Juliette Benzoni Fiora e o Papa Sisto IV

Primeira parte UMA OUTRA RAZÃO PARA AMAR

CAPÍTULO I OS IRREDUTÍVEIS

Philippe de Selongey esperava a morte.

Não como uma inimiga encontrara-a demasiadas vezes por ocasião dos cercos e das batalhas para a confundir com um adversário qualquer. Nem com terror, porque ela podia ser a suprema visão da misericórdia. Antes como uma visitante inoportuna, que se insinua e instala quando menos se deseja a sua presença. Podia ter aparecido numa emboscada sem que ele dela se apercebesse, de chofre, por ocasião do cerco interminável de Neuss ou na planície de Grandson, para onde um acaso providencial o havia atirado, seriamente ferido, quando o exército borgonhês o deixara sem mais forças do que uma estrela-do-mar abandonada na praia pela maré, enquanto os seus companheiros fugiam diante dos Suíços. Teria sido normal, até lógico e conforme àquele estranho contrato que concluíra em Florença num dia de Janeiro de 1475 com um dos homens mais ricos da cidade, Francesco Beltrami: em troca da mão da bela Fiora, sua filha adoptiva e do dote real que a acompanhava. Philippe jurara exigir apenas uma noite, após a qual desapareceria para nunca mais voltar.

Então, fora sincero. Por aquela fortuna destinada aos exércitos do Temerário e por algumas horas de amor, lançara alegremente a sua vida para a balança do mercador, pensando assim consumir toda a felicidade a que tinha direito neste mundo. No entanto, a armadilha do amor fechara-se sobre ele e em vez de procurar a morte, Philippe fizera tudo para a evitar na esperança de rever, nem que fosse por uma única vez, o rosto daquela que amava. E revira-o.

Fiora e ele tinham-se amado de novo enquanto soava ainda o toque a finados do grande duque do Ocidente e da Borgonha soberana. Tinham vivido esse fim e também essa aurora de um tempo novo que Philippe pensava poder partilhar com ela até ao fim da sua jornada neste mundo. E depois, tudo ruíra no caos...

Fiora acreditava que iriam conhecer uma existência tranquila de castelões, unicamente ocupados na fundação de uma família. Ele sabia que essa paz não era possível, já que a Borgonha tinha ainda de lutar pela sua princesa Maria contra a força irresistível do Rei de França. Esperava que a sua jovem mulher esperasse sensatamente o seu regresso em Selongey, na grande casa familiar, mas Fiora não quisera compreender, não quisera admitir que ele desejasse, após tantas atribulações, afastar-se dela para colocar a sua espada ao serviço de uma soberana que não passava, para ela, de mais uma mulher. E depois houvera aquela palavra infeliz acerca de obediência que Philippe deixara escapar...

Nem que vivesse cem anos o que era absolutamente improvável esqueceria aquela última imagem da sua amada: envolta à pressa no lençol que acabava de tirar do leito, os cabelos negros em desordem sobre os ombros nus e os grandes olhos cinzentos carregados de nuvens de tempestade, Fiora era a imagem da revolta e não mastigara as suas palavras.

Nunca o seu pai a obrigara à ”obediência!” Era um termo que não fazia parte do seu vocabulário. Quanto a ele, o marido reencontrado após tanto tempo e que ousava falar-lhe como seu senhor, que fosse, se realmente a queria ver, a Touraine, ao solar que o Rei Luís lhe oferecera como recompensa pelas penas sofridas ao seu serviço.

Uma saída altiva, mas rápida, salvara a rebelde de uma violenta reacção de cólera conjugal. Philippe estava ao corrente do tipo de serviços que Fiora prestara ao astuto soberano, como ela prendera na armadilha da sua beleza sedutora o condottiere Campobasso que, para a reconquistar, traíra o Temerário no dia do último combate. Fiora arrependera-se dessas horas de aberração, mas Philippe achara de muito mau gosto ela lembrar-lhas, evocando o pagamento que recebera. E não perseguira a fugitiva por essa única razão. Esperara que ela voltasse, um pouco confusa, mas terna e pronta a retomar com ele o jogo exaltante do amor. Mas ela não voltara. Fiora abandonava Nancy uma hora mais tarde em direcção a Plessis-lès-Tours, o castelo real, na companhia da sua velha amiga Léonarde Mercet e escoltada pelo sargento La Bourrasque, aliás Douglas Mortimer, dos Mortimer de Glen Livet, um dos mais brilhantes oficiais da famosa Guarda Escocesa do Rei Luís. Nenhuma reconciliação era possível porque, por nada deste mundo Philippe se lançaria em perseguição da sua mulher a partir do momento em que o seu rumo era na direcção do mais terrível inimigo do defunto duque de Borgonha. No dia seguinte, por sua vez, Philippe abandonava a Lorena para se juntar, em Gand, à princesa Maria de Borgonha e à duquesa viúva Margarida, que se esforçava por reunir os seus fiéis para fazer face a um horizonte singularmente sombrio. A política escavava de novo o fosso que o amor pensava ter enchido para sempre...

Para tentar expulsar aquela recordação que lhe fazia desaparecer a coragem, Philippe quis levantar-se, dar alguns passos. Restavam-lhe poucas horas de vida; não queria gastá-las em desgostos estéreis. Com o tilintar das longas correntes que lhe ligavam os punhos à muralha, abandonou a enxerga que lhe servia de leito, quatro pranchas chumbadas na alvenaria, e caminhou na direcção do respiradouro por onde entrava a luz do dia, tendo o cuidado de não se endireitar, porque o tecto de pedra era demasiado baixo para a sua alta estatura.

A janela dava para o pátio interior da casa do Singe, em Dijon, que albergava ao mesmo tempo os Paços do Concelho e a prisão. Aquele dia de Verão enchia-a de sol, cuja luz iluminava as celas e até as masmorras enterradas no solo. Alguns tufos de erva cresciam diante do respiradouro e o prisioneiro esforçou-se por chegar a eles. Teria gostado de os sentir na mão, esfregá-los para lhes respirar o odor a campo e impregnar-se um pouco com as alegrias simples da sua infância quase camponesa. Os laços que uniam o filho do castelão, entre os cinco e os dez anos, aos seus vassalos, eram estreitos. Só mais tarde a diferença se faria notar: os jovens plebeus tinham permanecido ligados à terra, ao ciclo das estações, às suas festas e trabalhos, ao passo que o pequeno nobre tinha ido aprender a vestir o que se tornaria a sua segunda pele essa combinação de couro e ferro que lhe permitiria afrontar o combate e a substituir as espadas e lanças de madeira por belas lâminas forjadas em Toledo ou Milão. Na cave de pedra, onde via uma antecâmara daquela que, definitiva, o esperava, o conde virava-se para a sua infância, como os idosos que sabem que a sua jornada está a chegar ao fim. Pensar na sua mulher era-lhe demasiado cruel e preferia esquecê-la. Quanto àquele último combate, pelo qual o tinham condenado, compreendia, finalmente, que sempre o considerara perdido.

