sua coragem, a jovem sentiu-se empalidecer quando ele se instalou a dois passos da sua cadeira com as mãos apoiadas no punho da arma cuja ponta estava espetada no solo. Então, ela obrigou-se a olhar em frente, para o espaço delimitado pelos cordões de seda. Um dos lados, na direcção da entrada do castelo, permanecia aberto, mas à excepção dessa passagem, o terreiro da liça estava rodeado por uma fila de guardas escoceses cujas armaduras polidas brilhavam ao sol sob a cota de armas com a flor-de-lis. Infelizmente, Mortimer não estava entre os presentes, assim como Commynes no grupo reduzido de conselheiros do Rei. Nenhum público, para além destes. Até a grade estava descida entre os dois pátios de Plessis. Por fim, de pé diante da tribuna, ela própria encostada à parede dos aposentos reais, estava o grande preboste, juiz do combate...

Junto dele quatro trombetas e, um pouco mais longe, quatro tambores cobertos de crepe negro.

Tristan L’Hermite virou-se lentamente para o Rei, que saudou com a rigidez de um velho soldado:

O Rei ordena que os combatentes entrem no terreiro da liça?

Com um sinal de cabeça e um gesto da mão, Luís XI disse que sim. Um instante mais tarde, anunciados pelo rufar dos tambores, Luca Tornabuoni e Olivier lê Daim faziam a sua entrada e ajoelhavam-se diante do soberano. Ambos tinham a túnica de couro e a meia-armadura apropriadas para um combate a pé. Atrás deles, um escudeiro transportava duas espadas e duas adagas. As couraças tinham-lhes sido emprestadas, porque eles não possuíam esses apetrechos de guerra, pelo menos no caso de Tornabuoni, cujo brasão fora pintado no pequeno escudo que lhe serviria de defesa. Lê Daim, não sendo nobre, mandara pintar um gamo sobre fundo azul, constituindo um brasão simbólico. Ambos arvoravam uma palidez assustadora.

Nesse momento, a grade ergueu-se para dar passagem ao pequeno cortejo constituído pelo padre e pelo Santíssimo Sacramento, diante do qual os presentes se iam ajoelhando à medida que ele passava. Uma jovem, rezando, caminhava alguns passos atrás do religioso. O seu grande toucado azulado e o seu vestido com flores-de-lís, como as cotas de malha dos escoceses, contrastavam com os trajes fúnebres do séquito real. Fiora reconheceu-a e o seu coração teve um baque: era a segunda filha do rei, Joana de França, duquesa de Orleães. E a sua chegada contrariou fortemente o seu pai:

Por Deus, minha filha, que vindes aqui fazer? exclamou ele depois de a custódia ter sido depositada num altar portátil coberto de tecido dourado ali instalado por dois monges.

A jovem princesa, dobrando o joelho com humildade, ergueu corajosamente para o seu pai o rosto ingrato e os olhos magníficos cuja cor era a mesma do grande céu azul daquela manhã.

Ainda não sei, Sire meu pai, mas pareceu-me que tinha de vir ter convosco a partir do momento em que pedistes a Deus que vos assistisse no vosso julgamento.

Como diacho soubestes disto no vosso castelo?

Recebi uma carta, Sire disse Joana, que não sabia mentir.

Uma carta de quem?

Permiti que vos dê a minha resposta no fim do combate...

Como vos agradar! Aliás, duvido que vos agrade. Bem, já que estais aqui, vinde sentar-vos junto de mim e passemos ao que se segue.

O seu olhar sombrio pousou-se nos dois homens ainda de joelhos:

Mantendes as acusações contra a dame de Selongey aqui presente?

Apenas Tornabuoni respondeu ”sim” com alguma firmeza na voz. O seu companheiro, cujos dentes batiam apesar da doçura da manhã, contentou-se em acenar com a cabeça, incapaz de falar.

Confessastes-vos, ouvistes missa e recebestes a Santa Comunhão? E, mesmo assim, mantendes o que dizeis?

Ambos responderam da mesma forma. O olhar do Rei era fulgurante, mas o soberano permitiu que os cantos da sua boca esboçassem um sorriso:

Nós pensamos saber por que razão demonstrais tanta certeza e tanta coragem, aliás bem-aventurada disse ele, trocista. Pensais que, como messire Mortimer e messire de Commynes não podem ser campeões daquela que acusais, mais ninguém arriscará a vida por uma causa tão má! Pois então olhai! E vós, trombetas, soai! Parece-me que vem lá um cavaleiro!

