Segunda parte CAMINHOS SEM SAÍDA

CAPITULO IV CONVERSAR À SOMBRA DE UMA CEREJEIRA

O fim do dia aproximava-se, algumas semanas mais tarde, quando Douglas Mortimer deixou Fiora e Khatoun à entrada do velho caminho sombreado de carvalhos veneráveis que ia dar à Casa das Pervincas.

Eis-vos chegada a bom porto! disse ele, saudando-a. E não precisais de testemunhas para encontrar os vossos...

Podíeis entrar para vos refrescardes? A etapa foi longa e o dia quente.

Encontrarei tudo isso em Plessis. Amanhã, com a vossa permissão, virei visitar-vos, saudar a dama Léonarde e ver se o vosso filho cresceu muito.

O coração de Fiora batia mais depressa do que o costume enquanto o passo do seu cavalo a levava pelo caminho por entre as ervas daninhas dos seus taludes. O seu filho, na sua memória, não era mais do que um pequeno embrulho esperneando nos seus braços, infinitamente doce e eis que se aproximava do seu primeiro ano de vida sem que a sua mãe soubesse nada dele. A jovem não recebera os seus primeiros sorrisos e, quando ele sofrera de um qualquer mal, não fora ela que se debruçara sobre o seu berço e perdera as noites junto dele. Muito certamente, vê-la-ia como uma estranha e, no momento de abordar esse universo, Fiora não podia deixar de sentir alguma apreensão.

Quando saíram da cobertura das árvores e a casa apareceu, rosa e branca no seu ninho de verdura, Khatoun bateu palmas, encantada com o espectáculo. O jardim era um autêntico ramo de flores e as pervincas, ao assalto do terraço, transbordavam do pequeno bosque e espalhavam-se como um tapete real. Ao fundo, o Loire brilhava, reflectindo os raios vermelhos do Sol sumptuoso que parecia encher de chamas os edifícios claros do priorado de Saint-Côme. O ar cheirava a flores, a pinheiro, a erva recentemente cortada e um pouco a lodo vindo do rio.

Como é belo! suspirou Khatoun. Mas... não está ninguém?

Uma voz, que se parecia alegremente com um rondo antigo, brotou das profundezas do jardim e aproximou-se. Por fim, um jovem desembocou de um arbusto de aristolóquias, transportando aos ombros uma criança que ria agarrada aos seus cabelos cor de palha. Uma das montadas das jovens relinchou, o que fez com que ele virasse a cabeça. O jovem estacou, enquanto os seus olhos azuis se esbugalhavam. Ao mesmo tempo, com um gesto maquinal, retirou a criança dos ombros e instalou-a no braço.

Então, Florent? perguntou Fiora, sorrindo. Já não me reconheceis?

A primeira surpresa passou e, subitamente, as pupilas do jovem iluminaram-se, ao mesmo tempo que um verdadeiro urro de alegria se escapava da sua garganta:

Dama Léonarde! Péronnelle! Étienne!... Depressa! Venham depressa! Venham todos! A nossa dama regressou!

E como ninguém, aparentemente, o ouvisse, atirou com a criança para os braços de Fiora e desatou a correr na direcção da casa gritando a plenos pulmões:

A nossa dama regressou! A nossa dama regressou! Aquela brusca mudança não foi do agrado do jovem Philippe,

que protestou energicamente. A sua pequena boca redonda abriu-se enormemente para um ”Uinn.. in., in...!” vigoroso, que terminou num dilúvio de lágrimas!

Meu Deus! gemeu Fiora meti-lhe medo! Desolada, a jovem não ousava apertá-lo contra si e cobrir de beijos os pequenos caracóis castanhos e sedosos que lhe cobriam a cabeça, como morria de desejo.

Mas não, ele não tem medo de ti disse Khatoun. Foi aquele rapaz imbecil que o agitou demasiado. Espera!

A jovem pôs-se a agitar as mãos e a fazer caretas, coisa que pareceu espantar a criança. Esta parou de chorar e depois, quase sem transição, desatou a rir.

Estás a ver? Acabou o desgosto, em breve vai compreender que és a sua mamã.

O pequeno olhava agora para aqueles dois rostos tão diferentes que lhe sorriam. Fiora aconchegou-o ternamente nos braços e começou a embalá-lo suavemente:

Meu bebé!... meu bebezinho! Como tu és belo!

Com os lábios, ela tentou apanhar em voo as duas mãozinhas que se agitavam diante do seu rosto, procurando apanhar um canto do véu branco ou uma mecha de cabelos. Finalmente, Philippe escolheu o nariz da mãe e puxou-o com decisão.

Mas, ele já é tão forte! exclamou ela, rindo e chorando ao mesmo tempo... Oh, Khatoun, como pude ficar tanto tempo longe dele?

A jovem tártara não teve tempo de dar uma resposta a uma pergunta que, aliás, não a pedia: qual bando de pardais, os habitantes da casa corriam ao seu encontro. As pernas de Léonarde não valiam as dos seus companheiros, mas ninguém se atrevia a ultrapassá-la naquela corrida de boas-vindas. Pelo contrário, Florent e Marcelline, a ama da criança, apoiavam-na e foi ela que, em primeiro lugar, caiu nos braços de Fiora, precipitadamente desembaraçada do seu filho por uma Khatoun que só esperava aquilo, encantada por conhecer, finalmente, o ”bebé Philippe”.

Durante uns momentos foi tudo abraços, saudações, apertos de mão, exclamações de alegria e desejos de boas-vindas. Léonarde que, qual cornetim numa batalha, chorava como uma fonte enquanto apertava contra o coração o ”seu cordeirinho”, abraçou Khatoun quase tão calorosamente, o que surpreendeu a rapariga, pouco habituada a tais demonstrações vindas daquela ”donna Léonarda” que ela sempre achara um pouco severa de mais.

Deus permitiu que vos reencontrásseis declarou Léonarde que o Seu nome seja abençoado e que esta casa, onde vais viver doravante, te seja doce! São os belos dias de antigamente que regressam contigo!

E voltou a abraçá-la para melhor mostrar a alegria que sentia por voltar a vê-la. Étienne Lê Puellier e a sua mulher Péronnelle, respectivamente intendente e cozinheira do pequeno domínio, tinham, também, lágrimas nos olhos por reverem uma jovem patroa por quem sentiam uma amizade próxima da afeição. Quanto ao jovem Florent, ex-aprendiz de banqueiro nos estabelecimentos de Agnolo Nardi, em Paris, e agora jardineiro e braço direito de Étienne, contemplava Fiora de mãos unidas e olhar maravilhado, sem procurar enxugar as abundantes lágrimas que lhe corriam pelo bibe de tela azul: os seus sentimentos por Fiora não eram segredo para ninguém e dar com ele em êxtase não tinha nada de surpreendente.

Apenas Marcelline, a ama, que não tivera tempo de conhecer a mãe do seu filho de leite, mostrou alguma moderação e declarou que se sentia feliz por a ”Senhora Condessa” estar de regresso, mas apressou-se a tirar o pequeno Philippe dos braços de Khatoun, esforçando-se por fulminá-la com o olhar. Ao ver os cantos dos lábios da sua antiga escrava curvarem-se de decepção, Fiora compreendeu que iria ter dificuldades por aquele lado e, para pôr toda a gente de acordo, exclamou:

Deixai-o um pouco comigo, Marcelline! Há meses que não o vejo...

É que ele é muito pesado, Senhora Condessa! E depois de uma viagem tão longa...

Ainda sou capaz de suportar esse fardo disse ela com bom humor. Há tanto tempo que sonho com isto!

E, segurando orgulhosamente o seu filho nos braços, pôs-se a caminho de casa, para onde já tinha desaparecido Péronnelle, gritando que ia preparar o melhor jantar da terra. Léonarde e Khatoun enquadravam Fiora, seguidos por Étienne e Florent com os cavalos pela brida, que conduziriam à cavalariça depois de os terem desembaraçado das bagagens e dos arreios. Marcelline resolveu juntar-se a Péronnelle para a ajudar nas tarefas da cozinha.

Léonarde não cessava de contemplar Fiora, como se tivesse medo de a ver dissipar-se, como um sonho, com os últimos raios de sol. Visivelmente, transbordava de perguntas e não resistiu muito tempo à vontade de fazer a primeira:

De onde chegais assim, meu cordeiro?

Ides ficar surpreendida, minha Léonarde: venho de Florença, onde vi o nosso amigo Commynes. E foi Douglas Mortimer que nos trouxe...

De Florença? Mas... como fostes lá parar? Não foi uma grande imprudência?

Não, as coisas mudaram muito! Oh, minha amiga, tenho tantas coisas para vos contar que nem sei por onde começar!

O mais simples não será pelo começo? Quando fostes raptada, por exemplo...

Sem dúvida, mas e Fiora baixou a voz o que vivi durante aqueles meses não pode ser ouvido por todos os ouvidos. E peço-vos um pouco de paciência, até que fiquemos sós, logo à noite. Como recompensa, quero que me respondais imediatamente à pergunta que me atormenta desde a minha partida para Itália: sabeis onde está Philippe?

Philippe? Mas... tende-lo nos braços!

Apoiando a face na pequena cabeça, Fiora pousou nela um beijo pleno de doçura e ternura.

Ele não, Léonarde... o pai!

Os olhos da velha solteirona dilataram-se sob o efeito de um medo subitamente mesclado de angústia, que Fiora não teve qualquer dificuldade em traduzir: a sua segunda mãe estava a perguntar a si própria se ela regressava com o juízo todo.

Não vos inquieteis, eu não estou louca! Mas vejo que a vossa ignorância é igual à minha antes do meu encontro com Commynes. Foi ele que me disse a verdade.

Qual verdade?

A única aceitável, acho eu: a execução do meu marido não teve efeito e Philippe deixou o cadafalso vivo... mas para ir para onde? Eis o que Commynes não me soube dizer.

Léonarde franziu o sobrolho e a sua mão pousou-se no braço de Fiora como que para a deter perante um perigo:

Ou não quis. Tende cuidado, minha filha! Pode tratar-se de um segredo de Estado, do qual só o Rei possui a chave! Talvez seja melhor falar disso por trás de portas fechadas! Algumas palavras não foram feitas para voar com o vento.

Tens razão! Falaremos disso mais tarde!

E, apertando ternamente contra o peito o bebé que chilreava, Fiora transpôs, finalmente, a soleira da Casa das Pervincas onde, de momento, cheirava a frango assado.

Naquela noite, Fiora decidiu que toda a gente jantaria na cozinha a despeito dos protestos indignados de Péronnelle, que via fugirem-lhe, de repente, as suas prerrogativas de castelã. Fiora não a quis ouvir:

Há meses que sonho regressar a esta casa disse ela mas, sem vós, ela não passa de uma concha vazia e eu preciso de vos sentir à minha volta. Além disso, Péronnelle, eu sei de muitos salões de castelos que não chegam aos calcanhares da vossa cozinha.

Foi assim que se encontraram todos em redor da longa mesa de carvalho encerado, sobre a qual Léonarde estendeu uma toalha de tela fina que Florent, para honrar a recém-chegada, ornamentou com camadas de pequenas rosas e pervincas. Toda a gente se instalou alegremente em redor de algumas das especialidades de Péronnelle, desde os patês de salmão, de enguia e de galinha-do-mato, os finos chouriços enrolados em pão, um suculento assado de javali com groselhas, umas deliciosas filhós de flor de acácia, compotas variadas e umas farófias de caramelo e amêndoas, aos pequenos queijos frescos pousados em folhas de videira e servidos com especiarias. Naturalmente, Étienne mergulhara na cave para dela extrair alguns jarros dos seus melhores vinhos de Orleães ou de Vouvray.

Fiora falou, claro, muito mais do que os outros convivas, se bem que não se privasse de fazer perguntas acerca do que se passara durante a sua ausência. Todos estavam ávidos por saber das suas aventuras depois da noite trágica em que Montesecco a raptara com ordens do Papa para a levar cativa para Roma. No entanto, a narrativa levantou alguns problemas à narradora. Não podia chocar os sentimentos profundamente religiosos daquela gente corajosa, nem contar-lhe pormenorizadamente a sua vida durante aqueles dias. A jovem teve de atalhar, suprimir, embelezar certas passagens, insistindo, assim, na estadia no convento de Santo Sisto em vez de na estadia no palácio Bórgia, passar em silêncio pelo casamento com Carlo e, sobretudo, pelo episódio apaixonado vivido com Lourenço. Evidentemente, foi impossível evitar o assassínio de Giuliano na catedral de Florença e Fiora viu enevoarem-se, então, os rostos, ao mesmo tempo que as mãos desenhavam um rápido sinal da cruz.

É ao nosso sire, o Rei disse ela em conclusão que devo o facto de ter podido regressar para junto de vós sem obstáculos. O meu reencontro com o embaixador, em Florença, proporcionou-me, por fim, todas as facilidades que eu esperava para poder regressar a França.

Beberam, portanto, à saúde do Rei Luís e depois Fiora, Léonarde e Khatoun, a quem tinham destinado um leito perto do quarto da sua jovem patroa, recolheram aos seus aposentos onde já dormia o pequeno Philippe sob a guarda da sua ama.

Se Fiora ficara, à chegada, um pouco inquieta sobre o que o seu pessoal originário de Tours pensaria de Khatoun, em breve ficou tranquilizada. A gentileza e alegria da jovem tártara fizeram esquecer o seu aspecto um pouco exótico. Péronnelle encontrou-lhe, até, uma certa semelhança com a pequena estátua de Santa Cecília que velava sobre o órgão do priorado de Saint-Côme. Porém, a boa mulher fez questão de esclarecer um ponto que a preocupava:

Ela... ela é cristã?

É claro que sim respondeu Fiora. Foi baptizada na igreja da Santíssima Trindade, em Florença, com o nome de Doctrovée, santa patrona do décimo dia do mês de Março... mas nós sempre lhe chamámos Khatoun. O meu pai achava que o nome lhe ia bem, porque ela se parecia com um gatinho.

É verdade aprovou Florent. Um gato bem bonito! E foi assim que Khatoun fez a sua entrada na Casa das Pervincas, onde se instalou com toda a simplicidade, como se a conhecesse desde sempre: a sua espantosa capacidade de adaptação facilitara-lhe muito a vida quando fora separada de Fiora e do universo dourado da sua infância.

Nessa noite, Léonarde mandou-a deitar-se, porque não teria permitido a ninguém que ajudasse o ”seu cordeiro” na toilette da noite e no ritual do deitar:

Há muito tempo que isto não me acontece! declarou ela firmemente, enchendo uma bacia com um jarro de água.

Após ter aplicado longamente uma loção no corpo de Fiora com a ajuda de uma esponja para o livrar das poeiras de uma cavalgada de vários dias, a governanta secou-o com uma toalha fina e depois, empunhando uma escova de crina, desembaraçou os cabelos e escovou-os com vigor.

Khatoun, o vosso filho e Marcelline dormem a sono solto declarou ela tranquilamente. Estamos sós. Talvez me possais dizer a verdade?

A verdade?

Sim. Sabeis muito bem, o contrário de mentira e ilusão... Porque foi uma ilusão aquilo que contastes perante o pessoal durante aquele jantar memorável. Eu quero saber o que vos aconteceu na realidade!

Pensais que menti?

Não penso, tenho a certeza.

Que vos faz pensar desse modo? perguntou Fiora, divertida.

Vós sempre tivestes a infelicidade de corar quando mentis, meu anjo, e esta noite corastes muito. O vinho de Vouvray talvez tenha alguma culpa, mas sou capaz de apostar a minha vida em como entre a vossa estadia no convento, o vosso longo combate contra aquele Papa incrível, a vossa amizade com a condessa Catarina e aquela viagem até Florença para tentar salvar os Médícis, aconteceram... coisas! Aliás, parece que acabastes por ficar algum tempo em Florença?

Reconheço-o. Vendo que era possível viver ali normalmente, confesso que até à chegada de Commynes acalentei a ideia de vos mandar buscar com o meu pequeno Philippe e recomeçar lá uma vida parecida com a de outros tempos, porque... Lourenço guardou a maior parte da minha fortuna.

A sua hesitação imperceptível, antes de pronunciar o nome do Magnífico, não escapou a Léonarde. Fiora constatou-o ao encontrar o seu olhar no espelho... e constatou também, um pouco irritada, que corara de novo.

Lourenço? sussurrou a velha solteirona, erguendo a massa de cabelos negros e sedosos para a arejar. Parece-me que a vossa voz treme um pouco ao pronunciar esse nome!

Bruscamente, Fiora levantou-se e, apertando contra o peito o tecido fino que a envolvia, começou a andar de um lado para o outro sobre o tapete do seu quarto. Léonarde não disse nada e deixou-a andar. Ao cabo de uns momentos, a jovem parou diante dela:

De qualquer maneira, eu tinha intenção de vos dizer tudo. Eu fiquei em Florença, é verdade e a culpa é de Lourenço. Na noite do assassínio da catedral, ele tornou-se meu amante... e, mesmo quando soube que Philippe estava vivo, não me foi fácil separar-me dele. Dai-me uma roupa mais cómoda, Léonarde, e sentai-vos perto de mim aqui, em cima da cama: eu vou contar-vos tudo pormenorizadamente.

Estais certa de não estar demasiado cansada?

Que hipócrita me saístes! disse Fiora, rindo. Há uma hora que me encharcais com água fria. Não me ides dizer que não tínheis uma ideia preconcebida?

Confesso disse Léonarde com bom humor mas prometo-vos que preparei, para daqui a pouco, um chá de tília, para que possais passar uma boa noite.

Já passava da meia-noite quando Fiora recebeu a tisana em questão e deslizou por entre os lençóis frescos que cheiravam a hortelã e a pinheiro. Enquanto a bebia, os seus olhos, por cima da chávena, interrogavam os de Léonarde de pé, de braços cruzados, junto da sua cama:

Não vos faço horror?

Porquê? Porque, crendo-vos viúva, deixastes que a natureza falasse e vos entregastes a um homem... com quem mais de uma mulher sonha? Aquele louco do Demétrios deve, aliás, ter-vos dito o que pensava?

É verdade. Ela pareceu compreender que, apesar de não o amar verdadeiramente, eu podia ser feliz com Lourenço...

Espantar-me-ia muito se ele vos tivesse pregado as mortificações e o convento! Aqueles gregos têm uma moral muito própria, mas, na ocasião, ele teve razão: vós demonstrastes uma coragem de homem e tínheis direito a uma recompensa. E agora dormi e não penseis mais nisso. Amanhã será um novo dia... e o começo de uma nova vida. É para esse lado que tendes de olhar.

Tendo dito aquilo, Léonarde debruçou-se para beijar Fiora e depois, após ter declarado que não acendia a vela de vigia por causa dos mosquitos particularmente vorazes naquele Verão, abandonou o quarto de Fiora e foi para o seu. Ali, antes de se deitar, permaneceu durante muito tempo de joelhos diante de uma estatueta de Nossa Senhora de Cléry que Luís XI lhe oferecera para nela descarregar as suas esperanças e orações durante a longa ausência de Fiora. A velha solteirona tinha muitas mercês a formular pelo regresso da viajante, mas não se pôde impedir de acrescentar uma outra oração, no sentido de que novas provações fossem poupadas à filha do seu coração...

No dia seguinte de manhã, ao chegar à cozinha, encontrou Douglas Mortimer. Sentado confortavelmente, o escocês regalava-se com um patê de coelho de que Péronnelle lhe servia em porções generosas. Aquele espalhava-as sobre grandes fatias de pão. A cada porção correspondia uma pequena cebola de conserva em vinagre, que ele tirava de um pequeno pote de barro com a ponta da sua faca. O conteúdo de um grande pichel de vinho de Orleães ajudava a deslizar tudo.

Vendo entrar a jovem, ele levantou-se e saudou sem abandonar, por isso, a sua fatia de pão e a sua faca:

O Rei mandou-me ter convosco, donna Fiora explicou ele e enquanto esperava que acordásseis, a dama Péronnelle deu-me com que aguardar com paciência.

Fez muito bem e eu vou fazer-vos companhia. Tenho fome e esse patê cheira tão bem... Mas, por que razão o nosso sire vos enviou logo de manhã? Trazeis alguma mensagem importante?

Sim e não. O Rei convida-vos para jantar esta noite, mas eu sou um madrugador, que gosta muito de organizar o seu dia logo que abre os olhos. Além disso, a ideia de vir passar um momento na vossa cozinha não é nada desagradável concluiu ele com bom humor.

O Rei dá-me uma grande honra disse Fiora puxando a terrina para ela. Mas estarão presentes outros convidados e eu gostaria de falar a sós com ele.

Também ele. É por isso que quer que estejais lá por volta das quatro horas, a hora do seu passeio a pé, ou a cavalo. Hoje será a pé. Podereis dar a volta à horta, ou ao pomar, ou visitar as cavalariças e a montaria...

À hora mencionada, Fiora, escoltada por Florent, muito orgulhoso por reencontrar o seu papel de cavaleiro de honra, penetrou no pátio de Plessis e pôs pé em terra perto do velho poço. A sua toilette levantara-lhe alguns problemas. Ela sabia como o seu real anfitrião apreciava a simplicidade, sobretudo se iam caminhar pelos campos, mas, por outro lado, ele gostava que se respeitasse um certo decoro e, portanto, um certo requinte quando se tinha a honra de se ser aceite no seu séquito particular. Assim, após muita reflexão, Fiora optara, com a aprovação de Léonarde, por um vestido de seda sem reflexos, com desenhos negros e brancos e com uma estreita fita verde sob os seios. Uma pequena coifa, da mesma cor de folha jovem e nublada por uma musselina branca engomada, tapava-lhe a cabeça. Uma única jóia lhe sublinhava o decote: a quimera de ouro com olhos de esmeralda que usara na noite do seu casamento com Philippe e que Léonarde conseguira salvar do saque do palácio Beltrami.

A jovem nem teve tempo de chegar à porta do castelo: o Rei vinha a sair. Ao vê-la, ele teve uma exclamação de alegria e aproximou-se dela em passo vivo, ao mesmo tempo que ela dobrava profundamente o joelho para o saudar e dissimular, com aquele gesto de respeito, a vontade de rir que sentia. Luís XI, com efeito, vestido, como era seu hábito, com uma curta túnica cinzenta que lhe chegava aos joelhos e apertada por um cinto de couro, tinha na cabeça a cobertura mais espantosa que Fiora alguma vez vira. Era, enfiada sobre o gorro de seda vermelha que lhe cobria as orelhas reais, uma espécie de chapéu cardinalício negro, cujas abas, muito largas e de um dedo de espessura, lhe cobriam por completo os ombros e o enchiam de sombra. Com a cabeça tapada daquela maneira, a sua semelhança com um cogumelo era irresistível e o sorriso que Fiora lhe ofereceu brilhava de tanta graça que ele não se deixou enganar.

É o meu chapéu que vos diverte, donna Fiora? Bem, ficais a saber que gosto muito dele, porque, quando está calor, vale uma pequena casa e, quando chove, tapa-me melhor do que os meus chapéus habituais, que se transformam em goteiras... Foi uma ideia que tirei ao bispo de Valência.

Por minha fé, Sire, foi uma boa ideia. Lamento, apenas, que o costume não permita que nós, as mulheres, possamos usar semelhantes adereços.

Poderíeis, se fôsseis abadessa. Mas, a sério, ninguém vos impede de lançar a moda! Uma mulher bonita não pode ter algumas fantasias?

Fiora não teve oportunidade de responder. Escapando das mãos de um pajem, um grande galgo branco aproximou-se e começou a saltar em redor do Rei antes de se encostar às suas pernas e de erguer para ele a sua fina cabeça. Mesmo sem a rica coleira com pregos de ouro e pedras preciosas, Fiora teria reconhecido o cão favorito de Luís, seu auxiliar numa circunstância particularmente dramática. O Rei desatou a rir:

Ah, Cher Ami! Queres ir passear connosco? Mas, nós só vamos até ao jardim, sabes? Terás de nos seguir com muito juízo. Não podes estragar os canteiros. Lembrais-vos dele, donna Fiora?

Perfeitamente, Sire respondeu ela, acariciando o dorso sedoso do animal. Não se esquece facilmente um companheiro de armas... sobretudo um tão belo como ele.

É verdade. Fizestes, ambos, um bom trabalho contra aquele monge vilão. Sabíeis que ele morreu?

Sabia, Sire, foi de doença?

Por minha fé, não. Creio que morreu de cólera. Ficou furioso e partiu a cabeça nas barras da cela. Foi enterrado com dignidade e rezaram-se três missas pelo descanso da sua alma malvada.

Tendo dito aquilo, Luís XI benzeu-se devotamente, deu uma guloseima a Cher Ami e retomou o seu caminho. Em frente da residência, nenhum muro, ou parede, escondia a vista. Uma simples barreira, que o próprio Rei empurrou, dava acesso aos jardins e ao pomar.

Seguindo-o ao longo das alamedas de saibro, Fiora pensou que o jardineiro do castelo era uma espécie de artista. Os seus canteiros ornamentais, ou os da horta, delimitados por buxo e aparados com grande rigor, apresentavam formas variadas.

Quanto às plantas que os compunham, tinham sido escolhidas pelas suas cores. E se, no jardim ornamental, as rosas e as flores-de-lis reinavam como rainhas, na horta os legumes e as ervas aromáticas estavam alinhados segundo as suas tonalidades, de maneira a oferecer um conjunto agradável à vista. A irrigação era perfeita porque o jardim recebia a água da fonte de Garre, ela própria ligada ao castelo por tubos de chumbo ou de barro. Alguns jardineiros estavam a trabalhar e Fiora reconheceu o seu Florent em conversa com um deles. A chegada do Rei não interrompeu os trabalhos. À sua aproximação, todos tiraram os gorros para o saudar e continuaram, depois. Luís XI parava frequentemente junto de alguns daqueles homens, escolhidos pelas suas qualidades e de quem ele gostava, para lhes dirigir algumas palavras ou algum reparo, sempre amável e sempre pertinente. Ao ponto de Fiora perguntar a si própria o que fazia ali: o seu companheiro parecia ter-se esquecido dela por completo. Enquanto ia de um jardineiro a outro, falava, sobretudo, com o seu cão...

Por fim, transpuseram a barreira de um grande pomar cujas ameixeiras se abatiam, literalmente, sob os seus frutos de cores diversas. Luís XI colheu alguns, partilhou-os com Fiora e depois, cuspindo os caroços, apontou para um banco de pedra colocado por baixo de uma cerejeira. A colheita há muito que fora feita, mas, cheia de folhas, a árvore proporcionava uma sombra fresca. Luís instalou-se no banco, fez sinal à sua visitante para que ocupasse o lugar a seu lado, tirou o seu grande chapéu que deixou cair sobre a erva e suspirou:

Ora, portanto, Madame de Selongey, falai-me um pouco do que se passa em Roma e do que lá fizestes!

Não fiz grande coisa, Sire. Estive, sobretudo, ocupada a preservar a minha vida.

Sem dúvida, sem dúvida! Mas é do Papa que gostaria que me falásseis. Viste-lo de perto, o que não é o meu caso. Fazei-me dele o melhor retrato que puderdes!

Fiora fez o melhor que soube, sobretudo para se manter objectiva, o que não era fácil porque, conhecendo os sentimentos

Um arranjo que foi, mais tarde, retomado e melhorado no castelo de Gaillon e, sobretudo, no castelo de Villandry, que se chamava, então, Coulombières cristãos do seu companheiro, não queria indispô-lo, mostrando-lhe a que ponto detestava o pontífice. Era impossível omitir as exigências, a brutalidade e a insaciável avidez de Sisto IV, mas quando a jovem sentiu que se estava a deixar levar pelo sentimento, deteve-se, desviando mesmo o olhar para evitar que aquele olhar agudo o procurasse.

Não vejo que mais possa dizer a Vossa Majestade concluiu ela, inclinando-se para colher uma haste de hortelã que se pôs a mascar.

Luís XI deixou que o silêncio caísse, por um momento, entre os dois. Só se ouviam as aves...

Mortimer foi mais falador do que vós, minha querida disse o Rei com um suspiro. Por que não me falais desse casamento incrível a que vos forçaram?

Messire de Commynes disse-me que não é válido; mas nunca o foi, Sire.

Como assim?

Acabais de o dizer: eu fui forçada, sob ameaça. Além disso, nunca foi consumado.

Não acrediteis nisso! Muitos casamentos persistem nas mesmas condições. O que o anula... e Commynes foi encarregue, por mim, de informar o Papa, é que vós não sois viúva. Pelo menos, como acreditáveis que éreis.

Fiora sentiu-se empalidecer, ao mesmo tempo que as suas mãos ficavam frias. A jovem olhou para o seu vizinho com espanto, mas ele ofereceu-lhe apenas o seu perfil hermético.

Se me é permitido perguntar... que quer dizer o Rei?

Que, contra a vontade do vosso marido, as minhas ordens foram executadas. O sire de Craon, não se teria permitido, aliás, transgredi-las. Era suposto fazer sentir, àquele borgonhês teimoso, as angústias da morte, antes de suspender tudo no momento em que a sua cabeça repousasse no cepo.

Oh, Sire! Que crueldade!

Ah, achais? Por Deus, minha querida, esqueceis-vos que, a vosso pedido, já o agraciei uma vez? Aquele homem parece incapaz de estar quieto.

Podemos reprovar-lhe o facto de querer manter-se fiel ao seu juramento de cavaleiro?

A morte do Temerário tornou esse voto caduco e eu esperava que ele viesse a considerar com mais atenção o voto de casamento que fez perante vós.

A culpa não é só dele, Sire. Talvez, se eu tivesse sido mais paciente... menos arrebatada...

Assim lançada, Fiora teve de dizer ao seu companheiro o que acontecera em Nancy. A jovem esperava uma severa descompostura, mas Luís contentou-se em desatar a rir e ela sentiu-se vexada:

Oh, Sire! Tem assim tanta piada?

Por minha fé, sim. A vossa concepção de casamento era capaz de desarmar uma viúva, de tal modo é original. No entanto, tendes de saber que um homem digno desse nome não se deixa, assim, levar pela trela. Dito isto, não precisais de vos arrepender! Mesmo que estivésseis ligada à santa obediência para com o vosso marido, não teríeis mudado nada. Messire Philippe teria corrido da mesma maneira, e com a mesma rapidez, para cumprir o seu dever e como os esbirros do Papa vos teriam descoberto tanto em Selongey como aqui, não vejo quem teria podido ir em vosso socorro. Portanto, não precisais de vos lamentar! Aliás... nunca se deve lamentar nada, porque é a melhor maneira de enfraquecer a alma e a vontade mais bem temperadas. Que pensais fazer agora?

Mas... tentar reunir-me ao meu marido, se o Rei me quiser dizer onde ele está!

Luís XI levantou-se, dobrou duas ou três vezes os joelhos, que estalaram, para os tornar mais flexíveis e pôs-se a caminhar de um lado para o outro com as mãos fechadas atrás das costas.

Fá-lo-ia com alegria... se soubesse onde ele está!

Se... perdão, Sire, mas messire de Commynes disse-me que, depois do cadafalso, Philippe foi levado, naturalmente, para a prisão de Dijon e que, depois, foi transferido... para outro lado qualquer.

Para Lyon. Mais exactamente para o castelo de Pierre-Scize, uma boa fortaleza, bem defendida e provida das melhores masmorras. Simplesmente, ele não ficou lá.

Mas... porquê?

Pela melhor das razões: evadiu-se.

Evadiu-se? E não o encontraram?

Não!

Mas, enfim, Sire, vós tendes a melhor polícia da Europa, o melhor serviço de mensageiros, o exército mais poderoso...

Possuo tudo isso, é verdade, mas os governadores das prisões também têm filhas suficientemente estúpidas para ajudar a fugir um prisioneiro sedutor. O vosso marido, minha querida, fugiu com a ajuda de uma lima e de uma corda que lhe foram levadas dentro de um tabuleiro com queijo e fruta. Agora, já sabeis tudo!

Fiora ficou muda por alguns instantes. Na sua alma defrontavam-se os sentimentos mais contraditórios, Evidentemente, sentira uma grande alegria ao saber que Philippe estava livre, mas era demasiado mulher para que o episódio da filha do governador lhe causasse prazer, mesmo que a sua própria consciência, a despeito da confissão de Fiesole, não fosse totalmente transparente.

Não o procuraram? perguntou ela, por fim.

É evidente que sim. Como o castelo está construído sobre um rochedo que domina o Ródano, pensou-se, primeiro, que ele se tivesse afogado, mas o barco de um pescador tinha sido roubado. Em seguida, mandei vigiar os arredores de Selongey, pensando que talvez ele tivesse a ideia de regressar a casa. Sem resultado, assim como em Bruges, em casa da duquesa Maria! Eu, ali, tenho, naturalmente, umas certas... cumplicidades disse o Rei virtuosamente mas parece que ninguém o viu.

Meu Deus!... e se lhe aconteceu alguma desgraça? Sozinho, sem armas, sem dinheiro, pode ter sido atacado, talvez morto?

Ah! Não recomeceis a chorar! Pensando nessa possibilidade, fiz proclamar em todos os bairros do reino a sua descrição física, prometendo uma boa recompensa a quem o entregar vivo e uma outra... bastante mais pequena, a quem o entregar morto! Não apareceu nada. Até fiz melhor: o seu escudeiro, Mathieu de... Prame, creio eu?

Sim. A última vez que o vi encontrava-se perto daqui dentro de uma jaula e conduziam-no ao castelo de Loches disse Fiora em tom de reprovação.

É exacto. Bem, ele foi solto e depois seguido discretamente. Fugiu para Bruges... e nunca mais tive notícias dele... nem, aliás, dos dois homens que encarreguei de o vigiar, mas é verdade que em casa de Madame Maria e do marido, os Franceses não têm fama de santos. Em todo o caso, uma coisa é certa: ninguém apareceu para reclamar a recompensa, mas o vosso marido, minha querida filha, custa uma fortuna à minha tesouraria...

Sinto-me desolada, Sire, mas, se vo-lo tivessem entregado, qual seria o seu destino? Ele teria... ele teria sido...

Executado? Tomais-me por um papalvo? Eu não mudo de opinião com facilidade! Tê-lo-ia fechado mais uma vez numa jaula e aqui mesmo, na prisão do meu castelo, enquanto esperava que vos encontrassem. E agora, vinde! Preciso de caminhar um pouco!

Fiora não se mexeu. De olhar fixo, a jovem contemplava a ponta dos seus sapatos que soerguiam as ramagens do seu vestido e apertava, com força, uma mão contra a outra, segundo o seu hábito quando estava presa de uma emoção forte.

Então? impacientou-se o Rei. Estais à espera de quê? Ela ergueu para ele uns grandes olhos desolados:

E... se ele se tivesse refugiado aqui?

Quem? Selongey? Também pensei nisso. Mas, se fosse o caso, qualquer um da vossa casa o teria visto e já o saberíeis! Vamos, coragem! Estou certo que ele está vivo.

Nesse caso, está longe... talvez demasiado longe! Eu sei que lhe passou pela cabeça pôr a sua espada ao serviço de Veneza para combater os Turcos. Nesse caso, nunca mais regressará e eu nunca mais saberei nada dele.

Veneza, dizeis vós? Nós podemos, pelo menos, saber se ele foi para lá! Vou escrever ao doge a seguir ao jantar. Veneza é, talvez o saibais, a cidade mais bem guardada do mundo e um estrangeiro não pode entrar nela sem chamar a atenção dos esbirros do Conselho dos Dez. Talvez venhamos a saber qualquer coisa, mas abandonai esse ar desolado e regressemos. Não tarda, estão a tocar para a água.

Dessa vez, Fiora deixou-se levar.

Sem mais palavras do que à vinda, o Rei e a sua jovem companheira regressaram ao pátio de honra, onde se amontoavam criados, cavalos e equipagens. Com surpresa e alguma inquietação, Fiora reparou numa grande liteira púrpura cujas portinholas mostravam um grande brasão encimado por um chapéu cardinalício que lhe pareceu vagamente familiar. A jovem ousou pousar a mão no braço do soberano para o deter.

Sire! Que o Rei me perdoe, mas se ele recebe esta noite um príncipe da Igreja, talvez seja melhor eu regressar a minha casa.

Sem jantar? Quando vos convidei? E por que razão, se fazeis favor?

Francamente, Sire, eu estou um pouco... farta de cardeais e receio não me sentir à-vontade. Além disso, o meu traje...

Que estais para aí a dizer? Vós estais soberba e será preciso que estejais à-vontade, porque vos convidei especialmente esta noite para que o cardeal della Rovere veja a estima em que vos tenho.

Sob o olhar brilhante de satisfação de Luís XI, Fiora sentiu-se verde:

O... cardeal... della Rovere? murmurou ela, espantada. Ele não é...

Da família do Papa? É claro que sim, e vós deveis, pelo menos, ter ouvido falar dele em Roma. Ele é um dos sobrinhos, de longe o mais inteligente e, por isso mesmo, o mais perigoso. Mas talvez vos agrade! E agora, deixo-vos: tenho de me ir vestir! E estou a ver Mme. de Linières, que vos vem buscar para vos conduzir até junto da princesa Joana, a minha filha. Vós já a conheceis e ela está muito contente por voltar a ver-vos.

Saudado quase até ao chão por aqueles que se amontoavam no pátio de honra, o Rei conduziu Fiora até à dama imponente que esperava perto da base da escadaria, já dobrada em duas numa reverência profunda. Como, além disso, tivesse baixado a cabeça por respeito para com a aproximação do Rei, este quase se feriu na flecha do grande chapéu pontiagudo que ela trazia. O Rei afastou o obstáculo, o que quase provocou a queda do edifício.

Demasiado alto, Mme. de Linières, demasiado alto! exclamou ele, meio a brincar, meio zangado. Que raiva deu às mulheres para quererem parecer-se com campanários de igreja? O que me espanta é que o meu reino não tenha mais zarolhos.

Peço perdão ao Rei replicou a dama com serenidade e até com um sorriso, mostrando que não estava impressionada. Sempre pensei que a honra de acompanhar uma filha de França, que ainda por cima é duquesa de Orleães, obrigasse a um certo decoro no vestuário. É uma forma de respeito.

Nesse caso, usai o respeito menos pontiagudo!

E, assobiando alegremente uma ária de caça, Luís XI desapareceu na escadaria em caracol, deixando as duas mulheres frente-a-frente:

Vinde, Madame disse a dama-de-honor, estendendo a mão a Fiora, que não se pôde impedir de rir. A senhora duquesa tem pressa de vos rever e podereis refrescar-vos antes do jantar.

Habituada a ver Luís XI viver na maior das simplicidades, Fiora ficou surpreendida com o aparato para aquele jantar e com o esplendor da sala onde ele se desenrolou. Aquela grande divisão fazia parte dos aposentos reais do primeiro andar, abertos apenas para estrangeiros ilustres e em determinadas circunstâncias. Dava para o terraço sustentado pela galeria coberta do rés-do-chão; o seu fausto, verdadeiramente real, diferia da sumptuosidade cintilante que rodeava os duques de Borgonha. O mobiliário revestido a veludo e as grandes tapeçarias davam ao conjunto uma nota severa, acentuada pelos vitrais de cores das janelas altas, que deixavam entrar uma espécie de penumbra. O ouro dos tectos em madeira e das guarnições dava um ar abafado ao grande salão, salvo quando os grandes candelabros, carregados de velas, os iluminavam, como naquela noite.