Pouco ou nada restava dos belos exércitos que a má sorte fizera desaparecer em pouco mais de um ano e eram numerosos os borgonheses que desejavam a paz a qualquer preço. A herdeira, Maria de Borgonha, cuja causa Philippe abraçara impetuosamente, era quase tanto prisioneira no seu palácio de Gand como ele naquela masmorra de Dijon. A mais turbulenta das fortalezas flamengas fechara-se sobre ela e sobre a duquesa viúva como o cofre de um usurário; não lhe restituiria tão cedo a liberdade. E apesar de ser a duquesa soberana por nascimento, Maria tinha menos poder do que o mais modesto dos seus castelões.

Na verdade, era noiva do príncipe Maximiliano, herdeiro da Alemanha, mas o noivado manter-se-ia? O filho do Imperador não se afastaria da borgonhesa meio-arruinada para olhar para outros partidos mais interessantes? Como sabê-lo? As notícias da Flandres só dificilmente chegavam ao punhado de partidários que pretendiam conservar a Borgonha para a filha do Temerário

Nos primeiros tempos que se seguiram à morte do duque, as coisas tinham corrido bem. Primeiro, a notícia fúnebre encontrara muitos incrédulos. Dizia-se que Carlos escapara à morte, que se escondia algures em Souabe, onde convalescia dos seus ferimentos e preparava o seu regresso. Aliás, espalhar-se-iam, durante muito tempo, lendas acerca do fim do último

1 Suábia, região e antigo ducado da Alemanha, hoje parte sudoeste da Baviera e cuja capital é Ausburgo.


grande duque do Ocidente, tanto mais duradouras quanto mais fantásticas.

Dijon, porém, informada por aqueles que regressavam da Lorena, soube rapidamente a verdade. As damas da cidade reuniram-se e percorrem as ruas gritando: ”Viva Madame Maria!” com alegria e entusiasmo, encantadas com a ideia de ver uma mulher no trono depois de tantos homens. Os homens, esses, mantiveram-se reservados.

Soube-se, em seguida, que o Rei de França pretendia reconquistar aquela rica Borgonha em tempos oferecida por João, o Bom ao seu filho Filipe, como recompensa pela sua valentia na batalha de Poitiers. Alguns pensavam que era justo e que, em todo o caso, Luís XI, se bem que menos espectacular que o Temerário, era um bom Rei para os seus súbditos: poupava-lhes o mais possível a guerra e as dores provocadas por esta e sob o seu reinado o comércio florescia. Mas outros eram de opinião diferente e desejavam que o estandarte de Maria, desfraldado na torre de Saint-Nicolas, ali continuasse.

Philippe de Selongey pertencia a estes últimos e os sucessos conseguidos no Comté pelos irmãos Vauldrey, que tinham conseguido fazer recuar as tropas reais de Georges de La Trémoille, senhor de Craon, davam-lhe um certo conforto. Infelizmente, La Trémoille, adiando essa conquista para mais tarde, concentrara as suas forças em Dijon, que conquistara com a ajuda de Charles d’Amboise e Jean de Chalon, um dos primeiros conjurados. La Trémoille estabelecera uma guarnição na cidade e ordenara a construção de um poderoso castelo destinado a defender Dijon dos ataques exteriores... e interiores. Francamente impopular, essa decisão aumentara o número dos partidários da duquesa.

A partir dos primeiros dias de Março, Philippe estava de regresso à cidade e instalava-se secretamente na sua casa familiar que, aparentemente, permaneceu de portas e janelas fechadas, como se ali não houvesse ninguém. A casa estava fechada há demasiado tempo para que a presença de um cavaleiro do Tosão de Ouro, cuja fidelidade ao duque Carlos era conhecida, não parecesse suspeita. A partir desse refúgio conseguiu reunir Franco Condado boas vontades e corações corajosos entre aqueles que tinham sido mais ou menos aliados da sua família, ou que a tinham servido. Uma correspondência constante com os partidários dos arredores permitiu-lhe planear um ataque nocturno à cidade, cujas portas ele próprio abriu chegado o momento. Mas, para vencer a guarnição francesa era preciso muita gente e a paciência impunha-se. Assim como o segredo. A situação do rebelde era, de algum modo, perigosa, porque uma grande parte dos almotacés e dos grandes burgueses começava a aceitar a ideia de virem a ser súbditos do Rei Luís se esse fosse o preço a pagar pela tranquilidade.

Os aliados de Philippe pertenciam, sobretudo, à juventude, às classes populares e aos antigos exércitos do duque mais ou menos arruinados, mas que não eram fáceis de manipular, já que demasiado ávidos por passar à acção. Foi assim que no dia 1 de Junho estalou uma desordem no bairro de Saint-Nicolas por causa de uma mulher maltratada por um soldado. Gritou-se ”Viva a Borgonha!”, escreveram-se nas paredes injúrias ao Rei de França e atiraram-se pedras aos homens de armas, que ripostaram. Correu um pouco de sangue e a calma foi restabelecida. E Philippe acreditou ter o controlo dos seus partidários, ignorando que alguns deles viam apenas na luta pela independência um bom meio de promover uma espécie de luta de classes.

No dia 26 de Junho, aquando de uma ausência de La Trémoille, o drama estalou por ocasião da eleição do novo vicomte-mayeur2 da cidade, na presença de um arauto de Maria de Borgonha. Os magistrados municipais estavam reunidos nos Cordeliers. Foi então que um grupo de homens, armados com tudo que lhes chegou às mãos, saiu da porta de Saint-Nicolas. À sua cabeça marchava, vestido com um longo traje ”acinzentado”, um certo Chrétiennot Yvon, em tempos um rico merceeiro mas agora arruinado e que morava, em Gevrey, num pequeno solar pertencente aos monges de Cluny.

1 Antigo inspector de pesos e medidas que fixava o preço dos comestíveis.

2 Uma espécie de Presidente da Câmara

3 Franciscanos


Mal entrou na cidade, Yvon obrigou os guardas da torre de Saint-Nicolas a entregarem-lhe as chaves e rasgou o estandarte real que flutuava lá no alto. Em seguida, ele e os seus homens desceram na direcção do coração de Dijon gritando às armas para os partidários da princesa Maria. Na multidão, alguém gritou:

Vamos buscar aqueles mestres almotacés que governam a cidade e que se escondem nos Cordeliers!

Entretanto, o alarme fora dado e os almotacés dispersos sob os cuidados de Selongey, consciente de que se cometia uma loucura. E tinha razão: quando Yvon desembocou na praça dos Cordeliers, só encontrou um idoso, Jean Joard, presidente do parlamento de Borgonha e que, confiante na sua idade e na sua influência, quis fazer frente ao motim, ordenando aos rebeldes que abandonassem as armas e que dispersassem.

Nós estamos aqui para entregar a cidade a Madame Maria exclamou Yvon. Ou prestas homenagem à tua princesa, ou morres!

A nossa duquesa nunca exigiu que Dijon lhe fosse entregue passando por cima dos cadáveres dos velhos servidores do seu pai exclamou Selongey colocando-se, de espada na mão, diante do ancião. Os Franceses é que devem ser mortos, não os nossos!

Ele e os como ele venderam-se, há muito, ao Rei Luís. E tu, também és como eles?

Eu sou Philippe, conde de Selongey, cavaleiro do Tosão de Ouro e fiel até à morte a monsenhor Carlos, que Deus guarde na Sua protecção. E não reneguei o meu juramento de fidelidade.