A grade, com efeito, erguia-se ainda mais e deixava passar três cavaleiros: um em traje de viagem, os dois outros de armadura... e uma imensa alegria inundou o coração de Fiora: porque se o primeiro era Commynes, um dos outros dois, que na cota de armas ostentava as águias de prata, era Philippe de Selongey...

Transposta a porta, os três homens puseram pé em terra e avançaram juntos na direcção da tribuna, diante da qual Tornabuoni e Olivier lê Daim os viam aproximar com um vago terror, persuadidos, sem dúvida, de que as regras do combate iam alterar-se e que teriam de enfrentar, pelo menos, dois dos guerreiros. Chegados diante do Rei, os três saudaram ao mesmo tempo e Commynes disse:

Sire, messire Mortimer e eu próprio cumprimos a missão de que o Rei nos deu a honra de nos encarregar. Que o nosso Sire permita que lhe apresente o conde Philippe de Selongey, cavaleiro da mui nobre ordem do Tosão d’Ouro, que se apresenta perante vós de sua livre vontade para defender a causa e a vida da sua mulher injustamente acusada. Ele aceita, naturalmente, o combate até à morte.

Do seu lugar, reparando no perfil acerado de Philippe, Fiora sentiu o seu coração derreter-se de amor. Nunca ele lhe parecera mais magnífico nem mais orgulhoso! Luís XI debruçou-se para ele com um cotovelo apoiado num joelho:

Agrada-nos acolher-vos nesta liça, conde de Selongey Contávamos, com efeito, que vos apercebêsseis do grave perigo em que se encontrava a condessa... devido à sua imprudência.

Se o que me disseram é exacto, Sire e eu não tenho razão para duvidar, não vejo aqui nenhuma imprudência, antes a inocência surpreendida e é com alegria que vou combater, com a permissão do Rei e em conjunto com estes dois homens que ousaram acusá-la pelos motivos mais baixos: o ciúme e a cupidez...

Um momento! Antes de entrardes em liça, é bom que esclareçamos a vossa posição perante nós. Vós fostes condenado à morte uma vez por nos terdes estendido uma armadilha e nos terdes tentado assassinar.

A palavra é grosseira, Sire protestou Philippe. Nós estávamos em guerra e vós éreis o mais mortal inimigo do meu senhor, monsenhor Carlos de Borgonha, que Deus tenha na sua guarda!

Admitamos! A condessa conseguiu, não apenas a vossa graça, mas também a vossa liberdade, que vos foi devolvida sem condições. O nosso governador de Dijon atingiu-vos, uma segunda vez, com a sentença de morte por terdes tentado sublevar o povo... Deixai-nos falar sem interromper, por favor! rosnou ele quando Philippe já abria a boca. Dessa vez, só a nossa vontade vos poupou a vida para não fazer chorar uns olhos demasiado belos, mas ficastes prisioneiro no nosso castelo de Pierre-Scíze... de onde vos evadistes. É exacto?

Selongey esboçou uma saudação para mostrar que estava de acordo.

Portanto continuou o Rei aos nossos olhos, sois um prisioneiro em fuga e, como tal, temos o direito de vos punir se, por acaso, conseguirdes aqui a vitória. Esperamos que os nossos mensageiros vos tenham exposto claramente a situação...

Um ligeiro sorriso abriu a boca arrogante de Philippe:

Não ignoro nada do que me espera. Messire de Commynes, em particular... que eu não tinha o prazer de ver desde que ele abandonou... um pouco depressa de mais o serviço de monsenhor Carlos, foi extremamente claro nesse ponto. Hoje, apenas uma coisa me interessa: arrancar àquele carrasco que vejo ali a mulher que usa o meu nome e que me deu um filho...

Um filho que vós não pareceis muito interessado em conhecer? Não apenas sois um marido estranho, senhor conde, como sois, também, um pai curioso...

Aqueles que quiseram permanecer fiéis ao seu juramento feudal e à memória do defunto duque vivem tempos cruéis, Sir e pela minha parte, cansado de acordos coxos e concessões demasiado fáceis, preferi servir a Deus! Só Ele me parecia suficientemente grande...