Estavam postas três mesas: a do Rei, que ocupava a sala de jantar propriamente dita, ou refeitório; a dos cavaleiros e grandes oficiais da casa real, à qual se sentavam os convidados de importância e, por fim, a dos esmoleres e escudeiros. Uma quarta acolhia, fora da zona dos aposentos, os oficiais de baixa patente e os peregrinos, ou os viajantes perdidos que, por acaso, buscavam hospitalidade. Na mesa do Rei, a mais brilhante e mais bem servida, as mulheres eram raras, salvo quando a Rainha, Carlota de Sabóia, visitava o seu marido.

Naquela noite, eram duas e foi com algum orgulho que Fiora tomou lugar à esquerda do soberano. A princesa Joana, encantadora apesar de um físico desgracioso sob uma coifa de um azul doce salpicado de ouro combinando com um vestido de cendal, estava sentada junto do convidado de honra, este sentado à direita do Rei.

Aos trinta e sete anos, Giuliano della Rovere era, sem dúvida, o mais bem sucedido dos sobrinhos de Sisto IV. Grande e bem constituído, parecia-se mais com um condottiere do que um homem da Igreja com as suas mandíbulas carnívoras e os seus olhos de caçador de órbitas cavadas, que semicerrava frequentemente para apurar a visão. A cor púrpura ia bem com a sua tez morena e com os cabelos negros cortados segundo o desenho do solidéu escarlate que os tapava. Perfeitamente barbeado, o rosto ossudo era duro, mas sabia sorrir com alguma ironia que não era sem encanto e o perfil imperial parecia feito para aparecer em medalhas.

Núncio do Papa em Avinhão, era titular de um grande número de bispados dos quais o de Lausannne, o de Messine e o de Carpentras e a 3 de Julho daquele ano de 1478 recebera, também, o de Mende, para o qual viera em busca de aprovação por parte de Luís XI. Aprovação graciosamente concedida: não era a primeira vez que ambos se encontravam e o Rei tinha um fraco por aquele homem elegante de modos rudes que diziam violento, mas que possuía uma inteligência aguda e que sabia manejar a astúcia quase tão bem como ele mesmo. Ali cessava a semelhança porque, amigo das letras e das artes, o cardeal della Rovere levava uma existência faustosa graças à considerável fortuna que lhe constituíra o seu tio. Uma existência muito diferente da de fidalgo rural habitual do Rei de França.

Quando, apresentada por este, Fiora dobrou o joelho para beijar o anel pastoral na ocorrência uma fabulosa safira em forma de estrela o núncio deixou cair sobre ela um olhar interessado:

Tornar-se-ia, em 1503, no temível Papa Júlio II.


Estivestes recentemente em Roma, creio, Madame?

Com efeito, monsenhor.

É uma pena não terdes podido apreciar as suas belezas...

Essa possibilidade não me foi oferecida, já que me limitei a passar de uma prisão para outra.

Há prisões e prisões. De resto, quando escolhestes Florença, o Santo Padre lamentou-o vivamente, porque estava e continua a estar cheio de benevolência para convosco. A sua amizade ter-vos-ia assegurado alguns dias agradáveis.

Dignai-vos agradecer-lhe os bons sentimentos, mas o seu espírito é demasiado brilhante para não compreender os meus. E esses são os de Florença, monsenhor, e eu só posso deplorar os dramas de que a minha pátria tem sido o teatro.

Dramas que, infelizmente, se agravam. Por que não falarmos deles um destes dias?

Falar de política convosco? Mas, monsenhor, eu não entendo nada de política.

Não vos rebaixeis, Madame. O Santo Padre tem a vossa inteligência em grande consideração e a vossa amizade com o Rei de França só reforça essa opinião. Nós podíamos, os dois, fazer um bom trabalho...

Tendo dito aquilo, della Rovere afastou-se após ter saudado a jovem com uma inclinação de cabeça. As trombetas de prata soaram para o jantar e cada um tomou o seu lugar. O Rei, que depois de ter apresentado Fiora, se afastara para conversar com o arcebispo de Tours, regressou para conduzir ele próprio o cardeal-núncio à sua poltrona.

O jantar, se bem que longo, foi excelente e teria sido enfadonho não fora a disputa divertida que opôs, como era hábito, o médico do Rei, Coictier, ao chefe cozinheiro Jean Pastourel. De pé por trás da cadeira real, trocavam olhares furiosos e propósitos agridoces a meia-voz acerca do conteúdo do prato do senhor de ambos. Quando o médico afirmou que as morcelas de capão só serviam para envenenar o Rei, o cozinheiro ripostou que as drogas do seu adversário é que eram nefastas para a sua saúde, já que a arte da cozinha consistia em preparar os melhores produtos de maneira a que não causassem qualquer incomodidade. De tempos a tempos, o tom da disputa subia e Luís XI tinha de intervir. O Rei acabou por enviar Coictier para a sua mesa, acrescentando que uma refeição tomada na companhia de um príncipe da Igreja não podia fazer mal a ninguém. Nem sequer a ele.

Coictier afastou-se a resmungar aliás, era um homem muito pouco simpático e, a partir desse instante, Fiora aborreceu-se. O Rei dedicou-se ao seu hóspede e o outro vizinho da jovem, um homem grande, vermelho, que era o capelão do prelado romano, após ter tentado acariciar-lhe o joelho por baixo da mesa, resignou-se quando ela o beliscou energicamente e passou a interessar-se pelas iguarias que lhe serviam. Ao cabo de um quarto-de-hora estava escarlate e, no fim da refeição, completamente ébrio.

Após ter acompanhado até às suas carruagens o cardeal e o arcebispo, que regressavam a Tours, Luís XI voltou para junto de Fiora que, entre a princesa Joana e Mme. de Linières, assistira à partida dos ilustres visitantes:

Então, Mesdammes, que pensais do sobrinho de Sua Santidade?

Os cardeais nem sempre são padres, Sire meu pai. Este é-o?

Sim. Porque essa pergunta? Tendes dúvidas?

Algumas, confesso. Ele fala muito de política, de caça, de objectos raros e das letras gregas... mas nem uma palavra acerca de Deus!

Desejáveis que ele me convertesse? perguntou o Rei com um sorriso que lhe fez erguer todos os traços do rosto. Não era o momento.

Não... mas eu fico inquieta quando um homem da Igreja fala de guerra, de submissão, de cargos e outras violências, sem nunca conceder um pensamento àqueles que sofrem com essas tragédias: o povo das cidades e dos campos com que vós, que, no entanto, não sois padre, vos preocupais sempre tanto!

Luís XI ficou sério de novo e, pegando na mão frágil da sua filha, contemplou, por um instante, o seu belo, doce e luminoso olhar com uma expressão estranha, onde entrava uma admiração que não estava isenta de remorsos:

Tendes uma alma luminosa, Joana, que devia ser capaz de ignorar as fealdades da vida. Pela minha parte, recebi, no dia da consagração, o Santo Crisma, que fez de mim o ungido do Senhor e curei-me das escrófulas de que sofria. Parece-me que isso vale bem a tonsura. Além disso, jurei proteger os meus povos, sobretudo os mais humildes, e servir a França... à qual vos sacrifiquei! Assim como lhe sacrifico, por vezes, alguns escrúpulos.

As filhas dos reis nasceram, verdadeiramente, para serem felizes? Vós colocastes-me no lugar que me pertence.

Sem dúvida, sem dúvida! Quando é que o vosso marido vos visitou pela última vez?

A pergunta é cruel, Sire cortou Mme. de Linières. Monsenhor, o duque de Orleães, nunca aparece e...

Chega! Eu falo com ele.

Em seguida, mudando bruscamente de tom e já sem qualquer vestígio de emoção:

Quanto ao cardeal della Rovere, à sua família e até ao Papa, se quiserdes conhecê-los melhor, falai com Mme. de Selongey! Ela sabe mais acerca desse assunto do que eu. Mas arriscais-vos a perder a fé!

Não, Sire meu pai! Nada nem ninguém me fará perder a fé!

E eu sentir-me-ia culpada, Sire cortou docemente Fiora se pronunciasse uma palavra, por mais pequena que fosse, capaz de perturbar uma alma tão pura.

Com um gesto rápido e inesperado, Luís XI beliscou a face da jovem.

Tenho a certeza! Uma boa noite para vós, Mesdames! Regresso aos meus negócios. Esta noite preciso de escrever ao doge de Veneza!

Enquanto as três mulheres dobravam o joelho para o saudar, ele afastou-se alguns passos e depois deteve-se:

O sargento Mortimer vai acompanhar-vos a la Rabaudière, donna Fiora!

Mas, Sire, eu não vim só.

Doença devida a perturbações de nutrição.

Eu sei, mas, em caso de maus encontros, o vosso criadito não seria de grande ajuda. Aliás, Mortimer adora escoltar-vos. Juntamente com a minha filha Joana, sois a única mulher por quem ele tem alguma consideração.

O Rei retomou o seu caminho na direcção da escadaria, na base da qual se encontrava a silhueta de um homem recortada a negro à luz amarela do interior. Fiora pensou reconhecer a personagem que encontrara em Senlisl no próprio quarto do Rei. Quando ela se virou para fazer uma pergunta às suas companheiras, estas já se afastavam, dirigindo-se para a capela. Pelo contrário, no seu lugar encontrava-se Mortimer, surgido como que por encanto: Às vossas ordens, donna Fiora!

Sinto-me desolada por vos incomodar, caro Douglas, mas, antes de partirmos, contentai a minha curiosidade: aquele homem, além, junto da escadaria? Parece-me que já o vi!

Sob a túnica de seda azul com flores-de-lis, o escocês encolheu os grandes ombros:

Oh, evidentemente que vistes! É o barbeiro do Rei, esse homem de pesadelo chamado Olivier le Daim!

Dir-se-ia que não gostais muito dele? perguntou Fiora, rindo. Mortimer nem sequer sorriu:

Ninguém gosta dele! É um velhaco em quem, infelizmente, o Rei deposita demasiada confiança! No entanto, arrependeu-se quando o enviou, esta Primavera, a Gand, como embaixador.

Como embaixador? Não acredito!

Infelizmente é verdade! O nosso sire, tão sábio e tão prudente, tem, por vezes, ideias estranhas. As gentes da cidade puseram-no, não sei como, às portas da cidade. Acreditai, donna Fiora, desconfiai dele! A sua cupidez é insaciável apesar do que, até agora, conseguiu surripiar ao Rei.

Por que razão havia de desconfiar dele? Nós não temos nada em comum e os nossos caminhos são divergentes.

Pobre inocente! Ficais a saber que Daim considera como ofensa pessoal qualquer presente que o nosso Sire dê a outra pessoa qualquer que não a ele.

1 Ver Fiora e Carlos, o Temerário.


O Rei é muito bom, mas não me cobre de presentes.

Não? E la Rabaudière? Eu sei que, durante a vossa ausência, mestre Olivier se esforçou por persuadir o Rei de que vós nunca mais regressaríeis e que, como consequência, seria mais sensato instalar o vosso filho e o vosso pessoal aqui mesmo.

No castelo? E porquê?

Para esvaziar a casa, por Deus! Há muito tempo que o nosso homem pisca o olho à Casa das Pervincas e quando soube que vós a queríeis devolver ao Rei, ganhou novas esperanças. Infelizmente para ele, encontraram-vos e regressastes. Deve estar muito desapontado

Bem disse Fiora desdenhosamente ele tem um meio muito simples de colmatar a sua decepção.

Qual é?

Ajudar-me a encontrar o meu marido. Nesse dia abandonarei sem pena aquela casa de que tanto gosto para o seguir para as suas terras... ou para onde ele julgar melhor levar-nos.

Mortimer desatou a rir e, soerguendo o seu gorro com penacho, coçou a cabeça com uma careta cómica:

Pois! Não sei se ele não preferirá um método mais simples e mais... expedito! De qualquer maneira, preveni, há algum tempo, o vosso pessoal... e hei-de dar uma palavra ao Rei.

Se ele tem tanta confiança nesse homem, isso seria um erro! Não lhe digais nada, Mortimer! Eu vou ter cuidado. Entretanto, obrigada por me terdes prevenido!

Fiora e Mortimer recuperaram Florent que após ter comido em casa do seu amigo jardineiro dormia em cima da mesa e puseram-se a caminho, a pé, da Casa das Pervincas, conversando sobre outras coisas. A noite estava clara, suave, cheia de estrelas e de todos os odores do Verão. Teria sido uma pena perturbar aquela beleza evocando as torpezas humanas. Os dois amigos conheciam, tanto um, como o outro, o preço de tais instantes e tinham aprendido a apreciá-los...

CAPÍTULO V A FLORESTA DE LOCHES

Veneza, Veneza! resmungou Léonarde, sacudindo fortemente o lençol que estava a dobrar com Fiora. Porquê Veneza? E porque não Constantinopla, ou o reino do Prestes João... ou sabe Deus o quê?

Já vos disse, Léonarde: porque sei que ele pensava nisso. Quando eu pedi a anulação do nosso casamento, ele quis que o duque Carlos me entregasse todos os seus bens como pagamento do dote que exigiu ao meu pai. E acrescentou que, se se restabelecesse a paz entre a França e a Borgonha, poderia sempre colocar-se ao serviço do doge para reconstituir a sua fortuna.

Mas isso foi há séculos! E vós continuais a ser mulher dele!

No fundo, ele não sabe. Admitindo que depois da sua evasão Philippe tenha vindo em busca de notícias minhas para estas bandas, pode ter sabido do meu desaparecimento, talvez, até, tenha sabido que me levaram para Roma! Daí a imaginar que eu tinha ido, como o ameaçara, pedir ao Papa a famosa anulação...

Léonarde pegou no lençol, acabou de o dobrar e pousou-o sobre uma pilha que esperava uma última passagem a ferro antes de ir para dentro de um armário onde havia saquinhos de hortelã e de pinheiro. A governanta tirou outro do cesto e atirou com uma das extremidades a Fiora:

Não deixeis voar a vossa imaginação, meu cordeirinho. Se messire Philippe tivesse vindo aqui, sabê-lo-íamos: ele tem umas feições demasiado orgulhosas para passar despercebido e ao saber do nascimento do seu filho não deixaria de aparecer cá em casa.

Um prisioneiro evadido, Léonarde? Talvez esgotado? Sem dinheiro, sem socorro possível,, e tão orgulhoso? Não estou a vê-lo aparecer aqui em busca de socorro!

Não estou a vê-lo a rondar Plessis! disse Léonarde, imitando Fiora. A única coisa sensata, para ele, seria tentar regressar à Flandres e à corte da princesa Maria. Em todo o caso, lamento não ter assistido à vossa conversa com o Rei. Parece-me que lhe teria feito perguntas mais pertinentes do que as vossas. Puxai, que diabo! Este lençol vai parecer um farrapo!

Não teríeis grande dificuldade! Eu estava tão perturbada que nem sei o que tinha na cabeça! Mas... que perguntas lhe teríeis feito?

Bem, parece-me que tentaria saber o que aconteceu ao castelo de Selongey! O sire de Craon apoderou-se dele depois do julgamento, ou o Rei teve o cuidado de o conservar por vós?

De facto, não sei de nada. Ele só me disse que mandara vigiar os arredores da aldeia para saber se Philippe teria procurado ali refúgio.

Bom. Já é uma meia-resposta: se o governador de Dijon se tivesse apoderado do castelo, não seria necessário espiar os arredores para tentar encontrar o proprietário legal.

É verdade! De qualquer maneira, agora é demasiado tarde para fazer a pergunta ao Rei...

Na verdade, Fiora tivera sorte em encontrar Luís XI logo após o seu regresso de Florença. O Rei regressara a Plessis apenas por alguns dias e no dia seguinte àquele famoso jantar abandonara o castelo para se dirigir a Artois, cuja pacificação ainda não tinha terminado. Além disso, o Rei queria ocupar-se pessoalmente das condições da trégua entre ele e o marido de Maria de Borgonha após a vitória do seu capitão Philippe de Crèvecoeur, em Pyrrhus, sobre o mesmo Maximiliano. Sem dúvida, não estaria ausente durante muito tempo, mas, entretanto, Plessis-lès-Tours voltaria a adormecer sob a protecção de uma única companhia da Guarda Escocesa.

Tendo acabado de dobrar os lençóis, Léonarde levou-os para uma grande arca que estava colocada numa pequena divisão perto da cozinha. Em seguida, a governanta juntou-se a Fiora, que fora sentar-se perto da lareira e mordiscava uma pêra: Étienne pusera um tabuleiro cheio delas em cima da mesa uma hora antes.

Léonarde pegou numa, também ela, esfregou-a no avental para a pôr a brilhar e mordeu-a sem conseguir evitar uma careta: os seus dentes já não eram suficientemente sólidos para aquele exercício e a governanta foi buscar uma faca para descascar o fruto. Fiora, sentada na pedra da lareira e com os cotovelos nos joelhos, olhava para as chamas...

A grande cozinha estava tranquila, quase silenciosa. Péronnelle fora ao mercado de Notre-Dame-la-Riche na companhia de Khatoun e de Florent. Mas, no primeiro andar, Marcelline enfrentava a cólera do pequeno Philippe, insatisfeito com a última mamada. Léonarde pensou que seria preciso dar-lhe, em breve, alguma coisa mais sólida se não queriam ouvi-lo chorar noite e dia. Essa ideia desesperava a ama. Quando já não tivesse leite teria de regressar à sua quinta e essa perspectiva não a encantava, já que a vida era muito mais agradável na Casa das Pervincas.

Esses pensamentos giravam na cabeça da velha solteirona, distraindo-a um pouco dos graves problemas que enchiam o espírito de Fiora, mas esta regressou ao assunto:

Dentro de quanto tempo teremos notícias do doge? perguntou ela, atirando o caroço da pêra para o fogo.

Como posso saber? Veneza é longe.

No entanto, tenho de saber! Não posso ficar aqui sem fazer nada e sem saber do meu marido!

Mas, que quereis vós fazer? Quereis atirar-vos para a estrada como tantas vezes antes para tentardes ir ter com ele? Fiora, isso seria uma loucura. O Verão está a acabar, vamos a caminho do Inverno. Dai a vós própria algum tempo de repouso e reflexão.

Se fico aqui, nunca mais o encontro, porque ele nunca virá para as terras do Rei que tanto detesta...

Mas de quem vós gostais e que, aliás, a menos que eu me engane, vos retribui. Para ter procurado com tanta paciência um rebelde, para continuar a procurá-lo quando nem sequer se devia preocupar, é preciso que vos tenha uma grande amizade.

Nem sequer se devia preocupar? exclamou Fiora, vexada.

Regressai à terra! Que é Philippe de Selongey em comparação com o Rei de França? A diferença é enorme, parece-me?

Dir-se-ia que tendes pouca estima pelo meu marido?

Tento, simplesmente, fazer-vos ver a realidade. O Rei reconquistou, com a Borgonha, uma província francesa que a duquesa actual tenta oferecer ao Império Alemão. O vosso marido, aparentemente, escolheu o partido dela. Para Luís XI é um rebelde, tanto mais que ainda há pouco tempo tentou assassiná-lo. E Luís XI, não só o agracia pela segunda vez, apesar de o manter preso, é verdade, como, quando ele se evade, o tenta encontrar.

Qualquer carcereiro teria feito o mesmo disse Fiora com um meio sorriso.

Mas qualquer carcereiro, apanhada a presa, apressar-se-ia a mandá-la para um mundo melhor, para estar certo de que não o aborreceria mais! Ora, se bem vos compreendi, o nosso Sire queria fechá-lo... enquanto esperava pelo vosso regresso?

É o que ele diz!

E por que razão não haveis de acreditar nele? Entregai-vos a Deus, ao menos uma vez, e pensai um pouco no vosso filho! Ele não tem pai, por isso tem o direito de ter uma mãe como as outras!

Fiora sabia que Léonarde falava com a voz da sabedoria, mas não suportava a ideia de não saber onde se encontrava Philippe. Perante o seu mutismo eloquente, Léonarde recomeçou:

Ainda não estais convencida, pois não? Nesse caso, vou mais longe: vós ignorais onde se encontra messire de Selongey, mas ele sabe muito bem onde vós estais, porque, em Nancy, tivestes o cuidado de o informar. Já uma vez, para se juntar a vós, ele venceu o orgulho. Por que razão não o venceria uma vez mais? Ou então, já não vos ama!

Aquela palavra atingiu Fiora no mais profundo do seu ser e a jovem ergueu, para a sua velha amiga, um olhar desolado:

Já não me ama? Talvez seja verdade... mas, Léonarde, não acredito!

No entanto, tendes todas as razões para acreditar disse Léonarde, impiedosa. Pensáveis nele quando estáveis nos braços de Lourenço de Médicis?

Seguiu-se um silêncio e Fiora desviou a cabeça, talvez para esconder as lágrimas que sentia subirem-lhe aos olhos-.

Sois cruel, Léonarde suspirou ela. Não esperava uma coisa dessas da vossa parte...

Um instante mais tarde, Léonarde estava sentada junto dela na pedra da lareira, rodeando-a com os braços para a obrigar a pousar a cabeça no seu ombro:

Eu sei que vos faço mal, meu cordeiro, mas é para vos evitar mais sofrimentos. O vosso casamento, até agora, deu-vos bem pouca felicidade e muita amargura. Esteja ele onde estiver, deixai que o vosso marido tome a iniciativa! Vós exigistes que, como prova de amor, ele viesse ter convosco! Muito bem, esperai por ele!

E se ele estiver no fim do mundo?

Isso não muda nada: esperai que ele regresse do fim do mundo! Ouvi! Estou a ouvir mulas, é a nossa gente que regressa do mercado. Ide tirar essa cinza que arranjastes nessa pedra e arranjar-vos um pouco! Sois suficientemente jovem para poderdes conceder a vós própria algumas semanas de tranquilidade. Esperai que o Rei vos dê notícias... se ele as tiver.

Seja! Eu espero, querida Léonarde, mas não muito!

Que ides fazer, então?

Creio que, primeiro... vou a Selongey. Talvez Philippe ande por lá escondido sem que a gente do Rei saiba. Depois, se ele não estiver lá...vou ver a duquesa Maria. Não creio que os espiões do Rei tenham tido a possibilidade de lhe fazer quaisquer perguntas. Mas eu sou a mulher de Philippe e ela responder-me-á.

Por outras palavras, o Rei não vos convenceu?

Da profundidade das suas buscas? É evidente que não! Além disso, tendes de admitir que eu, como mulher dele, tenho mais hipóteses de o fazer sair do seu esconderijo...

Léonarde contentou-se em resmungar algo que, em rigor, podia passar por aprovação. A solteirona voltara a tirar da algibeira do avental a pêra e esforçava-se por ferrar nela os dentes.

Como a operação se revelasse tão dolorosa como da primeira vez, atirou, com um gesto de rancor, o fruto para as chamas da chaminé, de onde subiu um fino odor a pêra cozida e a caramelo. Enquanto isso, a cozinha enchia-se de barulho e alegria. Péronnelle, Khatoun e Florent regressavam do mercado.

Nesse mesmo dia, de tarde, quando Fiora se dispunha a fazer uma visita ao priorado de Saint-Côme com o filho, Léonarde e Khatoun, a alameda de velhos carvalhos encheu-se com um bando de cavaleiros escoltando uma liteira que ela reconheceu de imediato, mas sem qualquer prazer. Que ia fazer a sua casa o cardeal della Rovere?

Mas, já que estava ali, era conveniente acolhê-lo cordialmente. Assim, devolvendo o bebé aos braços carinhosos de Khatoun, Fiora avançou para o pesado veículo que descrevia no cascalho uma curva plena de majestade antes de se deter diante da entrada da casa. A jovem ajoelhou-se quando o prelado pôs pé em terra e beijou-lhe a safira que ele lhe estendia.

A minha modesta casa sente-se muito honrada, monsenhor, por receber Vossa Eminência!

A casa é encantadora e eu venho apenas como vizinho. Portanto, deixemos o protocolo de lado e dizei apenas monsenhor disse ele com toda a simplicidade.

Subitamente, ele viu as mulas ajaezadas, junto das quais estava Florent:

Estou a incomodar-vos, talvez? Ides sair?

Estávamos, somente, a pensar ir ao priorado cujo campanário vedes além, monsenhor. Mas como a Igreja vem ter connosco... Dai-vos ao cuidado de entrar.

Enquanto Fiora precedia o hóspede inesperado na grande sala, Péronnelle preparava, uma merenda para o cardeal, ao mesmo tempo que o seu marido instalava a escolta à sombra do pequeno bosque e anunciava que lhe ia dar de beber. Coisa que foi acolhida com satisfação.

Segundo o convite da sua anfitriã, della Rovere instalou-se a um canto da chaminé, na qual, tanto no Inverno, como no Verão, salvo em tempos de canícula, Péronnelle tinha sempre um fogo com alguns ramos de pinheiro para lutar contra a humidade habitual das casas construídas perto do Loire. Mas as janelas completamente abertas deixavam ver o jardim florido, do qual um prolongamento, sob a forma de um grande ramo de flores-de-lis e de rosas misturadas com folhagem, coroava uma credência e perfumava a sala.

Os olhos vivos do cardeal já tinham dado a volta à grande divisão, indo da tapeçaria de mil flores aos objectos dispostos em cima dos aparadores, quando acolheu com prazer os sinais de boas-vindas que Fiora lhe oferecia: o vinho fresco de Vouvray e o bolo de amêndoa que Péronnelle sabia fazer como ninguém. Só quando ficaram sós, ele e a sua anfitriã, é que o cardeal se decidiu a falar. Aliás, ele já exprimira esse desejo e Léonarde, com grande pena, foi obrigada a retirar-se, tal como os outros.

Após a sua partida, seguiu-se um silêncio. O cardeal mirava, através do vinho pálido da sua taça, os reflexos do fogo moribundo e Fiora saboreava o líquido agradável sem dizer nada, esperando que o seu visitante falasse. Este não parecia apressado, mas, subitamente, interrogou-a:

Pensastes no que vos disse na outra noite, donna Fiora?

Vós quisestes pronunciar, a meu respeito, algumas palavras lisonjeiras, monsenhor, e eu não seria capaz de as esquecer.

Sem dúvida, sem dúvida, mas não foram mais do que um preâmbulo e também vos disse que, em minha opinião, nós os dois poderíamos fazer um bom trabalho.

Lembro-me, com efeito, mas confesso que não compreendi bem o que entendia Vossa Eminência com essas palavras.

Entendia... e entendo ainda, que podíamos juntar os nossos esforços para que possamos ser úteis, vós à vossa cidade natal e eu aos interesses da Igreja.

Um papel interessante, não duvido, mas como o desempenharia eu?

O Rei Luís escuta-vos e tendes a sua amizade. A paz entre os povos é um objectivo digno de ser perseguido e podíeis incitar aquele homem difícil a ter mais respeito, mais compreensão para com Sua Santidade, que ele trata muito mal.

Muito menos mal, parece-me, do que o modo como o Papa trata Florença. As suas ideias políticas parecem muito claras, mesmo para uma ignorante como eu: ele pretende acabar, pela guerra, a obra que os seus espadachins iniciaram. Não imaginais que eu o ajudaria a destruir a cidade da minha infância?

Destruir? Nunca! O Santo Padre não quer qualquer mal a Florença e ainda menos à sua população. Aquela... desgraçada conspiração urdida pelos Pazzi exilados...

Talvez eles não a tivessem podido urdir, monsenhor, sem a ajuda benevolente do vosso primo, o conde Riario. De qualquer maneira, entre o Papa e os Médícis está o sangue derramado de Giuliano durante a missa do Domingo de Páscoa!

Os Pazzi foram exterminados até ao último. Mais de duzentas pessoas, segundo parece? Uma tal quantidade de gente não é suficiente para lavar o sangue desse jovem? Seria o caso, talvez, se o Papa não tivesse apelado à guerra santa, não tivesse excomungado Florença e não a tivesse atingido, até, com a interdição. Monsenhor Lourenço limita-se a defender-se.

Ele defende-se, de facto... com desprezo pelo bem-estar de um povo que pretende amar. No fim de contas, ele não é príncipe por direito divino.

Se ele não se sacrifica, é porque esse mesmo povo não deixa. Os Florentinos amam Lourenço de Médícis e estão prontos a morrer por ele.

Todos? Não juraria. Mas, em vez dele, a cidade da flor-de-lis vermelha podia ter uma princesa agradável, letrada, brilhante... e de quem vós gostais, creio?

Uma princesa? Quem?

A condessa Catarina. Ela não é vossa amiga?

Sinto por ela, de facto, muita amizade e respeito.

Então, talvez a pudésseis ajudar?

Fiora olhou para o seu visitante com um estupor sincero, fortemente mesclado de desconfiança. No entanto, não conseguiu ler naquele rosto arrogante e naqueles olhos escuros profundamente cavados nas órbitas senão uma grande tristeza.

Ela reina sobre Roma e sobre o Papa. De que ajuda necessitaria ela?

Talvez da vossa, justamente. Tentai compreender-me, donna Fiora! Eu tenho muita estima e consideração por Catarina e não gosto de a saber infeliz.

Ela é infeliz?

Mais do que possais imaginar e por vossa causa.

Por minha causa?

Com muita simplicidade, o cardeal foi encher de novo a sua taça de vinho e depois, puxando a sua cadeira para junto da da sua anfitriã, sentou-se:

Roma transborda de espiões, Madonna, e sabe-se tudo. Riario não ignora que a sua mulher vos ajudou a fugir para Florença. Daí a imaginar que estáveis encarregue de prevenir os Médicis do que se tramava contra eles...

Sem querer ofender a vossa família, monsenhor, o vosso primo é demasiado denso para conseguir imaginar uma coisa dessas!

É um rústico, admito perfeitamente, mas é manhoso, retorcido, até e, sobretudo, não ignora que a mulher não o ama. Ela vive horas pouco agradáveis, mas poderiam ser bem piores sem a protecção do Santo Padre. Este, felizmente, continua a ter muita afeição por ela.

Essa notícia aflige-me, mas como poderia eu ajudá-la?

Por que não lhe escreveis uma carta, na qual lhe exprimis a vossa amizade? Poderíeis acrescentar que estais disposta a defender, junto do Rei de França, a causa do Vaticano...

Fiora levantou-se bruscamente e enfrentou o seu visitante. Um princípio de cólera avermelhou-lhe o rosto:

Falemos claro, monsenhor! Vós quereis que eu tente libertar a França da aliança com Florença e que eu traia os meus queridos amigos, a recordação do meu pai, o meu...

O vosso amante? Não, não vos zangueis! Nós também temos espiões em Florença. E não vos pediria uma coisa tão terrível. O que vos peço é que penseis no seguinte: todos os homens são mortais e o Médicis não escapa à lei comum. Que ele desapareça e que Florença, não tendo mais ninguém para defender, abra as portas ao Papa. Donna Catarina, como soberana, levaria a peito, estou persuadido, a conservação dos vossos bens.

Deixemo-nos de conversas, monsenhor! Eu gosto de donna Catarina e faria tudo para que ela fosse feliz, mas não ajudarei o seu marido a subjugar a cidade que me é querida!

E se Riario não vivesse o suficiente para reinar sobre a Toscânia? Vamos, donna Fiora, eu não vos peço muito: uma carta amável, de certo modo uma carta pacificadora... e depois, talvez, uma tentativa para dispor melhor o Rei Luís connosco sem renunciar, pelo menos abertamente, à sua aliança com Lourenço. A sua atitude actual provoca grandes prejuízos à Santa Sé...

Pecuniários? Não duvido! disse Fiora, azeda. Para mim, não há nada melhor do que trabalhar pela paz, mas não foi Florença, repito, que declarou a guerra. Por outro lado, para que eu acredite na boa vontade do Papa, seria preciso que ele começasse por um gesto... de pai. Levantar a interdição, por exemplo?

Posso sugerir-lho. Escrevereis essa carta?

Seria uma carta enganadora. O Rei está longe e eu não sei quando regressa.

Mas regressa, um dia destes, e eu não tenho pressa. Contentar-me-ei com a carta e com a vossa promessa. Talvez, por outro lado, eu vos possa ajudar num assunto que vos preocupa muito... Mas o tempo passa e eu tenho de vos deixar... Tenho assuntos a tratar com o arcebispo.

O cardeal levantou-se com uma pressa súbita que Fiora achou suspeita e dirigiu-se para a porta.

Evidentemente, voltaremos a encontrar-nos acrescentou ele amavelmente passei junto de vós momentos encantadores. Mas, agora, preciso de reflectir. Regressarei dentro em breve.

Concedei-me ainda um minuto, monsenhor. Que assunto é esse que me interessa muito?

Não passa de um rumor que me chegou aos ouvidos. Infelizmente, não tenho tempo para vo-lo referir. Fica para a próxima visita: digamos... dentro de dois ou três dias?

Tencionais ficar ainda muito tempo em Tours?

Infelizmente, não... se bem que a cidade me agrade e que as pessoas insistam para que eu fique. Mas tenho de partir para Avinhão, onde se encontra a sede da minha nunciatura...

Compreendendo que o cardeal não tencionava dizer mais nada, Fiora conduziu-o até à sua liteira, de onde ele a abençoou e perante a qual a jovem teve de se inclinar.

Perplexa, a jovem viu desaparecer, sob a verdura densa do caminho sombrio que ia dar à saída do seu domínio, a imponente equipagem. Desaparecido o cortejo, Fiora desceu ao jardim, por onde caminhou ao longo das alamedas bem limpas antes de se sentar por baixo de uma latada. Léonarde sentia-o, devia estar a espreitá-la da casa transbordando de perguntas e, justamente, Fiora desejava ficar só por uns instantes para tentar esclarecer aquela visita curiosa. A iniciativa de della Rovere parecia-lhe bastante ridícula. Seria preciso, de facto, conhecer bastante mal o Rei Luís, aquele homem secreto de quem se dizia que o seu cavalo transportava todo o seu conselho, para imaginar, por um só instante, que se pudesse deixar influenciar pelos pedidos de uma mulher, fosse ela objecto da sua amizade. Por outro lado, era insensato pedir-lhe, a ela, de quem, aparentemente, o cardeal não sabia grande coisa, que tentasse desligar a França da sua antiga aliança e das suas amizades.

Evidentemente, havia o caso de Catarina. Fiora sentia-se mal por lhe ter causado aborrecimentos, já que não se sabia até onde poderia ir um homem como Riario. Um acidente é sempre possível e, então, só restaria ao Papa chorar por aquela sobrinha, à qual estava tão afeiçoado.

A memória de Fiora fê-la rever o rosto do cardeal no momento em que falava de Catarina: um rosto tenso, uma máscara quase dolorosa. Talvez a amasse e, nesse caso, talvez estivesse pronto a todas as loucuras para lhe acudir. Não sugerira que Riario talvez não vivesse muito mais tempo? Se della Rovere amava a sua prima por aliança com um amor sincero e ansioso, tornava-se muito mais simpático aos olhos de Fiora e a jovem deu por si a pensar que, no fim de contas, a carta que lhe pediam que escrevesse tinha pouca importância: bastaria escrevê-la com a habilidade suficiente para não a comprometer. E depois, havia aquela frase misteriosa que o visitante recusara esclarecer, dizendo que falariam ”na próxima vez”...

Nesse instante, Fiora lamentou amargamente a ausência do Rei. Se ele estivesse em Plessis, teria ido ter com ele para lhe contar os acontecimentos e pedir-lhe conselho. Aquele senhor diplomata, aquele príncipe de todas as astúcias, que conhecia melhor do que ninguém a arte de redigir cartas e tratados, teria conseguido obter do prelado romano a revelação daquilo que escondera a Fiora. Mas o Rei estava longe e era preciso desenvencilhar-se sozinha.

Naquela noite, quando toda a gente já estava deitada, Fiora, já tarde na noite, sentada na sua cama, exercitava-se, tentando escrever uma carta capaz de satisfazer todo o mundo. A jovem depressa descobriu que a coisa não era fácil. O princípio não custava nada, claro: tratava-se, simplesmente, de endereçar a Catarina os seus agradecimentos, em termos comoventes, por ter permitido que uma mãe encontrasse o seu filho. Mas tudo se complicou a partir do momento em que teve de falar do Rei e dos pedidos a fazer-lhe. Era tão difícil que Fiora acabou por abandonar o problema. A jovem afastou o papel e a pena, apagou a vela e deixou que o sono se apoderasse de si. Já reparara, muitas vezes, que a resposta a uma pergunta espinhosa aparecia quando acordava.

O que aconteceu tardiamente, porque adormecera bem depois da meia-noite. Ao abrir os olhos, a jovem viu Léonarde postada aos pés da sua cama a ler, com interesse, as suas diversas tentativas.

Ides, mesmo, escrever esta carta? perguntou ela. No entanto, devíeis recordar-vos do que dizia aquele diabo do Demétrios: ”É preciso prestar muita atenção ao que se escreve e a sabedoria está em escrever o menos possível! Pensais que não penso nisso? Mas eu gostava tanto de ajudar Catarina!

E saber o que vos reserva aquele belo cardeal! Reconheço que ele é hábil e que a sua história foi conduzida com mão de mestre! Ele soube perfeitamente jogar com os vossos sentimentos e com o reconhecimento que deveis a essa jovem dama. E, para terminar, soube espicaçar a curiosidade tão natural nas filhas de Eva.

Mas... como sabeis vós isso? Não me lembro de vo-lo ter contado?

Léonarde teve um grande sorriso que lhe descobriu os dentes um pouco espaçados, mas ainda bastante brancos:

Se bem que já não pareça, eu também sou filha de Eva, minha querida Fiora! Escutei à porta, simplesmente! Vou ver se o vosso banho já está pronto.

A saída de Léonarde, sob as abas brancas da sua coifa que batiam ao vento ao ritmo do seu andamento, foi uma obra de arte de dignidade que Fiora admirou sem reservas. Só um momento mais tarde, quando se levantava do leito, é que se apercebeu que a velha solteirona lhe tinha levado todos os rascunhos.

No entanto, quando o cardeal della Rovere fez, dois dias mais tarde, a sua aparição na Casa das Pervincas, a carta estava pronta e Fiora estendeu-lha assim que ele se sentou perto da chaminé.

Para dizer a verdade, a jovem não estava descontente. Tendo-a trabalhado muito na companhia de Léonarde, pensava que, com toda a equidade, devia satisfazer os interesses em jogo e não devia descontentar ninguém. Com efeito, após algumas linhas cheias de amizade, ternura e profundo reconhecimento, Fiora assegurava à condessa Riario o seu grande desejo de ver reinar de novo a paz entre Roma e a França, assim como naquela terra da Toscânia, que lhe era tão querida entre todas as outras...

Talvez o cardeal ache que não vos estais a empenhar o suficiente observara Léonarde na última leitura mas vereis a sua reacção e tereis, sem dúvida, a oportunidade de discutir com ele.