Isso é fácil de dizer disse o outro com uma grande risada. O senhor de Selongey aqui, sem mais nem menos? Quando chegaste?

Há três meses. Alguns, aqui, sabem-no, mas tu, tu queres destruir o que eu arquitectei.

Alguém o conhece, aqui?

O olhar ameaçador do antigo merceeiro percorreu os rostos e reclamou uma resposta, desafiando quem lha quisesse dar. Ninguém se mexeu e Philippe compreendeu que tinha perdido.

Muito bem! concluiu Yvon. Nesse caso, vamos acabar com todos os apoiantes de Luís XI e partilhar os seus bens. Ao ataque, meus amigos!

Um instante mais tarde caía o velho presidente, apunhalado por Chrétiennot Yvon e o próprio Philippe, subjugado por cinco ou seis magarefes que lhe passaram pelo pescoço o lenço de veludo vermelho da vítima, foi obrigado a seguir o bando de energúmenos, que foi, primeiro, pilhar a casa do Singe depois de ter solenemente proclamado a soberania da princesa Maria.

Selongey, que sonhara entregar à sua duquesa as chaves de Dijon, estava agora prisioneiro de gente que pretendia defender as mesmas cores que ele, mas que, na realidade, se limitava a saciar as suas vinganças e apetites pessoais. O bando pilhou, roubou e queimou, durante toda a noite, as casas daqueles que acreditava realistas, como o recebedor-geral Vurry, o mestre Arnolet Macheco e o abade de Fénay. Impotente e aflito, Philippe assistiu àqueles acontecimentos extremos antes de ser levado para a sua própria casa, onde Yvon se instalou na companhia dos seus homens para festejar e contar o seu saque.

Foi ali que, quatro dias mais tarde, La Trémoille em pessoa os prendeu, e Philippe com eles.

Ele é o nosso chefe declarou Yvon com um sorriso zombeteiro o senhor conde de Selongey, um dos íntimos do defunto duque Carlos.

Um nobre à cabeça de um bando de assassinos e ladrões disse o senhor de Craon com ar de desprezo. Que outra coisa seria de esperar de um borgonhês?

Sim, borgonhês e com muito orgulho, mas eu estava aqui prisioneiro e não sou chefe deles protestou Philippe.

A sério? Então, sois daqueles, já bastante numerosos, que estão prontos a jurar fidelidade ao Rei meu senhor? Nesse caso...

Philippe nunca hesitava entre a vida e a honra. Além disso, o antigo merceeiro, que acabava de o engajar sob a sua bandeira contra a sua vontade, lançava-lhe um olhar de desafio.

Não. Nunca prestarei juramento de fidelidade ao Rei de França. Eu sou fiel a Madame Maria, única e verdadeira duquesa de Borgonha.

Essa recusa custar-vos-á a cabeça!

Uma hora mais tarde, Philippe era encarcerado nas prisões da casa do Singe, saindo de lá apenas, acorrentado, para ouvir a sua própria condenação à morte.

Uma semana mais tarde, a sentença ainda não tinha sido executada. Segundo o carcereiro que lhe levava as refeições, o atraso devia-se à qualidade do prisioneiro. Estava guardado para o melhor da festa, seria o atractivo do sangrento espectáculo que o senhor de Craon tencionava dar a Dijon. Furioso com as desordens cometidas durante a sua ausência, o francês vingava-se fazendo reinar o terror. Depois do seu regresso, todos os poderes, que não o seu, ficaram suspensos e os partidários do Rei puderam assistir ao castigo daqueles que se lhe tinham oposto. Acossavam-se os menores suspeitos e tanto o carrasco, como os seus ajudas, não tinham mãos a medir. Jehan du Poix, o ”carniceiro” da cidade, só parava de torturar para enforcar e decepar cabeças. Para variar o espectáculo, até foi encontrado, por acaso, um fabricante de moedas falsas, que meteram num caldeirão com azeite e água a ferver...

Decididamente, era impossível atingir os tufos de erva: as correntes que ligavam o prisioneiro à muralha eram demasiado curtas e, com um suspiro, este sentou-se na enxerga. A noite ia cair. A cidade estava estranhamente silenciosa, como se necessitasse de repousar após tanta violência. Não se ouviam gritos, vociferações, toques de sino anunciando a última hora dos condenados! Philippe pensou que não restava ninguém para matar senão ele. Nesse caso, a sua morte não devia estar longe. Seria aquela a sua última noite?

O barulho dos ferrolhos fê-lo virar a cabeça. Entrou um carcereiro transportando uma bilha de água e um pedaço de pão, mas não era o carcereiro do costume. Aquele era um homem de idade, que arrastava os pés e cuja longa barba, de um cinzento-amarelado, lhe chegava ao estômago.

Quem és tu? perguntou Philippe. É a primeira vez que te vejo.

O homem olhou-o com uns olhos sem cor definida e raiados de vermelho.

E depois? resmungou ele. O tipo que estava encarregue do subsolo partiu uma perna ao descer do telhado para onde tinha subido para ver melhor a execução. Então, foram buscar-me, mas estas escadas não são nada boas para as minhas dores. Os degraus são escorregadios e na minha idade...

Quem é que despacharam hoje? perguntou Selongey, pouco desejoso de ouvir a lista de recriminações do velhote.

O Chrétiennot Yvon. Foi preciso levá-lo para o cadafalso porque a tortura lhe desfez as pernas, mas foi um belo trabalho. Mestre Jehan du Poix despachou-o com um único golpe de machado e depois cortou-o em quatro bocados para serem pendurados nas portas da cidade. A cabeça está em Saint-Nicolas, a perna direita na porta de Ouche, a perna esquerda...

Não me interessa saber mais cortou Philippe, desgostoso e inquieto pela primeira vez, pensando que acabavam, talvez, de lhe descrever a sua própria sorte.

A morte não significa nada para um guerreiro, mas ir para o cadafalso meio morto e ser depois cortado em pedaços como carne de talho revoltava-o e deixava-o com pele-de-galinha. Queria poder olhar o carrasco nos olhos e dominar, do alto da sua estatura, a multidão que apareceria para ver o espectáculo.

Sabe-se quando será a minha vez? perguntou ele com voz firme.

O ancião encolheu os ombros e olhou para o prisioneiro com uma certa piedade.

Eu sei que não é nada agradável de ouvir, mas creio que é amanhã. Avisaram-me que esta noite vem aqui um monge para vos exortar. Ides precisar de coragem.

Se não a tivesse, não estava aqui.

O carcereiro pousou o pão e a bilha e, como um bom criado de quarto, sacudiu a coberta abandonada sobre a enxerga.

Tivestes sorte! Deram-vos o melhor quarto da casa. Esta cela foi restaurada.

Restaurada? exclamou Selongey, olhando para as paredes cheias de salitre, o tecto que o Verão borgonhês não conseguira secar e a palha meio apodrecida que cobria o chão. Deve ter sido há muito tempo!

É claro que não foi ontem, mas, aqui onde me vedes, conheci esta prisão sem mais nada senão palha. As correntes estavam velhas e ferrugentas e os ratos corriam por aqui como se estivessem em casa deles. No entanto, vi, aqui dentro, uma pobre rapariga dar à luz uma criança. Tinha cometido o pecado do incesto com o irmão e também o de adultério, mas era muito novinha, muito pequenina e partiu-me o coração vê-la torcer-se de dores durante horas.