Para ter direito à vossa homenagem? Embora isso não seja muito amável para a nossa pessoa, estamos longe de vos censurar por terdes escolhido um tão grande senhor, um senhor do qual nós, reis e príncipes, não seremos nunca senão humildes criados. Mas não estamos certos de que essa escolha tão nobre apague o juramento prestado diante do altar a uma jovem que está no direito de esperar de vós amor e protecção.

Não o esqueci e é por isso que vou combater por ela...

Dois adversários ao mesmo tempo, já pensastes? Sabemos que não é conforme às regras da cavalaria, mas não duvidando da vossa vinda e conhecendo o vosso valor, pareceu-nos que, assim, as forças ficariam mais equilibradas...

Olhando para os seus adversários, o sorriso de Philippe carregou-se de indizível desdém:

Há alguns anos vi lutar, em Florença, messire Tornabuoni e creio ter-lhe dito, então, o que pensava dos seus... talentos guerreiros. O outro não conheço, se não por tê-lo ouvido mentir...

Pretensioso insuportável! rugiu o florentino vou-te mostrar do que sou capaz. Lembra-te que só a vontade do meu primo Lourenço de Médicis me impediu, então, de te cortar as orelhas!

Uma vontade que veio bem a propósito. Quanto às minhas orelhas, não têm muito a temer. Quando quiserdes, meus senhores!

Selongey recebeu das mãos de Mortimer o seu elmo e das de Commynes a sua espada e o seu escudo. Após uma última saudação ao Rei, o cavaleiro foi ajoelhar-se por breves instantes perante o Santíssimo Sacramento para receber a bênção do padre. Os dois outros seguiram-no, o infeliz barbeiro sobre umas pernas mal seguras que fizeram sorrir Tristan l’Hermite. Por fim, os três colocaram-se às ordens do preboste, que iria dirigir o combate, para ouvirem as regras. Nesse momento, a voz de Luís XI fez-se ouvir:

Só mais um momento! Regressai aqui, meus senhores!

Quando eles se alinharam na sua frente, o Rei deu-se ao prazer de os encarar à vez e, detendo o seu olhar agudo, difícil de sustentar, em Selongey, disse suavemente:

Messire Philippe, nunca houve amizade entre nós, mas vós sois de alta linhagem e nós estimamos demasiado a vossa bravura para vos infligir a afronta de combaterdes contra mestre Olivier lê Daim, que não é se não o nosso barbeiro e a quem não quisemos fazer cavaleiro. É um poltrão indigno de usar armas. Defrontareis, portanto, apenas o embaixador de Florença, que é de nascimento nobre...

O alívio do barbeiro foi de tal modo evidente que a assembleia foi percorrida por uma risada. Mas Selongey não se riu:

Se ele insultou uma dama, merece a punição que lhe vou infligir, cortando-lhe a garganta. Para isso será suficiente a adaga, não sujarei a minha espada...

Tudo bem, tudo bem! Por Deus, senhor conde, nós compreendemos a vossa cólera, mas não nos priveis do nosso barbeiro! No entanto acrescentou ele com uma súbita dureza as vilanias provadas de mestre Olivier valer-lhe-ão ser aprisionado no nosso castelo de Loches durante o tempo que nos apetecer. Depois, se decidirmos devolver-lhe a luz, deverá expiar o perjúrio de que é culpado perante Deus indo rezar ao túmulo de Santiago de Compostela, na Galiza. Levai-o, Mortimer, até que o nosso grande preboste tenha vagar para se ocupar dele!

Será uma alegria, Sire! suspirou Tristan l’Hermite. O Rei deseja que o combate comece, agora?

O Rei fez sinal de que não tinha mais nada a dizer, enquanto levavam o barbeiro aos berros e a espernear. Entretanto, Philippe dirigiu-se a Fiora e, pegando na sua espada pela ponta, estendeu-lha para que ela pousasse, por um instante, os dedos no punho, como o exigia a antiga tradição. Se bem que já não fosse muito respeitada, parecia que, naquela manhã, as tradições tinham a parte melhor. Philippe fazia questão naquela:

Madame disse ele em voz suficientemente alta para que todos ouvissem aceitais-me como vosso campeão?