Ora, para grande surpresa de Fiora, o prelado, após ter lido a carta atentamente, declarou excelente a prosa da jovem e exprimiu-lhe a sua satisfação. Aquela leitura causaria uma grande alegria à condessa Riario e suavizaria um pouco o orgulho ferido de Sua Santidade, já que apenas o amor maternal incitara Mme. de Selongey a fugir e donna Catarina a ajudá-la naquela empresa. O Papa ficaria igualmente encantado por constatar que a sua antiga prisioneira não lhe guardava rancor e que estava pronta, pelo contrário, a ajudar para se conseguir uma reconciliação geral...

Como vedes disse della Rovere em conclusão não vos estava a pedir nada de difícil. Pelo contrário, prestais-me um grande serviço pessoal e vou tentar testemunhar-vos o meu reconhecimento... Oh, de maneira... modesta, receio, porque o que vos vou dizer não tem, talvez, qualquer interesse.

O cardeal fez uma pausa, desviou o olhar como se hesitasse e depois suspirou:

Oh! é estúpido! O meu tio... quero dizer, o Santo Padre acusa-me sempre de falar demasiado e de não refrear suficientemente os meus impulsos. É por isso que receio fazer-vos mais mal do que bem.

Aquilo que fazemos com boas intenções, monsenhor, não pode ser nefasto. Far-me-eis a graça de me confiar, pelo menos, do que é que se trata? É acerca de Florença?

Não. É acerca do... vosso marido!

O meu marido? Sabeis alguma coisa dele?

Talvez. Durante a minha estadia aqui, procurei descobrir acerca de vós aquilo que não sabia. Em Roma, esse condenado à morte, miraculosamente salvo no instante em que ia morrer, sempre me intrigou. Foi assim que soube que o conde de Selongey, fechado no castelo de Pierre-Seize, em Lyon, se evadira sem que se pudesse saber o que lhe aconteceu depois. É exacto?

De facto, monsenhor. Sabe-se, apenas, que roubou um barco para fugir e não vos escondo que essa circunstância me aterroriza. Diz-se que o rio, o Ródano, creio, é perigoso. Tenho medo que ele se tenha afogado.

É possível, de facto. No entanto, quando ouvi essa história, lembrou-me um acontecimento que teve lugar aqui há alguns meses atrás. Um acontecimento menor, aparentemente, mas que, para vós, pode ter grande significado.

Dizei depressa, monsenhor, peço-vos! A menor pista pode ter a maior importância.

Muito bem, aqui vai! O ano passado, como vos dizia, os monges do convento cartucho de Val-de-Bénédiction, em Ville-neuve-Saint-André, mesmo em frente da minha sede episcopal,

Hoje Villeneuve-lès-Avignon.


encontraram, no fundo de um barco encalhado nos caniços, um homem ferido e inconsciente que parecia ter sofrido grandes provações. Eles levaram-no e trataram-no, mas foi impossível fazer com que ele lhes dissesse o nome. O homem não sabe nada acerca de si próprio, de onde veio nem o que sofreu.

Teria perdido a memória?

Foi o que concluiu o abade.

O coração de Fiora batia-lhe no peito com toda a força. O sangue subira-lhe ao rosto e as mãos tremiam-lhe.

Mas, como era ele? O seu rosto... a sua estatura? Viste-lo?

Infelizmente, não. Sei apenas o que o prior disse ao meu capelão. Uma coisa é certa: aquele homem não tem nada de camponês. É grande e as cicatrizes do seu corpo parecem indicar que é um soldado. Além disso, o barco era diferente dos que são fabricados na região. Mas estou a emocionar-vos a um ponto que me deixa inquieto. Pode ser, repito, que não tenha qualquer relação com...

Estou quase certa que sim. Esse homem continua lá?

Evidentemente. Para onde queríeis que fosse, não sabendo quem é e de onde vem? O estado dele deve dever-se, certamente, a um ferimento recebido na cabeça... Mas tranquilizai-vos, foi bem tratado e não é, neste momento, nenhum infeliz. Os cartuxos são bons monges, generosos e hospitaleiros. Além disso, para um prisioneiro evadido, se é dele que se trata, um convento é o melhor dos asilos.

Não duvido nem por um instante, mas, como saber, como ter a certeza?

A jovem levantara-se e caminhava agitadamente de um lado para o outro na grande sala, esforçando-se por apaziguar, sob a sua mão, os batimentos do seu coração, que quase a sufocavam. Ao vê-la empalidecer e cambalear, della Rovere precipitou-se, tomou-a nos braços e obrigou-a a estender-se num banco comprido guarnecido de almofadas. Era tempo, as suas pernas tinham perdido a força! Ao mesmo tempo, o prelado chamou por socorro e Léonarde que escutava por trás da porta apareceu instantaneamente, armada com um frasco de vinagre e uma toalha. A governanta tratou de reanimar a jovem.

A má disposição não tardou a dissipar-se e em breve Fiora, completamente restabelecida, pôde oferecer as suas desculpas ao seu hóspede, que parecia sinceramente inquieto.

Receio ter-vos fatigado em excesso disse ele. O melhor é retirar-me: voltarei amanhã. Aliás, era minha intenção deslocar-me a vossa casa para vos dizer adeus...

Vossa Eminência deixa-nos já? perguntou Léonarde.

Sim, tenho de regressar a Avinhão, onde tenho muitos assuntos para tratar. Despedir-me-ei de Tours depois de amanhã.

O cardeal dispunha-se a partir, mas Fiora reteve-o:

Por piedade, monsenhor! Só mais um momento. Asseguro-vos que estou melhor... Dizei-me mais qualquer coisa sobre esse evadido!...

Que vos posso dizer mais? Sabeis tanto como eu... Escutai! Como vou regressar para lá, quereis que vá ao convento quando chegar, para ver esse homem?

Vós nunca o vistes, monsenhor. Como o reconheceríeis?

Poderíeis fazer-me o retrato dele? Evidentemente, se não vos sentísseis mal, havia uma solução, fácil, sem dúvida, mas talvez fatigante...

Que solução é essa? grunhiu Léonarde, desconfiada. Mas Fiora já compreendera:

Posso acompanhar-vos? É verdade que sou a única a ser capaz de o reconhecer. E, se for o meu marido, a que melhor o poderá tratar...

Fiora! protestou Léonarde. Estais louca? Ides partir, mais uma vez, para o fim do mundo?

Avinhão não é o fim do mundo, Madame, e não vejo que perigos pode donna Fiora correr sob a minha protecção! Até lhe posso oferecer uma confortável liteira...

Fiora parecia renascer. Reencontrara as cores e, nos seus olhos, a esperança fazia cintilar estrelas. A jovem levantou-se:

Eu não posso recusar uma sorte destas, querida Léonarde e não estarei ausente muito tempo. Se for mesmo Philippe, trá-lo-ei comigo e farei, depois, a paz dele com o Rei. Oh, monsenhor, não imaginais a alegria que me dais!

O cardeal desatou a rir, o que lhe conferiu uma grande juventude. Parecia tão feliz como a jovem:

Bem, está combinado. Amanhã à noite mando-vos a liteira em questão. Os criados terão ordens para que vos junteis a mim lá para o fim da manhã na basílica de Saint-Martin, onde desejo orar antes de partir. Tendes tempo para fazer os vossos preparativos.

Seguido de Fiora, o prelado dirigiu-se para o jardim onde a sua equipagem o esperava e entregou ao seu secretário a carta que lhe fora dada pela jovem. No momento de a deixar, ele baixou a voz para acrescentar:

Para a minha gente, sereis uma dama peregrina que deseja procurar recolhimento em Compostela, ou em Roma.

Não me queirais mal, monsenhor, por preferir Compostela. Roma não me deixou boas recordações...

Acrescento disse Léonarde, que não abandonara Fiora que Vossa Eminência terá sob a sua guarda duas damas peregrinas. Tenciono, também, fazer as minhas devoções. E espero que não haja qualquer inconveniente!

O seu olhar, cuja cor azul ingénua mantinha toda a frescura, desafiava quem tentasse opor-se ao seu projecto. Mas ninguém pensou nisso. Della Rovere sorriu-lhe e Fiora, pegando-lhe no braço, meteu-o no seu:

Já que vou viajar de liteira, sinto-me feliz por irdes comigo.

Foi mais difícil fazer compreender a Khatoun que não podia ir. A presença de uma asiática no cortejo de um príncipe da Igreja, juntamente com outras mulheres, arriscava-se a dar ao conjunto o ar de um harém, em vez de uma peregrinação.

Eu não fico fora muito tempo disse-lhe Fiora e preciso que alguém vele pelo meu pequeno Philippe...

Com efeito, Marcelline deixara la Rabaudière. O seu leite estava a secar e, por outro lado, o seu marido exigia a sua presença. Partira naquela mesma manhã para a sua aldeia de Savonnières com grandes suspiros e muitas lágrimas, porque trocava uma vida agradável e fácil pela existência dura de uma quinta, mas Fiora soubera consolá-la. A ama regressava mais rica do que partira, levando não apenas as roupas que lhe tinham sido oferecidas durante um ano, mas também roupa branca, provisões, a cruz de ouro que usava orgulhosamente ao pescoço e a bonita quantia que faria dela a camponesa mais rica da aldeia.

Khatoun assistira à sua partida com alívio. Ela e a ama tinham-se detestado desde o primeiro momento e a luta pela posse do bebé fora árdua. Como a natureza decidira a favor da jovem tártara, a originária de Tours decretara que a ”feiticeira amarela” lhe fizera azedar o leite. Acusação que Fiora refutou com todo o vigor.

Se me chegar semelhante disparate aos ouvidos disse ela com severidade saberei de onde veio e não queirais fazer de mim uma inimiga. Khatoun era escrava, sem dúvida, mas nunca foi tratada como tal. Crescemos juntas e ela salvou-me por duas vezes. Portanto, devo-lhe muito e eu nunca esqueço as minhas dívidas. Além disso, gosto muito dela...

Compreendendo que não ganhava nada em ser teimosa, Marcelline jurou, sobre o Livro das Horas aberto na imagem da Crucificação que Léonarde lhe colocou sob a mão sem dizer uma palavra mas com um olhar que não admitia réplica, nunca mais repetir a sua acusação. E separaram-se como as melhores amigas do mundo.

Quando a Senhora Condessa der uma irmã a messire Philippe, espero que me chame! disse Marcelline à guisa de conclusão.

Pensais ter mais filhos? Já tendes três, parece-me?

Sim, mas a minha mãe teve doze e o meu Colas quer ter muitos filhos para o ajudarem no campo.

Khatoun, agora senhora do terreno, acabou por compreender que, ao confiar-lhe o filho a meias com Péronnelle, Fiora dava mostras de confiar nela. A jovem cessou os seus protestos.

Em seguida, foi a vez de Florent. A ideia de ver a sua querida patroa abandonar de novo o seu domínio por um destino longínquo era-lhe insuportável. Sugeriu escoltá-la fazendo as vezes de escudeiro. Dessa vez, foi Léonarde que interveio:

Que faria ela com um escudeiro, quando vai viajar de liteira?

Mas, eu protegê-la-ia de maus encontros!

De maus encontros? Quando vamos na companhia de um núncio papal? Não sonheis, meu amigo! Além disso, se eu também vou é, unicamente, para velar por donna Fiora. E vós sabeis muito bem que, com a chegada das vindimas, Étienne precisa de vós.

Ele passava bem sem mim quando eu não estava cá! resmungou o rapaz. Então, Léonarde ofereceu-lhe o seu sorriso mais sardónico:

Eis o que conseguimos quando nos tornamos indispensáveis! declarou ela alegremente.

Na manhã de terça-feira, 8 de Setembro, dia da Natividade, Fiora e Léonarde deixaram a Casa das Pervincas numa das enormes carroças bem guarnecidas de almofadas, cortinas, colchões e manteletes de couro que permitiam um pouco de conforto durante os longos trajectos e enfrentar as piores intempéries. Dois possantes cavalos estavam-lhe atrelados e um grande diabo de grandes bigodes, respondendo pelo nome de Pompeo, mantinha-os seguros. O tempo estava um pouco fresco, mas prometia uma jornada ensolarada, propícia à viagem. No entanto, quando o pesado veículo começou a andar, Léonarde esboçou uma careta e resmungou entredentes:

Pergunto a mim próprio se não estaremos a fazer uma asneira.

Uma asneira? protestou Fiora. Quando vamos tirar Philippe de uma situação penosa? Sois capaz de o imaginar naquele convento sem saber quem é e de onde vem? Entregue à boa vontade daqueles monges que, se calhar, não são todos santos?

Não sabemos ao certo se é ele...

Estou de acordo, mas confessai que as coincidências são perturbadoras. Temeis que eu apanhe uma desilusão?

Talvez...

Ora, ficai descansada. Eu estou preparada e acho que vale mais fazer esta viagem para nada do que ficar aqui e abandonar Philippe a um destino de que ninguém o poderá libertar.

A serenidade pura da jovem era reconfortante e Léonarde não disse mais nada, mas a velha solteirona não conseguia deixar de se sentir intranquila. O cardeal della Rovere era a causa principal da sua inquietação: não conseguia confiar totalmente nele. Léonarde reprovava-se a si própria porque se tratava do sobrinho do Santo Padre, mas o relato das aventuras vividas por Fiora na Cidade Eterna tinha-a chocado profundamente. A piedade profunda, a fé total e o amor sincero que votava a Deus, a Nossa Senhora e a Cristo não tinham sido abalados, mas, no entanto, deplorava do fundo do seu coração que Roma e o seu príncipe nem sequer fossem capazes de inspirar respeito.

Evidentemente, ela não ignorava que, ao longo dos séculos, houvera pontífices mais ou menos discutíveis, mas aquele antigo monge que, ao pôr na cabeça a Trirregno, só pensava em enriquecer escandalosamente a sua numerosa família e não hesitava em declarar uma guerra para espoliar Lourenço de Médicis após ter tentado assassiná-lo, não tinha qualquer direito à consideração dos fiéis e, sobretudo, à sua. Tudo o que dizia respeito a Roma era, doravante, para ela, questão de desconfiança e o amável cardeal não escapava a esse julgamento definitivo.

Como fora combinado, juntaram-se a ele no adro da colegial de Saint-Martin, ocupado na sua totalidade pela sua faustosa comitiva. As duas mulheres desceram da viatura para ouvir missa, rezar por alguns instantes no túmulo do santo e depois dispuseram-se a abandonar Tours no meio de um grande ajuntamento de povo que aclamava o ilustre estrangeiro. Cavalgando orgulhosamente um soberbo corcel negro, sobre a garupa do qual se estendia com magnificência a sua samarra púrpura, Giuliano della Rovere distribuía bênçãos, ao mesmo tempo que os seus servidores abriam alas em seu nome. Com as suas carruagens, os seus secretários, os seus servos, os seus cavalos e mulas, os seus guardas e as suas carroças com as bagagens, a comitiva do núncio era considerável e quando a cabeça atingiu os muros da cidade, ainda a cauda estava a sair do adro. A viatura com as duas mulheres tomou lugar quase no fim, um pouco antes dos domésticos e das carroças transportando o mobiliário e as bagagens, porque não era conveniente que duas mulheres viajassem perto dos eclesiásticos. Junto delas, um punhado de peregrinos a caminho da Provença e autorizado a aproveitar uma companhia tão augusta, pôs-se em marcha em montadas variadas ou a pé...

Através da grande rue de la Scellerie, passaram diante do convento dos Agostinhos e do dos Franciscanos, nos quais todos os monges estavam de joelhos na poeira para se fazerem abençoar,

A coroa tripla que o Papa recebe no dia da sua coroação.


atingiram o burgo de Areis e a porta de Saint-Étienne, defendida por uma poderosa bastilha virada a sul.

Passado o subúrbio do mesmo nome, as ”Pontes Grandes” que cruzavam o Cher e numerosos pântanos formados por antigos braços de rio, a longa fila atingiu Saint-Avertin e começou a subir ao longo das vertentes cobertas de vinhedos onde os vindimadores já trabalhavam. Após um Verão quente, as uvas estavam maduras: algumas jovens de pernas nuas ofereceram ao cardeal um cesto cheio delas. Este recompensou-as com algumas moedas de prata que lhe valeram mais algumas aclamações.

Se paramos de cinco em cinco minutos, nunca mais lá chegamos! resmungou Léonarde. E quanto nos falta ainda percorrer? Cento e setenta, cento e oitenta léguas?

Se conseguirmos fazer dez por dia, chegamos lá dentro de três semanas. Evidentemente, iríamos mais depressa a cavalo, mas parece-me que vós não guardais boas recordações dessa maneira de viajar! disse Fiora com um sorriso. Para vos consolardes, pensai em todas as abadias onde faremos etapa! Ides poder rezar a quase todos os santos de França!

No entanto, quando, a meio do dia, ela viu aparecer os altos telhados da abadia de Cormery, onde o prior, em hábito de cerimónia e de cruz na mão, esperava o cardeal rodeado de um enxame de beneditinos, a jovem não pôde evitar um suspiro. Parar todas as noites num convento não tinha nada de aflitivo, mas se, por outro lado, era preciso visitar todas as casas religiosas que encontravam, as três semanas arriscavam-se a transformar-se em dois ou três meses. E Léonarde começava a ficar impaciente.

Enquanto, diante do portal da igreja, se trocavam saudações, genuflexões, beija-mãos e outras demonstrações de civismo, ela interrogou o seu cocheiro. Saberia ele onde tencionava o cardeal passar a noite? O homem respondeu que seria em Loches. O trajecto do dia não seria, portanto, de dez léguas e, provavelmente, nem disso se aproximaria, porque a paragem em Cormery arriscava-se a ser longa.

Com efeito, já o Sol desaparecia quando atingiram a floresta de Loches, para lá da qual se erguia a cidade real e o poderoso castelo que inspirava tanto temor justificado aos inimigos do soberano. Para Fiora, aquele nome fazia-a evocar frei Inácio Ortega, que a perseguira com um ódio inexplicável e ali morrera, assim como o escudeiro e amigo de Philippe, Mathieu de Prame que, esse, tivera a sorte de sair dele vivo... Mas, para ir para onde?

Resignada, Fiora dormitava no ninho que preparara entre as almofadas, enquanto, junto de si, Léonarde rezava o terço. O caminho pela floresta era suave e os solavancos não eram muitos. A seguir à viatura os peregrinos cantavam, talvez para darem coragem a si próprios, porque a sombra verde das árvores estava a ficar cinzenta e o matagal parecia ficar mais denso à medida que avançavam. Deixaram de ouvir as aves e a opressão natural, para quem viaja pela floresta ao crepúsculo, envolveu o cortejo.

Subitamente, numa curva do caminho, um solavanco projectou as duas mulheres uma contra a outra, ao mesmo tempo que a liteira ganhava velocidade. No entanto, o caminho era bastante mais rude e as rodas do veículo iam de um trilho ao outro. Arrancada às suas orações, Léonarde espreitou para o exterior:

Que se passa? gritou ela para o cocheiro, mas este não respondeu.

Pelo contrário, o homem chicoteou os cavalos para que eles corressem ainda mais depressa.

Ele vai-nos matar! disse Léonarde mas isso não é o pior. Nós já não estamos no cortejo.

Por sua vez, Fiora também espreitou. De facto, não havia ninguém à frente, nem atrás. Nada, se não um estreito carreiro que corria por entre massas negras de árvores, no qual a carroça corria à desfilada. As duas mulheres olharam uma para a outra aterrorizadas, invadidas pelo mesmo pensamento: tinham-lhes estendido uma armadilha, que estava em vias de se fechar sobre elas...

Com todas as suas forças, Fiora ordenou a Pompeo, em italiano, que parasse, mas o cocheiro respondeu com um grunhido e um novo estalar do chicote. Por um instante, a jovem pensou em abrir a portinhola e atirar-se para o solo, mas a viatura ia demasiado depressa e, de qualquer maneira, Léonarde não poderia imitá-la sem se magoar. Além disso, a floresta de ambos os lados daquele carreiro parecia animar-se. Surgiram umas sombras mais espessas e em breve quatro cavaleiros mascarados rodearam a equipagem que, no entanto, não abrandou o andamento.

Que Deus nos proteja! gemeu Léonarde. Receio que seja o nosso fim.

Fiora não respondeu. Uma violenta cólera preservava-a do medo. Como pudera ser tão estúpida, tão tola, para ter fé nas palavras de um sobrinho de Sisto IV? Como pudera acreditar que ele desejava ajudá-la?

Subitamente, o cocheiro deteve os cavalos com tanta brutalidade que as duas passageiras se viram de rojo no fundo da carroça. Quase ao mesmo tempo, a portinhola abriu-se e umas mãos, sem qualquer suavidade, apoderaram-se de Fiora e de Léonarde e puxaram-nas para fora. Então, elas viram que se encontravam numa clareira vagamente iluminada pela última luz do dia. Nela encontravam-se cinco ou seis homens vestidos de escuro e era impossível distinguir-lhes as feições. Dois de entre eles, apoiados em pás, mantinham-se ao lado de um grande buraco mais comprido do que largo que tinham, sem dúvida, acabado de abrir.

Foi para diante do buraco que arrastaram as duas infelizes e ambas compreenderam de imediato que ele fora aberto em sua intenção. Aquela gente estava ali para as assassinar.

Quem sois vós? Que quereis? exclamou Fiora.

Aquele que parecia o chefe nem se deu ao trabalho de responder. Avançando à luz dançante de um archote que um dos seus companheiros acabava de acender, atirou uma bolsa ao cocheiro que ele apanhou em voo e apontou para o carreiro, quase invisível, à sua direita:

Bom trabalho, amigo! Vai por ali! Apanhas o cortejo antes de Loches...

Pompeo virou os cavalos. A atrelagem desapareceu instantaneamente, engolida pela noite e pelos ramos baixos. O homem esperou que o barulho se apagasse e virou-se para aquelas que iam, sem dúvida, ser as suas vítimas e que eram mantidas imóveis por quatro dos seus companheiros. Fiora debatia-se furiosamente, mas Léonarde, atingida por aquele golpe inesperado, deixara-se cair de joelhos na terra húmida e rezava, não esperando mais nada senão o golpe fatal.

Com um golpe brutal, o chefe arrancou o véu que envolvia a cabeça de Fiora.

Tinha pensado enterrar-vos vivas disse ele mas eu não sou um homem cruel. Primeiro, vamos degolar-vos e este véu, manchado com o vosso sangue, será uma boa prova de que fiz bem o meu trabalho.

Para quem é esse trabalho? lançou Fiora Não me ides dizer que é para o Rei? Acredito, antes, que ele vos fará pagar bem caro quando souber...

Ele não saberá nada. Vós ides desaparecer sem deixar rasto.

Antes de morrer, gostaria, pelo menos, de saber quem me mata! O Papa? É o cardeal que vos paga?

Esse também não sabe mais do que vós. Tudo o que lhe pediram foi que vos trouxesse com ele.

”Pediram”? Quem?

Isso não vos interessa! Devíeis, antes, fazer como a vossa companheira e fazer as pazes com o Céu. Dou-vos um instante para rezardes uma oração.

Um dos bandidos aproximou-se:

E se despachássemos a outra, entretanto?

Boa ideia! Já deve estar pronta. Já rezou o suficiente.

Deixai-me, ao menos, abraçá-la! gritou Fiora, desesperada.

Parece-me inútil. Ides poder abraçá-la quanto quiserdes dentro daquele buraco...

CAPÍTULO VI NO RASTO DE UMA SOMBRA

Léonarde! uivou Fiora. Perdoai-me! Respondeu-lhe um grito de dor. O homem que se propusera matar a velha solteirona acabava de lhe arrancar a coifa e segurava-a pelos cabelos, puxando-os selvaticamente para a obrigar a erguer a cabeça e desimpedir a garganta que ia cortar. Mas não teve tempo de lhe aproximar a faca da pele. Partida da sombra, uma flecha atravessou-lhe o pescoço e ele desabou sobre Léonarde. Ao mesmo tempo, uns cavaleiros rodeavam a clareira. A luz incerta do archote fez luzir as cotas de malha por baixo das meias couraças e dos capacetes de ferro. Soou uma voz rouca:

Em nome do Rei! Agarrai essa gente e enforcai-a imediatamente naquela grande árvore!

Ficai, pelo menos, com dois, messire grande preboste! Para ouvirmos o que têm a dizer.

Sem esperar pela resposta, Douglas Mortimer saltou do seu cavalo e correu para Fiora que, sem força nas pernas, se deixara cair de joelhos quando os braços que a seguravam a tinham largado. O escocês ergueu-a com uma mão vigorosa sem que ela fizesse nada para o ajudar. Com as pupilas cinzentas extremamente dilatadas, ela olhava para ele com uma espécie de espanto, como se, em vez de um sólido escocês, ele fosse o luminoso representante de uma qualquer corte angelical...

Tudo bem? perguntou ele com sobriedade quando conseguiu que ela se aguentasse nas pernas.

Creio que... sim. Oh, Mortimer! Começo a acreditar que vós sois uma espécie de anjo-da-guarda para mim... mas, que significa isto tudo?

Eu explico-vos, mas, antes, devo dizer-vos que nunca tive tanto medo! Cheguei a pensar que não chegaríamos a tempo...

Em seguida, sem se preocupar mais com ela, virou-se para Léonarde. Esta estava a ser ajudada por um guarda do preboste, que a desembaraçava do corpo que lhe caíra em cima e o atirava directamente para o buraco. Fiora juntou-se a ele de imediato e não pôde conter um grito de horror. Coberta de sangue, a pobre mulher oferecia uma imagem assustadora. Mas, já recomposta das suas emoções, Léonarde sibilava como um gato enraivecido:

Onde é que há água? Eu não posso ficar assim! Este sangue pegajoso...

Ainda bem que não é o vosso observou Mortimer. Vinde, há ali um pequeno regato.

Os guardas tinham acendido uns archotes e a clareira ficou suficientemente iluminada para que todos pudessem apreciar o dramático espectáculo que ali se desenrolava. Os bandidos, despojados, um após outro, das máscaras, foram atirados, de joelhos, para diante daquele a quem o escocês chamara o grande preboste.

Era um homem de idade, de rosto duro, ornamentado com um bigode e uma curta barba branca. Os anos não pareciam ter tirado vigor ao seu corpo magro: este suportava com facilidade o peso da armadura que vestia com excepção do elmo, substituído por um capelo negro onde brilhava uma grande medalha de prata. Como todos os homens demasiado grandes, inclinava-se um pouco sobre o cavalo que manejava, aliás, com destreza. Ao serviço de Luís XI desde a adolescência, quando este ainda não passava de delfim, Tristan l’Hermite, na sua primeira juventude escudeiro do condestável Richemond e depois preboste dos sargentos, encarnava, aos olhos dos súbditos do Rei, a imagem de uma justiça severa, frequentemente expeditiva mas raramente ilegítima, que inspirava nos vagabundos de toda a espécie um temor saudável. Dedicado ao Rei como um cão de caça ao seu dono, aquele homem silencioso e naturalmente taciturno ignorava tanto a fadiga como a piedade e todos os criminosos podiam ter a certeza de que ele os perseguiria até à sua expiação. Do fundo das suas órbitas cavadas, cujas sobrancelhas espessas acentuavam a fundura, pousava nos homens um olhar cinzento tão duro como o granito.

Os seus homens obedeciam-lhe com extrema prontidão e, num instante, uma meia dúzia de bandidos que ele, aliás, reconhecera e chamara pelo nome, balançava nos ramos de um velho carvalho. Os seus gritos e súplicas nem sequer fizeram pestanejar o impassível justiceiro. Apenas o chefe, que respondia, aparentemente, pelo nome poético de Tordgoule, vivia ainda e esperava o seu destino de joelhos e em camisa junto das pernas do cavalo de Tristan L’Hermite. Um dos soldados, de pé a seu lado, segurava na mão a ponta da corda que lhe tinham passado pelo pescoço...

Enquanto ajudava Léonarde a lavar-se o melhor possível no pequeno regato, Fiora não podia deixar de observar com algum temor aquela estátua de ferro que, para além da ordem inicial, ainda não tinha articulado uma palavra.

Mas quando o último corpo foi precipitado no vazio, o grande preboste manobrou lentamente a sua montada de maneira a manter Tordgoule sob o seu olhar:

Agora é a tua vez! Quem te deu ordem para matar estas duas mulheres?

Não sei, monsenhor! Não o conheço, juro-vos!

A sério?

A um simples gesto do preboste, um dos seus homens aproximou-se com um archote, ao mesmo tempo que dois outros se apoderavam do miserável e o deitavam na erva. A chama aproximou-se o suficiente dos seus pés nus para desencadear um uivo desesperado:

Nãããããããão!

Então, fala!

Pela minha vida... eterna... juro... que estou a dizer a verdade... Um homem mascarado foi ver-me... antes de ontem... na taberna... perto do matadouro de Areis...

Um novo uivo rasgou a noite e Fiora tapou as orelhas:

É preciso mesmo fazer isso? perguntou ela.

Este homem queria degolar-vos, a vós e à dama Léonarde

disse Mortimer com um encolher de ombros um tudo nada desdenhoso. Acho-vos um tanto sensível.

O supliciado, para tentar comover o seu algoz, tomou como testemunhas todos os santos do Paraíso e jurou que não podia acrescentar nada ao que já tinha dito: o homem mascarado entregara-lhe uma bela soma em ouro e prometera outro tanto uma vez a obra acabada. Deveriam esperar, naquela clareira, ao anoitecer, uma certa carroça contendo duas mulheres. Antes, deveriam abrir uma fossa suficientemente grande para conter dois corpos e enterrar nela as duas mulheres. Tordgoule daria uma bolsa ao cocheiro e regressaria a Tours para receber o resto do combinado.

Um violento agitar de vegetação e um galope vindo do interior da floresta interromperam a confissão entrecortada do homem: os guardas do grande preboste traziam de volta a carroça que tinham detido antes que ela tivesse atingido a estrada de Loches e a caravana do núncio. Um soldado conduzia os cavalos e Pompeo, solidamente amarrado, foi tirado da viatura sem qualquer suavidade e atirado para diante do grande preboste. A bolsa que recebera uns momentos antes juntou-se às dos vagabundos, formando um pequeno montículo na erva.

Como o homem parecesse não compreender as perguntas que L’Hermite lhe fazia, Tordgoule encarregou-se da tradução sem esperar que uma das duas damas fosse requisitada como intérprete.

Eu tinha ordens para travar conhecimento rapidamente com um dos palafreneiros, ou dos cocheiros do cardeal para combinarmos as coisas, mas já conhecia esse aí. A ideia de ganhar um pouco de ouro agradou-lhe de imediato. Ainda por cima porque não haveria qualquer perigo... Bastaria fazer um desvio e regressar, depois, à escolta. Ao anoitecer, ninguém veria grande coisa...

Pára de fazer troça de nós, amigo interveio Mortimer.

O núncio não acharia estranho que, ao chegar a Loches, a carruagem das damas estivesse vazia?

O escocês desembainhara a sua espada e apoiava a ponta na garganta de Pompeo que, de má vontade, mas porque acabava de ver a sua morte nos olhos daquele gigante, acabou por responder:

Seria fácil. Eu deveria dizer que as damas, tendo encontrado amigos em Cormery, tinham decidido não voltar a partir. Eu deveria agradecer muito em nome delas e...

E guardar o conteúdo da viatura? Ou o teu senhor é cúmplice deste golpe sujo, ou é um imbecil. O que me custa a acreditar...

Juro que não sei nada disse o outro sombriamente. Ele é um homem de Deus, um verdadeiro príncipe da Igreja...

Temos de esclarecer isto, messire Tristan continuou o escocês, retirando a espada e fazendo sinal para afastarem o prisioneiro. O cardeal está em Loches a esta hora. Devíeis fazer-lhe umas perguntas...

É essa a minha intenção. Suponho que levais vós as damas para sua casa?

Se elas se sentirem com coragem. Se não, elas podem pedir asilo por uma noite na abadia de Cormery. O Rei dá para lá dinheiro suficiente para que os seus servidores e os seus amigos sejam recebidos convenientemente.

Creio disse Fiora que é melhor escolhermos Cormery. A minha querida Léonarde já não pode mais e eu confesso que apreciaria um pouco de repouso.

Avançando até ao flanco do cavalo do grande preboste, ela estendeu-lhe uma mão que ainda tremia um pouco:

Muito obrigada, messire! Ignoro, ainda, por que milagre nos pudestes salvar, mas podeis estar certo que nunca mais o esquecerei e que direi ao Rei...

Vós não direis nada ao Rei, Madame!

Num movimento de uma rapidez e ligeireza inesperadas num homem daquela idade, Tristan L’Hermite pusera pé em terra para poder saudar a jovem:

Como? disse Fiora.

Se adquiri alguns direitos com o vosso reconhecimento, Madame, peço-vos a graça, mais por vós do que por nós, de não dizerdes nada ao nosso sire sobre o que aconteceu aqui esta noite.

Mas... porquê?

Mortimer interveio:

Ele tem razão, as verdades nem sempre se podem dizer. Se aquele em quem ambos pensamos está na origem desta maquinação, não seremos ouvidos, o Rei recusará acreditar em nós...

Sim cortou Tristan I’Hermite precisamos de provas...

Provas? conseguiu dizer Fiora, que quase sufocou. Mas, faltam algumas nesta clareira? Tendes esses dois homens! E o que vos poderá dizer o cardeal. E tendes a minha palavra, enfim, e a da dama Léonarde!

Fizestes bem em mencionar as vossas pessoas em último lugar disse Mortimer um tanto ambiguamente. Sois precisamente vós as que contarão menos. As mulheres, para o Rei Luís, são palradoras incuráveis, dotadas de uma imaginação diabólica... e a personagem pertence ao seu séquito.

Vós achais que... começou Fiora, que acabava de ter uma ideia. Mas o grande preboste impôs-lhe silêncio:

Nada de nomes, Madame! Deixai-me tratar deste assunto à minha maneira e recebei as minhas saudações. Quereis um dos meus homens para vos acompanhar?

É inútil! disse Mortimer. Eu encarrego-me... e agradeço-vos por terdes acreditado em mim, messire grande preboste! E também por me terdes ajudado.

A sombra de um sorriso distendeu fugitivamente o rosto severo de Tristan l’Hermite.

Não fiz mais do que cumprir os deveres do meu cargo, jovem, mas confesso que sou sensível à amizade. Em tempos... há muito tempo, dediquei-me, tal como vós, ao serviço de uma dama... muito bela!

Vós, messire? Uma dama? murmurou Mortimer, sinceramente espantado.

Surpreende-vos, não é? O grande justiceiro, o senhor dos carcereiros, da polícia, dos carrascos? Ela chamava-se Catarina de... mas ficai descansado! Não era eu que a amava. Mas, agora, parti! Ver-vos-ei de novo em Plessis!

Douglas Mortimer ajudou Léonarde e Fiora a subirem de novo para a viatura e depois, após ter prendido o seu cavalo na traseira do veículo, saltou para a boleia. Enquanto o escocês virava pesadamente a pesada carroça para retomar o caminho já percorrido, Fiora lançou um último olhar à clareira onde a fossa ainda aberta guardava os vestígios do horror que ela e Léonarde acabavam de viver. Dois soldados estavam a tapá-la No meio do duplo círculo de archotes e armaduras, Tristan l’Hermite, de novo na sua sela, observava-os, tão imóvel como uma estátua equestre. Junto dos cascos do seu cavalo, Pompeo e o outro bandido tremiam e choravam, mas ela não sentiu qualquer piedade. O seu espírito e o seu coração estavam gelados. A jovem nem sequer sentia o medo retrospectivo. Tudo o que povoava o seu espírito era uma imensa decepção. O sonho acariciado há três dias, a esperança de reencontrar Philippe, mesmo doente, mesmo inconsciente e de o levar para junto do seu filho, acabava de se transformar numa sinistra decepção. Tinham-na enganado e agora regressava a casa com a alma cheia de amargura e as mãos vazias...

Serei assim tão pobre de espírito, ao ponto de me poderem enganar com tanta facilidade? murmurou ela sem se dar conta de que acabava de pensar em voz alta.

É evidente que não respondeu Léonarde cuja mão procurou a sua mas tudo que diga respeito ao vosso coração atinge o seu objectivo. E vós quereis tanto encontrar Messire Philippe!

Reprovais-mo?

Eu? Deus é testemunha! Sabeis muito bem que o meu maior desejo é ver-vos, enfim, feliz. Mas não consigo compreender como aquele homem pôde saber que o vosso marido se evadiu de Lyon.

Aquele homem? Quereis dizer, o cardeal?

Sim, infelizmente! suspirou a velha solteirona. Não consigo deslindar o papel dele nesta armadilha infame.

Segundo os seus cúmplices, ele não sabia de nada, ou quase nada. O que é difícil de acreditar...

De qualquer maneira, não possuímos nenhuma resposta válida para essa pergunta, nem para algumas outras, aliás. O jovem Mortimer poderá dar-nos algumas e pode ser que aquele Tristan L’Hermite consiga que monsenhor della Rovere confesse!

Achais que sim?

Parece possível, porque ele é um homem terrível. Além disso, em Loches, ele deve dispor dos meios suficientes para o fazer falar.

Perdestes a cabeça, Léonarde? murmurou Fiora, espantada. Não imaginais que ele seria capaz de ameaçar com a prisão um príncipe da Igreja, ou até...

Léonarde abriu-se num grande sorriso:

A tortura? Por que não? As relações entre o Rei e o Papa, já de si más, não perderiam grande coisa. E podeis crer acrescentou ela com um suspiro pleno de satisfação que ele é homem para isso.

E... isso dar-vos-ia prazer? ”

Não imaginais até que ponto.

O que não impediu a velha solteirona, uma vez instalada na cela que o irmão hospedeiro ofereceu aos viajantes na casa de hóspedes de Cormery, de se ajoelhar junto da sua estreita cama para uma longa e profunda oração. Na simplicidade do seu coração, Léonarde acreditava que as ovelhas ronhosas podiam infiltrar-se no santo rebanho da Igreja e que Deus não podia, com toda a justiça, ser responsável pelos crimes dos seus servidores.

Única consolação da triste aventura: o regresso à Casa das Pervincas foi saudado com um entusiasmo que reconfortou o coração de Fiora e depois com uma viva indignação quando se soube a verdade, o que alegrou o de Léonarde. No entanto, a verdade só apareceu com toda a evidência quando, dois dias depois do regresso, Douglas Mortimer se apresentou para jantar em la Rabaudière.

Enquanto limpava um após outro os pratos e as terrinas com um trabalho lento, implacável e metódico das mandíbulas, o escocês contou como se achara nomeado para a floresta de Loches para ali subtrair as suas amigas ao seu trágico destino:

Na noite daquele famoso jantar, vi mestre Olivier le Daim em conversação com o cardeal, conversação essa que até podia ser inocente, porque o nosso homem tinha todo o ar de uma profunda piedade. Parecia pedir ao prelado a sua protecção para adquirir indulgências. Inclinava-se, persignava-se, agitava-se, fazia toda a espécie de momices. Percebeis o que quero dizer?

Completamente! disse Fiora.