Philippe tinha empalidecido e olhava com horror, agora, para aquela prisão que, até então, não lhe parecera diferente de outras que conhecera.

Ela chamava-se Marie de Brévailles, não é verdade? murmurou ele. E morreu cinco dias depois...

Foi isso mesmo! disse o carcereiro, espantado. Era do vosso conhecimento?

Não, mas conheci o irmão, ao serviço de monsenhor de Charolais. Foi uma triste história, com efeito.

- Bem, não foi assim tão triste, no fundo!

Como?

Eu explico-vos. Enquanto dava à luz a criança, não passava de uma pobre criatura sofredora, mas devíeis tê-la visto a caminho do cadafalso com o irmão! Como eram nobres, permitiram-lhes que se vestissem decentemente com os seus melhores trajes e estavam ambos soberbos. Antes de subir para a carroça, ele segurou-lhe na mão e sorriram um para o outro. Tinham um ar tão feliz, que pareciam que iam para um casamento. E tão belos! Toda a gente chorou ao vê-los morrer.

Mas deixaram uma criança?

Sim. Uma miúda, que foi levada para o hospício. Isso foi o mais triste, porque ela era filha do pecado, mas dizem que o bom Deus teve piedade dela. Um estrangeiro, um rico mercador, estava de passagem. Viu morrer a mãe e quis ficar com a pequena. Mas não se sabe o que lhe aconteceu...

Selongey reteve um sorriso. Perguntava a si próprio que cara faria o homenzinho se lhe dissesse que a pequena em questão era sua mulher. Mas não lhe apetecia continuar a conversar. Já que a sorte queria que ele passasse as suas últimas horas na mesma masmorra onde Fiora vivera os seus primeiros instantes, isso era, para ele, um sinal do destino. Não teria, como Jean de Brévailles, a alegria de morrer com aquela que amava e não partilharia a sua tumba, mas partiria com a imagem da sua bela florentina no coração. Tentar expulsá-la da sua mente, tal como fizera nos últimos tempos, era inútil. Não podia escapar à recordação de Fiora, aos grandes olhos de Fiora, ao sorriso de Fiora. Talvez achasse a morte mais amena se pensasse nela. No fundo, ela tivera razão em recusar a vida que lhe oferecera. Que seria dela, agora, se tivesse aceitado ir para Selongey? Uma viúva desesperada e irritada com a presença de uma cunhada tão tola como Beatrice, uma mulher que os homens de armas expulsariam como acontece muitas vezes quando se trata dos bens de um condenado? Que seria, talvez, molestada, encarcerada? Philippe odiava com todas as suas forças o Rei Luís, décimo primeiro do nome e por nada deste mundo aceitaria servi-lo, mas, naquela ocasião, mais valia que Fiora tivesse escolhido ficar perto dele e aceitar o pequeno castelo que ele lhe oferecera. Desse modo, a sua morte como rebelde não prejudicaria aquela que amava.

O carcereiro já saíra há muito, expulso pelo mutismo do prisioneiro e pela noite que começava a cair. Philippe pegou no pão que lhe tinham trazido e, depois de traçar o sinal da cruz sobre ele, arrancou um pedaço e mordeu-o. Não tinha fome, mas, sabendo o que o esperava no dia seguinte, queria abordá-lo na plena posse das suas forças. Aliás, pela primeira vez, o pão era fresco e ele mascou-o e cheirou-o com algum prazer. O odor do pão quente, saído do forno, encantara a sua infância; e continuava a ser um dos seus odores preferidos. Comeu metade, acompanhado com alguns goles de água fresca. Era melhor guardar a outra parte para a manhã seguinte. Não lhe trariam mais.

A noite instalou-se e as horas começaram a escoar.

Philippe tinha sono, mas hesitava em deixar-se adormecer: não lhe dissera o carcereiro que viria um monge nessa noite? Confessar-se meio adormecido não é coisa fácil. Finalmente, e como o tempo passava sem que aparecesse ninguém, estendeu-se na enxerga, fechou os olhos e adormeceu.

Foi acordado por uma mão que lhe abanou suavemente o ombro. O jovem viu entrar pelo respiradouro a luz de um dia cinzento e compreendeu que dormira tranquilamente a sua última noite. A mão pertencia a um pequeno monge cujo hábito cinzento pertencia aos Frades menores, ordem fundada por São Francisco de Assis. Ainda ensonado, Philippe ouviu uma voz doce murmurar-lhe:

A hora aproxima-se, meu filho. Vim assistir-vos. Tendes de vos preparar para comparecer perante o Criador...

O pequeno monge tinha uns olhos claros, plenos de compaixão, num rosto ainda não arranhado pela maturidade. Philippe sorriu-lhe.

Sou todo vosso, meu irmão. Sabeis quanto tempo me resta de vida?

As Primas ainda não soaram. Só morrereis a meio da manhã.

O prisioneiro sentiu-se empalidecer.

Creio que não tenho muitos pecados para confessar. Sem dúvida, antes do cadafalso, serei torturado?

Não creio. Ninguém me disse nada e, normalmente, seria avisado. Creio acrescentou ele com um meio sorriso que podereis caminhar firmemente para a morte, se é isso que vos atormenta.

Philippe não conseguiu reter um suspiro de alívio. Era a melhor notícia que lhe podiam ter trazido. Nada lhe enfraqueceria a coragem e aqueles que já se amontoavam na praça do Morimont veriam como morre um cavaleiro do Tosão de Ouro.

Ajoelhando-se diante do monge sentado na enxerga, esvaziou a alma de tudo aquilo que, em trinta anos de existência, poderia ter acumulado de faltas, pesadas ou leves. Aquilo durou mais do que imaginara, porque, à medida que recuava no tempo, a sua memória restituía-lhe recordações mais ou menos enterradas com os rostos daqueles que tinha matado, na guerra ou em duelo. O mais difícil foi, sem dúvida, confessar por que meios obrigara Francesco Beltrami a dar-lhe a mão de Fiora e o dote fabuloso que a acompanhava.

Mas esse ouro defendeu-se ele não o queria para mim. Era para o meu príncipe, que dele tinha muita necessidade.

Compreendo disse o monge severamente fizestes negócio com uma alma inocente. Não podíeis amar essa jovem...

Tanto podia, que continuo a amá-la, já que ela é minha mulher e nunca deixarei de a amar. Fui apanhado na minha própria armadilha e é esse o meu castigo. A minha única dor é não ter notícias dela.

Seguiu-se um silêncio apenas perturbado pela respiração atormentada de Selongey. O monge olhava-o sem o ver, absorto num sonho interior. Subitamente, tirou do hábito um pequeno rolo de papel que meteu na mão do prisioneiro.

Um homem, que vi ontem à tarde, suplicou-me que vos entregasse este bilhete. Contém, parece, essas notícias que tanto esperais.

Philippe pegou na mensagem como se se tratasse de uma hóstia. Os seus olhos dourados acabavam de se iluminar.

Esse homem disse-vos o nome?

Nem eu teria aceite que não. Disse-me que se chamava Mathieu de Frame.