Ela tocou na arma com uma mão trémula e através das lágrimas que não conseguia reter ofereceu ao marido um olhar radiante de amor.

Sim... mas, por amor de Deus, tende cuidado, porque, se vos acontecer qualquer coisa, serei eu a chamar a morte...

Selongey teve um pequeno sorriso e acrescentou em voz baixa:

Suplico-vos, mesmo que me vejais tombar, que não vos atireis para o meio da liça, como fizestes em Nancy. Não gostaria de reviver uma tal cena...

Em seguida, Philippe juntou-se ao seu adversário, ao mesmo tempo que os tambores faziam ouvir o seu rufar lento, de tal modo sinistro que gelou o sangue de Fiora. Tornabuoni, a jovem sabia-o, não era um inimigo negligenciável. Em Florença, não tendo mais nada que fazer, exercitava-se com as armas, arte que Philippe não praticava, certamente, há muitos meses. Uma oração fervorosa e silenciosa ergueu-se do seu coração em direcção ao céu:

Não por mim, Senhor, mas por Vós, visto que ele Vos escolheu, fazei com que viva!

Entretanto, no instante em que os tambores se calaram, o grande preboste gritou:

Que os combatentes avancem e que Deus faça o seu juízo!

O combate começou com uma extrema violência. Sem sequer se estudarem mutuamente, Selongey e Tornabuoni atiraram-se um ao outro, resolvidos a exterminarem-se. Sob os golpes das espadas, os escudos soavam como sinos, mas depressa se tornou evidente que Philippe tinha a vantagem da estatura

Ver Fiora e Carlos, o Temerário.


e também da força. Tendo esquivado com habilidade uma bota manhosa dirigida ao seu ventre, o borgonhês atirou-se ao seu adversário e os seus golpes começaram a chover, tão densos como granizo em Abril. Luca recuou, recuou, esforçando-se por proteger a cabeça e sem conseguir desferir qualquer golpe. Foi salvo quando tocou nos cordões do recinto: o juiz ordenou a Philippe que o deixasse ganhar um pouco de espaço. Este obedeceu e recuou. O outro aproveitou para se atirar atrás da sua espada como um aríete, na intenção evidente de reatar o golpe falhado momentos antes: trespassar-lhe o ventre a despeito da protecção. Fiora reteve, por pouco, um grito, mas Philippe tinha demasiada experiência das diversas formas de combate para se deixar surpreender. O cavaleiro esquivou o golpe com a agilidade de um bailarino e o florentino, levado pelo impulso, quase trespassou Tristan l’Hermite, que o empurrou com vigor. Luca resmungou uma desculpa e girou nos calcanhares para enfrentar de novo Philippe, mas este já estava sobre ele. Largando a espada, desferiu um soco no adversário que o estendeu por terra. Em seguida, atirou-se para cima dele e, tirando a adaga, encostou-lha tranquilamente à garganta:

Eu tinha-te dito que um justador italiano não tinha hipótese contra um cavaleiro borgonhês ironizou ele. Diz as tuas orações!

Misericórdia! Misericórdia!... Piedade! Sim, eu menti para que o Rei acreditasse que conspiráveis juntos, tu e Fiora... Mas...

Se ainda tens muitas coisas para dizer, despacha-te, porque já não tenho paciência para ti...

A criança... existe... mas o Magnífico é que é o pai! Misericórdia!

Philippe ergueu o punhal. Um grito do Rei deteve-o...

Alto!

Sem largar o seu inimigo vencido, Philippe virou a cabeça para a tribuna.

O combate é até à morte, Sire, recordo-vo-lo. A vida deste homem pertence-me.

Nesse caso, concedei-ma! Ele é um miserável e Deus julgou bem, mas também é um embaixador e, além disso, pertence à família Médícis. Não gostaríamos de ofender, mais do que o necessário, o senhor Lourenço, que tem a nossa amizade.

Selongey ergueu-se, mas não guardou a adaga na bainha e manteve o vencido debaixo de olho:

Que se cumpra a vontade do Rei! Mas posso perguntar quais são as suas intenções?

Ele vai regressar a Florença sob uma boa escolta e munido de uma carta nossa expondo o que acaba de acontecer. Não ficaremos surpreendidos se o senhor Lourenço lhe reservar algumas manifestações de descontentamento. Guardas! Levai-o para o quarto dele, onde ficará retido até à partida.