Simplesmente, eu, as conversas inocentes de mestre Olivier, não acredito nelas e depois de vos ter trazido a casa, pusme a espiá-lo. Essa missão não era muito difícil, porque ele nunca está livre dos seus deveres antes de o Rei se deitar. Até tive tempo de vestir roupas negras antes de me colocar à espera no lado de fora das muralhas. Então, vi-o sair por uma poterna montado numa mula e dirigir-se para Tours. Segui-o até uma taberna à borda-d’água. Era preciso saber que era ele, porque levava um grande manto, um capuz enfiado até às orelhas e uma máscara, mas, àquela peça, sou capaz de o farejar sob que disfarce for, nem que ele estivesse vestido de cónego, coisa que faz muitas vezes. Mas, desta vez, estava fora de questão brincar aos homens da Igreja, dado o objectivo do seu passeio... Bebia mais um pouco desse vinho de Beaune, dama Péronnelle! É espantoso como o falar faz sede.

Morta a dita sede, Mortimer recomeçou o seu relato:

Sempre seguindo-o, vi-o entrar numa taberna na margem do rio onde se encontra o mais belo sortido de malfeitores e ali chegar à fala com aquele Tordgoule, sobre o qual não vos direi mais nada... senão que, de facto, não parecia saber com quem estava a falar.

Como percebestes isso?

Por uma certa maneira de ser. O malandro mostrava uma desconfiança tal que Daim teve de tirar ouro da algibeira para o convencer. E é sempre perigoso fazer brilhar o metal amarelo num tal local. Os dois saíram juntos e perderam-se na noite de tal maneira que não fui capaz de os encontrar. Então, fui a casa do grande preboste para lhe dizer o que tinha visto...

Em plena noite?

Ele é um homem que não dorme muito! Disse-lhe que estava a pensar em falar ao Rei, mas ele dissuadiu-me. Primeiro, porque eu não testemunhara nenhuma ofensa grave. Depois, por causa da confiança cega que o nosso sire tem no seu barbeiro. Este, claro, ia deixar Plessis com ele e como era suposto deixar no castelo uma companhia da Guarda, pedi para tambem ficar com o pretexto de que não me sentia bem. O que fez rir o Rei...

Rir?

A bandeiras despregadas. Quase sufocava.

A que propósito, essa alegria toda?

Bem... ha... ele achou que o meu mal não era muito grave e que... vós éreis a origem e o... enfim... Quando ele parou de rir, disse-me: Por Deus, Mortimer, acabais de me fazer passar um bom bocado! Mas não repitais! Eu não vou estar ausente muito tempo e é por isso que quero que fiqueis, desta vez... Vós estais ao meu serviço, não ao das damas!

Vermelho como um lagostim bem cozido, o pobre homem não ousava olhar de frente para Fiora e teve, para recobrar a calma, de engolir de um trago duas taças de vinho que, coisa estranha, lhe devolveram a cor normal...

Seja como for, como Tristan L’Hermite se encarregou de vigiar Tordgoule, eu atrelei-me ao cardeal. Quando vi que vos enviava uma viatura, compreendi que se passava algo de bizarro. Passei a noite no vosso bosque e, depois da vossa partida, interroguei a menina Khatoun e a dama Péronnelle.

Fiora saltou, literalmente e com tanta energia que quase ia virando a mesa:

Que bela maneira de fazer as coisas! Por que é que, em vez de vos esconderdes, não fostes ter comigo? Ter-vos-ia dito o que contava fazer!

Não duvido nem por um só instante, mas ter-me-íeis escutado se vos tivesse aconselhado a não partir?

É evidente que não! resmungou Léonarde, que ainda não dissera duas palavras desde o início da refeição. Nada a teria detido... Por que pensais vós acrescentou ela que me atirei, constipada como estou, para os maus caminhos deste belo reino de França?

Estou a ver concluiu Fiora, sentando-se de novo. E depois?

Foi simples. Juntei-me a vós à saída de Tours e segui-vos de longe. Nunca uma viagem me aborreceu tanto! Vá-se lá perceber como se pode andar com tanta lentidão! Aquilo fez-me lembrar...

O escocês interrompeu-se para lançar a Léonarde um olhar perplexo que a fez rir:

Acabai o vosso pensamento! Fez-vos lembrar aquela deliciosa viagem que fizemos juntos quando me conduzistes a Nancy para junto do duque de Borgonha!

Um pouco! Regressando àquele maldito dia, ia falhando quase tudo porque o grande preboste atrasou-se e eu tive de esperar por ele.

E vós contáveis seguir-nos durante muito tempo?

Tínhamos a certeza de que não seria necessário. Tordgoule não gosta de se afastar de Tours onde vive mais ou menos tranquilamente, ao passo que deixou, através do reino, algumas recordações embaraçosas. Precisava de agir com rapidez.

Não teria sido mais simples continuou Léonarde prender aquela gente antes de se atirarem a nós?

O grande preboste é um justiceiro rude, mas precisa, pelo menos, de um começo de prova. Ele queria apanhar os malandros com a boca na botija, se assim posso dizer. Acrescento que ele esperava que a tortura lhe permitisse apanhar Olivier le Daim, que detesta. L’Hermite sonha com a possibilidade de o acusar abertamente de uma perversidade diante do Rei, mas eu não sei se esse sonho alguma vez se realizará. No cavalete, Tordgoule não disse nome nenhum pela simples razão de que ignorava o do seu cliente. Foi enforcado sem nos dizer nada. Quanto ao cocheiro Pompeo, o cardeal mandou-o abater em frente de Messire Tristan.

Que cómodo! disse Fiora com uma risadinha. Foi a melhor maneira de o calar para sempre! Gostaria de saber qual terá sido a explicação que ele deu ao grande preboste...

Nenhuma! Um príncipe da Igreja não se rebaixa a dar explicações a um homem da polícia. Mas pode ser que diga alguma coisa dentro disto.

E, desapertando o gibão de veludo azul, Mortimer tirou uma carta com um grande selo escarlate, que estendeu a Fiora por debaixo da mesa.

É para mim? perguntou esta.

É claro. O cardeal enviou-a a messire Tristan, que ma enviou nessa mesma noite. Essa missiva deve estar cheia de belas frases chorosas e floridas... E estão escritas pela própria mão de Sua Eminência.

Sem responder, Fiora quebrou o selo e desdobrou a grande folha estaladiça onde se via uma letra alta, ao mesmo tempo elegante e vigorosa. O texto, para dizer a verdade, era curto. Exprimindo-se num toscano de grande pureza, Giuliano della Rovere afirmava a sua completa ignorância acerca da armadilha infame para a qual, sem querer, arrastara Fiora e a sua acompanhante. Por outro lado, não mentira quando contara a história do evadido do Ródano, Fiora podia certificá-lo através de uma carta enviada ao prior do convento, na qual ele mencionava o seu nome. Ele próprio ligara os factos pelo que ouvira em Plessis acerca daquele conde de Selongey de quem muito se falara, naturalmente, em Roma, no séquito do Papa. E terminava dizendo-se pronto a ajudar em tudo o que pudesse uma jovem dama cujo encanto e grande nobreza pudera apreciar.

Mesmo assim, não ousou dar-vos a bênção resmungou Léonarde, que se apoderara da epístola cardinalícia quando Fiora a deixara cair em cima da mesa, mas ninguém se fez eco dela.

Mortimer partia amêndoas enquanto olhava para Fiora, mas Fiora não olhava para nada... Com o olhar perdido na verdura do jardim que a janela aberta enquadrava como se fosse uma tapeçaria preciosa, a jovem esqueceu o seu hóspede, o local onde estava e o tempo. Um só pensamento naquela fina cabeça que a terra quase engolira pouco tempo antes: a história do homem encontrado entre os caniços por monges pescadores do convento era verdadeira e, sem o ódio de um barbeiro ávido que ela apenas entrevira, já estaria longe, na estrada da Provença...

Perdida no seu sonho, a jovem não viu os olhos de Léonarde encherem-se de lágrimas. Apenas Mortimer se apercebeu e, cobrindo com a sua grande mão os dedos magros da velha solteirona, apertou-os docemente sem dizer nada, mas com um sorriso que se queria encorajador.

O escocês deixou a casa pouco depois. Fiora parecia desinteressada da sua presença, mas quando, à porta, ele a saudou, ela ofereceu-lhe um sorriso tão quente que dissipou o ligeiro mal-estar que se apoderara dele perante a atitude da sua anfitriã.

Ides juntar-vos ao Rei? perguntou ela.

Não. Ele regressa dentro de um mês. Aproxima-se o Inverno e eu vou levar, no castelo, uma existência tranquila de guarnição, que me permitirá visitar-vos mais vezes. Se desejardes caçar, o Rei não vê nisso nenhum inconveniente...

Caçar? Oh não! Desde que matei um homem com as minhas mãos que não suporto a ideia de matar.

Que hipocrisia! disse Léonarde. Nunca vos vi recusar os pratos de coelho, ou as perdizes de Péronnelle. É preciso matar caça para isso!

Sem dúvida, mas não eu. O sangue faz-me horror. Já vi demasiado...

Partido Mortimer, Fiora felicitou Péronnelle por aquela refeição tão conseguida e subiu rapidamente para o seu quarto após ter pedido a Léonarde que lhe fosse buscar Florent.

A esta hora? protestou ela. Que lhe quereis?

Preciso de falar com ele. Sede gentil: ide buscá-lo. Com o olhar cheio de suspeita, Léonarde desapareceu tão depressa quanto lhe permitiam as suas pernas. Quando regressou e entrou, seguida do jovem, no quarto de Fiora, compreendeu que não se enganara sobre as suas intenções. Sob o olhar de Khatoun que, deslumbrada, a ajudava com mãos moles, a jovem metia algumas roupas e objectos de primeira necessidade em sacolas de viagem. Sobre uma mesa, ao lado da pequena caixa onde guardava as jóias e o dinheiro, uma bolsa bem cheia mostrava quais eram as disposições de Fiora.

Eu sabia! exclamou Léonarde, indignada. Ides partir de novo!

Fiora virou-se para ela e envolveu-a num olhar tão sério que a pobre mulher sentiu que não conseguiria nada e que o ”seu cordeiro” estava firmemente decidido.

Sim. Vou partir. E desta vez a cavalo, para ir mais depressa.

Quereis ir ter com o cardeal? Mas isso é uma loucura! Ainda não tendes a vossa conta de emboscadas?

Eu não vou ter com ele. Tenho intenção de o alcançar, sem dúvida, mas também de o ultrapassar sem me mostrar. Não confio inteiramente nele...

1 Ver Fiora e Carlos, o Temerário.


E a parte em que confiais é por causa de Villeneuve-Saint-André? Mas, por que quereis ir lá, quando vos basta escrever?

O abade, pode, de facto, confirmar o relato do cardeal, mas não me pode descrever o homem que perdeu a memória. Tenho de ir, compreendeis? Florent vai comigo, se quiser, evidentemente...

Se quiser? exclamou o jovem cujo rosto se iluminou como se o Sol acabasse de perfurar a noite, despejando sobre ele os seus raios. Dai as vossas ordens, donna Fiora! Estará tudo pronto de madrugada...

As ordens são simples: dois cavalos robustos, capazes de cobrir longas etapas. Não quereis uma montada para as bagagens?

Não. Não podemos ir atulhados e eu conto ir vestida de homem. E agora ide dormir. Partiremos ao amanhecer.

Fiora não ousava olhar para Léonarde. Como ela não dizia nada, a jovem pensou que a velha solteirona se abandonava ao desgosto, que teria de enfrentar as suas lágrimas, mas quando, por fim, procurou os seus olhos para lhe oferecer alguma consolação, Léonarde, longe de chorar, lançou-lhe um olhar furibundo e abandonou o quarto, batendo com a porta. O bater de uma outra porta, quase imediatamente a seguir, disse a Fiora que a sua companheira entrara no seu quarto. Khatoun quis ir ter com ela para a apaziguar, mas Fiora reteve-a:

Deixa-a amuar, ou mesmo chorar! Amanhã o seu humor estará melhor e, de qualquer maneira, eu estou demasiado cansada para passar a noite a discutir. Acabemos isto e vamos dormir!

Assim fizeram, mas quando à luz da madrugada Fiora, vestida com o traje de pajem que trouxera de Nancy, abriu a porta da cozinha para ali tomar o pequeno-almoço, a primeira coisa que viu foi um par de longas pernas calçadas com botas que ia do chão de pedra ao banco próximo da mesa. Por cima dessas pernas estava uma túnica de couro e, por cima da túnica, o rosto desgostoso de Douglas Mortimer. Léonarde, de pé a alguns passos e com os braços cruzados no peito, esperava para ver o efeito produzido. Florent, com o nariz dentro de uma malga, estava mudo e quedo, mas os seus olhos diziam que teria estrangulado de boa vontade o escocês. No entanto, as primeiras palavras de Fiora foram para Léonarde:

Eu devia ter desconfiado! disse ela. Tínheis que o ir chamar?

Exactamente! Não pensáveis que vos ia deixar ir por esses caminhos com um rapazito como única protecção?

Eu não sou um rapazito! protestou Florent, furioso. E sou muito capaz de defender donna Fiora em qualquer circunstância...

Tenho a certeza, Florent disse a jovem. Foi por isso, caro Mortimer, que não vos informei deste projecto quando a ideia me veio. Léonarde fez mal em vos prevenir, incomodou-vos para nada. Eu quero partir e não conseguireis impedir-me.

Mortimer levantou-se, estirando o seu longo corpo que pareceu subir até às vigas do tecto alegremente ornamentadas com presuntos, tranças de cebolas e raminhos de ervas secas:

Quem falou em impedir? grunhiu ele. Vós sois teimosa como um burro, sei isso há muito tempo. Não, eu vou convosco...

É impossível! Sabeis muito bem que não podeis partir sem a autorização do Rei. Foi por isso que não vos disse nada ontem.

O escocês inclinou-se para fixar a jovem e as suas pálpebras semicerradas deixaram passar apenas um ligeiro brilho que, por ser azul, não pareceu menos tranquilizador:

Obrigado pela vossa solicitude, minha querida senhora, mas esqueceis-vos de uma coisa: ao constatar que íeis fugir sem tambores nem trombetas com o vosso cardeal, eu estava decidido a seguir-vos, mesmo que fosse necessário regressar a Roma...

A Roma? Nunca se pôs a questão e...

... e vós sois capaz de me dizer o que teria impedido della Rovere, uma vez em sua casa, de vos dar uma boa escolta para vos conduzir até ao seu querido tio? Já vos esquecestes do castelo de Saint-Ange?

As coisas mudaram...

Creio bem que sim! Neste momento, Roma está em guerra com Florença. Decididamente, gostais muito do papel de refém... É inútil continuarmos a discutir, ou só Deus sabe quando partiremos. Pegai nas vossas coisas e toca a andar!

Eu estou pronto! exclamou Florent, levantando-se de um salto com um olhar de desafio na direcção do escocês. Este deixou sair um suspiro de cansaço e, apoiando o indicador musculado no ombro do rapaz, obrigou-o a sentar-se de novo no banco:

Tu ficas aqui!

Nem pensar! protestou Fiora. Eu pedi-lhe, ontem à noite, para me acompanhar.

Muito bem, agora pedi-lhe que fique aqui a guardar a casa disse Mortimer sem desarmar. Tendes intenção de viajar rapidamente, não?

É evidente, mas...

Mas eu tenho a impressão que este rapaz não possuiu o estofo de um centauro. Quanto tempo aguentas a galope, rapaz?

Durante algum tempo. Quando vim de Paris andei bem...

Uma viagem de Paris aqui representa umas sessenta léguas. Nós vamos ter de fazer cerca de duzentas. Donna Fiora, eu sei, é capaz de seguir o passo que eu impuser. Tu, estou menos certo e se for preciso atirar-te para a sela quatro vezes por dia ou abandonar-te, extenuado, num albergue, não nos serás de grande ajuda...

Estou a ver! disse Florent, rabugento. Quereis matá-la?

Não, mas ela quer viajar depressa, ela vai viajar depressa. Além disso, eu ser-lhe-ei mais útil, creio eu, porque ninguém conhece melhor os caminhos de França do que eu. Enfim, sempre sou sargento da Guarda Escocesa...

Já sabemos!

Sim, mas o que tu não sabes é que, se Avinhão pertence ao Papa, Villeneuve-Saint-André, no outro lado de uma grande ponte, pertence ao Rei de França desde Filipe, o Belo! Eu posso, caso o núncio de Avinhão nos dê problemas, requerer as tropas do forte.

Furioso e desolado, Florent ia lançar-se na direcção da porta para correr para o campo e chorar nele o seu desgosto quando Mortimer o deteve e o arrastou para junto dos cavalos que esperavam já ajaezados:

Escuta! Tu tens de ficar aqui! Olivier le Daim quer tanto esta casa que pode querer raptar o miúdo. Eu preciso de alguém que vele por ele...

Tendes o Étienne! Ele não é nenhum maneta!

Não, mas não monta tão bem como tu. Em caso de agitação suspeita, será preciso galopar até Plessis. Irás ter com Archie Ayrlie! Ele sabe quem és, podes ir conhecê-lo daqui a pouco. Ele ajudar-te-á sem hesitar. Aliás, vão ficar dois homens a vigiar a casa sem que ninguém dê por isso...

Por que não o dissestes há pouco?

Diante de donna Fiora? Para a afligir? Talvez não aconteça nada, mas eu fico mais tranquilo. Compreendeste?

Florent fez sinal que sim e tomou o seu cavalo pela brida para o conduzir à cavalariça. Mas Mortimer deteve-o de novo:

Monta e vai ter com Archie. Para te tornar as horas vagas mais alegres, ele ensinar-te-á a montar... como um escocês. Como eu não vou estar sempre presente e como donna Fiora é o que é, pode ser que tenha a sua utilidade!

Florent desatou, então, a rir e, içando-se para o cavalo, tomou a trote o caminho do castelo real. Mortimer, com os punhos nas ancas, via-o afastar-se quando Fiora se lhe juntou.

Onde é que ele vai? perguntou ela.

Vai aprender a montar a cavalo! Não é luxo nenhum. Olhai-me para aquilo! Um verdadeiro saco de farinha!

A despeito do que Mortimer afirmara a Florent, nunca Fiora percorrera a tanta velocidade uma tão longa distância e precisou, mais de uma vez, de cerrar os dentes para não se confessar vencida e rogar por misericórdia. Quando pensou discernir no rosto da jovem um certo cansaço, Mortimer utilizou uma maneira muito sua para lhe ressuscitar a coragem:

Se o cavalo que vos leva consegue, também vós conseguis! declarou ele e Fiora, esquecendo o traseiro dorido, as coxas a arder e os rins moídos, aprovou com a cabeça e continuou a infernal cavalgada que, aliás, não acrescentava uma ruga, sequer, ao rosto do escocês.

Aquele homem era feito de aço e, sobretudo, conhecia como ninguém as estradas, os caminhos e os carreiros de França. Graças a esse conhecimento, os viajantes não tiveram de se esconder do cardeal della Rovere: enquanto este descia a pequena velocidade para Châteauroux, La Chatre, Montluçon e Varennes para chegar a Roanne e Lyon no passo tranquilo do seu longo cortejo, os dois cavaleiros, por Vierzon, Bourges e Moulins, atingiram Varennes e Roanne com um avanço confortável sobre o voluptuoso prelado. As jornadas eram grandes, faziam uma quinzena de léguas do nascer do Sol ao crepúsculo. Em cada etapa renovava-se o cerimonial: enquanto Fiora, derreada, se arrastava até ao quarto de albergue que lhe era destinado, se lavava abundantemente e se atirava, depois, para cima da cama onde já se encontrava o seu jantar, Douglas começava por tratar dos cavalos: esfregava-os, limpava-os, lavava-lhes as pernas fatigadas com vinho e depois dava-lhes ração dupla de aveia cuja qualidade ele próprio confirmava antes de tratar de si mesmo. O escocês escolhera em pessoa, nas cavalariças reais, a montada de Fiora, sendo a sua acima de qualquer elogio. Luís XI, de facto, era, para com os seus cavalos, de uma extrema exigência e, se bem que fosse uma pessoa pouco preocupada com a sua própria aparência, só comprava animais de primeira qualidade, nem que, para isso, tivesse que pagar uma fortuna. Era cioso deles e Mortimer sabia que o Rei lhe perdoaria fosse o que fosse, até um atraso que quase se pareceria com uma deserção, desde que lhe devolvesse os animais em bom estado. Aliás, o próprio escocês amava-os demasiado para os tratar de outra maneira.

Durante os onze dias que durou a viagem, ele e a sua companheira não chegaram a trocar cem palavras. Todas as manhãs, Mortimer assegurava-se de que Fiora dormira bem, velava pela sua alimentação e, se lhe perguntava pela sua saúde, era por pura cortesia: a sua maneira de a dardejar com um olhar inquiridor lembrava estranhamente a sua maneira de examinar os cavalos e a jovem estava sempre à espera que ele a mandasse abrir a boca para se assegurar de que ela tinha a quantidade de dentes regulamentar. Em seguida, enunciava os nomes dos lugares que atravessariam antes de fazerem etapa, de novo, ao anoitecer.

Se Fiora sofreu martírios durante os quatro primeiros dias, conseguiu ganhar resistência suficiente para que a parte final do trajecto fosse menos dura e, até, quase agradável. Aquela louca cavalgada através dos campos dourados, crestados, avermelhados pelo começo do Outono, sob um céu doce cujo azul leve perdera o tom macilento dos grandes calores do Verão, tivera o seu encanto. Nenhuma chuva transformara os caminhos em lamaçais e, sob os cascos dos cavalos, a terra tinha um som abafado, quase musical. Enfim, quando atingiram a região das oliveiras e dos ciprestes, quando o ar se encheu do estrídulo das cigarras, invadiu-a um verdadeiro sentimento de alegria e o sorriso que ofereceu a Mortimer irradiava a esperança que ela tinha naquelas terras rosa ou ocre, onde o Sol era o único senhor.

Onze dias após a partida da Casa das Pervincas e depois de terem percorrido sem descanso umas cento e setenta léguas, os dois cavaleiros viram perfilar-se, de um lado e do outro de um largo rio que o pôr do Sol incendiava, duas cidades: uma soberba, dominada por um enorme palácio com coruchéus e pelo campanário romano de uma igreja; a outra, quase tão bela mas de aspecto mais temível, com o alto torreão, o baluarte rodeando o casario baixo e a coroa de muralhas ameadas que, sobre a colina, chamada monte Andaon, encerrava um pequeno burgo e uma abadia. Uma grande ponte ligava as duas margens entre um pequeno castelo do lado de Avinhão e o pesado torreão, a torre de Filipe, o Belo, erguida sobre um rochedo nu. Essa ponte, escarranchada sobre umas ilhotas planas e cheias de vegetação, devia ter conhecido dias melhores porque, se do lado papal mostrava belos arcos de pedra com arcos bem arredondados e suportava uma pequena capela, a parte central era constituída por grossos pranchões que lutavam esforçadamente contra a corrente rápida. Na direcção de Villeneuve, subsistiam apenas dois arcos e Fiora pensou que entre os papas e o Rei de França, senhor de Villeneuve, o acordo nem sempre fora perfeito ao longo dos séculos. Mas ambas as cidades, a ponte, as muralhas e os campanários mostravam a mesma pedra loura, onde se reflectiam as diferentes cores do Sol entre a aurora e o ocaso. Um pouco por toda a parte, os teixos rodeavam a paisagem, guerreiros negros sobre o azul profundo do céu e, nas duas cidades, maciços de amoreiras, de velhos plátanos e de oliveiras assinalavam as praças ou os jardins.

É mesmo belo! disse Fiora, que detivera o seu cavalo para melhor admirar a paisagem.

Sim, mas esquecei a poesia por instantes, senão ainda apanhamos as portas fechadas. Em frente, ainda nos resta percorrer um quarto de légua...

À medida que avançavam, o coração de Fiora enchia-se de alegria, a jovem não conseguia imaginar que uma região tão bela não tivesse sido criada para outra coisa que não a doçura da vida. Depois de Orange, cujos príncipes, os condes de Chalon, tinham preferido virar-se para França após a morte do Temerário, Douglas Mortimer optara pela margem direita do Ródano para evitar entrar em Avinhão propriamente dita. Apesar da extrema fadiga, a jovem esqueceu os seus sofrimentos para se maravilhar, de descoberta em descoberta, como se tivesse acabado de entrar noutro mundo. Ali ainda era Verão e, sobressaindo dos tons mortos dos rochedos, os maciços de alfazema de um belo tom azul-malva, os de alecrim e os de salva perfumavam o ar da tarde. Uma camponesa de braços dourados, com um grande cesto liso cheio de figos, cruzou-se com os cavaleiros e cumprimentou-os alegremente com um sotaque inimitável. A mulher parou para esperar por outra que trazia à cabeça um cabaz de uvas moscatel sobrevoado por dezenas de abelhas, mas com as quais ela não parecia preocupada. Um pouco mais longe era a mancha pálida de um pequeno bosque de cedros azuis, cortinas de ciprestes protegendo as vinhas, sebes de canas secas sussurrando como papel amarrotado sob a brisa da tarde. Como se aproximavam do fim, Mortimer fez com que as montadas seguissem num passo tranquilo. Talvez, também, para melhor admirar os dentes brancos e os pescoços morenos de um grupo de lavadeiras que vinha do Ródano...

Há muito tempo que não vinha aqui suspirou ele subitamente, com espírito. É verdade que é uma bela região. O local ideal para recuperar depois de uma longa provação, se, na verdade, o vosso marido conseguiu cá chegar...

Se é mesmo ele, não o fez de propósito. Disseram-me que estava inconsciente no barco onde os monges o encontraram. Mas, de Lyon aqui, o percurso é bem longo e este rio bem rápido.

O Ródano, em parte seco devido ao Verão, deixava ver numerosos bancos de areia; no entanto, a meio, o rio continuava vivo, carregado de aluvião e devia ser difícil de navegar.

Não é no momento da chegada que ides perder a coragem. Para lá das torres que guardam a porta, podeis aperceber a igreja e os edifícios do convento dos capuchos.

Meia hora mais tarde, de facto, os viajantes, conduzindo os seus cavalos pela brida, subiam a ruela cheia de amoreiras que, da portaria, ia dar ao convento. Ali se encontravam as forjas, os celeiros, as recolhas, as cavalariças, o primeiro pátio e a entrada da horta, tudo dentro dos muros mas fora do claustro, podendo ali entrar viajantes e peregrinos. Um pequeno grupo de errantes de Deus já ali repousava, sentado em círculo por baixo de uma árvore onde um irmão converso lhes distribuía pão e água fresca. Era o primeiro acolhimento. Um pouco mais tarde, após o ofício, conduzi-los-iam à grande sala do albergue, onde poderiam passar a noite.

Fundado em 1356 pelo Papa Inocêncio VI poucos anos após a sua eleição para o trono pontifical, a Casa de Nossa Senhora de Val-de-Bénediction, dedicada às severas regras de São Bento, erguia, na base do monte Andaon e da sua coroa de baluartes, os seus múltiplos edifícios, os seus claustros, o convento tinha três as suas capelas e os alojamentos necessários para cerca de cento e trinta pessoas, sem esquecer os quarenta pequenos jardins que cada monge devia cultivar. Uma grande biblioteca, dormitórios, refeitórios, caves, uma padaria, lagares, oficinas, moinhos, marcenarias, um hospital e até uma prisão, tudo em redor da alta igreja gótica onde repousava, para a eternidade, o Papa fundador, compunham o mais vasto convento de todo o reino de França.

Assim que chegaram, Mortimer pediu hospitalidade para o seu jovem companheiro e para si próprio. O escocês deu-se a conhecer como oficial ao serviço do Rei e, ao mesmo tempo, pediu o favor de uma conversa particular com o Dom Abade, favor que não lhe seria concedido, pelo menos de imediato, se ele não pertencesse ao séquito do soberano. A Fiora, um pouco aborrecida por se refugiar numa mentira, Mortimer explicou que aquilo simplificava as coisas, evitar-lhe-ia ser colocada junto dos peregrinos de passagem e permitir-lhe-ia transpor mais facilmente a clausura, coisa indispensável se o evadido estava instalado nos edifícios conventuais propriamente ditos.

Em vez de serdes Mme. de Selongey, sereis o irmão de messire Philippe... digamos... o cavaleiro Antoine?

Tendes muita imaginação, mas não iremos cometer uma falta grave? Se o Rei sabe...

Não o suportaria, certamente, devoto como é, mas sois capaz de me dizer como pode ele saber da breve visita que dois viajantes fazem a um convento capucho perdido nos confins do reino?

E se for mesmo Philippe? Se ele me reconhecer?

Confessar-nos-emos e pediremos humildemente perdão. O único risco será imporem-nos como penitência a peregrinação a Compostela...

Apesar da sua extrema fadiga, Fiora, felizmente alojada sozinha numa cela da hospedaria esta estava longe de estar cheia não conseguiu conciliar o sono. A calma era profunda, no entanto e a noite, que entrava pela estreita janela, parecia feita de veludo azul-escuro sarapintada de prata, mas o espírito inquieto de Fiora impossibilitava-a de encontrar o menor repouso. A jovem permaneceu horas estendida, de ouvido à espreita, espiando os menores ruídos do campo e do convento, contando as horas à medida que lhe chegava o eco longínquo dos ofícios nocturnos. O pensamento de que Philippe podia, talvez, estar ali, a alguns passos dela, num daqueles numerosos edifícios silenciosos, fazia-lhe ferver o sangue e achar que a noite nunca mais terminava... Além disso, estava calor no seu quarto. A hospedaria estava perto da cozinha e da padaria, o calor das fogueiras destas, mesmo adormecidas, penetrava na espessura das paredes e Fiora lamentava ter aceitado passar a noite no convento. Teria sido mil vezes preferível dormir ao ar livre, sob uma árvore ou ao abrigo de um rochedo, em vez de naquela caixa sufocante, mas a jovem esperava que o Dom Abade os tivesse recebido naquela mesma noite...

Quando Mortimer apareceu para a acordar, ela acabava, de cair, finalmente, num sono pesado e ao ver as suas pálpebras inchadas e as faces pálidas devido à longa vigília, ele mostrou-se muito descontente.

Não tenho a culpa se não consegui adormecer! ripostou ela com mau humor.

Eu não estou zangado convosco, estou zangado comigo próprio. Devia ter-vos deixado num albergue qualquer e vir dormir aqui sozinho. Vou mandar que vos tragam água fresca para vos lavardes. Depois, ide ter comigo à sala para restaurardes as vossas forças. Tendes tempo! O reverendíssimo abade receber-nos-á depois da missa.

Uma hora mais tarde, Fiora, bem lavada, penteada, sem nenhum cabelo a sair do capelo, seguia na companhia do escocês o irmão converso encarregue de os conduzir à residência do abade, que dava para a pequena praça da igreja. Enquanto caminhava, a jovem olhava à sua volta, espiando cada silhueta, mas nenhuma se parecia com a que ela esperava.

Colocando um joelho em terra diante do dignitário supremo do convento, Fiora reencontrou a impressão penosa sentida quando Mortimer decidira que ela conservaria o seu disfarce. O abade não era um homem imponente, mas, com o seu hábito branco atado com uma corda, o seu crânio tonsurado onde os cabelos cinzentos só formavam uma estreita coroa evocando a auréola e o rosto magro e tisnado que parecia ter sido talhado no tronco de uma oliveira, parecia-se com um daqueles santos cujas estátuas rígidas povoam as igrejas e as capelas. Sobretudo, saída da sombra das sobrancelhas, a chama dupla de um olhar azul que parecia trespassar até à alma quase fez perder o porte à jovem.

Incapaz de articular uma palavra, Fiora aceitou o tamborete que lhe designaram e deixou que Mortimer explicasse o que os levava ali. Quando o escocês terminou, o abade deixou o silêncio invadir a pequena sala austera onde os recebia e o olhar azul voltou a pousar-se em Fiora, que não conseguiu evitar que as suas faces se enrubescessem. Uma angústia provocava-lhe um nó na garganta e as lágrimas subiram-lhe aos olhos, porque, como acabara de ser contada pelo escocês, aquela história de salvamento e de um homem privado de memória parecia-lhe, agora, absurda.

Trata-se, sem dúvida, de uma... lenda disse ela com uma voz rouca que ia bem com a sua personagem uma história que as pessoas de bem gostam de... espalhar?

Acreditas assim tão pouco na palavra de monsenhor della Rovere, meu filho? Ele só disse a verdade...

A verdade?

Sim. No ano passado, durante as vigílias de Natal, os nossos irmãos pescadores, de facto, trouxeram para aqui um homem que encontraram num barco encalhado nos caniços. Esse homem, devorado pela febre, parecia chegado ao último grau da resistência humana... Nós conseguimos fazer com que regressasse à vida com muito esforço, mas quando ele recuperou a consciência, constatámos que o seu espírito não conservava nada do passado... As provações sofridas tinham, talvez, ultrapassado o limite das suas forças...

Perdoai-me, Reverência disse Mortimer com respeito ele não fala?

Sim, mas muito pouco. Apenas algumas palavras e, quando o interrogámos, ele não nos respondeu nada...

Nós... nós podemos vê-lo? pediu timidamente Fiora, incapaz de resistir por mais tempo. O olhar azul regressou ao seu rosto e ela pensou ver nele uma espécie de compaixão.

Não. É impossível.

Ele está... morto?

Não. Partiu.

Partiu? Quando? Como?

A mão de Mortimer pousou-se no seu braço e apertou-o, para incitar a jovem a ter mais prudência, mas a voz do abade, profunda e suave, não mostrou qualquer impaciência perante aquela falta de conveniência.

No último mês de Maio, por ocasião da festa das Rogações, as grandes ladainhas públicas tradicionais atraíram a esta cidade mais gente do que o costume. No começo da Primavera, o rio tinha inundado uma parte de Villeneuve e as terras em redor e tratava-se de pedir a Deus, mais instantaneamente do que nunca, que protegesse as colheitas que se aproximavam. Ao mesmo tempo, numerosos peregrinos a caminho da Galiza transpuseram a nossa porta de Saint-Bénézet e a hospedaria

1 Rogações vem do latim rogare (pedir). Essa festa desenrolava-se durante os três dias que precediam a Ascensão.


desta casa, tal como a dos nossos irmãos beneditinos de Saint-André, na cidadela, viram-se superlotadas. Aquilo foi como que uma vaga e quando ela se retirou, aquele que, à falta de um nome, nós chamávamos de irmão Inocente, tinha desaparecido com ela... Não sabemos o que lhe aconteceu.

Partiu!

A dor no rosto de Fiora era tal que o abade, inclinando-se para ela, tocou-lhe na mão com a ponta dos dedos.


Não deixeis que o desgosto vos invada! No fim de contas, nada nos diz que esse infeliz é aquele que procurais!

Vossa Reverência consente em no-lo descrever? perguntou Mortimer para acudir à sua amiga.

Nós ligamos pouco ao aspecto físico dos homens, meu filho. Que posso eu dizer-vos? Ele era grande, de cabelos castanhos e teria, talvez, trinta e cinco anos. Nós pensámos que ele devia ter sido soldado, porque o seu corpo tinha várias cicatrizes, pelo que me disseram. Mas eu posso mandar buscar o irmão enfermeiro. Talvez ele vos diga mais qualquer coisa!

Tal como os outros irmãos conversos, o enfermeiro não era obrigado à regra do silêncio que era a dos Capuchos e o homem teria sido capaz, à sua conta, de falar pelo convento inteiro. Além disso, parecia ter votado uma espécie de amizade pelo desconhecido. Se o temor respeitoso que o abade lhe inspirava não o tivesse impedido, ter-se-ia lançado, acerca do ”irmão Inocente”, em considerações sem fim, às quais o seu sotaque cantante conferia um sabor inesperado, mas que arruinava um pouco a personagem. Para ele, o desconhecido era um bom rapaz ao qual ele reprovava, sobretudo, o mutismo, mas foi incapaz de dizer de que cor eram os seus olhos.

Ele tinha-os sempre meio fechados explicou ele. Creio que o Sol lhos deve ter queimado quando ele estava no barco, porque estavam todos vermelhos quando ele chegou aqui. Que posso eu dizer-vos mais? Ele não falava como toda a gente e, durante o período de grande febre, eu não compreendia nada do que ele murmurava...

Sua Reverência acaba de nos dizer que ele tinha vestígios de ferimentos? disse o escocês.

Cicatrizes? Tinha, pois! Por todo o corpo! Eu nunca tinha visto tantas! Ao ponto de não poder dizer onde!

A esperança, por um instante regressada, diminuiu de novo no coração de Fiora. Sim, Philippe fora ferido várias vezes em diversos combates, mas não ao ponto de estar coberto de marcas como pretendia aquele bravo mongezinho que, na verdade, parecia ainda mais inocente do que o seu protegido. Encorajado pelo silêncio do abade, lançou-se em novas descrições que acabaram por acabrunhar a jovem: o homem era muito piedoso, mais tímido ainda e muito entendido nos trabalhos do campo. Era também...

Chega, meu irmão! cortou o superior. Creio que os vossos propósitos não interessam muito aos nossos hóspedes. Uma tal atitude não corresponde muito ao que procurais, pois não?

É verdade admitiu Fiora, atravessada, então, por uma ideia digna de uma filha de Florença, onde se encontrava, ao menor acontecimento, um pintor ou um escultor desenhando com traço rápido. Mas, não haverá aqui nenhum monge capaz de fazer um desenho de memória, bem entendido, um retrato?

Os nossos irmãos conversos são incapazes disso. Só, talvez, o nosso irmão iluminista, mas ele nunca viu o nosso hóspede, que não podia transpor a clausura.

Só restava a Fiora e a Mortimer agradecerem aos religiosos e despedirem-se. A jovem retinha, a custo, as lágrimas, tal era a esperança que depositava no incidente do homem do barco. Como se o rio terrível que era o Ródano tivesse podido transportar um barco tão frágil durante uma distância tão grande sem o virar!

Iam os dois transpor a porta quando o pequeno irmão enfermeiro, que parecia muito infeliz, ergueu um dedo tímido para pedir permissão para acrescentar mais qualquer coisa:

O que é? disse o abade um pouco irritado. Parece-me que já falastes o suficiente, meu irmão...

O interpelado ficou muito vermelho e, baixando a cabeça, dirigiu-se para a porta.

Dizei! disse Mortimer, condoído. Tendes permissão!

163

Oh! Espantar-me-ia muito se vos interessasse, mas... aquele homem devia amar as flores. No entanto, nunca o confessou.

Porquê? Não é vergonha nenhuma amar as flores!

Era, também, o que eu pensava, mas quando ele ficou curado... enfim, quase... disse-me que as flores não lhe lembravam nada. Porém, no auge da febre, ele repetia sempre a mesma palavra, parecida com ”flor”, mal pronunciada, claro, e com o sotaque dele. Soava qualquer coisa como ”fior...fioure...”.

Mortimer agarrou no enfermeiro pelos ombros:

Fiora?

Seguiu-se um curto silêncio e cada um dos participantes da cena reteve, por instinto, a respiração. E, subitamente, o pequeno monge sorriu:

Sim... sim, creio que era isso! Agora que a dissestes, creio que a palavra era ”fiora”. Isso quer dizer o quê? É um nome de flor, não é?

Sobretudo, é o nome da mulher dele. Obrigado, meu irmão! Prestastes-nos um grande serviço e nós estamos-vos muito reconhecidos.