Esquecendo que devia permanecer ajoelhado até ter recebido a absolvição, Philippe, invadido por uma grande alegria, levantou-se e caminhou até ao respiradouro invadido pela luz rosada da madrugada. O seu coração batia-lhe com toda a força no peito, de maneira quase dolorosa. Os seus dedos tremiam em redor do pequeno rolo que não ousava abrir. Quando, em Março último se separara, em Gand, de Frame, seu escudeiro, mas também o seu melhor amigo ao longo de tantos anos, lado-a-lado na guerra e na paz, enviara-o a Touraine para saber o que acontecera a Fiora. A ideia de nunca mais saber nada dela era-lhe intolerável e ninguém melhor do que Mathieu para levar a cabo essa delicada missão: ver sem ser visto, saber sem que lhe adivinhassem a presença. A honra, e também, talvez, o orgulho, impediam que Selongey se aproximasse da sua mulher, já que ela o intimara a isso de maneira extremamente cavalheiresca, mas temia, acima de tudo, que levasse a cabo a última ameaça que lhe lançara: anular o seu casamento, reconquistar a liberdade, a sua mão e o seu coração... talvez para os dar a um outro homem. Se fosse esse o caso, Philippe queria saber a quem devia desafiar para um combate. Mesmo longe de si, Fiora continuaria a ser sua, fosse a que preço fosse.

Mathieu não ficara encantado com a missão:

Confias-me uma missão de espião?

Antes uma missão de amigo. Eu não posso ir, porque entrar em França significa correr o risco de me deixar aprisionar. Luís XI sabe que nunca lhe prestarei vassalagem e a ocasião seria boa demais para fazer da minha mulher uma viúva. Mas, para defender o que me pertence, juntar-me-ei a ti. Juntos, podemos raptá-la.

Por que não fazê-lo já, nesse caso?

Porque quero dar-lhe mais algum tempo. Porque quero ver quanto vale o seu amor. Para já, ela não me perdoaria um golpe de força.

Resmungando, mas convencido, Prame partira. Alguns dias mais tarde, a duquesa Maria enviava Selongey a Dijon e o cavaleiro nunca mais recebera as notícias tão esperadas.

Não ledes? reprovou-o o monge.

Philippe virou para ele um sorriso inseguro. A sua hesitação era ridícula, sabia-o bem. Tinha a ver com o medo de ler palavras cruéis. Mathieu não tinha nada de cronista e manejava a pena como um aprendiz de frade. Não podia contar com ele para ornamentar com arabescos e doçura lenificante a brutalidade das coisas.

Reunindo a sua coragem, Philippe desenrolou, por fim, a mensagem. Esta continha, com efeito, poucas palavras: ”Ela está bem. Não pode haver anulação, porque espera uma criança para Setembro... Perdoa-me por ter chegado demasiado tarde. Sou teu amigo fiel e gostaria tanto de te ajudar... Sinto-me muito infeliz...

As lágrimas subiram aos olhos de Philippe, que não tentou dissimulá-las. Tinha aberto a sua alma ao pequeno monge; que importava se ele o via, agora, chorar? Como lesse uma certa inquietação naqueles olhos cândidos, estendeu-lhe a mensagem.

Lede, meu irmão! Compreendereis porque choro... de alegria. Que Deus, na sua bondade, me conceda um filho, porque, assim, não morro.

Rezarei por isso, mas vinde receber a absolvição e a hóstia, porque faz-se tarde e já ouço barulho.

Ainda uma palavra. Sem dúvida, voltareis a ver Mathieu. Dizei-lhe que proíbo que a minha mulher saiba do meu destino.

Pelo menos, até dar à luz. A criança poderia sofrer com o seu desgosto... porque espero, mesmo assim, que tenha algum.

Podeis ficar descansado! Dir-lho-ei. Ajoelhai-vos, agora, para que vos perdoe em nome de Deus Todo-Poderoso.

Era tempo. Mal o corpo de Cristo tocou nos lábios do condenado, a porta abriu-se, dando passagem ao velho carcereiro acompanhado por um barbeiro. Aquando da pronunciação da sentença, com efeito, Selongey pedira para ser barbeado antes de ser conduzido ao cadafalso. Fazia questão de se mostrar com a melhor aparência possível.

A operação foi levada a cabo rapidamente. O barbeiro era hábil e tinha a mão ligeira. Levou, até, a sua complacência ao ponto de escovar cuidadosamente as vestes poeirentas do prisioneiro.

Não tenho nada para te dar como pagamento disse Selongey quando ficou pronto. Deixaram-me sem vintém.

Não vos preocupeis, messire. Serei pago... e se não o for, não tem importância. Sinto-me orgulhoso por vos ter prestado este serviço.

Conheces-me, nesse caso?

Não em pessoa, mas a minha mãe é de Selongey. Tenho muita pena de vos ver partir deste mundo sem um herdeiro.

Philippe sorriu e pousou uma mão amigável no ombro daquele último amigo.

Creio que Deus providenciou. Se queres ainda fazer qualquer coisa por um ”conterrâneo”, reza-Lhe para que a minha bela mulher, que está longe daqui, infelizmente, mas que está grávida, dê ao mundo um filho. Com uma mãe daquelas, ele saberá, estou certo, honrar o nosso nome.

Philippe estava pronto. O barbeiro retirou-se com as lágrimas nos olhos e foi substituído por um piquete de soldados que não ultrapassou a porta. O velho carcereiro tirou uma chave do molho que transportava à cintura e desembaraçou o prisioneiro dos ferros que o prendiam às correntes, logo substituídas por uma corda sem que o prisioneiro tivesse tido tempo, sequer, de esfregar os pulsos doridos. Philippe viu-se com as mãos atadas atrás das costas. Protestou:

Não posso morrer com as mãos livres?

São as ordens respondeu o sargento que comandava o piquete de arqueiros. E agora vamos, que chegou a hora!

Com um último olhar para aquela prisão que tanto detestara, mas que, no entanto, se lhe tornara querida porque lhe parecera ver flutuar nela a sombra límpida de Marie de Brévailles, o condenado franqueou a porta baixa seguido do seu confessor que rezava de cabeça inclinada, colocou-se entre os soldados que o esperavam, trepou com eles a escadaria cujos degraus de pedra, utilizados por milhares de botas ferradas, estavam gastos ao meio e saiu, por fim, para a rua onde o esperava uma carroça, talvez a mesma que conduzira os Brévailles à morte vinte anos antes, porque era um veículo velho, de pranchas de madeira desconjuntadas. No entanto, ao vê-la, Philippe deixou sair um novo suspiro de alívio. Temia a humilhação suprema de ser arrastado pelo meio da poeira e dos detritos como era hábito em Dijon com os condenados. Como não era o caso, sentiu-se bastante melhor. Lembrou-se que não terminara o seu pão, mas não sentiu pena; sentia-se bem-disposto e em plena posse das suas faculdades, o que não podia deixar de ser uma graça de Deus. Decidido a esquecer este mundo, ergueu os olhos para o céu de um azul delicado que a incandescência do sol de Verão ainda não branqueara. O dia prometia ser belo. Tinha, naquela manhã, a glória triunfante da juventude. Estava um tempo bom para correr pelos prados, para pescar num ribeiro com um jarro de vinho metido na água corrente para refrescar, um tempo bom para ler belos versos à sombra de um velho carvalho ou simplesmente cheirar as rosas levando pela mão a dama amada, um tempo bom para a felicidade e para a alegria de viver, enfim...