Enquanto isso, compreendendo que nada mais tinha a fazer ali e que a sua presença não era desejada, o carrasco inclinou-se perante Fiora e, com a espada ao ombro, encaminhou-se para a torre da Justiça no primeiro pátio. Fiora, essa, morria de desejo de se atirar a Philippe, mas não ousou mexer-se sem a autorização do Rei. A jovem respondeu com um movimento gracioso de cabeça à saudação do executor e esperou. Entretanto, Philippe avançou até junto da tribuna real e sem pôr o joelho em terra como o costume exigia:

A vida e a honra de donna Fiora estão salvas, Sire, como Deus quis. Quanto a mim, sou agora prisioneiro do Rei!

É assim que o entendemos, mas, antes de decidir, respondei a uma pergunta! Se vos devolvêssemos a liberdade, que faríeis?

Regressaria para o lugar de onde vim, Sire!

Oh!...

Se bem que ligeiro, o queixume de Fiora foi ouvido pelo Rei que, com um gesto, lhe impôs silêncio.

Regressaríeis ao convento?

Sim, Sire. Não pretendo servir outro senhor que não Deus. Que o Rei me perdoe!

Não vos podemos reprovar um tão alto desígnio, mas essa liberdade não passa de uma suposição. De facto, damos-vos a escolher duas perspectivas: ou regressais às vossas terras da Borgonha, que continuam a ser vossas, com a vossa mulher e o vosso filho, prometendo manter-vos tranquilo, ou tereis diante de vós longos e alegres anos no castelo de Loches, numa das nossas masmorras! Vinde aqui, donna Fiora!

A jovem avançou lentamente até junto do seu marido, para o qual não ousou olhar.

Sire! disse ela, erguendo para o soberano os seus olhos cheios de lágrimas corajosamente contidas suplico ao Rei que não force messire de Selongey a uma escolha penosa. Que o Rei lhe permita regressar ao priorado de Notre-Dame!

E vós, Madame, que vai ser de vós?

O que agradar ao Rei, mas suplico-lhe que me permita viver em paz. Sinto-me infinitamente cansada...

Não admira! De qualquer maneira, conservareis la Rabaudière, que vos foi dada a título definitivo, a vós e aos vossos descendentes. Mas... que temos agora?

Era a princesa Joana, que no fim do combate tinha abandonado a tribuna depois de o seu pai lhe ter dito qualquer coisa ao ouvido. Pela mão, a jovem segurava o pequeno Philippe e Léonarde seguia-a.

Como toda a gente, Philippe virara a cabeça na direcção do olhar do Rei. O grupo encantador, formado pelo pequenito e pela pequena princesa defeituosa que ele parecia apoiar, fê-lo fixar o olhar. Então, Joana deteve-se:

Quereis ir abraçar messire vosso pai? perguntou ela docemente.

O petiz, olhando maravilhado para aquele grande cavaleiro vestido de armadura, extremamente semelhante à imagem que ele fazia do pai, não hesitou um momento. Estendendo os pequenos braços, correu para ele, ao mesmo tempo que Philippe se ajoelhava para o receber sem o apertar com muita força, porque o contacto com o aço não tinha nada de agradável. Mas abraçou-o com um fervor que fez sorrir Luís XI. Este fingiu que não viu as duas lágrimas que deslizavam pelas faces do intratável senhor de Selongey.

Creio suspirou ele que estamos entendidos! Levantando-se penosamente do seu trono, o Rei desceu os três degraus que iam da tribuna ao saibro do pátio.

Nós não vamos exigir que nos presteis vassalagem disse ele severamente a Philippe. Mas exigimos de vós a promessa formal de que não nos prejudicareis mais e, em seu devido tempo, de que não ensinareis os vossos filhos a odiar a França, antes pelo contrário, que os ensinareis a servi-la. Não esqueçais que Selongey está na Borgonha e que a Borgonha regressou à nossa coroa, como o exige a lei feudal, no caso de um príncipe Valois morrer sem herdeiros masculinos.