Fiora estava incapaz de articular a menor palavra. Vencida pela fadiga e pela emoção, soluçava perdidamente com a cabeça entre as mãos, tendo esquecido tudo o que a rodeava. Só quando sentiu uma mão no ombro é que ergueu o rosto desfigurado pelas lágrimas e reencontrou o olhar azul que tanto a impressionara. Dessa vez, aquele olhar azul estava cheio de compaixão:

Deus tomou conta dele. E continuará a velar por ele, tenho a certeza. Não choreis mais, minha filha!

Sabíeis?

Digamos que adivinhei no momento em que dobrastes o joelho diante de mim. Acrescento que vos perdoo essa... mascarada. Ela foi-vos ditada pelo vosso grande desejo de saber rapidamente um pouco mais sobre o nosso evadido. Mas, evidentemente, deveis abandonar esta casa imediatamente, antes que outro, que não eu, descubra o vosso embuste. Espero que encontreis depressa o conde de Selongey.

Obrigada! Oh, obrigada!

Deixando-se cair por terra, a jovem pegou na mão do monge para a beijar, mas só pôde aflorá-la, porque ele retirou-a suavemente.

E agora ide e que Deus vos tenha na Sua santa guarda! Pedir-Lhe-ei que abençoe a vossa busca, assim como vos abençoo...

O gesto fez curvar também Mortimer, que se encontrava ao lado de Fiora. O abade bateu palmas para chamar o irmão converso para que reconduzisse os visitantes à hospedaria. Antes de sair, Fiora perguntou:

Gostaria de contribuir com uma esmola para esta casa, em agradecimento pelos cuidados recebidos. Vossa Reverência aceitaria...

Obrigado pela vossa intenção, mas a mim, não. Dai a esmola ao nosso hospital, para que possa suavizar os sofrimentos dos pobres doentes.

Um momento mais tarde, Mortimer e Fiora abandonavam o convento e viam-se de novo na grande rua que atravessava a cidade de um lado ao outro.

E agora, que fazemos? perguntou o escocês. Não quereis partir imediatamente, imagino?

Não. Preciso de um pouco de repouso... e creio que precisamos de falar, de tentar imaginar para onde foi Philippe depois de deixar esta cidade...

Para o repouso do corpo e a clareza das ideias, não há nada melhor do que um bom albergue! Segui-me!

CAPÍTULO VII UMA SITUAÇÃO DIFÍCIL

Villeneuve-Saint-André não era uma cidade como as outras e Fiora pôde aperceber-se disso ao percorrer, ao lado de Mortimer, a longa rua que só entrevira na véspera, já que o convento se encontrava junto das muralhas. Magníficos palácios, rodeados de jardins, ladeavam-na, alguns em perfeito estado e outros ameaçando ruína.

São as livrées dos antigos cardeais da corte pontifícia que ocupou Avinhão até ao começo deste século explicou Mortimer. As casas de campo deles, por assim dizer.

Livrées. Que nome esquisito! Em Florença chamamos-lhes villas...

O nome deve-se disse o escocês que, decididamente, sabia muitas coisas a que cada um dos seus proprietários foi obrigado a livrer a sua casa aos príncipes do Sacro Colégio. Por dinheiro sonante, claro, mas o nome ficou...

Algumas daquelas moradias tinham a severidade dos palácios romanos com qualquer coisa mais. Bastava uma janela com pequenas colunas, uma grande ”amêndoa” de pedra decorada com vitrais coloridos, uma roseira obstinada em suavizar as chagas de uma fachada leprosa, uma moita de mirto, uma vinha exuberante ou uma acácia perfumada, para que tudo fosse de uma amabilidade sorridente. As laranjeiras e os limoeiros transbordavam dos jardins tratados ou não e as grandes pedras de armas que dominavam cada portal conservavam vestígios das

NT: Postas à disposição.


cores ou do ouro que as iluminavam em tempos. Por fim, cobrindo tudo o que não era telhado em forma de terraço engrinaldado de jasmim ou de hera pequena, as telhas cor-de-rosa romanas, arredondadas e quase carnais, viravam para o céu azul-brilhante as suas formas curvilíneas.

Era dia de mercado. Na pequena praça sombreada de plátanos cujas largas folhas, de um verde cambiante, emprestavam a sua frescura, algumas camponesas, de coifas leves na cabeça, sentavam-se, direitas e orgulhosas como estátuas gregas, no meio de cestos rasos onde pipilavam aves de capoeira e cabazes onde, juntamente com grossas azeitonas suculentas, se viam todas as riquezas do campo e do jardim. Agrupados sob-as árvores, pequenos burros desaparelhados aguardavam placidamente que fossem horas de regressar a casa. Vozes alegres trocavam brincadeiras e, algures, esvoaçava uma canção apoiada por um sopro de flauta...

Presa de uma súbita fome canina, Fiora comprou um queijo de cabra que lhe ofereciam sobre uma bela folha de videira e um grande cacho de uvas douradas, que partilhou generosamente com Mortimer.

Tendes medo que não vos alimentem no albergue? perguntou ele, rindo. Se a cozinha continuar como era aquando da minha última visita, não tereis razão de queixa...

Não sei porquê, mas morro de fome. Já agora, o que é que um escocês vinha aqui fazer?

Oh, nada de extraordinário disse Mortimer voluntariamente evasivo. Uma pequena missão de que o Rei me encarregou. Fiquei aqui um mês, mas não foi a coisa mais desagradável da minha vida.

Fiora não procurou saber mais. Bruscamente, devido à magia daquela terra provençal que em muitas coisas lhe fazia lembrar a sua região florentina, a esgotante corrida em busca de uma sombra acabava de ganhar as cores delicadas de umas férias, de uma viagem de descoberta, em que o tempo se esquece para grande prazer dos olhos e do olfacto. As horas cruéis tinham-se apagado perante uma certeza: Philippe estava vivo. Fiora, a partir daí, podia conceder a si própria o direito de respirar um pouco...

Ao abrigo da colegiada de Nossa Senhora, cuja torre quadrada e coruchéus pareciam proteger a pequena cidade como uma galinha os seus pintos, o albergue Grand Prieur abria para a praça do capítulo as suas salas frescas que cheiravam a verbena e ervas aromáticas. Atrás, um jardim abundante de loendros, laranjeiras, mirto, ciprestes, pinheiros, roseiras, jasmim e muitas outras plantas juntava-se ao do priorado pertencente aos abades de Saint-André. Ali, estendiam-se, sobre a colina de Montaut, os vestígios do antigo palácio do cardeal Pierre Bertrand, bispo de Autun e fundador, em Paris, do colégio do mesmo nome. Aquele conjunto formava um daqueles lugares privilegiados onde a beleza da natureza realçava o encanto do trabalho dos homens e onde todas as coisas se juntavam para o contentamento dos olhos e a paz de espírito.

No tempo em que, no seu palácio, o cardeal Bertrand se comprazia em receber os grandes deste mundo, a hospedaria acolhia os senhores dos seus séquitos e socorria as cozinhas por vezes defeituosas dos príncipes da Igreja seus vizinhos. Por outro lado, as gentes de Avinhão transpunham de boa vontade a ponte de Saint-Bénézet para desfrutar de uns momentos de frescura sob as sombras do jardim e, sobretudo, para saborear as maravilhas de uma cozinha célebre num raio de vinte léguas.

A partida da corte papal poderia ter dado um golpe fatal no Grand Prieur, mas isso não aconteceu. Chegara o tempo dos núncios e Avinhão herdou da era dos pontífices uma população cosmopolita, que dela fez um grande local de negócios onde bancos e casas de comércio possuíam escritórios, quando Marselha ainda não tinha nada disso. De facto, sendo Avinhão a principal ligação entre o mar e os grandes mercados de Lyon e Genebra, Villeneuve, apesar de pertencer ao Rei de França, continuou a beneficiar de uma situação excepcional e o Grand Prieur não perdeu nada da sua fama. Bem pelo contrário, porque os seus proprietários, mestre Jacques e a sua mulher Françoise, possuíam, ao mais alto grau, a difícil arte de acolher cada hóspede, viesse ele de onde viesse e da maneira que mais lhe convinha. O sorriso da dama Françoise teria desarmado uma

Dom Abade,


viúva e feito rir de contentamento um anacoreta antes de deixar ao seu marido o cuidado de o fazer mergulhar, até à condenação final, no saboroso pecado da gula.

Tendo recuperado uma parte do que fora a sumptuosa livrée do cardeal Arnaud de Via, sobrinho do Papa João XXII e construtor da colegial vizinha onde repousava, a casa não era muito grande, mas possuía todo o refinamento do palácio ao lado, pelo menos a austeridade, além de uma certa arte de viver que cheirava bem ao sol da Provença. Ao entrar nela, Fiora teve a impressão de que uma mão invisível lhe tirava dos ombros o peso da fadiga e da angústia que os oprimia há semanas e enquanto Mortimer, de olhar incendiado pela recordação das delícias passadas, parava na cozinha, ela deixou-se conduzir até um quarto cujas lajes eram de argila cor-de-rosa, cujas paredes brancas valorizavam os móveis bem encerados e onde um grande ramo de flores multicor estava disposto diante de uma pequena estátua da Virgem. A canção alegre de uma fonte entrava pela janela aberta para o jardim...

Demorando apenas o tempo para tirar as botas e a túnica de veludo, Fiora estendeu-se no leito de delicados lençóis azuis, que cheiravam a resina de pinheiro e alfazema. A jovem adormeceu como uma pedra.

Fiora dormiu uma boa parte do dia e a tarde já caía, azul e malva, quando se juntou a Mortimer na grande sala abobadada onde se elaboravam os mistérios da cozinha. Sentado perto da vasta chaminé branca onde estava a assar um quarto de carneiro, este bebia vinho branco, ao mesmo tempo que devorava um grande bocado de pão recheado de cebolas, de azeitonas pretas, de pimenta e de anchovas que, visivelmente, deixava escorrer azeite. No outro extremo da mesa de carvalho, longa e estreita, mestre Jacques batia ovos sob uma espécie de coroa grosseira feita de um pedaço de tonel no qual estavam pendurados cachos de uvas do ano anterior, salsichas igualmente quase tão secas e grandes cebolas arroxeadas.

Então perguntou ela sentando-se junto dele soubestes alguma coisa?

Nada! Penso que messire Philippe deve ter partido com os peregrinos e, nesse caso, como distingui-lo dos outros? Enquanto dormíeis, passeei pela cidade, fui conversar com os soldados do torreão e fiz algumas perguntas. Todos sabiam, evidentemente, da história do homem recolhido pelos monges, mas, felizmente, nenhum imaginou que ele pudesse ter vindo de Lyon. De qualquer maneira, ninguém o viu e, portanto, não o podiam reconhecer quando ele partiu. Tomai, provai isto!

Não, obrigada. É repugnante!

Por causa do azeite? Mas, é delicioso!

O escocês cortou um bocado e estendeu-lho. Ao ver aquilo, mestre Jacques largou os seus ovos, pegou num grande guardanapo branco e colocou-o, com um sorriso encorajador, em redor do pescoço da jovem.

Assim é melhor! disse ele.

Era, com efeito, um festim e Fiora, descobrindo, uma vez mais, que estava esfomeada, voltou a pedir daquele ”pain bagna?. A jovem ouviu responder que a hora do jantar não estava muito afastada e que era preciso guardar um pouco de fome. Para se vingar, bebeu um bom terço do pichel de Mortimer sem, no entanto, perder de vista o pensamento que a ocupava.

E agora, que vamos fazer? Tendes alguma ideia?

Acho que devemos ficar aqui três ou quatro dias para bater um pouco os arredores. A menos que tenha tido a ideia de ir até Compostela, o nosso amigo deve ter-se separado dos peregrinos. Talvez alguém o tenha visto, o que nos daria, pelo menos, uma direcção a seguir.

Fiora tinha de confessar a si própria que não conhecia Philippe o suficiente para adivinhar as suas reacções e o seu estado de espírito no momento em que fugira do convento. Que tivesse falado dela durante o seu delírio era reconfortante, mas teria suficientes saudades dela para renegar as suas convicções, a sua intransigente fidelidade à causa de Borgonha e para ir, enfim, para aquela Touraine onde ela exigira que ele a fosse buscar?

NT Região e antiga província de França cuja capital era Tours.


Vendo o rosto da sua companheira entristecer-se, Mortimer pousou-lhe num braço uma mão amiga:

Tentai não vos atormentar! Concedei a vós própria um pouco de repouso! O principal está adquirido, já que sabemos que ele está vivo!

Tendes a certeza? Que pode ele fazer sozinho, sem armas e sem dinheiro? Se quiser sair de França, não tem nenhum meio de pagar uma passagem de barco e imaginá-lo errante, só e miserável ao longo dos caminhos, é um pensamento cruel...

Ele não é nenhuma mulher frágil. O que consegui saber parece-me tranquilizador: um homem daquela têmpera não se deixa morrer de miséria a um canto da floresta. Estou certo de que o reencontrareis um dia. Vamos fazer o que vos disse e, no regresso, poderemos pedir a ajuda do Rei. Ele é suficientemente poderoso para o encontrar não importa onde.

Na condição de ele se deixar apanhar. Diante de um soldado qualquer ou outro servidor do Rei, ele fugirá, ou bater-se-á. Como poderá ele pensar que Luís XI não lhe quer mal?

Veremos isso em devido tempo! Por agora, pensai um pouco em vós!

O serão foi maravilhoso. Extraordinariamente, havia poucos viajantes naquela noite e mestre Jacques apareceu para conversar um pouco com eles, enquanto a dama Françoise tentava convencer uma dama espanhola que pretendia requisitar a totalidade da hospedaria para seu único serviço, não se mostrava contente com nada e discutia todos os preços com uma grosseria de velho usurário. Os seus guinchos deviam ouvir-se até na ponte de Avinhão.

Não devíeis ajudar a vossa mulher? perguntou Mortimer, rindo. Uma mulher tão amável quase a chegar a vias de facto com uma malvada daquelas!

Ela desembaraça-se muito melhor sem mim. Se eu me metesse, atirava aquela megera porta fora. Françoise tem o estofo de um velho diplomata e, neste momento, os tempos estão um pouco difíceis...

De facto, a guerra entre o Papa e Florença repercutia-se lastima velmente na vida de Avinhão. A maior parte dos bancos e casas dos grandes comerciantes de panos era constituída por sucursais florentinas. Apenas a dos Pazzi fora convidada a ficar: as outras tinham deixado a cidade para evitar prejuízos maiores, já que o cardeal della Rovere tinha fama de ter uma mão pesada. Os representantes dos Médicis, esses, tinham sido expulsos sem mais nem menos com a proibição de voltar a pôr os pés na cidade papal. Naturalmente, os seus bens tinham sido confiscados e tinham conseguido atravessar a ponte a tempo de escapar às flechas dos arqueiros.

Felizmente disse Jacques encontraram asilo aqui. O governo aloja-os numa das livrées abandonadas, esperando ali o fim dos combates.

Como é possível disse Fiora erguendo a cabeça para o céu que esta guerra estúpida e criminosa se faça sentir até nesta região tão doce? Florença é longe, Roma mais ainda e no entanto...

A noite meridional, com efeito, envolvia o jardim, onde os pinheiros e os ciprestes tentavam, em vão, entristecer o céu. O ar nocturno era de uma pureza de cristal e até o pio sereno de uma coruja tinha um tom amigável. Tendo a dama espanhola consentido em calar-se, mestre Jacques desejou boas-noites aos seus clientes e juntou-se, a correr, à sua mulher. Fiora e o escocês regressaram em passo lento à hospedaria e, muito naturalmente, para a guiar no caminho obscuro, Mortimer tomou o braço da jovem. Ousava, pela primeira vez, esse gesto e ela não o impediu. Era bom sentir junto de si aquela força tranquila que ela sabia poder transformar-se, contra um inimigo, numa espécie de furor sagrado.

Estais bem? perguntou ele com a voz mudada.

Muito bem. A noite está tão bonita! Vai ser delicioso ficar aqui uns dias...

Podereis, assim, visitar os vossos compatriotas, porque eles estão na cidade.

Não tenho nenhuma vontade de os encontrar. Eu ignorava, até, tudo acerca das sucursais de Avinhão. Além disso, quero esquecer Florença para me virar para França. É aqui que está o meu filho, é aqui que está o meu marido, pelo menos assim espero, portanto é aqui que está a minha vida...

Ela só deseja proteger-vos murmurou Mortimer.

Segurando na mão da sua companheira, ele pousou nela, por um curto instante, os lábios, antes de correr a fechar-se no seu quarto. Aquela retirada pareceu-se de tal modo com uma fuga que Fiora desatou a rir silenciosamente. O rude sargento la Bourrasque ter-se-ia tornado sentimental? Os responsáveis eram, sem dúvida, o encanto daquela casa, a beleza daquela noite... e, talvez, aquele vinho branco de Châteauneuf que mestre Jacques lhes dera a beber.

Tendo dormido durante uma parte do dia, Fiora não tinha sono e ficou uns momentos encostada à balaustrada da galeria que corria ao longo dos quartos, gozando durante mais algum tempo a feitiçaria daquela noite que transformava os cabos de guerra em apaixonados e que fazia subir até ela os perfumes daquela terra tão doce.

Mortimer, por sua vez, adormecera numa euforia total. Sentia-se feliz por ter regressado àquela cidade e, decidido a prosseguir algumas buscas, antecipava alegremente as horas que estavam para vir. Aqueles dias no Grand Prieur junto de donna Fiora seriam o mais belo presente que o céu lhe poderia dar..

Assim, ficou dolorosamente surpreendido quando, na manhã seguinte, a dita Fiora, branca como a cal, foi abaná-lo para lhe dizer que se preparasse para partir. A jovem tinha de regressar a la Rabaudière sem perder um minuto e recusou dar mais explicações. Que se teria passado? Foi-lhe impossível saber e não ousou fazer qualquer pergunta quando, um momento mais tarde, ajudou a jovem a subir para a sela. O seu rosto fechado, os seus olhos duros e a boca cerrada desencorajavam a mais simples conversação. E o infeliz perguntou a si próprio se teria sido o seu gesto da véspera, talvez um tudo nada afectuoso, a desencadear aquele humor negro.

Incapaz de suportar uma ideia que lhe retirava toda a presença de espírito, o escocês aproveitou a paragem da noite para se atirar de cabeça:

Por amor de Deus, donna Fiora, dizei-me se sou o culpado do que se passa convosco! Eu não queria que levásseis a mal a minha... atitude de ontem...

Apesar da angústia evidente que sentia, Fiora conseguiu sorrir:

Sobretudo, não vos atormenteis, amigo Mortimer! Vós não tendes nada a ver com a minha decisão de regressar o mais rapidamente possível e peço-vos perdão se vos fiz acreditar que me tínheis ofendido. Tenho-vos muita amizade para deixar que subsista entre nós a mais pequena dúvida e é em nome dessa amizade que vos peço que me leveis para minha casa o mais depressa possível.

Nós temos andado depressa. Creio difícil fazer melhor, a menos que matemos os cavalos, ao que me recuso. Aliás, não avançaríamos mais depressa, porque os que encontrássemos não seriam, sequer, tão bons como estes.

O escocês não acrescentou que o Rei não lhe perdoaria que sacrificasse dois membros eminentes da sua preciosa cavalariça, mas Fiora sabia-o. Entretanto, tiveram de renunciar à etapa prevista inicialmente em Valence, porque ao penetrarem na cidade encontraram-na embandeirada e o clérigo em regozijo: o cardeal della Rovere fazia a sua entrada pelo norte com toda a sua gente e preparava-se para invadir a localidade. Assim, a despeito de uma fadiga certa, os dois cavaleiros preferiam percorrer mais uma légua para evitar maus encontros: apesar dos seus protestos de inocência, Fiora não conseguia confiar totalmente no sobrinho de Sisto IV. A jovem preferia não o encontrar.

Felizmente para os viajantes, o tempo manteve-se sereno e não lhes opôs qualquer obstáculo. Assim, foi dez dias depois de terem deixado Villeneuve-Saint-André que Fiora viu as torres de Plessis e as ardósias azuis da sua casa acima da frondosidade amarelada das árvores.

Eis-vos em casa, donna Fiora! suspirou Mortimer, desolado por ver terminar tão depressa uma viagem que ele achara tão agradável.

Graças a vós, meu amigo e nunca vos poderei agradecer o suficiente. Só espero que não venhais a ter aborrecimentos.

De facto, a bandeira das flores-de-lis flutuando no castelo real dizia que Luís XI regressara, também ele. Mortimer encolheu os ombros filosoficamente.

Certamente que não, porque o nosso Sire sabia por que razão eu estava longe. De qualquer maneira, esta viagem valeu bem qualquer aborrecimento...

Mal chegou à soleira da sua casa e abraçou com efusão os seus habitantes que acorreram ao seu encontro, Fiora, com o pretexto de se desembaraçar da poeira de que estava coberta, precipitou-se para o seu quarto e, abrindo uma grande arca pintada onde guardava diversas roupas, pôs-se a procurar febrilmente lá dentro.

Mas que procurais vós com essa pressa, meu cordeiro? perguntou Léonarde que, naturalmente, a tinha seguido escoltada por Khatoun com o jovem Philippe nos braços.

A escarcela vermelha de marroquim que eu trazia quando regressei de Florença. Ah! Cá está ela!

Os seus dedos nervosos apalpavam o couro fino e tiraram do interior um raminho de oliveira seco e um pequeno frasco que destapou para sorver o conteúdo antes de o virar com um grito de horror: estava vazio...

Subitamente privada de forças, a jovem caiu sentada nos calcanhares, olhando com desespero para o pequeno objecto que deixara rolar nas lajes:

Que aconteceu? balbuciou ela. Por que é que o frasco não tem nada?

Mas, enfim, que havia lá dentro? perguntou Léonarde, espantada com a palidez da jovem e com os seus olhos marejados de água.

Um... remédio que Demétrios me deu antes de eu partir, caso...

Um remédio? Era um remédio? disse a voz trémula de Khatoun. Oh, meu Deus! E eu que pensei que era veneno!

Desatando aos soluços, a jovem tártara contou que, ao arrumar as roupas da sua patroa, encontrara o frasco que Fiora tinha, talvez, esquecido. Como o odor lhe parecera suspeito, dera a beber algumas gotas a um gato vadio que recolhera. O animal morrera pouco depois e, pensando que Fiora adquirira o líquido num dia sombrio com a ideia de manter junto de si um meio rápido de morrer, ela espalhara o conteúdo nas latrinas da casa...

Eu não suportava a ideia de que quisesses morrer soluçou ela, apertando convulsivamente contra ela a criança, que começou a chorar. O gato morreu... compreendes?

Não tendo, sequer, força para se encolerizar, Fiora, prostrada, olhou para ela sem dizer nada. Aliás, de que serviria zangar-se? A pobre Khatoun, tão dedicada, só agira por afeição... Mas Léonarde, essa, reagiu. Tirando o pequenito dos braços de Khatoun, quase o atirou para os de Péronnelle que acorrera ao barulho e, fechando a porta, segurou Fiora pelos braços para a ajudar a levantar-se e sentar-se no leito:

Eu gostaria muito de compreender! disse ela secamente. Que havia naquele maldito frasco para que vos tivésseis atirado a ele sem sequer tirar as botas?

Fiora ergueu para ela um olhar sem expressão:

Uma coisa que eu devia tomar sem demora, ou sentiria uns certos sintomas. Demétrios insistiu no facto de que não deveria esperar...

Sintomas de quê?

De gravidez. Estou grávida, Léonarde. Grávida de Lourenço! E Philippe pode chegar de um dia para o outro!

Tendes a certeza? murmurou Léonarde espantada, ao mesmo tempo que os soluços de Khatoun, deitada no tapete, redobravam de intensidade

Infelizmente, não há qualquer dúvida. Deve datar do nosso último... encontro, em Julho. Há mais ou menos dois meses.

A jovem contou que, durante a noite passada no Grand Prieur, se levantara para beber um pouco de água. Uma súbita náusea atirara-a para a cama com o coração aos pulos e um suor gelado na fronte. Pensando que fizera demasiadas honras à cozinha de mestre Jacques, não se inquietara e, passado o mal-estar, adormecera. Infelizmente, de madrugada a indisposição regressara, obrigando-a a relembrar as datas do seu ciclo com as quais, para dizer a verdade, pouco se preocupara nos últimos tempos. A verdade aparecera-lhe, então, com uma clareza cegante. Por isso a pressa que, para grande surpresa de Douglas Mortimer, a atirara para a estrada a despeito das incessantes náuseas matinais ao longo do caminho. A sua única esperança residia no frasco oferecido por Demétrios:

Não sei se é preciso lamentar assim tanto o facto de Khatoun ter lançado fora o conteúdo resmungou Léonarde. No fim de contas, o gato morreu.

Não estais a dizer que Demétrios queria envenenar-me? protestou Fiora. Ele tinha-me prevenido: eu ficaria terrivelmente doente durante dois dias, mas, depois, tudo reentraria na ordem...

Foi o que ele disse! Aquele velho feiticeiro pode ter-se enganado e eu acho que mais vale agradecer a Deus. Aliás, nada nos diz que as coisas em questão não entrem na ordem por elas mesmas.

Não vejo como!

A avaliar pelo pouco tempo que durou a vossa ausência, acabastes de fazer quatrocentas léguas a cavalo e a grande velocidade. Se ainda estiverdes grávida é porque essa criança está solidamente instalada. Esperemos alguns dias!

Mas passou-se uma semana e o estado de Fiora não se alterou. A jovem sentia-se mal todas as manhãs e morria de fome durante o resto do dia, ao ponto de Léonarde ter de a vigiar. Se ela engordasse depressa de mais, o seu estado tornar-se-ia visível antes do tempo fixado para o nascimento. Porque, bem entendido, estava fora de questão, para a velha solteirona, recorrer a outras manobras abortivas e ela não estava longe de ver o dedo de Deus no gesto de Khatoun ao entornar o frasco. Como a criança resistira à cavalgada fantástica da sua mãe, resistiria a tudo. Se tentassem desalojá-la, arriscar-se-iam a danificá-lo, talvez a transformá-lo num monstro... O que seria uma pena para uma criança portadora do sangue dos Médícis...

Tenho a certeza acrescentou Léonarde que o pai saberá cuidar dele chegada a hora e lhe assegurará um futuro...

Não é o futuro que me preocupa, é o presente. Não poderei esconder o meu estado durante muito tempo, sobretudo às pessoas daqui. E, voltando ao que me atormenta: que aconteceria se Philippe decidisse, por fim, regressar para junto de mim e me encontrasse cheia como uma jumenta grávida? Talvez não me matasse, mas fugiria de certeza, para sempre.

A questão merecia uma reflexão profunda. Tinham, apenas, que se esconder durante alguns meses, porque, para o parto, Léonarde tinha a solução: os queridos Nardi, Agnelle e Agnolo, não se recusariam, certamente, a acolher Fiora em sua casa no momento crítico, talvez até aceitassem, já que não tinham filhos, ficar com o recém-nascido.

Vamos dizer-lhes, mas só a eles, a verdade acerca do pai da criança, mas aqui e, sobretudo, caso messire Philippe apareça, teremos de encontrar outra solução.

Mas qual?

Deixai-me pensar. Terá que ser uma infelicidade, mais do que uma vergonha...

Khatoun pensou ter a solução.

Com tudo o que sofreste em Itália disse ela a Fiora foi um milagre não teres sido violada cem vezes...

É isso! exclamou Léonarde, triunfante. Durante aquele tumulto em Florença, durante aquela loucura que se apoderou da cidade, tu foste sequestrada por um homem que te cobiçava e te obrigou a sujeitares-te...

Fiora não estava de acordo:

Como se não soubésseis a que velocidade voam as línguas! Eu estive ausente quase um ano e parti de novo há mais de três semanas. Assim que as pessoas souberem que estou grávida, dizem que o filho é de Douglas Mortimer... Não vos esqueçais que foi na sua companhia que eu vim de Itália e eu tenho-lhe muita amizade para o deixar suportar o peso dessa acusação. Philippe desafiá-lo-ia imediatamente para um combate... e a sua morte, ou a do meu marido, ficariam na minha consciência.

Nesse caso, que propondes? perguntou Léonarde, desencorajada.

Partir antes do Inverno, ir para Paris com o pretexto de velar pelos meus interesses e tomar lá certas decisões com Agnolo Nardi. Uma vez em Paris, posso ficar doente. Os Invernos, lá, são duros...

E se messire Philippe chega?

Bem... dir-lhe-ão onde estou e seja o que Deus quiser. Entretanto, gostaria que alguém me fosse lá prevenir rapidamente. Florent, por exemplo, se aproveitou bem as lições do seu professor escocês...

Oh, muito bem exclamou Khatoun, visivelmente fascinada ele monta como um verdadeiro cavaleiro. Mas as pessoas daqui não vão achar estranha essa nova viagem? Para uma mulher que esteve tanto tempo fora...

Ainda acharão mais estranho se me virem inchar a barriga. Fico aqui um mês e depois vou para Paris. Tendes alguma coisa a acrescentar?

Nada disse Léonarde. Senão que tudo me parece bem combinado... salvo, talvez, uma pequenina coisa:

Qual?

Eu vou convosco. Está fora de questão deixar-vos ir sozinha! Além disso, acho que precisareis, mais do que nunca, de uma pessoa respeitável junto de vós. E eu? perguntou Khatoun com uma tristeza que irritou Fiora. Eu vou ficar aqui?

Pensava que o meu Philippe era suficiente para te encher os dias? Não te queres ocupar dele? perguntou Fiora com uma certa rudeza. Eu não posso levar toda a gente para assistir ao que vai acontecer em Abril. E é normal que Léonarde me acompanhe.

Tal como no tempo em que era escrava, Khatoun ajoelhou-se e prostrou-se a seus pés:

Perdoa-me! Cometi uma falta grave que te deixou embaraçada e não tenho o direito de reclamar a tua indulgência. Mas tu sabes a que ponto te sou dedicada...

Eu sei disse Fiora mais docemente e levantando-a mas tens de compreender que me é impossível levar meia dúzia de pessoas para casa dos Nardi. Oficialmente, parto em negócios e, nesse caso, não posso levar a casa toda comigo. Se não queres ficar com o meu filho, eu mando chamar Marcelline... mas não te posso levar.

Khatoun ergueu para ela os olhos rasos de água:

Tens razão, claro. Mas, gostava tanto de conhecer o bebé que vai nascer!

Pronto! disse Léonarde. A paixão dela por bebés arrisca-se a arranjar-nos ainda mais sarilhos! Não podes, minha maluca, contentar-te com Philippe?

É que suspirou a jovem tártara ele já é um rapazinho e não é fácil vigiá-lo. Ao passo que um pequenino...

Fiora segurou Khatoun pelos ombros e obrigou-a a fixá-la nos olhos.

Mete isto na cabeça! Não pode haver outra criança, senão é inútil a minha partida! Tens de a esquecer, deixar de pensar nisso! Compreendes? Se tudo acontecer como eu espero, nunca a verás.

Nunca?

Nunca. Porque terei de escolher entre ela e o meu marido e eu nunca renunciarei a Philippe. Portanto, se és incapaz de desempenhar o papel que te destino, diz-me imediatamente!

Que fazes?

Mando-te para junto de serDemétrios. Regressas para a villa de Fiesole e Péronnelle fica com o meu filho. Aliás, talvez fosse a melhor solução. Tu, agora, és livre, livre de te casares e teres filhos teus. Queres regressar a Florença?

Qualquer coisa que se parecia com pavor passou pelos olhos negros da jovem tártara.

Não! Não! Eu não te quero deixar! Eu fico aqui, não tenhas medo. Mas, por piedade, não fiques fora muito tempo!

Há-de ser sempre uma criança! suspirou Léonarde um momento mais tarde. A vida estragou-a, não a preparou para a adversidade...

Não exageremos! Ela passou por momentos difíceis.

Mas passageiros. A sorte acompanha-a desde que nasceu sem que ela se dê conta. Dezasseis anos no palácio Beltrami e depois, de lá, quase directamente para os braços de um marido que a amava. Depois da morte dele, foi vendida, é verdade, mas a quem? A uma grande dama que lhe restituiu, pouco a pouco, a existência a que estava habituada em nossa casa, após o que vos encontrou e regressou para aqui connosco. Para aqui, onde Péronnelle a estraga e mima como se fosse sua filha e onde ela leva uma vida familiar. Compreendestes? Como o nosso Philippe, com quem, segundo vós, ela sonhava, lhe parece agora um pouco difícil, quer outro bebé. Bebés pequeninos e gatinhos, eis o que lhe convém! Ela é capaz de perder a cabeça com essa criança que está para vir e deitar por terra toda a nossa combinação.

Nesse caso, que propondes? Não vou matá-la?

É evidente que não, mas, se estiverdes de acordo, penso inspirar-lhe terror suficiente para que mantenha a língua quieta e aconselho-vos a que digais o mesmo que eu.

Se ela disser uma palavra que seja, volta para Florença, foi o que lhe disse.

Mas não perdeis nada em lho repetir. É preciso que ela fique convencida de que, se falar, será expulsa. Já andam dois ou três rapazes em volta dela e isso não lhe desagrada nada. Basta que um deles a seduza e só Deus sabe o que ela lhe poderá dizer com a cabeça na almofada! A rapariga tem mais temperamento do que imaginais.

Fiora não revelou o que sabia sobre aquele assunto. Recordou Khatoun em casa de Pippa, de joelhos no chão, contorcendo-se sob as carícias da alcoviteira, Khatoun que, na noite seguinte, seguira o homem ao qual a haviam levado porque ele soubera fazer amor com ela. Tudo aquilo não era muito tranquilizador, mas que haviam de fazer?

Nada concluiu Léonarde senão dizer a Étienne e a Florent que a vigiem de perto. O que ela sabe tem demasiadas consequências para que o deixemos à mercê de uma noite de amor.

Fiora não respondeu. Ela gostava muito de Khatoun e tinha inteira confiança nela, uma confiança de que nunca se arrependera, antes pelo contrário. Mas Léonarde conhecia-a quase tão bem e, além disso, possuía uma sabedoria nascida da experiência e sabia que tudo o que era humano tinha limites.

Porém, Léonarde ignorava o que se passava, à noite, na Casa das Pervincas. Depois de ter deitado o pequeno Philippe, Khatoun recusou-se a jantar, alegando que sentia o coração sujo. Sem se deitar, a jovem verteu grossas lágrimas em cima do leito até que, na casa, se deixou de ouvir o menor ruído... Então, a jovem levantou-se, tirou o vestido ficando apenas em camisa e, sem voltar a acender a vela, saiu do seu quarto. Tal como os gatos, era capaz de andar de noite, às escuras.

Subindo as escadas descalça, a jovem atingiu o segundo andar e o quarto na mansarda onde dormia Florent. Uma luz

1 Ver Fiora elourenço, o Magnífico.


amarela filtrava-se pela porta, mas, ao abri-la, Khatoun viu que o jovem adormecera a ler um livro que lhe caíra sobre o nariz. Ela aproximou-se suavemente, retirou o livro com infinitos cuidados, tirou a camisa e ficou ali um instante a contemplar o adormecido. Com ar feliz, ele sorria a sonhar, o que fez com que Khatoun tomasse consciência da sua desolação.

Desatando em novos soluços, ela puxou os cobertores num gesto raivoso e atirou-se contra o corpo nu do rapaz, que abraçou com os braços e as pernas, cobrindo-lhe o pescoço e o queixo com beijos frenéticos. Tendo acordado em sobressalto com aquele assalto, Florent olhou com estupor para a sua assaltante enquanto tentava, frouxamente, verdade seja dita, libertar-se:

Por que não me disseste que vinhas esta noite? Não estava à espera...

Cala-te! Cala-te, peço-te, e faz amor comigo! Preciso muito! Acaricia-me! Possui-me!

Ao sentir a humidade das suas faces e lábios, ele compreendeu que ela chorava-.

O que é que se passa! Por que essas lágrimas?

Ela vai... ela vai partir outra vez! Ela vai-me deixar outra vez...

Quem?

Quem havia de ser?... Fiora, a minha patroa amada. Ela quer-me deixar, quando prometeu que nunca mais nos separaríamos! É aquela maldita Léonarde que ela vai levar...

Para onde? Para onde vai ela, agora que o Inverno está a chegar?

Para Paris, para casa de gente que eu não conheço... E por muito tempo.

Eu conheço-os, são os melhores amigos dela. Além disso, é Agnolo Nardi que lhe gere a fortuna. Mas, que vai ela lá fazer?

Um clarão de temor brilhou no olhar desnorteado da jovem, impedindo-a à justa de uma última confidência que, ela sabia-o, pagaria cara.

Não te posso dizer porque era capaz de morrer, mas faz amor comigo, suplico-te. É preciso que alguém trate de mim e me dê alguma alegria, porque a minha bela Fiora já não quer a sua escrava...

Onde foste buscar isso? indignou-se Florent. Só porque donna Fiora não te quer levar para Paris, achas que vais ficar separada dela para sempre? Tu vais ficar aqui a tomar conta do filho dela, e depois? Sentes-te infeliz?

E Florent tratou de provar a Khatoun que, pelo menos para ele, ela tinha muita importância. Um instante mais tarde, ela ronronava por baixo dele como um gato feliz e as suas lágrimas secavam sob os beijos do rapaz. O pequeno quarto encheu-se de suspiros, aos quais as paredes já estavam acostumadas.

De facto, três dias após a partida de Fiora e de Mortimer, Florent, que entretanto empilhava cuidadosamente fardos de palha para o Inverno, vira Khatoun ir ter com ele. Era um daqueles belos dias de Outono, tépidos, em que o Sol suave provoca alguma humidade na pele e dispõe à preguiça. Enquanto arrumava os fardos odoríferos, o rapaz talvez tivesse bebido um pouco de vinho a mais à refeição pensava, justamente, que seria bom rolar em cima deles com uma rapariga de corpo fresco.

Khatoun tinha um vestido de tela azul por cima de uma gargantilha cujas fitas, um pouco largas, deixavam ver uns ombros suaves. A jovem levava uma bilha de água fresca acabada de tirar do poço, cujas gotas cintilavam ao caírem uma a uma na terra batida. Sem uma palavra, ela deu de beber ao jovem e depois, pousando o recipiente com um meio sorriso como se fosse a coisa mais natural do mundo, pegou-lhe na mão e, olhando-o no fundo dos olhos, levou aquela mão-cheia de poeira a um dos seus pequenos seios redondos e duros, sobre o qual ela se fechou instintivamente.

Khatoun pode refrescar-te de outra maneira murmurou ela. É tão bom fazer amor com este calor! E a palha cheira tão bem!

Um instante mais tarde mergulhavam, os dois nus, no feno perfumado. A pele da pequena tártara era doce e sedosa como cetim cor de marfim e como, astuciosamente, ela roubara um pouco do perfume da sua patroa, o antigo aprendiz de banqueiro teve, ao fechar os olhos, a impressão de possuir aquela Fiora tão bela por quem estava tão perdidamente, tão desesperadamente, apaixonado... E pareceu-lhe delicioso.