Enquanto a carroça se afastava aos solavancos sobre as grandes pedras da rua pavimentada e em todos os campanários os sinos das igrejas começavam a tocar a finados esse toque não cessaria senão no momento em que a sua vida se extinguisse Philippe preferiu olhar para o cimo das árvores onde as aves cantavam e para o céu que, esse, celebrava tão bem, naquela manhã, a glória de Deus. O mundo dos homens, na verdade, não era belo, e ele preferia ignorá-lo. Zumbia de troça, de injúrias, que se erguiam à passagem da carroça. Aquele povo era incompreensível. Primeiro, parecia ter-se entregue à sua princesa hereditária e agora vaiava um homem que o quisera ajudar a permanecer fiel. Na realidade, aqueles que sentiam a perda do duque Carlos não eram muito numerosos e se não estavam prontos a acolher a autoridade do Rei de França, aquele que ia morrer tinha a impressão aflitiva de que a morte do Temerário aliviara mais do que um. Quantos mais homens novos fossem recrutados para tapar os buracos que as derrotas tinham semeado nos exércitos, mais impostos seriam forçados a pagar para o tesouro de guerra! Já não seria necessário esconder os bens nem desconfiar do vizinho. Aquela cidade tinha mais burgueses do que fidalgos e os burgueses sempre foram amigos da paz.

Ao ouvir todos aqueles sinos, Selongey teve um pensamento e inclinou-se para o pequeno monge que, a seu lado, recitava a oração dos agonizantes.

Eu pensava sussurrou ele que depois da batalha de Morat o duque Carlos tinha ordenado que todos os sinos da Borgonha fossem levados para a fundição de canhões? Parece-me que ainda restam muitos? Terão tido tempo de fundir novos?

O irmão ergueu para ele um olhar estupefacto:

Vós ides, dentro de momentos, comparecer diante de Deus, meu irmão! Não achais que seria mais conveniente ter outros pensamentos?

Eu vou deixar este mundo. Deixai que me interesse por ele um pouco mais! Então, esses sinos?

Levaram, sobretudo, os das aldeias. Aqui, as igrejas também deram alguns, mas os menos belos. Alguns são verdadeiras obras de arte, com vozes divinas. Teria sido um sacrilégio fazer deles bocarras de fogo.

Os humildes sinos das aldeias tinham, para os seus camponeses, quando davam as horas, o mesmo valor. Não coreis, meu irmão! Lá onde ele está... para onde eu também vou dentro de momentos, o duque Carlos já não pode amesquinhar os homens.

Achais que estais em condições de julgar, neste momento? Esquecei o que fostes e pensai que não passais de um homem entre os homens, que ofendeu a Deus.

Pedir-lhe-ei perdão dentro de momentos. Mas, nem mais uma palavra, meu irmão: estamos a chegar!

Philippe experimentou uma sensação bizarra. Acabava de sair da masmorra onde Marie de Brévailles sofrera as dores do parto; agora, ia para a morte numa velha carroça, talvez a mesma da última viagem dos jovens amantes incestuosos e sentia-se perto deles como nunca. Aquele ligeiro estremecimento, no seu ombro, seria provocado pela mão suave da sua sogra? Aquele sussurro no seu ouvido seria a voz de Jean, que, quando ele próprio não passava de um pajem turbulento, sabia tão bem levá-lo para o bom caminho e evitar-lhe as severas correcções do camareiro-mor ducal? Nada supersticioso e pouco inclinado a interrogar-se acerca dos mistérios do Além, o condenado sentiu-se, no entanto, envolto numa espécie de bem-estar, rodeado por algo de caloroso que não tinha nada a ver com o ardor do sol, mas que lhe reconfortava a alma e lhe sustentava a coragem. E foi com naturalidade que murmurou:

Velai por eles, peço-Vos! Pela minha mulher e pelo meu filho. Eles vão ter necessidade. Eu, dentro de momentos, juntar-me-ei a Vós...

Que dizeis, meu irmão? inquiriu o monge.

Nada. Rezava.

Como de costume por ocasião de uma execução capital, a praça Morimont estava cheia de gente. A cidade inteira amontoava-se ali de tal modo que era impossível distinguir um rosto. Havia gente em cima dos telhados e nas árvores e, sobre aquele mar humano, o cadafalso vestido de negro parecia uma jangada navegando na direcção da alta tribuna, no alto da qual tomara lugar La Trémoille, os seus oficiais e os almotacés, cujos trajes vermelhos se assemelhavam estranhamente à vestidura do homem encapuçado de pé junto do cepo, apoiado com as duas mãos numa longa espada de lâmina larga.

À chegada da carroça, a multidão fez silêncio. O aspecto do condenado e a sua altivez impunham-se-lhe. Sabia-se que pertencia a uma das famílias mais nobres da Borgonha, que era cavaleiro do Tosão de Ouro e que fora amigo do Temerário.

Além disso, era belo e numerosos foram os olhos das mulheres que se molharam. Para os homens, era a imagem de um passado soberbo e faustoso que muitos não queriam regressado, talvez porque os tinha conduzido às portas da ruína, mas que permanecia prestigioso. Os capuzes e os gorros saíram das cabeças, enquanto as mulheres se benziam.

O lúgubre cortejo avançou lentamente, fendendo a multidão que os alabardeiros abriam diante dele. E, subitamente, aconteceu um turbilhão. Um homem vestido de negro e brandindo uma espada, acabava de subir para o cadafalso e gritava:

Povo da Borgonha, tornaste-te tão cobarde e frouxo que deixas degolar sem hesitar os melhores dos teus? Este homem não cometeu nenhum crime. Quis, apenas, que a nossa velha terra permanecesse independente. Quis que ela permanecesse fiel à sua duquesa, Madame Maria, que é a única a ter o direito de reinar aqui e não os homens do Rei de França... Povo da Borgonha, tu eras orgulhoso e corajoso, mas agora pareces um rebanho de carneiros! Acorda! Se não o fizeres, talvez subas, amanhã, para este cadafalso...

Pára, Mathieu! gritou Philippe. Vai-te embora. Não tens sorte nenhuma!

É a tua que me interessa berrou Prame, brandindo sempre a sua espada.

O carrasco, com efeito, não se tinha mexido, já que a lei o impedia de tocar num homem cuja vida não lhe tinha sido entregue pela justiça.

Vamos, cobardes! Acordai! Ajudai-me!

Os seus olhos negros e vivos olhavam para todos os lados, espreitando os turbilhões que o seu discurso acabava de criar na multidão, esperando a vaga salvadora, mas só um grupo de soldados corria para ele, rodeando o cadafalso. Sobre a tribuna, Georges La Trémoille levantara-se e vociferava ordens que ninguém ouvia, porque agora os gritos erguiam-se um pouco por toda a parte. Alguém gritou: ”Misericórdia! Misericórdia por Selongey!”, mas ninguém se mexeu.

Vai-te embora, Mathieu! gritou Philippe desesperado. Vais fazer com que te matem e eu preciso que vivas!

Mathieu de Frame não queria ouvir. Começou a esgrimir com os soldados que tinham subido para o cadafalso com um ardor nascido da raiva. Infelizmente, não podia enfrentar sozinho um grupo sólido. Num instante foi agarrado, atado e transportado, como um simples fardo, aos ombros de quatro homens. Não o tinham amordaçado e ele berrava como um possesso, insultando a multidão que recusara ajudá-lo.