Philippe, que se levantara, pousou o filho e o pequenito aproveitou para correr para a mãe. O cavaleiro olhou por um instante para aquele homenzinho estranho mais baixo do que ele uma cabeça, aquele homenzinho que tinha tão pouco ar de Rei... salvo em momentos como aquele, em que irradiava uma majestade incrível. Lentamente, Philippe pôs um joelho em terra e estendeu o braço:

Pela minha honra e pelo meu nome, Sire, juro. Nunca mais os de Selongey pegarão em armas contra o Rei de França.

Agradecemos-vos! Bem, donna Fiora, eis-vos em família. É a vós que confiamos este rebelde! É a vós que cabe a sua guarda e nós não duvidamos...

Não, Sire, por piedade! Eu não quero essa responsabilidade...

Fazei dela o que quiserdes! Damos-vos as boas-tardes. Então, minha filha acrescentou ele, virando-se para a duquesa de Orleães estais contente?

Estou, Sire! Na verdade, nunca duvidei da vossa justiça. Mas, por que infligistes a donna Fiora esta longa penitência, esta angústia, este medo de perder a vida? Tínheis mesmo necessidade de apelar a Deus?

Sempre a falar, ela e Luís XI afastaram-se na direcção dos aposentos reais. O Rei sorriu e, baixando a voz, inclinou-se para ser mais bem ouvido:

É evidente que não! Compreendi rapidamente que aquela infeliz era vítima de uma conspiração, mas era preciso que todos a acreditassem em perigo de vida para conseguir que o teimoso do marido saísse do seu covil...

Mas, e ela? Por que não a avisastes?

Porque, mesmo assim, ela cometeu suficientes tolices para merecer uma boa lição. E proíbo-vos de lhe dizer seja o que for. Não gosto muito de explicar os meandros dos meus pensamentos! E agora, minha filha, vamos para a mesa! Na verdade, tudo isto me abriu o apetite!

Fiora, com Philippe, o filho de ambos e Léonarde, regressavam a cavalo à Casa das Pervincas, mas os dois esposos ainda não tinham trocado uma única palavra. Selongey levava o filho diante de si, na sela, e não cessava de o contemplar. Entretanto, Fiora sentia-se triste por o seu marido não ter dado sinais, até ao momento, de que ela existia. Ele e o pequenito pareciam fechados num mundo só deles, um mundo onde não havia lugar para ela...

Assim, quando atingiram a alameda de carvalhos cheios de musgo que ia dar à casa, a jovem aproximou-se do marido.

Philippe! disse ela com uma voz que não tremia, pelo que se sentiu agradecida antes que entres nesta casa e como o Rei me deu todos os poderes acerca do teu destino, quero dizer-te...

O quê?

Quero dizer-te que és livre, inteiramente livre! Se quiseres regressar a Nancy, podes fazê-lo quando quiseres, sem me dar quaisquer explicações!

Se bem compreendo, não me queres oferecer hospitalidade nesta casa!

És louco? É claro que quero! É o que mais desejo!

Mas queres gozá-la sozinha, como, aliás, queres Selongey só para ti, assim como esta adorável amostra de homem! Expulsas-me, não é assim? É verdade que eu mereço e que tens todo o direito de recusar viver comigo.

O borgonhês pusera pé em terra e, confiando o petiz a Léonarde, oferecia a mão a Fiora para a ajudar a desmontar. Ela sentiu como que um deslumbramento. Ele olhava para ela como antigamente, com os seus olhos cor de avelã, com aquela ternura um pouco trocista de que ela gostava tanto e, sobretudo, sorria-lhe...

Eu nunca desejei outra coisa que não fosse viver contigo, Philippe!

Ele não lhe largou a mão e puxou-a para si:

Sabes que eu sou um homem impossível!

Sei, mas eu também não sou um modelo de paciência...

Há muito tempo que sei isso. Queres, mesmo assim, tentar viver juntos e formar um casal... até que a morte nos separe?

Como resposta, ela encostou-se a ele, ao mesmo tempo que os habitantes de la Rabaudière acorriam alegremente para lhes desejar as boas-vindas.

Até que a morte nos separe repetiu ela com fervor... Achas que conseguiremos lá chegar?

Acabo de to dizer: podemos sempre tentar...

E, apertados um contra o outro, entraram na casa perfumada pelo odor das rosas recentemente colhidas e dos bolos que Péronnelle acabava de tirar do forno.

Mas nunca foi possível saber o que acontecera a Khatoun...

Saint-Mandé, Setembro de 1989.

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