Depois, quase todas as noites a menos que o pequeno Philippe não precisasse de Khatoun os dois jovens juntavam-se no quartito do rapaz para empreenderem jogos ardentes, dos quais tiravam um prazer cada vez mais arrebatado. Khatoun sabia que Florent não a amava verdadeiramente, assim como Florent sabia que não podia haver amor em casa da sua patroa, mas aquele amor, se bem que diferente, claro, que ambos sentiam por Fiora levava-os a unirem-se. Florent era jovem, bem constituído e naturalmente ardente. Quanto a Khatoun, o amor era para ela uma questão de instinto, como para muitas filhas da Ásia. Ela sabia satisfazer um homem sem deixar de guardar para si a sua dose de prazer, porque recebera do seu marido, o médico romano, as melhores lições. Quanto ao jovem parisiense, perdida a inocência em casa de uma prostituta das margens do Loire, descobriu, com a pequena tártara, um mundo de sensações inimagináveis. Conseguindo com ela feitos de que se julgava incapaz, tinha por ela um reconhecimento ingénuo. Graças a Khatoun, Florent achava-se um daqueles homens privilegiados pela natureza, dignos de se tornarem amantes de uma rainha.

Tu és uma verdadeira diabinha dizia-lhe ele, por vezes mas o amor contigo é tão doce...

O importante era, após uma noite particularmente quente, escapar ao olhar míope mas singularmente perspicaz da dama Léonarde, ou ao sorriso entendido do pai Étienne. Florent safava-se indo chafurdar no Loire ao nascer do dia, mas sabia que teria de encontrar outra coisa quando chegasse o Inverno. Era verdade que, então, as noites seriam mais longas e os trabalhos do jardim ou dos campos menos absorventes...

Mas, naquela noite, o jogo do amor terminou rapidamente e, enquanto Khatoun continuava a chorar com a cabeça aninhada no ombro do rapaz, este, apesar de tudo ter feito para apaziguar o desespero da sua amiga, confessou a si próprio que não estava longe de o partilhar com ela. Por que razão partiam Fiora e Léonarde para casa dos Nardi, sobretudo se tinham de ficar lá durante várias semanas, talvez vários meses? Entretanto, no meio da sua inquietação, nascia uma esperança: aquele grande diabo escocês não podia passar o tempo todo a escoltar as damas, o que lhe dava a ele, Florent, a hipótese de ser escolhido.

Sob o feroz comando de Archie Ayrlie, os seus progressos na equitação tinham sido rápidos e não havia razão nenhuma para o deixarem em casa.

O jovem abanou suavemente Khatoun, que adormecera, para a mandar para o seu quarto, um pouco envergonhado por constatar que a ideia de não a ver durante dias e dias não lhe provocava uma grande pena. E como ela recomeçasse a chorar, ele lançou-lhe, descontente:

Não vais passar o tempo todo a chorar até ao Natal? É aborrecido, sem dúvida, que donna Fiora se vá embora, mas podes ter a certeza, de que se o faz é porque tem uma boa razão. Por isso, não lhe compliques a existência! Ela volta. Sim... Tens razão, claro... Enfim, veremos...

E, pegando na camisa, Khatoun vestiu-a com um gesto maquinal e dirigiu-se para a porta. Florent voltou a deitar-se e esforçou-se por adormecer, porque o dia aproximava-se. As palavras de Khatoun martelavam-lhe a cabeça e ele esforçava-se por encontrar uma explicação. O jovem não conseguiu e, pelo contrário, acabou por adormecer num sono tão profundo que não ouviu cantar o galo e esqueceu-se das horas. Só quando Étienne o atirou da cama abaixo é que ele retomou o contacto com a realidade quotidiana.

Realidade essa que não tinha nada de sorridente. Fiora, com o rosto sombrio, não dizia palavra e parecia sofrer. A jovem estava pálida e visivelmente fatigada. Além disso, chovia a cântaros, o que provocava uma luminosidade cinzenta pouco sedutora. Assim, quando depois do meio-dia apareceu um pajem para lhe dizer que o Rei desejava vê-la, ela acolheu o convite sem o menor prazer. Florent, pelo contrário, ficou muito contente, porque a jovem ordenou-lhe de imediato que se aprontasse para a acompanhar e que selasse as mulas enquanto ela mudava de vestido.

Fiora encontrou Luís XI no seu quarto, uma vasta divisão cheia de tapeçarias representando temas de caça onde uma dezena de cães, épagneuls louros e galgos brancos formavam, sobre os tapetes, um arquipélago sedoso. Sentado numa cadeira de madeira esculpida perto da grande chaminé de pedra branca onde ardia um tronco de árvore, o Rei de França parecia curiosamente encarquilhado. Friorento em excesso, estava vestido como em pleno Inverno com um traje castanho sólido e quente orlado de pele de castor, que luzia como uma castanha, combinando com o chapéu que usava, como habitualmente, sobre um barrete de lã vermelha que lhe cobria as orelhas. Junto dele, o seu galgo favorito, Cher Ami, estendia o seu estreito focinho para os bocados de biscoito que as mãos finas, verdadeiramente reais, talvez a única beleza daquele estranho soberano, ofereciam à sua gulodice. À luz das chamas, os rubis encastoados na coleira do cão brilhavam como brasas.

Junto do Rei estava um homem, inclinado para ele para poder ouvir qualquer das suas palavras e Fiora, ao vê-lo, estremeceu. Só vira uma vez aquele rosto de fuinha, aqueles cabelos ralos cortados curtos e aqueles olhos glaucos, mas reconheceu logo o seu proprietário como o homem que, sem que ela lhe tivesse feito qualquer mal, era seu inimigo jurado, aquele que mandara assassiná-la na floresta de Loches. Era Olivier le Daim, barbeiro e confidente do Rei, pelo menos tanto quanto o pode ser um homem que, todos os dias, passeia uma navalha de barba pela garganta de outro. Uma coisa parecia certa: tinha os favores do Rei e Fiora, por mais que quisesse, não o podia acusar abertamente.

Para não ver mais aquele olhar amargo como fel deslizando sobre ela sob as pálpebras descaídas, ela saudou profundamente, esperando que o Rei a libertasse da sua reverência. O que ele fez sem tardar:

Aproximai-vos, Madame de Selongey! Temos de falar, vós e eu! Deixa-nos, Olivier!

O barbeiro sorriu de má vontade, enquanto Fiora avançava para a chaminé e para a cadeira que lhe era indicada. A jovem juraria que o outro ficaria à escuta por trás da porta. No entanto, decidiu não pensar mais nele e sentou-se sem dizer nada, porque cabia ao Rei falar em primeiro lugar. Como ele não parecia apressado, ela examinou-o discretamente e achou-o com má cara. O longo nariz pontiagudo parecia mais adelgaçado e o pesado rosto, de mandíbulas carnívoras, feito de pergaminho amarelecido, ao mesmo tempo que um tique nervoso lhe contraía por instantes a boca de linhas desdenhosas.

Sabendo que ele sofria de má circulação e de dolorosas hemorróidas, ela pensou que uma crise, talvez, explicaria a contracção do seu rosto. E teve a certeza quando, mexendo-se nas almofadas, ele não conseguiu evitar um breve gemido logo seguido de um movimento de cólera e de uma pergunta:

Pelos Céus! Onde está ele, esse animal?

Quem, Sire?

Aquele médico bizantino... Como se chamava ele? Ah sim: Lascaris! Demétrios Lascaris! Vós éreis muito amigos, creio?

De facto, Sire.

Nesse caso, devíeis saber onde está! Não compreendi porque não voltou para o pé de mim depois da queda de Nancy. A sua vingança estava completa com a morte do duque Carlos e o jovem Renato de Lorena não precisava dele. Então? O meu serviço não lhe convinha?

O Rei não pensa isso, certamente, porque Demétrios gostava de o servir, mas uma... desavença instalou-se entre nós e ele preferiu regressar a Florença. Onde se encontra ainda.

E eu, no meio disso tudo?

Ele pensava seriamente que o Rei não precisava mais dele. É um homem muito modesto...

Ele? troçou Luís XI. Ele é tão orgulhoso como um pavão. Em todo o caso, não devia agir dessa maneira. Eu é que sofro, não é ele. Já que sabeis onde ele está, escrevei-lhe a dizer que venha! A carta será levada por um dos meus cavaleiros postais...

Sire, eu pedi-lhe que viesse comigo, mas ele envelheceu e receia as longas viagens. Talvez porque percorreu demasiado o mundo. Além disso, o Inverno está a chegar. Na sua idade...

Pois! O Rei de França, esse, pode sofrer a morte e o martírio enquanto ele está repimpado ao sol. Bem, escrevei-lhe a dizer que me mande a sua pomada milagrosa! Eu mando-o vir na Primavera. E agora falemos de vós! Fostes cabriolar com o mulo do meu escocês?

O Rei pensa verdadeiramente que cabriolar é a palavra apropriada? Nós fizemos uma viagem longa e fatigante e...

Bom, bom! Retiro o cabriolar. Desculpai-me, donna Fiora! Estou de muito mau humor!

Como que falando para si mesmo, ele explicou então que, como existia uma trégua entre o casal Maria de Borgonha Maximiliano de Áustria e ele próprio, o Rei Eduardo de Inglaterra, tão perfeitamente ridicularizado, mas pago, em Picquigny, queria aplicar uma das cláusulas do tratado: o casamento entre o delfim e a sua filha Isabel.

Aquele rato quer-nos mandar a filha para concluir o casamento e receber as sessenta mil libras que eu devo pagar por ano pela mão dessa princesa... que eu não quero. Safa, uma inglesa no trono de França! Além disso, o meu filho, aos oito anos, é demasiado jovem para se casar. Tenho de arranjar um meio de manter Eduardo tranquilo.

E... o Rei encontrou esse meio?

O tempo! Nada mais do que o tempo! Além disso, tenho em Londres um embaixador, Marigny, que é um homem muito hábil. Vai ser o diabo se entre os dois não conseguirmos deter Eduardo. Ainda por cima porque ele casou com uma rapariga da pequena nobreza e o seu trono, cobiçado pelo seu irmão Gloucester, não é tão sólido como se pensa... Mas, como acabámos nós a falar de política? Estávamos, creio, a falar da vossa temeridade em Villeneuve-Saint-André! Parece, portanto, que o conde de Selongey, depois de ter fugido do castelo de Pierre-Scize, encontrou asilo no convento do Val-de-Bénédiction?

Sim, Sire. Mortimer deve ter-vo-lo dito!

De facto. Terá ele aproveitado uma peregrinação para escapar aos monges? O que prova, quanto a mim, que ele não perdeu tanto a memória como nós pensamos.

Sire! protestou Fiora, escandalizada. O meu marido, desempenhar um papel desses?

Por que não? Em Villeneuve, que nos pertence, talvez não se sentisse em segurança.

O convento é um lugar de asilo!

Sem dúvida, mas vós sois uma criança e não imaginais quantos lugares de asilo são pouco seguros desde que certos

1 O futuro Ricardo III.


interesses estejam em jogo. O vosso marido é um homem inteligente. Pelo contrário, fico surpreendido por a vossa estadia em Roma vos ter deixado com tanta inocência.

Fiora sentiu-se corar e procurou disfarçar torcendo o pequeno lenço que tirara da manga. O Rei não fazia qualquer alusão ao cardeal della Rovere e parecia ignorar tudo da aventura trágica para que ele a arrastara.

De novo o silêncio, perturbado apenas pelo crepitar do fogo, se estabeleceu entre ambos. Luís XI acariciou a cabeça do seu cão favorito e procurou uma guloseima para um dos épagneuls que, após se ter estirado longamente, se aproximou dele e se deitou a seus pés... Os cães são os melhores, os mais seguros, os mais fiéis amigos que um homem pode ter. Ainda mais um rei suspirou ele. E agora, tendes alguma ideia do sítio para onde poderá ter ido messire de Selongey? Parece que não procurastes muito em redor de Villeneuve!

Achei que era inútil e esperava... ainda espero que ele se lembre, um dia, de que vivo na vizinhança do Rei. A menos que tenha preferido partir para longe.

Virando-se, Luís XI retirou de uma mesa um pouco à retaguarda uma mensagem desdobrada cujo selo quebrado mostrava que já tinha sido lida...

Uma coisa é certa: ele não esteve em Veneza. O doge em pessoa escreveu-nos dizendo que nenhum viajante parecido com ele foi visto na cidade. Quanto aos que se alistaram para combater o Turco nas galeras da Sereníssima, a lista é curta e nenhum desses homens pode ser o conde de Selongey.

Bem! suspirou Fiora. Agradeço ao Rei o trabalho a que se quis dar...

Por Deus, minha querida, ponde de lado essas frases feitas! Estou tão desejoso como vós por pôr a mão nesse tição de revolta, capaz de sublevar de novo a Borgonha que Charles d’Amboise está em vias de pacificar...

O Sire de Craon já não é governador de Dijon?

É um bom servidor, mas é um imbecil e eu preciso de servidores inteligentes. De qualquer maneira, vamos recomeçar as buscas para ver se encontramos o vosso marido...

Por favor, Sire... não façais nada!

Os olhos vivos do Rei, sempre meio cobertos pelas pesadas pálpebras, abriram-se por completo:

Não quereis que o encontre?

Não, Sire. Se os vossos homens o procurarem, ele foge-lhes... ou mata-os. Eu quero... eu espero que ele venha ter comigo por vontade própria, sem que seja necessário lançar-lhe no rasto todos os marechais do reino.

Nesse caso, já cá devia estar!

Isso não é certo. Veio-me à ideia que, depois de deixar Villeneuve, ele pode ter preferido continuar com os peregrinos que o ajudaram sem saber.

Pensais que ele pode tê-los seguido até à Galiza?

Por que não? O burel do peregrino constitui a melhor protecção que um fugitivo pode encontrar. Além disso, o caminho é longo. Isso permite que as coisas acalmem. Enfim, não tinha outra escolha porque, se bem compreendi, não tinha um centavo com ele.

O Rei já não parecia escutar. Os seus olhos seguiam o desenho fantástico das chamas e pôs-se a reflectir em voz alta:

Se ele deixou Villeneuve em Maio, já devia estar de regresso. Salvo qualquer acidente, evidentemente...

Acidente? murmurou Fiora já angustiada.

O caminho de Santiago é longo, penoso e perigoso. Nem todos os que o percorrem regressam vivos. Penso que podemos, como vós desejais, fazer uma trégua nas nossas buscas. Continuá-las-emos se o Inverno não o tiver trazido até nós, entretanto. Mas rezai a Nosso Senhor e à Virgem Maria para que esse homem ouça a voz da razão e venha buscar a paz junto de vós.

Escondia-se na voz pesada do Rei uma ameaça e Fiora ficou suficientemente inquieta para ousar perguntar:

Senão? É a palavra que vem a seguir, não é, Sire?

Sim. Senão, posso deixar de me recordar de uma coisa: que ele é um rebelde e que passo a tratá-lo como tal. E agora deixai-me, minha cara! Estou cansado e queria dormir um pouco. Não vos esquecereis da carta?

Para Demétrios? Escrevo-a assim que chegar a casa e envio-vo-la de imediato!

Obrigado!... Quando for rezar esta noite a Nossa Senhora de Cléiy, peço-lhe que vos conceda a paz que parece ter prazer em fugir-vos. Não me atrevo a pronunciar a palavra ”felicidade”, porque é demasiado frágil... e ninguém sabe, na verdade, onde ela mora...

Uma hora mais tarde, já em casa, Fiora escreveu a Demétrios para lhe dar parte das necessidades do Rei. Terminada a carta, a jovem secou-a, selou-a e chamou Florent para que a levasse a Plessis. Feito aquilo, Fiora escreveu uma outra carta destinada a messer Agnolo Nardí, rue des Lombards, Paris. Era inútil perder mais tempo.

CAPÍTULO VIII PARAGEM EM BEAUGENCY

No fim do mês de Outubro, Fiora e Léonarde deixaram la Rabaudière sob escolta de Florent, incapaz de esconder a alegria. Não era normal, explicou ele durante a última noite a uma Khatoun em plena crise de ciúmes, que tivesse o prazer de ir abraçar os seus parentes? E o jovem apressou o instante da partida para cortar cerce as comoções e, sobretudo, para não ver mais a jovem tártara, de pé na soleira da casa, apertando ferozmente contra si o pequeno Philippe que, pouco satisfeito com o tratamento, protestava vigorosamente, ao ponto de Péronnelle ter de se intrometer. Os olhos negros chamejavam de cólera e desgosto ao mesmo tempo, enquanto, do alto da sua mula, Fiora dava as suas últimas instruções com o tom alegre de alguém que vai fazer uma viagem de recreio.

A versão oficial era que Agnolo Nardi desejava que ela fosse a Paris para tratar de negócios importantes. Sentindo-se envelhecer, o negociante queria informar a herdeira de Francesco Beltrami do que necessitaria de fazer caso ele desaparecesse. Mentira piedosa, evidentemente, já que os interesses da jovem estavam, naquela época, nas mãos firmes de Lourenço de Médicis. Na realidade, Agnolo escrevera a Fiora dizendo que ele próprio, a sua mulher Agnelle, a sua casa e o seu coração, só desejavam uma coisa: recebê-la de novo e ficar com ela o mais tempo possível. Ambos ignoravam a razão profunda da estadia que Fiora pretendia fazer em Paris.

Péronnelle e Étienne, na simplicidade dos seus corações, não tinham visto nada de extraordinário naquela viagem. Para eles, Fiora, que eles amavam sinceramente, acabara por ganhar as cores de uma bela ave migratória. Só uma coisa tinha importância a seus olhos: a jovem confiava totalmente neles e, graças a ela, não tinham quaisquer preocupações de ordem material. Enfim, junto deles vivia uma criança, dando-lhes a doce ilusão de serem avô e avó.

Para seu pesar, Fiora não pudera despedir-se de Douglas Mortimer. O escocês, cujos serviços o Rei muito apreciava, estava em missão. Queria dizer que toda a gente, salvo Luís XI, ignorava onde ele se encontrava. A este último, a jovem, na manhã da partida, fez chegar uma carta anunciando uma ausência de algumas semanas por razão de negócios. Ela sabia-o suficientemente desconfiado para se permitir deixar a sua vizinhança sem o prevenir. Tendo, assim, tranquilizado a sua retaguarda, Fiora tomou o caminho de Paris com o coração leve, que fez, juntamente com Léonarde, por Tours, Amboise, Beaugency e Orleães.

Uma viagem agradável feita sem pressa excessiva para poupar Léonarde. O tempo de Outono estava bom e se as noites ficavam frescas e por vezes chuvosas, o Sol parecia dar-se ao trabalho de reaparecer todas as manhãs e, de tarde, permitia que as janelas estivessem abertas e que houvesse longas conversas na rua.

Ao aproximarem-se da grande cidade, Fiora apercebeu-se de que sentia impressões diferentes das sentidas três anos e meio antes, quando ali chegara com Léonarde, Demétrios e Esteban. Sob o golpe da morte trágica do seu pai e das cruéis provações que se lhe tinham seguido, ela só desejava um refúgio, um local onde ninguém a conhecesse e onde pudesse recobrar as forças para os combates que jurara travar. Desta vez, concedendo a si própria o prazer de olhar à sua volta, viu que os arredores de Paris pareciam tão aprazíveis como as margens do Loire: planícies e pequenos planaltos cobertos de campos cultivados, outeiros guarnecidos de vinhas ou sarapintados de árvores frutíferas, vales verdes de pastagens, bosques, florestas, castelos mostrando muitas vezes pedras novas e depois, à medida que se iam aproximando, burgos importantes, aldeias aprazíveis e grandes abadias. Até as muralhas da cidade capital pareciam rejuvenescidas, porque Luís XI velava de perto pelas defesas das suas grandes cidades e encorajava os restauros.

Sobre Paris já não pesava, como da primeira vez, a ameaça dos Ingleses. As ruas estavam cheias de vida ruidosa, rica e colorida, onde não ressoava o passo ferrado da tropa em marcha. À excepção dos guardas da porta de Saint-Jacques e das sentinelas postadas nas duas torres, a Petit e a Grand, que dominavam a Petit-Pont e a Pont-au-Change, os viajantes não encontraram uma única cota-de-armas, um único capacete de ferro.

Que bela coisa, mesmo assim, é a paz! observou Florent, dardejando com um olhar assassino um bando de estudantes que assobiaram à passagem de Fiora e lhe enviaram beijos.

Nesse caso, fazei os possíveis para não a perturbar e deixai de vos preocupar com aqueles rapazes!... E fazei com que avancemos um pouco mais depressa! Estou morta por ver as três empenas da casa de messer Nardi!

Passada a Grand-Pont e o barulho dos seus moinhos, o Grande Matadouro e os seus odores abomináveis de vísceras e sangue coagulado, chegaram ao seu destino e as duas mulheres viram com prazer que nada mudara: a bela tabuleta pintada continuava a balouçar majestosamente e as línguas vermelhas dos cata-ventos, sobre os telhados, continuavam a girar suavemente sob o vento da tarde. As janelas de quadrados brilhantes abriam-se como outrora para grandes divisões que cheiravam a cera fresca e a pão quente e na loja do rés-do-chão os empregados, de pena de ganso entre os dedos, continuavam curvados sobre os grandes registos de pergaminho. Mas a aparição de Agnolo Nardi, ao chamamento de Florent que se precipitara para o edifício mal descera do seu cavalo, apertou o coração de Fiora. Na verdade, ela reencontrava o mesmo homenzinho redondo e moreno se bem que um pouco grisalho, mas caminhava apoiado a uma bengala e os olhos da jovem encheram-se de lágrimas. Aquela bengala, apesar de enobrecida com um punho de prata cinzelada, não era menos a prova do que o bom Agnolo tivera que suportar ao serviço de Fiora: a tortura pelo fogo que lhe infligira o impiedoso Montesecco para obter dele o endereço da jovem. Era uma sorte ele poder ainda andar! E foi assim que ele encontrou umas faces húmidas quando Fiora desceu da montada para o abraçar.

Ver Fiora e o Papa Sisto IV


Estás a chorar, donna Fiora? exclamou ele. Que boas-vindas! E nós que estamos tão contentes com a tua vinda!

Choro de vergonha, meu amigo, e de pesar, porque é a mim que deves tanto sofrimento e...

Chhh! Eu não fui assim tão valente, porque aqueles bandidos pensaram logo em atirar-se à minha Agnelle... e então, claro, disse tudo o que aquele demónio queria. Se alguém deve pedir perdão, esse alguém sou eu!

Nem mais uma palavra sobre esse assunto! Graças a Deus, Montesecco pagou pelos seus crimes. Ou antes, por um crime que se recusou a cometer.

Como é isso?

Aquando da conspiração dos Pazzi, na última Páscoa, ele recusou abater os Médicis no Duomo, mas foi, na mesma, preso e decapitado.

A justiça de Deus vence sempre! Mas, entrai depressa! Florent vai pôr os animais na cavalariça. Ele deve lembrar-se do local e...

Um grito de alegria interrompeu-o. Sempre redonda, sempre loura, Agnelle, de grandes olhos azuis e de vestido de veludo justo, acabava de surgir com o seu andar habitual, o de uma corrente de ar, e atirava-se para os braços de Fiora, que beijou e voltou a beijar antes de cair nos de Léonarde.

É o que se chama uma chegada discreta! disse entredentes Agnolo com um olhar para as janelas vizinhas onde se instalara uma grinalda de vizinhas.

Quem falou de discrição? protestou a mulher. E por que havíamos de esconder a vinda da nossa donna Fiora, que nós amamos como se fosse nossa filha?

Entretanto, Agnelle mandou entrar toda a gente em casa, onde o bailado das criadas encarregadas de preparar os quartos e melhorar a ementa da noite já tinha começado. Léonarde e Fiora reencontraram com prazer os seus antigos aposentos enquanto Florent partia na direcção dos escritórios para ali fazer a ostentação da sua nova condição de escudeiro de uma grande dama e do seu elegante fato de belo tecido cinzento usado por baixo de uma ampla capa forrada de pele de esquilo. Em seguida iria a casa do seu pai, o cambista Gaucher lê Gauchois, para ali abraçar a sua mãe, as suas irmãs e, certamente, passar a noite.

Estava, portanto, ausente quando, após o jantar, com todas as portas fechadas e as criadas retiradas nos seus quartos, Fiora deu parte aos seus amigos do embaraço em que se encontrava sem procurar qualquer desculpa.

Pelas cartas de Léonarde e pelas minhas, soubestes da aventura insensata para que me vi arrastada antes de poder, por fim, regressar a Florença e viver lá algumas semanas de paz, direi quase de felicidade, porque, durante essa estadia amei... amei Lourenço de Médicis e ele amou-me. Não vo-lo escondo, senti-me tentada a ficar lá, a mandar chamar o meu filho e Léonarde. Evidentemente, pensava que era viúva, mas, morra eu de vergonha diante de vós, creio que, se soubesse que o meu marido estava vivo, as coisas se teriam passado da mesma maneira...

Fiora calou-se por um momento. Antes de começar, recuara o suficiente para que o seu rosto não ficasse demasiado iluminado pelo grande candelabro pousado em cima da mesa. De facto, tinha consciência da incongruência de tais palavras naquele ninho de esposos honestos e fiéis um ao outro. Agnolo e Agnelle votavam um ao outro um amor profundo e, certamente, a segunda nunca teria a ideia, sequer, de olhar para outro homem que não o seu marido. No entanto, naqueles dois rostos virados para si, Fiora não viu nada que se parecesse a uma condenação. Pelo contrário, Agnelle sorriu-lhe:

Vós conheceis monsenhor Lourenço desde sempre, não é verdade?

Desde sempre, de facto...

Então, talvez o amásseis já sem vos dardes conta? Agnolo nunca deixou de me repetir que ele é o homem mais extraordinário deste tempo e que o seu encanto é extremo.

Isso é mesmo vosso, querida Agnelle, procurar uma desculpa para a minha falta, mas eu não amava Lourenço. Era pelo irmão dele, Giuliano, que eu estava apaixonada. Acrescento que o esqueci a partir do momento em que conheci Philippe de Selongey. E é aí que, a despeito da vossa indulgência, talvez tenhais alguma dificuldade em me compreender, porque, mesmo quando estava junto de Lourenço, nunca deixei de amar Philippe e quando soube, por messire de Commynes, que o Rei o agraciara e que ele continuava vivo, o meu único pensamento foi voltar para ele, a minha única esperança era encontrá-lo...

Do outro lado da mesa, a voz de Agnolo, tranquila e um pouco surda, fez-se ouvir:

Quem, de nós, pode vangloriar-se de ter vivido sem pecado? Esquecerás monsenhor Lourenço assim como esqueceste o irmão dele!

Não. O esquecimento é doravante impossível e é por isso que eu vim pedir a vossa ajuda... se não me desprezais demasiado!

O silêncio que se seguiu não durou muito. Agnelle levantou-se, colocou-se por trás de Fiora e, deslizando os seus braços em redor do pescoço da jovem, disse calmamente:

Creio, Agnolo, que te deves certificar de que as portas estão bem fechadas.

Ele ergueu uma sobrancelha, sorriu, levantou-se e deixou a sala. O som dos seus passos desiguais afastou-se lentamente. Então, sem abandonar a sua pose afectuosa, Agnelle murmurou ao ouvido de Fiora:

Quando é que chega a criança?

Em Abril, penso, mas, Agnelle, eu não quero, sobretudo, arranjar-vos problemas.

Chhh! Não haverá problema nenhum. Como o vosso marido está vivo, o seu nascimento deve permanecer secreto.

É o que eu desejo e foi também por isso que me quis afastar antes que os sinais exteriores se tornassem visíveis.

Fizestes muito bem. Aqui, a casa é grande...

Não cortou Léonarde. Aqui não é possível. Esquecestes o burburinho provocado pela nossa chegada? Além disso, há as criadas, os empregados do vosso marido. Que grande segredo seria! Nós estávamos a pensar pedir-vos que nos emprestásseis a vossa casa de Suresnes, onde eu passei uma convalescença agradável quando parti a perna.

Agnelle endireitou-se lentamente e deu alguns passos ao longo da chaminé antes de se deter.

Ficastes aborrecida? perguntou Fiora.

Por vós. Uma casa onde só vamos no Verão, passardes lá o Inverno com a humidade do Sena...

As chaminés fumam perfeitamente continuou Léonarde e eu já conheço a casa e os arredores. Penso que não estaremos mais bem retiradas aqui do que lá. Evidentemente, não nos poderemos instalar com grande estadão. Fiora passará por uma cozinheira italiana do vosso marido, ou uma sobrinha que esteve doente e eu serei uma aia muito conveniente. Além disso, o trabalho da casa e os cuidados de um parto não me metem medo.

Quereis morar lá sozinhas?

Naturalmente disse Fiora. O jovem Florent é-me muito dedicado, mas ignora tudo e eu penso mandá-lo de volta para la Rabaudière.

É impossível! disse Agnelle de forma categórica. A casa, como sabeis, está um pouco isolada. É preciso um homem, nem que seja para a lenha, a água e os trabalhos pesados. Florent conhece o local por ter tratado do jardim durante muito tempo e também as gentes dos arredores. Se adoptarmos a ideia da sobrinha de Agnolo, ninguém se espantará por ver o rapaz em Suresnes. Por que não quereis pô-lo ao corrente? Ele não merece?

Fiora corou e não respondeu. Léonarde encarregou-se disso:

De maneira nenhuma, mas o que preocupa Fiora é aliás, vós já o sabeis é que ele está apaixonado por ela desde o primeiro encontro, aqui mesmo. Ela teme... chocá-lo; talvez, até, feri-lo.

Conhecei-lo mal. Ele ficará orgulhoso da vossa confiança e mais ainda por poder velar por aquela que tanto ama. Mas, agora, temos de discutir imediatamente um assunto mais importante: a criança. Que lhe ides fazer? Não a podeis levar convosco...

Eu sei disse Fiora. E podeis acreditar que isso me custa muito. Não posso aceitar a ideia de me separar dela para sempre. No entanto, vou precisar de encontrar uns pais adoptivos de confiança...

E não pensastes em nós? exclamou Agnelle sinceramente indignada. Onde encontrareis pais melhores do que Agnolo e eu, a quem o Céu não concedeu filhos? E onde ficará ela melhor senão em nossa casa, onde podereis vê-la quando quiserdes?

Fiora, por sua vez, levantou-se, tomou a excelente mulher nos braços e apertou-a contra o coração:

Devo confessar-vos: esperava que falásseis assim.

Mas não tínheis a certeza? Porquê?

Estava certa da mulher que sois. Mas há o vosso marido. Ele pode opor-se. Eu conheço os seus princípios...

Mas não conheceis o seu coração. Decididamente, minha amiga, conheceis mal os homens. Educar como seu o filho de monsenhor Lourenço e da sua querida donna Fiora? O meu Agnolo vai subir ao céu!

E assim aconteceu com lágrimas nos olhos, Agnolo agradeceu à jovem a prova de afecto que lhes ia dar.

Farei dele um homem digno do vosso querido pai afirmou ele.

E se for uma rapariga? Há essa possibilidade.

Bem, nesse caso será a luz desta casa.

Quanto a Florent, Agnelle conhecia-o melhor do que Fiora e julgou-o correctamente. Ao saber o que esperavam dele, o jovem colocou um joelho em terra diante da jovem como um cavaleiro perante a sua dama e jurou velar até à morte, se fosse preciso, por ela e pela criança que estava para nascer. Depositário de um segredo tão perigoso para a paz futura daquela que amava, sentiu-se imensamente orgulhoso e, além disso, encantado: a perspectiva de uma longa e estreita coabitação com Fiora sem outras testemunhas que não Léonarde, deliciava-o. De repente, sentia a força e a sabedoria de todos os cavaleiros do grande Carlos Magno juntos. Também sentia uma inquietação ao pensar em Khatoun e na sua atitude perante uma ausência tão longa, mas se, no regresso, tivesse de enfrentar cenas desagradáveis, teria valido a pena.

Durante os três dias que se seguiram, Fiora e Léonarde comportaram-se como duas estrangeiras em visita. Foram com Agnelle a Notre-Dame, à Capela Santa, vaguearam pelos mercados e pelo cemitério dos Inocentes. Efectuaram numerosas compras na rue de la Lingerie que confinava com o famoso recinto dos mortos, onde ia parar a maior parte dos defuntos de Paris. Não deixaram de dar esmola à reclusa do local, a venerável Agnès du Rocher, que se fizera emparedar setenta e cinco anos antes com a idade de dezoito anos no estreito cubículo sem portas nem janelas, apenas com uma fenda que dava para o cemitério. Havia ali sempre um grande ajuntamento de mulheres ajoelhadas, rezando diante daquela abertura que só deixava aperceber um monte de trapos nauseabundos, nos quais era impossível distinguir um rosto. Fiora deixou cair duas moedas de ouro no interior da parede imunda:

Ela não fica com elas murmurou Agnelle. Antes do anoitecer, um miserável qualquer vem aqui implorar o seu socorro e ela dá-lhas. De qualquer maneira, tereis feito uma obra piedosa.

De facto, do interior, uma voz quebrada, trémula, que não pertencia de todo a este mundo, fez ouvir um agradecimento e uma bênção em nome do Altíssimo.

Como é que uma rapariga foi capaz de se condenar a um tal suplício? perguntou Léonarde, impressionada. Por que não escolheu antes o convento?

Talvez porque era precisa uma grande expiação. Diz-se que Agnès, que era uma rapariga nobre, amou um rapaz que não era do seu nível e que teve dele um filho. O pai dela teria matado, com as suas próprias mãos, o amante e o recém-nascido. Refeita do parto, Agnès conseguiu do bispo de Paris autorização para entrar em clausura. Havia várias em redor do cemitério. Vou mostrar-vos daqui a pouco, entre os túmulos, a da irmã Alix Ia Bourgotte, morta em 1466, sobre a qual o Rei, nosso sire, mandou erguer uma estátua em tamanho natural com as palavras:

Aquijaz a irmã Alix Ia Bourgotte Durante a vida reclusa muito devota Onde reinou humildemente e longamente Durante quarenta e oito anos

Mas Fiora não tinha vontade de ir ver a efígie daquela santa mulher. Aquelas penitências excessivas inspiravam-lhe uma espécie de repulsa e, se bem que compreendesse que uma rapariga desesperada pudesse escolher o asilo de um convento, tinha da vida, esse dom de Deus, uma ideia demasiado elevada para

Agnès viveu assim até 1483, data em que morreu com noventa e oito anos.


admitir aquela espécie de suicídio que, aliás, nem sequer o era porque, submetidas durante anos à humidade e ao frio, mesmo ao gelo, ou ao calor extremo, as penitentes permaneciam vivas durante anos intermináveis. Era preferível, cem vezes, morrer de insolação nos caminhos de Santiago de Compostela, ou morrer afogada a caminho da Terra Santa!

Para ela, os seus pecados de amor eram bem mais graves do que os daquela Agnes que, de facto, expiava o crime de outro, mas a ideia de escolher aquela tumba para ali viver o resto da vida na imundície, fazia-lhe horror. Léonarde deu-se conta disso e afastou-a dali:

Não é um espectáculo para uma futura mãe sussurrou-lhe ela. E Deus não pede tanto aos seres humanos, porque, então, o seu Paraíso, no dia do julgamento, estaria tristemente vazio!

Fiora sorriu-lhe e, sob o manto, sentiu deslizar pelo seu ventre uma mão já protectora. À medida que os dias passavam, a jovem ligava-se cada vez mais àquele pequeno ser desconhecido que ganhava vida nas suas entranhas e começou a pensar que a separação inevitável seria, talvez, tão dolorosa como as dores do parto.

Entretanto, ao mesmo tempo que as mulheres percorriam Paris, Florent, seguindo as ordens de Agnolo, efectuava numerosas viagens a Suresnes para pôr a casa em estado de oferecer uma estadia invernosa mais ou menos confortável. A aldeia, dependente da abadia de Saint-Leuffroy, ela própria vassala da rica e poderosa abadia de Saint-Germains-des-Prés, não tinha grandes recursos para além das vinhas estendidas pelos outeiros acima e dos rebanhos de carneiros que, no Verão, ocupavam as vertentes do monte Valérien. Graças aos cuidados e precauções de Agnelle, tudo ficou pronto a tempo e quando, ao quarto dia, Fiora e Léonarde se despediram dos seus amigos alegre e ruidosamente, sabiam que podiam enfrentar o futuro com uma certa serenidade. De facto, quando a criança fosse viver para casa dos Nardi, aquela boa gente da rue des Lombards não faria a ligação entre a grande dama elegante vinda passar alguns dias em Outubro e a pobre rapariga vinda de Itália para esconder a sua falta longe do seu ambiente habitual.

Os vizinhos em questão teriam ficado muito surpreendidos se tivessem podido assistir, uma hora mais tarde, à curiosa cena que se desenrolou numa cabana de lenhadores abandonada da floresta de Rouvray: a grande dama e a sua seguidora trocavam os seus ricos trajes de viagem por vestidos, capas de espesso pano cinzento e negro e coifas de tela simples que baixaram sobre o rosto, assegurando assim um porte modesto pouco susceptível de atrair a atenção dos passantes, por sinal bastante raros. Após o que retomaram o caminho para Suresnes onde chegaram ao fim do dia, àquela hora cinzenta e indecisa a que chamam ”entre cão e lobo”, quando as ave-marias acabavam de soar no campanário de Saint-Leuffroy.

Situada entre as vertentes do monte Valérien e o Sena, no qual ia desaguar o seu pequeno pomar, a propriedade de Agnolo Nardi compunha-se do dito pomar, de uma bela vinha que subia suavemente pelo outeiro e de um jardim rodeando uma casa baixa construída em estuque e vigas de madeira cruzadas à moda de Paris por cima de um rodapé de pedra que continha a adega e as caves. Uma escada exterior ia dar ao único andar, encapuzado com um grande telhado pontiagudo. Duas ou três pequenas dependências, das quais uma delas uma cavalariça, formavam, nas traseiras, um pátio irregular com um charco no meio, no qual galinhas e patos se divertiam o dia todo. Um idoso, nodoso como uma cepa e quase tão falador, o tio Anicet, assegurava, em princípio, a guarda do domínio, protegido pela vizinhança com a abadia. O tio Anicet tratava da vinha com a ajuda intermitente mas vigorosa, sobretudo na ocasião das vindimas, de dois homens da aldeia, os irmãos Gobert. O ancião vivia num casinhoto junto à água, o que lhe permitia dedicar-se ao que mais gostava neste mundo para além dos vinhos da região: a pesca. Enfim, nunca punha os pés na casa principal onde, à chegada, Florent se apressou a acender a lareira que tinha preparado antecipadamente.

A casa compunha-se de uma grande cozinha que servia de sala de todos os dias, de quatro quartos e de um recanto para as provisões. Os móveis eram simples, mas sólidos e bem escolhidos, assim como as tapeçarias que aqueciam os quartos, onde nem sequer faltavam os tapetes. Adivinhava-se a mão de Agnelle na abundância e qualidade da roupa branca e nos objectos usuais. Nada de luxuoso, claro, mas tudo o que era preciso para tornar confortável uma estadia de Inverno...

A menos que haja uma grande enchente acrescentou Florent, que fazia as honras da casa não temos nada a recear por parte do rio. Já aconteceu a água vir até à entrada da cave, mas podemos sempre sair pelas traseiras, porque a casa está situada numa encosta. Achais que ides ficar bem aqui, donna Fiora?