Estáveis farto do duque Carlos, bando de poltrões! Ides saber quanto pesa a mão do Rei de França! Adeus, Philippe, adeus! Diz a São Pedro que em breve estarei junto dele.

O jovem desapareceu na rue Saint-Jean e o condenado esforçou-se por enxugar, com um movimento do ombro, a lágrima que lhe corria ao longo da face. Sobre a tribuna, o governador francês voltara a sentar-se e fez um gesto. Chegara a hora de morrer.

A carroça encostou à plataforma. O monge ajudou o condenado a descer, mas Philippe recusou a ajuda para subir os degraus. Chegado ao alto, atravessou rapidamente o espaço vestido de negro para se aproximar o mais possível da tribuna.

Deixai-o viver, senhor governador! É meu amigo e queria provar-mo. Sabia muito bem que não tinha hipótese nenhuma.

Tentou sublevar o povo. É uma prova de amizade que merece a morte!

É crime querer continuar a ser o que somos? Borgonheses?

A Borgonha esqueceu que não passa de um apanágio da coroa de França. A vossa pretensa independência não passava de traição e os vossos duques provaram-no aliando-se aos Ingleses. O Rei retomou os seus direitos!

Os seus direitos?

Imprescritíveis! Dentro de poucos dias a vossa duquesa vai casar com o filho do Imperador. Tendes assim tanta vontade de ser Alemães? Nós, os Franceses, não o permitiremos! Faz o teu trabalho, carrasco!

Pensai em Deus, meu irmão! murmurou o monge que se tinha juntado a Philippe e oferecia aos seus lábios um pequeno crucifixo de madeira negra sobre o qual, quase maquinalmente, ele os pousou.

O condenado sentiu-se invadido por uma grande tristeza. Batera-se, portanto, por um logro! Presa entre o Império e a França, a Borgonha deixava de ter qualquer direito a uma identidade própria. Quer se tornasse pertença do império, ou província de França, já não tinha, de facto, qualquer importância, porque já não o veria e quando, dentro de pouco tempo, o metessem na sua tumba, a poeira que o envolveria não passaria de poeira.

Recusando a venda que o carrasco lhe oferecia, o condenado abraçou com o olhar a praça enxameada de rostos tensos, as grandes árvores e, mais alto, o céu azul, que raiava o voo rápido de uma andorinha. Depois, com passo firme, Caminhou na direcção do cepo, concedeu um sorriso ao executor que, de joelho em terra, lhe pedia perdão e, por sua vez, ajoelhou-se.

Fiora! murmurou. Amei-te e amo-te tanto. Não me esqueças!

Sem tremer, pousou o pescoço sobre o rude cepo de madeira e fechou os olhos.

O carrasco ergueu a espada...

CAPÍTULO II A CASA DAS PERVINCAS

Fiora achava que não havia no mundo lugar mais maravilhoso do que o seu solar nas margens do Loire. Amara-o logo que o vira na curva do caminho de terra que, fora das muralhas de Tours, ia dar ao priorado de Saint-Côme. No entanto, fora numa manhã fria de fins de Janeiro, em que a Natureza, tolhida pelo Inverno, não estava no seu melhor. Mas como a casa era bela!

Feito de pedra calcária e tijolos rosados, o edifício, quadrado e com duas pequenas torres octogonais nos dois cantos virados para a frente, brilhava com todas as suas janelas de vidros coloridos, que reflectiam a luminosidade das velas acesas no interior. Em redor estendia-se um jardim que, de um lado, descia até ao rio e do outro, se perdia num bosque que ia até às muralhas de Plessis-lès-Tours, o castelo real, onde, na véspera, Fiora e os seus companheiros tinham sido recebidos com a maior das hospitalidades. Mais longe, a norte, a ilhota que acolhia o antigo priorado estava envolta numa bruma lilás de onde emergia misteriosamente o campanário, a meio caminho do céu, semelhante ao desenho piedoso de um qualquer pintor angélico.

O carreiro que ia dar ao pequeno castelo era mesmo à conta para uma carroça e devia ser muito antigo, porque entrava profundamente no solo entre taludes cobertos de erva onde já apareciam as primeiras primaveras e violetas. Velhos carvalhos erguiam-se de ambos os lados, apontando para o céu azul-claro os seus ramos cinzentos cobertos de líquen. Formavam uma espécie de abóbada que devia, no Verão, ser extremamente fresca e para lá deles a casa brilhava de amizade, parecendo abrir os braços à viajante em busca de refúgio. Depois das brumas geladas da Lorena e das neves infinitas de Champagne, as doces ondulações do vale do Loire, o seu ar mais leve e o esplendor majestoso das suas águas azuladas dava aos viajantes a impressão de passarem de um purgatório austero para a morada dos tranquilos eleitos. A cólera e o desgosto da jovem tinham-se apaziguado um pouco. Fiora já não tinha o rosto fechado, tenso, nem os olhos pesados, cheios de nuvens sombrias, que trouxera de Nancy, e Léonarde agradecera silenciosamente a Deus.

Por mais que vivesse, a velha solteirona teria sempre presente na memória, dois dias após o funeral do Temerário, a imagem de Fiora entrando no seu quarto mal aquecido, os pés nus sobre as lajes quadradas, apenas vestida com um lençol que aconchegava contra o peito, a massa negra dos seus cabelos caindo-lhe sobre os ombros, mas com o olhar faiscando. Sem, sequer, se dar ao trabalho de dar os bons-dias, ordenara, com uma voz trémula de cólera, que se fizessem as malas e que fossem ver se o enviado do Rei de França, Douglas Mortimer, ainda estava no palácio. Se fosse o caso, seria preciso pedir-lhe que mandasse preparar os cavalos para partirem dali a uma hora.

Naturalmente, Léonarde não se rendera sem luta. Ver a sua filha eleita irada daquela maneira, quando a cria na maior das doçuras, na maior das alegrias do amor reencontrado, era a última coisa que esperava. Pedira-lhe explicações. Que não lhe foram dadas de imediato.

Aquele pergaminho que me mostrastes, em Granson, aquele título de propriedade de um pequeno castelo doado pelo Rei Luís, ainda o tendes?

- Era o que faltava, se o tivesse perdido! Coisas dessas guardam-se preciosamente. Trago-o cosido dentro do vestido. Mas recordo-vos que não o queríeis.

Mudei de opinião. Aceito. É para lá que vamos!

Mas... o vosso marido? Messire Philippe?

... irá lá ter quando decidir viver comigo!

Não fora possível arrancar-lhe mais nada, mas, conhecendo o seu ”cordeirinho” como conhecia, Léonarde, deixando Fiora a atulhar raivosamente uma arca de couro com os poucos bens terrenos que a sua longa peregrinação nos calcanhares do defunto duque de Borgonha lhes havia deixado, lançara-se em busca de Mortimer. Encontrara-o no momento em que ele se preparava para partir, mas não teve qualquer dificuldade em convencê-lo a esperar por elas e escoltá-las até junto de Luís XI. Fiel a si próprio, o escocês não fizera qualquer comentário, contentando-se em erguer uma sobrancelha. Por um certo pestanejar dos seus olhos azuis, a velha solteirona compreendera que não lhe desagradava nada levar ao seu senhor a jovem florentina por quem ganhara amizade.