Esta tranquilizou-o com um sorriso.

Muito bem. Aliás, tinha a certeza desde que dame Léonarde esteve aqui. Olhai para ela, Florent, já está em casa.

A vida organizou-se rapidamente, ritmada pelo sino do convento de Saint-Leuffroy, que soava para os serviços religiosos. As duas mulheres tratavam da casa e da cozinha, cosiam, bordavam ou fiavam à noite sob o arco da chaminé que os reunia aos três. Florent, esse, velava pelos trabalhos pesados e pelo abastecimento. Fiora sentia-se nitidamente mais alerta do que durante a sua primeira gravidez e percorria muitas vezes a propriedade. Não se mostrava na aldeia a fim de evitar a curiosidade. Mas, aproveitando o Verão de São Martinho, conseguiu que Florent a levasse com Léonarde até ao topo do monte Valerian para admirar a vista sobre Paris, que tinha muita fama. Parecia-lhe que a contemplação da natureza a ajudava na gestação. Além disso, o monte tornara-se ponto de peregrinação desde que ali vivia um eremita chamado Antoine. Para simbolizar o Calvário, erguera três cruzes de madeira, diante das quais rezava de manhã e à noite.

Para não incomodar o santo homem nas suas orações, Fiora e Léonarde subiram a encosta ao começo da tarde. De facto, não encontraram ninguém e mal aperceberam a cabana feita de ramos que ele construíra na orla do bosque.

Do alto, o panorama era admirável. Paris encerrada nas suas muralhas e cortada pela longa fita cinzenta do Sena, Paris, eriçada das flechas douradas das suas igrejas, parecia-se com uma grande taça de prata engastada de ouro e cobre, porque se estendiam em seu redor imensas florestas avermelhadas pelo Outono. Nessas florestas, a mão do homem talhara clareiras onde cresciam aldeias: Saint-Denis, Courbevoie e Colombes na orla das pradarias de Longchamp; na direcção de Saint-Germain, Vaucresson e Montesson e, na floresta de Montmorency, outros lugarejos: Montmagny, Montlignon, Andilly; e depois, na direcção de Marne, Montreuil, Chennevière e Vincennes, enquanto a sul surgiam os campanários de Arcueil, Sceaux, Fresnes e Villeneuve-le-Roi. Florent, que conhecia bem o local, deu com prazer todas as informações a Fiora e esta admirou o espectáculo sem reservas. No meio daquele mar de árvores avermelhadas, lustrosas, douradas, a capital parecia, sob o Sol tardio, vibrar com uma vida muito própria. Um nevoeiro nacarado elevava-se dela, antes de se dissolver no azul ligeiro do céu. E Fiora, que muitas vezes da sua villa de Fiesole contemplara Florença pensando que nenhuma cidade no mundo se lhe podia igualar em beleza, Fiora, que contemplara Roma cintilando sob o fogo púrpura de um ocaso glorioso, permaneceu admirada e muda perante aquela grande cidade serena e majestosa da qual, no entanto, o seu Rei não gostava.

Porquê? murmurou ela pensando em voz alta sem se dar conta por que é que o Rei Luís vem aqui tão poucas vezes? No entanto, Paris é digna dele...

Sim, mas Paris foi inglesa durante muito tempo e o Rei não consegue esquecer isso disse Léonarde. As recordações estão demasiado próximas e será preciso, talvez, outro reinado, outra geração, para que Paris volte a estar, finalmente, em graça. O Rei toma conta dela: já não é mau... E, num certo sentido, é bom para nós. Não nos arriscamos a dar de caras com ele.

Com a aproximação do Natal, o frio instalou-se, assim como a neve. As noites foram perturbadas pelos uivos dos lobos. Florent e o tio Anicet velavam pelas portas com mais diligência do que nunca. Dizia-se, também, que havia malfeitores que tinham o seu quartel-general na floresta vizinha de Rouvray, mas nenhum ousava aproximar-se da poderosa abadia e das poucas casas abrigadas sob a sua protecção de pedra.

Fiora sentia-se bem fisicamente, mas o aborrecimento começava a tomar conta dela. As notícias de Touraine eram raras.

Léonarde escrevera a Etienne para lhe dizer que Fiora contraíra uma doença que a fazia sofrer muito e que a proibia de empreender, sobretudo no Inverno, a viagem até ao Loire. Só regressaria na Primavera, se tudo corresse bem... Em resposta, trazidas uma vez por Agnelle e outra por Agnolo, receberam umas linhas breves e desajeitadas. O bravo Etienne sabia ler, mas a escrita não era o seu forte. Quanto a Khatoun, a quem Fiora enviara uma pequena carta, não respondeu, o que inquietou a jovem, porque Khatoun sabia ler e escrever na perfeição. Florent, por sua parte, pensou que a jovem tártara estava amuada, mas absteve-se de o dizer, contentando-se em observar que, geralmente, a ausência de notícias significava que tudo ia bem. E como Etienne dizia que o pequeno Philippe crescia como um cogumelo, não havia razão para preocupações.

No entanto, tenho vontade de vos enviar até lá disse-lhe um dia Fiora. Este silêncio não é normal. Sabendo que estou doente, podiam, pelo menos, perguntar por mim!

Quem? Nenhum dos habitantes de la Rabaudière se pode aventurar pelos caminhos com este tempo frio. E o pequeno messire Philippe precisa de toda aquela gente...

Era evidente. No entanto, Fiora não podia deixar de pensar que Douglas Mortimer que, como bom escocês, não temia tempestades nem frio, podia fazer a viagem até Paris... E ela sofria com aquela indiferença. Era como se, ao deixar a casa do Loire, tivesse apagado da paisagem até a sua recordação. E agora tinha tanta pressa de partir que lhe parecia que o bebé nunca mais nascia...

Passado o Ano Novo e o Dia de Reis, os dias pareceram arrastar-se ainda mais miseravelmente. Léonarde sofria de reumatismo e metade das couves que tinham posto de reserva transformaram-se em cataplasmas. O frio, felizmente, não era muito rigoroso, mas, quando a neve fundiu, o Sena começou a engrossar. Da janela da sala, as duas mulheres viram-no subir lentamente ao assalto do pomar, depois do jardim e, finalmente, da escada. Um degrau, depois outro... A cave encheu-se de água, não atingindo o vasilhame mas as outras provisões teriam de ser removidas e Florent levou uma noite inteira a deslocar a salgadeira, os presuntos, as maçãs e as pêras para evitar o naufrágio total. Já pensavam em levar os móveis para a vinha e as duas mulheres para casa do eremita do monte Valerian quando, bruscamente, no espaço de algumas horas e como se tivessem tirado o ralo a uma tina, o fluxo barrento se retirou. O pomar deixou de ser uma plantação de penas de pato em tinta cinzenta para reencontrar os seus socalcos. Socalcos lamacentos, esponjosos, mas que, mesmo assim, se pareciam com terra firme.

Tiveram outros alertas quando, no fim do Inverno, rajadas de chuva sacudiram as árvores e arrancaram as pequenas hastes. Florent vivia sentado na margem com o olhar fixo no nível do rio. Quanto a Fiora, que atingira o máximo de circunferência, negava todo o perigo em virtude do antigo adágio que dizia que aquilo que se nega não existe. Mas era impossível negar as dores da pobre Léonarde e quando era suposto ser ela a ocupar-se da futura mãe, foi esta que passou longas horas a tratar das suas articulações dolorosas. A jovem acabou, até, por esquecer o seu estado: ela e os seus dois companheiros viram-se fechados no coração de uma bolha de calor e secura que vogava sobre um rio instável que não se sabia se, de repente, não os iria engolir para sempre.

Então, de um só golpe, tudo entrou na ordem. Nos últimos dias de Março, a Primavera foi fiel ao encontro. Os rebentos, rapidamente transformados em botões, surgiram nas árvores frutíferas e da lama surgiram delgadas lâminas verdes que anunciavam a erva. Fiora, então, pensou que a criança não tardaria. De facto, na noite de 4 para 5 de Abril, voltou a sentir as dores, pouco violentas mas suficientemente próximas para fazer com que chamasse Léonarde que, por sua vez, chamou Florent, encarregado de acender o fogo na cozinha e de pôr água a ferver, enquanto ela própria preparava tudo o que era necessário. Já há muito que estava pronto um cabaz para servir de berço.

Tudo correu infinitamente mais depressa do que esperavam e a água mal teve tempo de ferver: meia hora depois de ter lançado o seu primeiro gemido, Fiora, estupefacta, dava à luz uma rapariga. A jovem não sentia qualquer fadiga e por pouco não saiu da cama para ajudar Léonarde a tratar do bebé.

Sofri tanto aquando do meu pequeno Philippe! Será possível pôr uma criança no mundo em tão pouco tempo?

A prova! disse Léonarde, rindo. A vinda do primeiro filho é sempre mais demorada, mas a nossa querida menina, parece, estava cheia de pressa para ver a luz do dia. Oh, meu cordeirinho, ela parece-se tanto convosco!

E Léonarde, que acabava de enfaixar a pequenina, pôs-se a chorar enquanto a embalava nos braços. Florent, que chegava com lenha para a lareira, deixou-a cair no chão.

Por que chorais assim, dame Léonarde? A criança não está...

Não, não, ela está bem, mas acaba de me fazer recordar tanta coisa! Vós não éreis mais velha, Fiora, quando vos puseram nos meus braços pela primeira vez e parece-me que recomeça tudo de novo!

Graças a Deus, as circunstâncias não são as mesmas disse Fiora docemente.

São menos trágicas, sem dúvida, mas são quase tão tristes como então. Esta pequenina não vos chamará mãe, assim como vós não o chamastes à vossa.

Por sua vez, os olhos de Fiora encheram-se de lágrimas. A jovem percebeu que, até ao instante do seu primeiro grito, a criança que trazia em si lhe aparecera como um incómodo, uma punição e até um perigo, porque se arriscava a erguer uma barreira intransponível entre ela e o homem que amava. Não a esperara com a mesma alegria, o mesmo orgulho que o seu pequeno Philippe. Mas, naquele momento, já não era uma abstracção: era um pequeno ser vivo, carne da sua carne, sangue do seu sangue e quando Léonarde, docemente, a depositou nos seus braços, foi com uma verdadeira ternura, com um verdadeiro amor que ela pousou os lábios trémulos na minúscula cabeça redonda, onde uns pequeninos cabelos castanhos formavam como que um pequeno penacho...

Oh, Léonarde balbuciou ela que vai ser de nós? Como pude pensar, por um só instante, em me separar dela? Já a amo tanto...

Também eu, e peço-vos perdão por ter dado, nesta hora que devia ser de felicidade, livre curso aos sentimentos que me esforcei por dissimular durante este tempo todo. Mas não imaginava que seria uma rapariga. Então... tudo transbordou de repente.

Estáveis a pensar na minha mãe. Também eu, agora. Como ela deve ter sofrido ao saber que ia deixar este mundo e que me ia deixar também a mim!

Convosco não será a mesma coisa. Esta criança conhecer-vos-á e mesmo que não saiba que sois mãe dela, estou certa que vos amará... Já agora, como havemos de lhe chamar? Tem que ter um nome florentino já que é, em princípio, a sobrinha neta do bom Agnolo.

Isso é evidente: Lorenza... Lorenza Maria, em memória da minha mãe.

Apesar das censuras violentas de Léonarde, Fiora recusou separar-se da filha. Até ao nascer do dia, a jovem apertou o bebé contra si, murmurando-lhe palavras ternas, acariciando-lhe docemente as mãos minúsculas e as pequenas faces redondas, que tinham a suavidade e a cor de uma uva. O seu coração, apanhado pela surpresa, transbordava de amor e desgosto. E quando, de manhã, Léonarde lha levou para cuidar dela e alimentá-la com um pouco de água açucarada com mel, Fiora teve a impressão de perder uma parte de si mesma.

Trazeis-ma já a seguir, não é verdade?

Não, Fiora. Vós também precisais de cuidados, sem falar do repouso que recusastes a vós mesma. Lorenza vai dormir um pouco no cabaz... mas eu ponho-o junto da vossa cama, prometo.

Não ides... mandar prevenir já Agnolo e Agnelle, pois não? Ides deixá-la comigo mais um bocadinho, não ides?

Havia tanta angústia na sua voz, que a velha solteirona sentiu o coração apertar-se-lhe. Léonarde tinha medo, desde o primeiro dia, daquela fogueira de amor maternal. Ver aquele rosto doloroso onde as lágrimas vertidas durante a noite tinham deixado o seu rasto, perturbava-a.

Isso não é razoável. Quanto mais tempo esperardes, mais custará a separação. Além disso, Agnelle já contratou uma ama.

Por que não hei-de amamentar a minha filha durante algum tempo? No fim de contas, qual é a pressa? Nós estamos bem aqui...

Esqueceis o vosso filho? Deixaste-lo há seis meses e não se pode dizer que tenhais passado muito tempo com ele. Não tendes saudades dele?

Sim, claro... mas, parece-me que ainda amo mais este anjinho. Ele tem tudo...

Menos um pai! disse Léonarde, muito séria. Lorenza terá pai e mãe, sem contar convosco mesma, que não a perdereis de vista. Enfim, não esqueçais que ela é de raça ilustre. Ela é uma verdadeira florentina...

É verdade, mais do que eu. Mas, confesso-vos, não pensei muito no pai dela enquanto a esperava... nem mesmo agora. É a prova de que nunca amei verdadeiramente Lourenço. Ela tem poucas hipóteses de o vir a conhecer um dia... Não sabeis. Que hipóteses tínheis vós de conhecer Florença no dia terrível do vosso nascimento? Deixai-me mandar o tio Anicet a Paris com uma mula e um bilhete. Florent é demasiado conhecido no bairro. É melhor que não o vejam por lá nos dias que correm.

Fiora chorou, suplicou quando Léonarde, aparentemente impiedosa mas com o coração despedaçado, lhe enfaixou os seios com firmeza para impedir o aparecimento do leite, alegando, aliás, que de pouco serviria, porque, aquando do nascimento de Philippe, Fiora se mostrara pouco pródiga quanto ao precioso líquido maternal. E como esta passasse das lágrimas e das súplicas à cólera, aquela mostrou-se severa.

Deixai de vos comportar como uma criança! Esta pequenina precisa de uma boa ama e nós não vamos passar a vida a mudar de seio a cada dois minutos. Pensai um pouco nela!

Era preciso resignar-se. Aliás, na manhã seguinte, os Nardi, frementes de uma alegria que não ousavam demonstrar diante do rosto trágico da jovem mãe, acorreram a Suresnes com cavalos e uma confortável liteira para que o bebé fizesse a curta viagem nas melhores condições. A ama, escolhida com cuidado, esperava já na rue des Lombards. Tal como os Reis Magos da Sagrada Escritura, levavam presentes inúteis e encantadores, como rendas e unguentos de beleza para Fiora que traduziam bem a sua afeição.

Quando Fiora, chorando como uma Madalena, depositou a sua filha nos braços de Agnelle, esta beijou-a calorosamente.

Eu sei o que vos custa, minha amiga, mas podeis estar certa de que a nossa pequena Lorenza receberá tudo o que uma criança pode desejar e que nós a amaremos de todo o nosso coração, Agnolo e eu. Aliás, se não puderdes vir vê-la dentro de pouco tempo, prometo-vos que a levamos lá este Verão...

Não sei se isso será muito sensato suspirou Léonarde. Parece-me evidente, a partir deste momento, que Lorenza Maria se vai parecer muito com a mãe...

Ainda bem para ela disse Agnolo porque seria lamentável que se parecesse com o seu ilustre pai, que é bem feio! Mas deixemos que a natureza siga o seu curso e veremos!

Lorenza Maria! suspirou Agnella embalando, com os olhos cheios de estrelas, o pequeno embrulho branco que Fiora fixava com desespero. Que nome tão bonito! E é com este nome que vai ser baptizada esta noite mesmo na igreja de Saint-Merri...

Hoje? espantou-se Léonarde. E que nomes ides indicar para o pai e para a mãe?

Não há muitas soluções disse Agnolo. Só a podemos declarar como filha de pais incógnitos. Agnelle e eu vamos assinar unicamente como madrinha e padrinho. Naturalmente, dois dos nossos vizinhos acompanhar-nos-ão como testemunhas.

Nesse caso, não vai ter um nome verdadeiro? murmurou Fiora. Mas ela devia chamar-se Médicis, ou, pelo menos, Beltrami.

Conheceis-me assim tão mal? perguntou Agnolo. O padre receberá ouro e eu hei-de arranjar-me para que ele pense que eu sou o pai...

Pois insurgiu-se Agnelle como é amável da tua parte! Ainda por cima porque, em princípio, é filha da tua sobrinha?

Não tenhas receio continuou o negociante, rindo. Desde que lhes paguemos, os vigários das paróquias não se mostram muito difíceis e isso permitirá que este anjinho tenha um nome: chamar-se-á Lorenza Maria del Nardi. Não é o principal?

É evidente! És sempre tu quem tem as melhores ideias...

Quando deixaram a propriedade, a casa pareceu ficar vazia. Era como se tivessem levado com eles toda a luz e calor. Apoiada nas almofadas onde sobressaía a espessa trança negra dos seus cabelos, Fiora, de olhos baixos, mantinha-se calada.. A jovem olhava para os braços estendidos, para as mãos abandonadas com as palmas viradas para cima sobre o lençol de fina tela. Também eles estavam vazios e, de repente, aquilo foi-lhe insuportável. Erguendo as pálpebras, ela olhou para Léonarde, que se deixara cair num banco e chorava, de cotovelos nos joelhos e a cabeça entre as mãos e para Florent, encostado à pedra da chaminé e olhando, sem ver, para o fogo que se apagava. Os dois, fulminados por uma imobilidade que parecia nunca mais acabar, não ousavam virar-se para o leito... Era como se a sua vida, também a deles, tivesse parado com a partida daquela liteira cujos eixos ainda ouviam ranger ligeiramente, afastando-se na direcção da velha ponte romana.

Um súbito bafo de cólera tirou a jovem do seu amargo devaneio. Não ia ficar ali, imóvel, esperando estupidamente que o seu coração deixasse de lhe doer. A sua voz soou, alta, clara, imperiosa, fazendo estremecer os outros dois.

Dai-me um roupão, minha querida Léonarde! Quero levantar-me.

De imediato a velha solteirona estava junto dela, meio inquieta, meio zangada:

Nem penseis! Ainda há dois dias destes à luz...

E então? Péronnelle falou-me, uma vez, numa camponesa que sentiu dores quando estava a apanhar cerejas. Deu à luz o filho e dois dias depois foi vender as cerejas ao mercado de Notre-Dame-la-Riche. Acho que não sou menos sólida do que ela.

Só mais um pouco de paciência! Só mais dois ou três dias!

Nem mais um! Tendes de compreender que não suporto mais esta casa... agora que ela se foi embora. Amanhã de manhã regressamos a casa. A única coisa que vos peço aos dois é que a casa fique arranjada e que tudo esteja pronto de madrugada.

Não vai demorar muito tempo disse Léonarde tristemente. Poucas coisas nos pertencem...

Quereis mesmo partir, donna Fiora? perguntou Florent, cujo olhar azul perscrutava o fino rosto pálido e os olhos cinzentos aumentados por um círculo azulado.

É a minha cara que não vos agrada? Pelo contrário, creio que está de acordo com as circunstâncias, já que passo por padecer de uma doença qualquer. Seria desastroso regressar a casa com boa cara e faces rechonchudas. Quando lá estivermos, creio que me sentirei menos mal!

Feita a reflexão, Fiora decidiu partir antes de nascer o dia para que ninguém se apercebesse, porque não lhe apetecia mudar de roupa na primeira floresta que encontrassem. Ninguém a tinha visto durante aquela estadia de seis meses e ela queria que assim continuasse. Enquanto Florent, carregada a pouca bagagem, acabava de ajaezar as mulas, ela pediu a Léonarde que fosse chamar o tio Anicet.

O homenzinho mostrara-se de uma discrição exemplar e quando Fiora ia ao jardim quando lá estava, ele assobiava ao seu cão e afastava-se, virando-lhe as costas. A jovem queria agradecer-lhe.

Vou deixar esta casa disse-lhe ela para não mais voltar. Nunca mais me vereis, mas desejo, antes de partir, provar-vos a minha gratidão pelo silêncio e solidão que vos permitistes respeitar.

O tio Anicet olhou para a delgada silhueta negra envolta num grande manto cujo capuz forrado de pele de raposa escondia metade do rosto e depois para as cinco moedas de ouro que uma mão enluvada acabava de depositar na sua. Por um curto instante, as suas pálpebras, tão amarrotadas como as de uma tartaruga, ergueram-se, deixando ver umas pupilas singularmente vivas para um homem da sua idade:

Eu nunca vos vi disse ele, por fim. Como quereis que me recorde de alguém que nunca morou nesta casa?

Não. Não vos podeis recordar, mas um pouco de ouro nunca fez mal a ninguém.

É justo! Nesse caso, daqui a pouco vou acender uma vela a São Leuffroy para lhe agradecer a fortuna que encontrei, graças a ele, nesta casa vazia...

E, saudando com a mão esquerda enquanto apertava com força a mão direita sobre as moedas de ouro, o ancião abandonou a casa e desceu, cantarolando, até ao rio para ali colher as suas redes.

Um quarto de hora mais tarde, os três viajantes afastavam-se por sua vez e metiam lentamente pelo estreito caminho junto à margem do Sena, que iriam seguir até Meudon para, de lá, atingirem, sem entrar em Paris, a estrada de Orleães. As cruzes do monte Valerian e os sinos da abadia de Saint-Leuffroy já tinham desaparecido por trás das árvores de um bosque espesso quando o Sol, surgindo como uma grande bola vermelha, se lançou no céu cinzento e rosa de uma aurora que se anunciava ventosa.

A única cedência de Fiora a Léonarde fora uma viagem não muito rápida. A velha solteirona alegara o reumatismo que a humidade dos dias anteriores acordara, sabendo bem que, não fora a sua própria saúde, a jovem ter-lhes-ia imposto um andamento infernal. Assim, a jornada já ia avançada quando, três dias mais tarde, os três viajantes viram o pesado torreão quadrangular, o campanário de Beaugency e a alta torre quadrada da abadia de Notre-Dame.

Passado o recinto fortificado mesmo a tempo antes do fecho das portas viram que a cidade estava animada, especialmente a praça do Martroi, atravancada de criados, de cavalos e carroças de bagagem. Tudo aquilo extravasava da grande hospedaria com a insígnia do Escudo de França, onde Fiora esperava pernoitar. Visivelmente, o estabelecimento esforçava-se por acolher dentro das suas paredes a comitiva de um grande senhor.

Que vamos fazer? perguntou Fiora. Não podemos ir mais longe esta noite.

Só temos duas hipóteses suspirou Léonarde. Procurar um albergue menos agradável ou pedir asilo aos monges da abadia junto da margem. Encontrai-nos uma das coisas, Florent, enquanto vamos rezar àquela pequena igreja. Os meus rins doem-me muito para vos seguir na busca... Vindes, Fiora?

Esta não respondeu. A jovem olhava com interesse para um pajem, seguido de dois criados, que transportavam, um pequeno cofre e os outros uma arca na direcção do Escudo. Os três tinham nas túnicas as armas do seu senhor e, justamente, aquelas armas Fiora recordava-se de as ter visto bastantes vezes quando os seus passos estavam ligados aos do Temerário, eram, cortadas pela barra sinistra da bastardia, as grandes armas de Borgonha. A jovem não teve tempo de fazer a si própria uma única pergunta: um homem de alta estatura, vestindo com elegância e majestade uma cinquentena de anos, acabava de aparecer, com o capelo na mão, à saída da igreja, profundamente saudado pelo clérigo da dita. Pouco mudara em dois anos e Fiora, quase maquinalmente, pôs pé em terra para o saudar. Era o homem a quem toda a Europa chamava o grande bastardo, Antoine de Borgonha, em tempos o melhor e mais fiel dos chefes de guerra do Temerário, seu meio-irmão e por quem combatera até ao fim. Prisioneiro após a fatal batalha de Nancy, reencontrara rapidamente a liberdade e diziam-no um dos mais quentes partidários do regresso de Borgonha ao seio de França. Antoine de Borgonha reconheceu Fiora ao primeiro olhar e, subitamente sorridente, avançou para ela com as mãos estendidas:

Madame de Selongey? Mas, que feliz acaso é este, que faz com que vos encontre aqui?

O acaso dos grandes caminhos, monsenhor. Regresso a casa, na Touraine, após uma estadia em Paris.

Na Touraine? Vós? Não deveríeis, antes, estar na Borgonha? Ou o vosso marido, finalmente, entregou-se?

Há mais de dois anos que não vejo Philippe, monsenhor. O destino apraz-se em nos separar...

Mas, como é possível?

É uma história longa e triste, bem difícil de contar numa praça pública...

Sem dúvida... mas não à mesa. Dar-me-eis a honra, espero, de jantar comigo? Parece que temos muitas coisas a dizer um ao outro.

Com muito prazer, monsenhor, mas nós acabamos de chegar a esta cidade, dame Léonarde, um servidor e eu mesma, e precisamos de encontrar alojamento.

Quando eu ocupo os melhores? disse ele rindo. A coisa arranja-se. Um dos meus oficiais ficará encantado por ceder o seu quarto a duas damas. Quanto ao vosso criado, fará como os meus: dormirá na cavalariça. Não, não! Não me escapareis. Encontrei-vos, fico convosco!

E enquanto um escudeiro recebia ordens para espreitar o regresso de Florent, Fiora e Léonarde penetraram na hospedaria, onde lhes foi oferecido de imediato um dos melhores quartos.

Como é interessante manter boas relações! comentou Léonarde. As viagens ficam mais agradáveis.

Tudo depende dessas relações. Não nos podemos alegrar por termos conhecido o cardeal della Rovere... e vós nunca conhecestes o Papa!

Não penseis que o lamento! Em todo o caso, pergunto a mim própria o que faz aqui o grande senhor borgonhês.

Fiora soube-o uma hora mais tarde enquanto, sentada em frente dele, saboreava uma empada de lúcio, um dos seus pratos preferidos. Ambos jantavam sós, servidos por um dos pajens que pegava nos pratos à medida que o estalajadeiro os fazia aparecer e os colocava na mesa. Adivinhando, de facto, que a sua convidada podia ter certas confidências para fazer, ele recebera-a sozinho à sua mesa, coisa que Fiora lhe agradecera. Para a pôr à-vontade, o grande bastardo Antoine começou por explicar a razão da sua presença: deslocava-se ao castelo do Plessis-lès-Tours para agradecer ao Rei que, não somente o confirmara na posse das suas terras borgonhesas até então anexadas, como ainda as aumentara.

Não creio acrescentou ele ter escolhido mal ao reconhecer Luís de França como suserano. Se a minha sobrinha Maria tivesse decidido reinar sozinha sobre os Estados da Borgonha, teria posto a minha espada ao seu serviço, mas fazer entrar no império alemão esse outro império constituído pelas possessões dos Grandes Duques do Ocidente, não posso admitir. Borgonha nasceu da França, os seus príncipes descendem de São Luís e as flores-de-lís não podem servir de pasto às águias alemãs. Além disso, Maximiliano não passa de uma ave decorativa, ao passo que o Valois é um grande soberano, mesmo com todos os seus defeitos e apesar de ser muito pouco decorativo. É tempo de Selongey se dar conta...

Não sei se, alguma vez, ele se dará, monsenhor, e eu receio não ser estranha a esse estado de espírito.

Dizíeis-me, de facto, que não o vedes há mais de dois anos? Que se passou? Dispondes do tempo necessário para me contar essa longa história e podeis crer que não sou levado por qualquer curiosidade deslocada, antes pela amizade que sempre tive pelo vosso marido e pela estima que, no decurso deste último ano tão terrível, gerei pela vossa coragem. Que idade tendes, donna Fiora?

Vinte e um anos, monsenhor.

Eu tenho cinquenta e oito. Podia ser vosso avô e, sublinho, é para que saibais que podeis esperar de mim compreensão... e indulgência.

Precisarei muito, porque, se nos separámos em Nancy, a culpa foi minha. Quando esperava ter acabado com uma separação que durara demasiado, ele só pensava em me fechar em Selongey, enquanto continuava a bater-se por Madame Maria. Eu não o suportei e...

E a separação eternizou-se. Eu prometi-vos indulgência, minha querida filha, mas a mulher é, antes de mais, a guardiã do lar. Madame Joana Maria, a minha bela mulher, nunca saiu muitas vezes, durante estes anos difíceis, do nosso castelo de Tournehem que herdou do seu pai. Ela educou nele os nossos filhos... mas peço-vos desculpa: é a vossa vez de falar e pouco vos importam as histórias de um velho.

Posta assim à-vontade, Fiora falou durante muito tempo sem procurar minimizar os seus agravos para com o seu marido, mas fazendo passar em silêncio a aventura apaixonada com Lourenço de Médicis e as suas consequências recentes. A sua história terminou no convento de Val-de-Bénédiction...

O rasto de Philippe apaga-se na soleira do convento e ninguém me conseguiu dizer o que lhe aconteceu. Confesso-vos: receio que ele esteja perdido para sempre. Terá seguido os peregrinos até ao fim? Terá regressado com eles? E depois, para onde terá ido? Terá alguém tido piedade daquele homem sem memória? O pensamento de que ele possa ter morrido de miséria num caminho qualquer perdido atormentou-me as noites durante muito tempo... mas, onde procurar, agora?

Tendo despedido o pajem, o grande bastardo voltou a encher a taça de Fiora, serviu-se e, mergulhando o seu olhar sorridente nos grandes olhos cor de nuvem:

Por que não em Bruges? propôs ele.

Em Bruges? Mas, ele deixou essa cidade há muito tempo.

Mais uma razão para voltar para lá. É uma cidade muito bela e que vos agradará, creio...

Com o coração apertado, Fiora, desiludida e vagamente indignada, pousou sobre ele um olhar sombrio.

Fazeis mal, monsenhor, em fazer troça de mim.

Mas, eu não estou a fazer troça de vós. Considero, até, o nosso encontro mais feliz do que pensava e Deus deve ter alguma coisa a ver com ele. Posso assegurar-vos, de fonte segura, que Selongey se encontrava em Bruges no último Natal.

Não é possível!

Porque não? Alguém que me é chegado viu-o na corte da duquesa e até lhe falou. Posso dizer-vos que parecia na plena posse da sua memória, se bem que não tenha sido muito loquaz, ao que me disseram.

Mas, quem é que o viu? Essa pessoa pode ter-se enganado, talvez uma semelhança.

Seria preciso que não o conhecesse. Ora, Mme. de Schulembourg, que é a sogra da minha filha Joana e melhor amiga da minha mulher, se bem que não estejamos no mesmo campo, conhece Selongey desde a infância. Ela achou-o pálido e sombrio e devo dizer que não respondeu às suas perguntas. É verdade que a querida dama é muito faladora, mas posso assegurar-vos que era ele.

Philippe, em Bruges! balbuciou Fiora, siderada. É extraordinário...

Talvez, mas é verdade! Mme. de Schulembourg ficou tão impressionada com o encontro que se apressou a ir a Tournehem para contar à minha mulher. Sabeis que há uma trégua neste momento, entre o casal Maria-Maximilliano e o Rei Luís? Os encontros estão, por isso, facilitados... Mas, que tendes?

Caída sobre as almofadas que guarneciam a sua cadeira, Fiora, de nariz franzido, olhos fechados e faces pálidas, parecia prestes a perder a consciência. De facto, a jovem lutava contra dois sentimentos contraditórios: a alegria e a cólera. A alegria pela certeza de que Philippe recobrara a memória, a cólera porque, mal saíra do pesadelo que quase o submergira, correra a juntar-se à sua querida duquesa! O que significava, sem dúvida, que jamais regressaria para ela e que virara definitivamente a página onde estava escrito o nome de Fiora...

Uma frescura na testa incitou-a a reabrir os olhos. Antoine de Borgonha humedecia-lhe as têmporas com a ajuda de uma toalha molhada, tomado por uma inquietação tão visível que a fez sorrir:

Muito obrigada, monsenhor, mas não é nada... É só a alegria! De facto, foi Deus que fez com que nos encontrássemos.

Também acho, mas bebei um pouco deste vinho de Espanha, que eu trago sempre comigo em viagem! Far-vos-á bem e o Senhor não verá nisso nenhum inconveniente.

Fiora bebeu, mas como a sua cólera tinha aumentado, pediu autorização para se retirar, alegando uma necessidade de repouso bem natural. Cortesmente, o príncipe levou-a até à porta do seu quarto pela mão.

Faremos viagem juntos, amanhã, já que seguimos o mesmo caminho?

Aquela pergunta simples modificou instantaneamente os projectos imediatos de Fiora que, aliás, não sabia muito bem onde estava no instante precedente.

Não, monsenhor, lamento, mas quero ir a Bruges. Mas... se Vossa Senhoria quisesse acompanhar dame Léonarde até à minha casa de la Rabaudière, ficar-lhe-ia infinitamente reconhecida. Ela tem demasiadas dores para conseguir suportar novamente uma longa viagem...

Com prazer, mas achais prudente lançar-vos assim pelos grandes caminhos?

O meu servidor será suficiente como guarda e não conto estar muito tempo ausente.

Foi mais difícil fazer com que Léonarde aceitasse aquela mudança de programa. A velha solteirona lançou fogo e chamas, esconjurando o ”seu cordeirinho” a renunciar àquele projecto insensato, mas conhecia demasiado bem a jovem para saber que nada modificaria a sua decisão e que ela estava pronta a dar a volta ao mundo para levar a cabo o seu projecto um tanto ou quanto vingador.

Estais contente, mas ainda estais mais furiosa, não é verdade? perguntou ela.

É verdade! Já é tempo de Philippe se lembrar que existo e que tem de escolher, sem mais delongas, entre a sua duquesa e eu!

Nunca é bom lançar um ultimato a um homem, sobretudo um homem do carácter de messire Philippe. Não vos bastou o último?

Bastou, mas eu acreditava no amor dele...

Lembrai-vos do que me contastes! O seu delírio, quando ele estava doente em Villeneuve!

Fiora teve um pequeno sorriso triste, rapidamente varrido por uma nova onda de cólera:

Muito bem, tenho de acreditar que a minha recordação chega para lhe povoar os pesadelos! Simplesmente, agora, tenho uma filha que amo e da qual tive de me separar. Portanto, entendo que, pelo menos, o meu sacrifício serve para qualquer coisa. Já é tempo de ter com Philippe uma explicação definitiva...

Tão definitiva como isso? Dizei-lhe, então, que tem um filho! Ficarei muito espantada se essa notícia não for suficiente para o fazer mudar de ideias. Mas... contemos com o pior: que fareis se ele vos repelir?

Fiora não respondeu de imediato. A pergunta, na sua brutalidade, apanhara-a como um chicote e a dor que sentiu fê-la compreender que nunca conseguiria expulsar a imagem de Philippe do seu coração. No entanto, naquele instante, teria preferido morrer a conformar-se. Com uma súbita violência, disse:

Nesse caso, nada me deterá aqui. Pegarei nos meus dois filhos e vou para Florença. Convosco, evidentemente. Pelo menos, lá, estarei rodeada de gente que gosta de mim!

No dia seguinte de manhã, deixando Léonarde prosseguir o seu caminho na companhia do capelão de Antoine de Borgonha, Fiora, seguida por um Florent perdido de felicidade, retomava, a grande velocidade, a estrada de Paris, que queria atravessar sem parar a fim de atingir a Flandres.

CAPÍTULO IX EM BRUGES...

De regresso a casa, Léonarde esforçava-se por acalmar as suas apreensões, esperando que a longa corrida através do norte de França abrandasse a cólera de Fiora, mas enganava-se. Enquanto o seu cavalo em Beaugency trocara as mulas por duas sólidas montadas a levava na direcção do palácio de Maria de Borgonha, a jovem não cessava de remoer o seu desgosto e a sua decepção. Desta vez, ninguém lhe poderia atribuir qualquer responsabilidade no estranho comportamento do marido. De facto, a verdade estava ali, cegante na sua claridade, e dizia-se em poucas palavras: Philippe nunca a amara realmente.

Desejara-a, sim, e disso estava segura. Aliás, qual fora o único desejo exigido por ocasião do casamento? Uma única noite! Era verdade que, mais tarde, ao reencontrar Fiora prisioneira do Temerário, o seu ciúme acordara ao saber daquilo a que a jovem chamara ”o episódio Campobasso” e, depois da queda de Nancy, amara-a apaixonadamente... durante três noites. Mas, e depois? Bem, depois, só tivera uma ideia: ir bater-se pela duquesa Maria, juntar-se à duquesa Maria, fazer de cavaleiro da duquesa Maria... aquela insuportável duquesa Maria para a qual ele se apressara a regressar assim que fugira do convento de Villeneuve! E, agora, era no séquito daquela mulher que se encontrava! Era uma verdadeira princesa, a duquesa Maria, nascida sob os tectos dourados de um palácio e não na palha de uma prisão. Além disso, diziam que era encantadora e como se isso não bastasse, possuía a mais incomparável das auréolas: era a filha do Temerário, esse príncipe agora quase lendário, que Philippe venerava tanto ou mais do que se fora seu pai!

À medida que o tempo passava e as léguas desfilavam sob os cascos do seu cavalo, aquela ideia aferrava-se cada vez mais no espírito de Fiora e tornava-se evidente, irritante, como uma queimadura em vias de sarar: coça-se, de repente a crosta sai e tudo volta ao princípio...

Por seu lado, Florent, passada a primeira alegria, sentia-se invadido por uma inquietação que ia aumentando. A mulher de rosto fechado, olhar duro, que cavalgava a seu lado durante todo o dia sem dizer uma palavra e que, chegada a noite, se fechava no quarto de um albergue para ter o repouso suficiente, deixando-o livre o resto do tempo, não era, não podia ser aquela donna Fiora que ele adorava em silêncio. Sem saber o que determinara aquela viagem insensata pouco depois do parto, o jovem sentia que se tratava de uma coisa grave, de uma coisa que a fazia sofrer. Desse modo, ansiava e temia ao mesmo tempo surgir no horizonte aquela cidade de Bruges que ele conhecia um pouco por ali ter acompanhado, em tempos, Agnolo Nardi, que fora em negócios. Uma coisa parecia certa: Fiora ia a caminho daquela cidade como se fosse para se encontrar com um inimigo.

Quando, no fim de uma planície ondulada com longos canais cuja água irisada reflectia o céu e sarapintada de moinhos de grandes velas surgiu, por fim, Bruges, Fiora deteve o seu cavalo para melhor contemplar o inimigo. A jovem teve de confessar a si própria que a cidade era bem bela e o seu rancor ganhou novas forças enquanto a admirava...

Construída sobre a água do Reye e sobre um lago como Veneza sobre a sua lagoa, a rainha da Flandres debruava o céu instável com uma renda de pedra loura e rosa. Sob a delgada torre de menagem, um pouco inclinada, onde os vigias se encontravam, tão alto que mais pareciam a meio caminho do céu, os pinheiros mansos, dourados, dominavam de forma soberba os telhados de telhas cor de carne que, desde o reinado do duque Filipe, o Bom, tinham substituído o colmo e a madeira para maior segurança. Quanto à cintura de defesa, assente na água profunda do rio, estava rodeada de salgueiros prateados, de hera e de tufos de goivos ruivos. Aliás, defendida daquela maneira pelas águas que a isolavam de terra firme, Bruges mal necessitava das suas muralhas.

À luz do Sol que declinava, o conjunto vivia, vibrava, cantava como uma floresta no Outono. O espectáculo era de uma beleza opressiva, que Fiora achou insolente. Aquela cidade, uma das mais ricas do mundo, permitia-se, além disso, ser uma das mais magníficas, era o esplendor dos antigos duques da Borgonha que se estendia na sua frente, intacta na aparência. A lenda parecia ter-se petrificado...

É linda, não é? tentou Florent.

Demasiado! Compreendo que as pessoas desejem regressar aqui, sobretudo quando tudo as leva a isso. Mas não é razão suficiente...

E com aquela frase sibilina, que destroçou por completo o pobre rapaz, Fiora esporeou o cavalo e avançou para Bruges como se fosse tomá-la de assalto. A cavalgada durou até à porta de Courtrai, que foi preciso transpor a uma velocidade mais tranquila. Passada a porta, Fiora parou bruscamente e, virando-se para o seu companheiro:

E agora, onde vamos?

Mas... não sois vós, donna Fiora, que mo deveis dizer? Ignoro os vossos projectos...

Sem dúvida, mas pensei que conhecíeis a cidade? Do que precisamos, por esta noite, é de alojamento, de um albergue, de uma hospedaria. Suponho que existem?

É claro, e bem boas. Mestre Agnolo gosta muito da Ronce Couronnée, na rue aux Laines, a Wollestraat, como se diz aqui. Creio, até, que é a melhor.

Vamos para a Ronce Couronnée! Tomai a dianteira, Florent, e guiai-me!

Perante aquele tom que não admitia réplica, Florent pensou que era bom ter boa memória, porque donna Fiora não parecia disposta a conceder-lhe a hipótese de erro. O jovem encontrou o caminho sem grande dificuldade, coisa que tinha o seu mérito porque Bruges, placa giratória do comércio do Ocidente setentrional, fervilhava de actividade a despeito da guerra impiedosa que os barcos franceses faziam aos fornecedores de lã inglesa ou aos produtos portugueses.

Mais meritório ainda foi arrancar ao último descendente da dinastia Cornélis que, desde há mais de cem anos, velava pelo nome da hospedaria, um alojamento digno do nome da casa para Mme. de Selongey e para o seu servidor. De facto, o mês de Abril estava a chegar ao fim e os preparativos para a famosa procissão do Sangue Sagrado, que tinha lugar a 2 de Maio, retinha em Bruges muitos viajantes, sem contar com os que estavam para chegar.

A senhora condessa só pode ficar dois dias, precisou Cornélis. Depois disso, o quarto está reservado.

Se bem que não passe, imagino, de uma questão de dinheiro disse a jovem com desdém penso que dois dias são suficientes. E agora, respondei a duas perguntas: onde mora a duquesa Maria?

Os olhos do estalajadeiro esbugalharam-se de surpresa:

Em Prinzenhof! Toda a gente sabe isso!

Eu não, senão por que vos perguntaria? E onde é esse... Prinzenhof?

Não é longe. Perto da Casa da Moeda.

Fico esclarecida! Passemos à segunda pergunta: Quem é que dirige aqui a sucursal do banco Médicis?

Isso também é fácil: messer Tommaso Portinari. Ele mora em Naaldenstraat, a antiga casa de messire Bladelin, que foi tesoureiro da Ordem do Tosão de Ouro.

Vede se o meu servidor conhece esse caminho! Eu vou-me refrescar um pouco e depois, antes do jantar, vou a casa de messer Portinari.

Se me posso permitir um conselho, nobre dama, os negócios de messer Portinari não vão muito bem depois da morte de monsenhor o duque Carlos, ao qual ele tinha emprestado muito dinheiro. Talvez um outro banqueiro florentino seja mais interessante...

Quem vos disse que eu queria um banqueiro ”interessante”? O mandatário dos Médicis é o único que me interessa.

Posto daquela maneira no seu lugar, Cornélis inclinou-se e conduziu ele próprio a difícil cliente ao seu quarto. Um momento mais tarde, Fiora, liberta da poeira da estrada e severamente vestida de cinzento e raposa vermelha, fazia-se anunciar ao banqueiro sob o nome de Fiora Beltrami.

Actual convento das irmãs da Assunção


Pela maneira como foi recebida, a jovem pensou, primeiro, que o nome do seu pai ainda representava qualquer coisa, mas não tardou a compreender o seu erro e também que os mexericos florentinos se espalhavam pela Europa com grande rapidez. O acolhimento de Tommaso Portinari foi feito, evidentemente, à última favorita de Lourenço de Médicis, não à filha de Francesco Beltrami.

Na grande e austera divisão, revestida com uma tapeçaria mas cujo móvel principal era um enorme cofre coberto de ferro, Fiora viu inclinar-se perante si um grande homem de cabelos ralos e tez morena, provido de um duplo queixo e cujo ventre enchia um amplo traje de fino pano cor de papoila orlado de pele.

Por que não me anunciastes a vossa vinda, donna Fiora? disse ele avançando uma cadeira almofadada com quadrados de veludo azul. Teria tido tempo de pôr a minha modesta casa em estado de receber a Estrela de Florença...

As notícias não vos chegam com a necessária rapidez. Há mais de um ano que deixei a nossa querida cidade para ir a França tratar de certos assuntos.

Foi, espero, com o acordo do magnífico senhor Lourenço?

Pleno acordo, não tenhais receio! Esses mesmos assuntos, aliás, conduziram-me aqui um tanto repentinamente, mas, como não conto ficar muito tempo, venho ver-vos à chegada. Não para vos pedir hospitalidade, estou alojada na Ronce Couronnée. No entanto, podeis ajudar-me.

Ah! disse ele com um olhar na direcção do cofre, que dizia mais do que um discurso. É que... eu hoje não tenho muitos fundos. Suponho acrescentou ele com um visível embaraço que monsenhor Lourenço está maldisposto comigo porque, a despeito das suas ordens, o meu banco emprestou dinheiro ao defunto duque Carlos de Borgonha. Mas ele devia compreender que, como habitante de Bruges, não podia deixar de contribuir para o esforço de guerra da cidade.

E que a cidade recusou firmemente, assim como as outras cidades flamengas! Acontece que eu vivi junto do duque Carlos durante os seus últimos meses de existência...

Portinari corou, o seu rosto ganhou uma curiosa cor de tijolo velho:

Eu não podia recusar, porque o duque honrava-me com uma amizade muito particular. Por outro lado, creio saber que o vosso pai também lhe emprestou uma grande soma... Falou-se em cem mil florins de ouro...

O meu dote! cortou Fiora secamente oferecido pelo meu marido, o conde de Selongey, ao seu suserano. De qualquer maneira e por mais desprovido que estejais, messer Portinari, suponho que podeis, mesmo assim, honrar esta carta de crédito acrescentou ela tirando da sua escarcela um papel cuidadosamente dobrado.

Após o nascimento de Lorenza Maria, ela conseguira duas da parte de Agnolo Nardi, pensando ter necessidade porque não era prudente viajar com muito ouro.

O banqueiro pegou na carta e leu-a rapidamente, após o que o seu rosto se iluminou:

Cem ducados? Mas é claro! Os nossos cofres têm sempre, pelo menos, essa soma.

Perfeito, portanto, mas não é tudo. Preciso de um vestido!

Um vestido? disse o outro sem esconder o espanto. Eu não sou alfaiate...

Sem dúvida, mas conheceis esta cidade e podeis convencer qualquer costureira a trabalhar para mim esta noite. Quanto ao tecido, estou persuadida de que, como bom florentino, deveis ter uma certa quantidade...

Era quase uma tradição, de facto, entre os florentinos ricos, coleccionar, para além dos objectos preciosos de toda a espécie, tecidos raros que se guardavam em arcas de sândalo ou de cedro, para os expor nas janelas em dias de festa, ou confeccionar, em qualquer ocasião, um traje de cerimónia.

É verdade, é verdade... mas, por que esta noite?

Porque não me quero demorar e pretendo conseguir, já a partir de amanhã, uma audiência com a duquesa Maria...

A duquesa? disse o banqueiro com um pequeno sorriso vagamente desdenhoso. Não vejo que género de favor podereis obter dela. O seu poder, aqui, é praticamente nulo. O Conselho da cidade só sonha em recuperar a sua independência tal como Gand, Ypres e... as outras cidades flamengas. Madame Maria e o seu marido gostam de residir nesta cidade e de dar muitas festas. São gente amável e mantêm uma atmosfera elegante e alegre, por isso as pessoas gostam de os ter aqui. No entanto, são numerosos aqueles que não esquecem o poder brutal do Temerário nem a dureza com que o seu pai, o duque Philippe, reprimiu as últimas revoltas. Agora, é a cidade que detém o poder.

Decididamente, Portinari não gostava mais da duquesa do que a própria Fiora. Mas a curiosidade devorava-o e fora para incitar a visitante a abrir a boca que se dera ao trabalho daquele longo discurso. Pura perda de tempo:

Devo vê-la para um assunto de ordem particular que não interessa ao poder, mas que eu estimo urgente. Ora, não posso apresentar-me na corte vestida desta maneira...

Ser-vos-ia, de facto, impossível obter uma audiência. Muito bem, se quiserdes acompanhar-me, creio que poderemos satisfazer-vos, mas...

Ainda há mais um ”mas”?

Bem modesto, podeis acreditar! Consentiríeis em pedir por mim junto de monsenhor Lourenço? Parece que ele me reprova duramente a conduta durante as últimas guerras. E depois... há aquele assunto infeliz do Último Julgamento, devido ao qual ele se enfureceu tanto...

O Último Julgamento! Que é isso?

Um tríptico do grande pintor flamengo Hugo Van der Góes, que o meu predecessor, Angelo Tani, comprou para doar à igreja de San Lourenço de Florença. Foi há seis anos e eu fui encarregue de embalar e expedir o quadro... que nunca chegou lá.

Que se passou?

O navio foi atacado pouco depois da partida de Écluse por dois corsários de la Hanse e o Último Julgamento está agora na igreja de Notre-Dame de Dantzig. Fui considerado responsável e até...

Sugeriram que o ataque estava previsto e que vós mesmo tínheis vendido o tríptico?

Compreendestes. Como hei-de defender-me de uma tal acusação? É por isso que tenho tanta necessidade de uma voz a meu favor, senão receio nunca mais poder regressar a Florença. E esse pensamento é tão cruel.

Compreendo-vos melhor do que imaginais. Evidentemente, eu não posso fazer nada quanto a esse assunto do quadro roubado, mas posso levar ao conhecimento de monsenhor Lourenço que vós me prestastes uma ajuda... preciosa. Aliás, é a verdade.

Não peço mais nada. Tereis o vosso vestido... e até espero que me possais permitir que vo-lo ofereça?

Fiora franziu o sobrolho. A frase era mais do que desastrada porque, não tendo qualquer meio de saber se Portinari era um homem honesto e um grande devoto do Temerário ou um simples espertalhão que, crendo no triunfo do grande duque do Ocidente traíra a política do seu país, não queria receber dele qualquer presente. Escreveria a Lourenço, mas, entretanto, interrogaria Agnolo Nardi.

Certamente que não! disse ela secamente. Se quereis que vos ajude, é necessário que não fique em dívida convosco. Pelo menos nesse ponto

Seja como desejais.

No dia seguinte de manhã, duas jovens, enviadas pela melhor costureira de Bruges, levavam à Ronce Couronnée aquilo de que Fiora necessitava para se apresentar com dignidade perante a duquesa Maria, ao mesmo tempo que Florent percorria a cidade para encontrar, também para si, um fato decente. Ao fim da manhã, Fiora, vestida de veludo cor de ameixa salpicado de prata e cetim branco e com um chapéu também de cetim branco nublado por uma musselina engomada, dirigia-se a cavalo, seguida do seu jovem companheiro, para o palácio daquela que julgava sua rival. A jovem ia resoluta e segura de si mesma. A imagem do espelho e a admiração ingénua, visível nos olhos das duas jovens enquanto a ajudavam a vestir-se, eram mais do que tranquilizadoras. Fiora podia comparar-se com qualquer mulher, fosse ela coroada e se, por acaso, Philippe se cruzasse no seu caminho, estaria na posse de todas as suas armas. E isso era o mais importante...

Em caminho, deu a si própria o prazer de admirar Bruges. A cidade era bem construída, com belas ruas pavimentadas e numerosos jardins, dando quase todos para um canal e que, por meio de alguns degraus de pedra, desciam quase até à água onde se mirava a folhagem prateada de um salgueiro, o delgado tronco de uma bétula, ou uns espessos maciços de verdura ainda demasiado tenros para poderem ser identificados. Surgindo de pontes tão baixas que parecia impossível passá-las de outro modo que não a nado, grandes barcas fendiam a água negra e a espuma esverdeada do lodo. Aquele conjunto de canais, cujo entrelaçado parecia inextricável, fascinava a florentina. Punha reflexos ondulados nas fachadas cinzentas de um palácio ou nas paredes nacaradas de um convento novo. Aquele sussurrava junto de um pequeno muro onde dormia um gato, aquele outro deixava divagar uma barca mal atracada, este repousava numa confusão de caniços onde caçava um peixe-gato. Tudo aquilo falava de paz e doçura de viver e, no entanto, Bruges, construída para ser uma cidade feliz, era uma cidade turbulenta que, nos seus dias de agitação, se parecia com a própria Florença...

A Prinzenhof a Corte do Príncipe formava um grande quadrilátero onde se inscrevia o palácio, a capela com um grande campanário, os jardins e, bem entendido, as dependências. Passada a discreta entrada encimada por uma estátua da Virgem rodeada de anjos, o pátio de honra abria-se, rodeado de galerias e precedendo imediatamente os aposentos reais construídos em tijolos vermelhos e alvenaria branca, tal como la Rabaudière.

Aquela semelhança encorajou Fiora. Passada a paragem obrigatória no corpo da guarda onde um sargento, impressionado pelo porte da visitante, correu para advertir um camareiro, ela esperou pacientemente enquanto observava o que se passava no pátio. Com efeito, estavam ali reunidas algumas equipagens. Os palafreneiros conduziam cavalos ricamente ajaezados e surgiam um pouco de toda a parte senhores e damas em traje de caça, ao mesmo tempo que os falcoeiros conduziam, na ponta dos punhos enluvados de couro grosso, falcões, abutres e gaviões encapuzados de veludo bordado a ouro ou prata. As pessoas chamavam-se alegremente de longe em voz alta, saudavam-se, riam, conversavam e o vasto espaço enchia-se de sons e alegria.

Chegámos em má altura sussurrou Florent. O príncipe prepara-se para partir para a caça.

Sem dúvida, mas não é com o príncipe que me quero encontrar, é com a princesa.

Talvez ela também vá à caça?

É possível.

O sargento estava de volta, escoltado por um camareiro muito agitado. Ofegante, também e que mal saudou a visitante:

Este homem compreendeu bem? Sois a senhora condessa de Selongey?

Sou. É assim tão extraordinário?

Bem, sobretudo, é inesperado. A senhora duquesa vai partir para a caça e...

E não me pode receber. Apresentai-lhe, por favor, as minhas desculpas, mas não penso retardá-la durante muito tempo. Uma curta entrevista, é tudo o que desejo.

Não podíeis... protelar para mais tarde?

Lamento insistir, mas só fico em Bruges algumas horas e venho de longe...

O camareiro estava com um ar muito infeliz. Talvez se tivesse demorado ainda mais um instante se uma dama de uma certa idade, magnificamente vestida, não aparecesse por sua vez, erguendo com as duas mãos, para poder andar mais depressa, a saia de espesso tafetá verde-escuro com ramagens cinzentas e douradas. A sua chegada pareceu aliviar o camareiro:

Ah! Madame d’Hallwyn! É Sua Senhoria que vos manda?

Naturalmente! Pareceu-lhe que era indecente fazer esperar, como uma comerciante de moda qualquer, uma dama desta qualidade... se não há qualquer engano!

Que achais? perguntou Fiora com uma altivez que provocou um ligeiro sorriso nos lábios da dama-de-companhia. O seu olhar azul já tinha avaliado a beleza, a elegância da recém-chegada e a distinção plena de orgulho que anunciava a sua nobre linhagem.

Que não é possível qualquer dúvida. Só uma mulher tão bela como vós seria capaz de convencer messire Philippe a casar. Quereis seguir-me? A senhora duquesa espera-vos.

Atrás da sua guia, Fiora perdeu o sentido da direcção. Subiram escadas, seguiram por galerias e vastas salas com as mais belas tapeçarias tecidas a ouro que alguma vez vira. Desceram até um jardim onde um cipreste dominava uma grande quantidade de roseiras. Viram de relance grandes viveiros de pássaros e, finalmente, foram dar a uma construção isolada por uma parede e cujos vastos telhados e torreões estavam revestidos de telhas verdes. Por cima flutuavam bandeiras vivamente coloridas. Jardins, pátios e construções fervilhavam de servidores.

Este palácio é imenso! observou Fiora. Muito maior do que me pareceu à primeira vista!

É por causa da porta, que tem um aspecto fraco, mas o defunto duque Filippe dizia que, tal como a entrada do Paraíso, a do seu palácio devia ser estreita para maior segurança. Eis-nos chegadas: aqui é o paço verde, chamado assim por causa da cor do seu telhado. Madame Maria acha o palácio demasiado vasto, prefere uma residência um pouco mais íntima...

íntima, talvez, mas tão faustosa quanto o resto. Se as guerras do Temerário tinham arruinado a sua família e a Borgonha, não parecia naquela casa, onde tudo era de um luxo extremo. Mme. d’Hallwyn gozava, visivelmente, com a surpresa da sua companheira:

E ainda não tivestes ocasião de admirar os ”balneários”. São únicos e encontram-se lá, para além das salas de banho, estufas de vapor quente e salas de repouso das mais agradáveis do mundo. Mas, estamos a chegar.

Um instante mais tarde, numa galeria amplamente iluminada por umas altas janelas ogivais com vitrais de cores vivas, Fiora saudou profundamente uma jovem alta que devia ter mais ou menos a sua idade. A jovem teve de reconhecer, se bem que não lhe provocando qualquer prazer, que era encantadora: magra e graciosa, Maria de Borgonha possuía uma pele de uma brancura deslumbrante, um nariz pequeno, belos olhos vivos de um castanho ligeiro e uma abundante cabeleira de um belo castanho-dourado que uma coifa de veludo verde e musselina branca segurava mal. Com toda a evidência, devia parecer-se com a sua mãe, aquela Isabel de Bourbon morta quando ela era criança e que fora o grande, o único amor do Temerário. Dele, ela tinha a boca carnuda, marcada por uma ruga de obstinação e o queixo arredondado e ligeiramente pontiagudo que lhe dava ao rosto um pouco a forma de um coração.

A duquesa olhou por um momento para a jovem meio ajoelhada na sua reverência com uma curiosidade que não se deu ao cuidado de dissimular.

Perguntei a mim mesma muitas vezes se vos veria um dia, Madame disse ela com voz clara. Sois, portanto, a Fiora de Selongey que foi, durante muito tempo, a amiga do meu pai?

Refém seria mais justo, senhora duquesa. Não foi por minha vontade que segui monsenhor Carlos!

Levantai-vos! Disseram-me, de facto... no entanto, tivestes a sorte de pertencer ao seu séquito... até ao fim.

Vossa Senhoria pode dizer até ao último minuto. Eu vi o duque, na manhã de Nante montar no seu cavalo Moro e afastar-se na bruma na direcção da sua última batalha. Tive, também, o privilégio de assistir ao seu funeral...

Enquanto ela falava, o rosto um pouco tenso de Maria animou-se, coloriu-se:

Por que não viestes mais cedo? Meu Deus! Teria tantas perguntas para vos fazer, tantas coisas para vos dizer! O meu pai sei-o, estimava a vossa coragem...

O meu marido nunca exprimiu o desejo de me conduzir até junto de Vossa Senhoria e não escondo que se ergueu entre nós um grave diferendo. Mas isso, agora, não tem importância e como não quero retardar a vossa partida para a caça...

É verdade, meu Deus, a caça! Madame d’Halwynn ide dizer ao senhor meu marido que parta sem mim. Eu hoje não vou à caça.

Mas cortou Fiora não é necessário o vosso marido privar-se...

Eu posso caçar noutro dia qualquer. Hoje, prefiro falar convosco... a menos que não vos importeis de ficar neste palácio durante alguns dias?

Não, senhora duquesa! Agradeço-vos, mas se o meu marido não se encontra em Bruges, partirei amanhã.

Maria de Borgonha perscrutou, de novo, o rosto da sua visitante, procurando nele, talvez, o reflexo de uma emoção que não encontrou.

Vinde comigo! Temos, mesmo, de falar.

Seguindo a duquesa, Fiora atravessou um grande quarto sumptuosamente mobilado onde duas damas de linhagem, de imediato mergulhadas numa grande reverência, se afadigavam a arrumar roupa branca e toucados e foi ter a uma pequena divisão revestida a veludo vermelho com galões dourados que lhe fez lembrar, em ponto mais pequeno, evidentemente, a faustosa tenda onde vira pela primeira vez o Temerário. O mobiliário compunha-se sobretudo de livros, de uma escrivaninha e, em frente da chaminé em forma de funil, de um banco comprido coberto de almofadas, sobre o qual Maria se sentou, puxando Fiora para junto de si.

Philippe de Selongey é um homem pouco falador suspirou ela e eu não percebi bem a vossa história, mas como não quero forçar as vossas confidências, dizei-me apenas há quanto tempo não vedes o vosso marido?

Há dois anos, Vossa Senhoria. A vida compraz-se em nos separar sem cessar e eu tenho sofrido muito. É por isso que quero tanto encontrá-lo.

Que vos fez pensar que ele estava aqui?

Monsenhor o grande bastardo Antoine, que encontrei por acaso.

Um brilho de cólera atravessou o olhar castanho e a bela boca redonda apertou-se:

O meu querido tio que, mal o meu pai desceu à terra, se apressou a passar para o lado do meu querido padrinho, o Rei Luís! Nós somos, na verdade, uma família estranha, na qual o padrinho espolia a sua pupila e os ”melhores” amigos do meu pai o ajudam nessa tarefa...

Monsenhor Antoine pensa que o que foi terra de França deve regressar à terra de França. É pena que Vossa Senhoria não tenha podido casar com o delfim Carlos. Teríeis sido uma grande rainha...

Imaginais-me a casar com uma criança de oito anos? exclamou Maria, rindo. Evidentemente, é tentador reinar sobre a França, mas também serei, pelo menos assim espero, uma boa imperatriz da Alemanha. Dito isto, o que vos disseram é verdade: messire Philippe estava aqui no Natal. Suponho que foi por Mme. de Schulembourg que o grande bastardo soube! Ela é muito amiga da mulher dele...

Foi ela, de facto. Posso perguntar onde se encontra o meu marido?

A duquesa levantou-se e deu duas ou três vezes a volta à sala antes de se deter diante de Fiora.

Como posso sabê-lo? Ele só cá ficou dois ou três dias. Vós, os Selongey, pareceis incapazes de ficar muito tempo no mesmo sítio.

Para onde foi ele?

Não sei! E nem sequer percebi o motivo da sua vinda. Dele só vimos a sua cara à banda! E na época das mais belas festas do ano!

Fiora reteve um sorriso desdenhoso. Aquela princesinha bem se esforçava por mostrar que tinha o mesmo sangue fervilhante do Temerário e seria o diabo se alguém duvidasse! Com a sua tez de flor-de-lis, os olhos sonhadores e os vestidos talhados à alemã que lhe achatavam o peito sob um conjunto de bordados dourados e lhe engrossavam a cintura, não evocava em nada a lenda trágica e grandiosa que aureolava o último dos duques da Borgonha. Uma cara à banda, na verdade? Esperaria ela que um homem que acabara de sofrer tantas provações tivesse um aspecto divertido e estivesse disposto a dançar nos bailes da corte?

Creio, Madame disse ela com amargura que ele vinha em busca de algo impossível. Algo que vós fostes incapaz de lhe dar.

E que algo foi esse?

Amor. Penso que ele ama Vossa Senhoria, que sempre amou e que não pôde suportar ver-vos casada e feliz, porque vós sois feliz, não sois, Madame?

Infinitamente! Tive a felicidade de dar um filho ao meu querido marido e pode ser que, em breve, lhe dê outro.

É natural. Mas ele, que fez seus durante tantos anos os sonhos do vosso pai, deve ter compreendido que já não havia lugar para esses sonhos! Confesso a minha decepção, senhora duquesa. Esperava que, pelo menos, o tivésseis mandado para longe numa qualquer missão.

Nem pensar. Nós temos tréguas com o Rei de França. Que missão lhe poderia confiar?

Creio disse Fiora friamente que monsenhor Carlos, que Deus tenha na Sua santa guarda, teria sabido como utilizar um homem da sua qualidade, um homem que, ao serviço de Vossa Alteza, chegou a enfrentar o cadafalso. A Borgonha escapou-se-vos, não é verdade? Penso que não ficareis com nada do que quase foi um reino se não souberdes apreciar os vossos servidores. Alguns merecem-no.

A jovem duquesa, cujo belo rosto ficou vermelho, não teve tempo de lhe responder: um jovem de longas pernas e de rosto bastante rude sob uma floresta de cabelos louros cortados em quadrado, à moda germânica, acabava de fazer a sua entrada impetuosa e dirigia-se para Maria.

Que me dizem, meu coração? Renunciais à caça? Quereis privar-me da vossa companhia? Que capricho é esse?

Não é um capricho, meu querido senhor. Desejava receber a dama que vedes aqui. É a mulher do conde de Selongey.

Compreendendo quem estava na sua frente, Fiora saudou o filho do imperador Frederico como devia ser. Este concedeu-lhe um grande sorriso de apreciação:

Bom dia, Madame. O vosso marido, na verdade, tem mais sorte do que a que merece, porque vós sois muito bela! Mas, se o permitis, levo a duquesa, porque não sei caçar sem ela. Tereis todo o tempo para conversar quando regressarmos...

É inútil, monsenhor disse Fiora. A senhora duquesa disse-me tudo o que eu esperava ouvir dela.

O sorriso de Maximiliano tornou-se maior ainda, se possível. Pegando na mão da sua mulher, ele conduziu-a na direcção da porta.

Óptimo, então! Depois de amanhã damos um baile. Vinde dançar ao palácio nessa noite! Dou-vos as boas-noites, senhora condessa.

O casal desapareceu e Fiora viu-se só na companhia de Mme. d’Hallwyn, reaparecida ao mesmo tempo que o príncipe. A despeito do calor íntimo daquela pequena sala confortável e acolhedora, a jovem sentia-se gelada até aos ossos e permaneceu por um instante imóvel, contemplando as chamas que subiam ao assalto dos cães de ferro forjado. A dama-de-companhia tossicou:

Posso reconduzir-vos, Madame? Pelo menos até ao jardim?

Por que até ao jardim? murmurou Fiora, surpreendida. Por que não até à entrada?

Porque no jardim está alguém que deseja muito falar-vos... e que se encarregará de vos conduzir à porta.

Quem?

Mme. de Schulembourg. Ela viu-vos chegar, há bocado...

Fiora fez sinal de que compreendera. A jovem pensara procurar aquela dama ao chegar a Bruges, mas uma entrevista com a duquesa parecera-lhe mais importante e mais urgente. Perante o resultado medíocre dessa entrevista, talvez fosse bom conhecê-la sem demora. Enquanto, atrás de Mme. d’Hallwyn, a jovem descia na direcção dos canteiros do jardim, chegou-lhe aos ouvidos o eco alegre da partida para a caça: o som das trompas, os latidos dos cães e os gritos dos monteiros que se foram, pouco a pouco, fundindo com o barulho da cidade. Fiora pensou que, na verdade, seria impossível perder um império com mais alegria. Para aquele casal de apaixonados, destinado a usar a coroa de Carlos Magno, não podia haver lugar para a amarga nostalgia dos combatentes do impossível...

Que vos disseram? perguntou uma voz ansiosa e a jovem apercebeu-se que tinha trocado de companhia, encontrando-se ao lado de uma mulher de idade, agasalhada como em pleno Inverno com roupas de veludo e raposa negra, uma mulher que se apoiava numa bengala e cujos olhos claros a envolveram num olhar de compaixão.

A jovem esforçou-se por lhe sorrir sem o conseguir.

Nada que monsenhor Antoine não saiba já: que o meu marido esteve aqui por ocasião do fim do ano. Ah! Sim! A senhora duquesa quis dizer-me que ele ficou pouco tempo, que o seu aspecto sombrio era chocante numa época de festa e que partiu sem dizer para onde ia.

Pobre criança! É muito pouco... Caminhemos um pouco, sim? E dai-me o vosso braço...

As duas damas deram alguns passos ao longo de uma alameda admiravelmente saibrada, afastando-se dos jardineiros que, nos seus canteiros, desbastavam os arbustos.

Não vos falaram na disputa, pois não?

Uma disputa? Entre Philippe e...

E o arquiduque Maximiliano! Este encontrou o vosso marido de joelhos diante de Madame Maria. Ficou furioso e exigiu que partisse sem ouvir, sequer, a menor explicação. Mas o conde não é daqueles que se deixam expulsar assim sem mais nem menos. Antes de partir, batendo com a porta, disse ao príncipe que era indigno de ser o genro do defunto duque Carlos e que preferia morrer a servir um tal senhor. Depois, limitou-se a sair e, se não foi detido, foi unicamente devido aos pedidos da princesa.

Mas Fiora só retivera as primeiras palavras de Mme. de Schulembourg, que confirmavam dolorosamente o que pensava: Philippe amava a princesa e ousara dizer-lho. Aliás, esta não protestara quando, pouco antes, Fiora lhe dissera o que pensava dos sentimentos de Philippe.

Consciente do silêncio que acabava de cair entre ela e a sua companheira, a jovem reprimiu as lágrimas:

Como é estranho, na verdade! disse ela com uma voz que se esforçou por manter firme. Eu vi o príncipe e ele foi... muito amável. Até me convidou para o baile de depois de amanhã.

A velha dama desatou a rir:

Não vos espanteis! Isso é mesmo dele! Aquele homem não consegue seguir duas ideias ao mesmo tempo. Além disso, lá por se mostrar apaixonado pela sua duquesasinha, não quer dizer que não seja sensível ao encanto feminino. A ideia de dançar com a mulher de um homem que ele considera doravante seu inimigo, deve parecer-lhe agradável. Acrescentai a isso que ele adora rir e dar festas...

Seja, admito-o, mas, por que razão Madame Maria não me disse nada?

Receou, sem dúvida, que lhe pedísseis explicações, o que a teria embaraçado. Além disso, arriscava-se a acordar de novo a cólera de um marido que ela ama de todo o coração. Vê-lo feliz a seu lado e do jovem príncipe Philippe é o que mais deseja. Então, tudo o que se possa meter entre essa felicidade tranquila...

Não esqueçais que ela não conheceu uma verdadeira vida familiar. Não era fácil ser a herdeira mais rica da Europa...

A herança desapareceu disse Fiora secamente e ela não parece muito preocupada. Na verdade, pergunto a mim própria por que razão me recebeu?

E a curiosidade, que é feito? Como resistir à vontade de conhecer a misteriosa dama de Selongey, a florentina de quem diziam maravilhas e que o Temerário arrastava consigo de batalha em batalha como uma rainha cativa? Estou certa que neste momento tendes os ouvidos a zumbir, não é verdade?

Um pouco, mas não tem importância...

Em que pensais?

Na sorte de Philippe. No que lhe aconteceu. Há meses que o procuro e ele parece fugir diante de mim. Vós, que o vistes, a quem ele falou, não me podeis dizer para onde ia quando saiu de Bruges?

Mme. de Schulembourg olhou para a jovem com profunda compaixão. Depois de a ter levado a conhecerem-se, a sua simpatia por aquela bela criatura, em quem adivinhava uma coragem que sempre apreciara, crescia de instante a instante:

Se eu soubesse suspirou ela já vo-lo teria dito. Se estais decidida a prosseguir a vossa busca, é na direcção da Borgonha que deveis dirigir os vossos passos.

Achais que ele voltou para lá? Seria uma loucura, porque foi um milagre ele ter escapado ao cadafalso e, pelo que sei, o Rei Luís tem a região toda na mão. Dizem que até o Franco-Condado, esse último bastião, também caiu.

Sem dúvida, mas a Borgonha ocupada pelas tropas francesas está cravada no coração do conde de Selongey como um espinho que não cessa de sangrar.

A despeito da lentidão, os passos das duas mulheres tinham-nas conduzido até ao alpendre que abria para as galerias do pátio de honra agora quase vazio.

Posso pedir-vos um conselho? pediu Fiora. Que faríeis no meu lugar?

Se quereis mesmo encontrá-lo, ou, pelo menos, descobrir-lhe o rasto, é preciso ir a Selongey. Um homem desamparado procura sempre reencontrar as suas raízes, a sua casa paterna...

Eu pensei nisso, claro, mas o sire de La Trémoille deve ter o castelo vigiado.

Ele já não é o governador da cidade, é messire d’Ambroise, que é infinitamente mais conciliador. Mas, onde viveis vós?

Em Touraine. E se ele tivesse ido ter comigo, eu não estava aqui à procura dele. Passou-se muito tempo desde o Natal...

Nesse caso, ide à Borgonha e começai por Selongey! Espantar-me-ia muito se não encontrásseis lá, pelo menos, um indício. Dito isto, tereis muita dificuldade em encontrar o vosso marido, porque ele deve estar escondido. E ides correr perigos, talvez inúteis. No fundo, o mais sensato seria regressardes a casa e esperar...

O quê? Que ele volte? Ele não volta.

Nesse caso, por que essa obstinação? Se, ao menos, tivésseis filhos!

Eu tenho um filho! disse Fiora, que acrescentou com amargura: Deus sabe que não passámos muito tempo juntos, mas este casamento insensato foi abençoado com uma criança. Simplesmente, Philippe ignora-o.

Então, tendes de lho ir dizer. Procurai-o, encontrai-o, mas se as vossas buscas forem infrutíferas, regressai para junto do vosso filho para que ele não fique órfão. Deus vos guarde, minha querida! Rezarei por vós!

Puxando Fiora para o seu vasto regaço, Mme. de Schulembourg abraçou-a, traçou com o dedo na sua testa uma pequena cruz e depois, apertando contra si o seu manto forrado, retomou, claudicante, o caminho do jardim. Fiora viu-a afastar-se e após um último olhar para aquele palácio esplêndido construído para os Grandes Duques do Ocidente, mas que já não era senão o cenário vazio de uma grandeza defunta, foi ter com Florent, que a esperava passeando os cavalos no pátio.

Desde a sua partida que Fiora acostumara o jovem ao silêncio. Sem ousar questioná-la quando a viu regressar com os olhos cheios de lágrimas dificilmente contidas, ele compreendeu que a jovem tinha pressa de abandonar aquela residência principesca onde alimentara tantas esperanças. Senão, por que aquela magnífica toillette? O jovem apressou-se a ajudá-la a subir para a sela e colocou suavemente as rédeas entre as suas mãos enluvadas. Saltando para a sua própria montada, precedeu a jovem para que lhe abrissem a porta, afastou-se para lhe dar passagem e seguiu-a. Quando chegaram defronte da Ronce Couronnée, viu que umas grossas lágrimas lhe corriam silenciosamente pelo rosto desprovido de expressão. Elas transbordavam dos grandes olhos cinzentos extremamente abertos e caíam uma a uma, seguindo o desenho delicado dos traços da face. Era mais do que podia suportar.

Isto tem de acabar! resmungou ele. Ajudando Fiora a pôr pé em terra, o jovem chamou um palafreneiro, ordenou-lhe que tratasse dos animais e depois, segurando no braço da jovem que não opôs resistência e que parecia entorpecida, conduziu-a até ao quarto, entrou, fê-la sentar-se, foi fechar a porta e regressou para se ajoelhar perante ela, segurando entre as suas as duas mãos que lhe pareceram frias como gelo:

Donna Fiora! pediu ele. Pensava que tínheis confiança em mim.

Como que saindo de um sonho, ela pousou no jovem um olhar que não via:

Eu tenho confiança em vós, Florent disse ela com voz neutra. Por que me perguntais isso?

Porque me parece ter-me tornado para vós, não só um estranho, mas também uma espécie de móvel. Desde que saímos de Beaugency que parece que não me vedes. Fartámo-nos de correr, corremos perdidamente para chegar aqui, sem que vos dignásseis explicar-me as vossas intenções.

E tem mesmo de ser?

Não, se não passo, para vós, de um criado, mas vós sabeis a que ponto vos sou dedicado e recuso-me a deixar-vos sofrer sozinha e em silêncio. Se a sra Léonarde estivesse aqui nunca lamentei tanto que não esteja! também teria direito a esse mutismo? Não, não é verdade? Dir-lhe-íeis tudo... Oh! Eu sei que não a posso substituir, mas dizei-me, ao menos, como posso ajudar-vos, como tornar-vos menos infeliz, porque é evidente que vos sentis muito infeliz!

Fiora acenou com a cabeça e, com um dedo, acariciou levemente a face do jovem:

Que vos poderia dizer, quando eu própria não sei o que hei-de fazer? Levantai-vos, Florent. e ide buscar-me qualquer coisa para eu beber, mas cerveja não, peço-vos. Trazei-me vinho e depois, juntos, tentaremos arranjar um plano, tomar uma decisão...

Não vamos regressar a casa?

Não me parece. Pelo menos para já.

Para onde vamos?

Para a Borgonha. Já é tempo, talvez, de eu ir a Selongey. Passei por lá... oh, só por instantes, quando vim de Florença, há quatro anos.

Nunca mais lá voltastes?

Não. É estranho, não é, ter um nome, um título, e não saber nada, ou quase nada do que eles escondem?

Uma hora mais tarde, estimulados pelo calor de um excelente vinho de Beaune, Fiora e Florent decidiam, de comum acordo, que se impunha uma visita a Selongey.

É o único sítio onde ir afirmou o jovem porque é, creio, o último refúgio possível para o vosso marido.

Os homens do Rei vigiam, sem dúvida, o castelo!

Talvez, mas resta a aldeia e toda a região em redor. Se messire Philippe é amado lá...

Creio que sim. Pelo menos, foi o que me disse Léonarde, que é daquelas bandas...

Confesso-vos que não compreendo por que razão ainda não estamos a caminho! Nem por que pareceis tão desamparada!

É difícil de explicar, Florent, mas tenho a impressão de correr atrás de uma sombra...

A jovem não acrescentou que estava cansada daqueles caminhos, pequenos ou grandes, nos quais hipotecava a esperança e que não iam dar a parte nenhuma, senão a um pouco mais de decepção, a um pouco mais de desgosto; de todos aqueles caminhos sem saída que lhe tinham marcado a vida. Tinha de seguir ainda mais um, mas para saber o quê, à chegada? Que Philippe nunca a amara e que a sua vida de mulher terminava antes mesmo de ter começado?

Загрузка...