De regresso a casa, coisa que fizera sem se apressar, Léonarde esperava que a tempestade tivesse passado e que, mesmo que a discussão entre os dois esposos tivesse sido séria, uma reconciliação teria, pelo menos, começado. Mas não. Encontrara Fiora completamente vestida, o grande manto forrado sobre os ombros, sentada a uma janela e olhando para o exterior com o ar ausente daqueles que não vêem nada. Os seus olhos estavam secos mas um pouco avermelhados e as faces ainda brilhantes, assim como o peito arfante, diziam que acabava de verter abundantes lágrimas. Sem pronunciar uma palavra, Léonarde pôs um pouco de ordem na arca onde tudo estava às três pancadas, preparou-se também e esperaram as duas, em silêncio, a chegada de Mortimer e dos cavalos. Durante léguas e léguas, Fiora não abriu a boca. Percorreu o caminho através da nortada cortante, dos turbilhões de neve e da geada, direita na sela, aparentemente tão insensível como uma estátua e sem pronunciar mais de três palavras por dia. Apenas na paragem em Troyes, após uma jornada particularmente dura, deixou sair a amargura que lhe envenenava o coração. Philippe não lhe oferecia outra coisa senão que se enterrasse no fundo de um velho castelo na companhia de uma cunhada que não lhe daria as boas-vindas, ao mesmo tempo que ele iria pôr a sua espada e a sua vida ao serviço da duquesa Maria! Quando ela cria os combates terminados com a morte do duque Carlos, Selongey só sonhava em retomá-los pela independência da Borgonha... e pelos belos olhos de uma princesa de vinte anos que diziam ser bela e sedutora!

Léonarde deixara correr o rio envenenado, evitando interrompê-la: Fiora precisava daquele conforto. Só quando, esgotada, ela se deixou cair de borco no leito para chorar todas as lágrimas é que a velha solteirona, com uma grande doçura, tentou chamá-la à razão: as leis da Borgonha, tal como as de França, diziam que a mulher, guardiã do lar e produtora das crianças, ficava em casa enquanto o marido se ocupava dos seus negócios e ia onde o dever o chamava. Não era normal viver sempre na estrada, entregue à sorte dos maus encontros... e o repouso tinha os seus encantos.

Se é assim, vou repousar respondeu Fiora mas em minha casa e não num castelo onde serei uma intrusa. Já é tempo de Philippe provar que me ama, porque, depois do nosso casamento, não se tem portado nada bem!

Sois injusta. Ele foi a Florença para vos ver. E, mais tarde, não se bateu ele por vós, por duas vezes? Se bem compreendi, não lhe destes grandes hipóteses quando o abandonastes naquele quarto, em Nancy?

Achais? A mim, parece-me que, pelo contrário, lhe dei bastantes e que ele as agarrou, já que não me impediu de partir.

Que hipóteses é que lhe destes?

As de recuperar a liberdade. Disse-lhe que iria a Roma junto do Papa para anular o nosso casamento se ele não fosse ter comigo a França!

Léonarde, então, não pudera reter um suspiro de desolação:

Será possível que, por orgulho, façais tanto mal a vós própria, quando acabais de vos reencontrar? Nunca se deve obrigar um homem a escolher entre o coração e o dever. E se ele... nunca mais voltar?

Pelo silêncio que Fiora manteve durante alguns instantes, Léonarde compreendeu que acabava de tocar num ponto sensível. Nos olhos cinzentos da jovem ela leu a angústia, mas apenas por um instante: as faíscas do rancor retomaram os seus direitos. Fiora andava de um lado para o outro no quarto estreito do albergue, que ambas partilhavam, como uma fera enjaulada, procurando, talvez, qualquer coisa para partir, quando, bruscamente, se deteve diante da velha governanta:

. Julgarei o valor do seu amor pelo que fizer. E, Léonarde, pergunto a mim própria se, com um homem como ele, não o prenderei mais a mim deixando-o fugir.

É uma ideia!

E não é nada tola! Creio que começo a compreender os homens. Aceitar ficar confinada à casa à espera deles com as crianças, graças às quais eles se certificam da nossa tranquilidade é, talvez, o melhor meio de enfraquecer o amor. Por se tornar demasiado quotidiano, perde o brilho.

O amor-paixão, talvez! Mas fica a ternura e a doce teia tecida pelos dias passados um com o outro. Tenho medo que vos esperem longas noites solitárias.

Sê-lo-iam menos em Selongey, enquanto Philippe galopa na garupa do cavalo daquela duquesa? Tenho vontade de ir para casa, mesmo para casa. Há muito tempo que não sei o que é isso.

O assunto, por aquela noite, ficou encerrado e não voltaram a falar dele. Léonarde acabara por achar que uma retirada para uma solidão campestre faria bem à jovem demasiado impulsiva e incutir-lhe-ia, talvez, um pouco mais de sabedoria e reacções menos irracionais. Ela própria ficou seduzida, aliás, por aquela casa que o Rei dava à sua jovem amiga e onde tudo estava disposto para uma vida agradável.

O solar chamava-se La Rabaudière, mas há muito tempo que as gentes dos arredores o apelidavam de Casa das Pervincas por causa das grandes manchas azuis que, na Primavera, iluminavam o bosque e invadiam o jardim se não se tratasse dele; agarravam-se ao terraço que, do lado do rio, sublinhava as janelas da grande sala. As suas centenas de flores azuis-escuras e as suas folhas de um belo bronze claro faziam cantar as paredes da cor da aurora. Quanto ao jardim, que abria para um pomar, tinha grandes maciços de buxo transbordando de goivos vermelhos cujos aifos, um pouco loucos, rodeavam roseiras, groselheiras, alecrim e cássis, que cresciam à vontade de cada lado da alameda que conduzia ao lanço de escadas de pedra que ia dar ao terraço.

O interior tinha tanto encanto como o exterior e parecia uma continuação do jardim. Para além da grande tapeçaria florida que era a glória da grande sala, não havia tapetes pesados naquela casa dos bosques, antes brocados brilhantes, telas bordadas com animais familiares e pequenas flores de todas as cores que vestiam os leitos e as almofadas quadradas dispostas um pouco por toda a parte para o conforto dos corpos fatigados e o repouso dos pés. Os móveis eram simples mas de um gosto irrepreensível. Cheiravam a cera de abelha e suportavam soberbos estanhos e objectos, dos quais alguns conseguiram da parte de Fiora um sorriso terno, como umas belas taças de vidro vermelho de Veneza e umas maiólicas verdes que deviam ter visto a luz do dia sob o céu da Romanha. Quanto às numerosas arcas e aparadores dispersos pelas diferentes divisões, encerravam suficiente louça e roupa para satisfazer qualquer dona-de-casa, mesmo uma tão exigente como Léonarde. Por fim, a cozinha, rutilante de cobres e abundantemente provida de presuntos, tranças de cebolas, alhos e ramos de ervas secas pendurados nas traves, acabou por conquistar o coração da velha solteirona que, pela primeira vez desde há muito tempo, reencontrava a impressão deliciosa de regressar a casa após uma longa ausência.

Um casal de idade madura, Étienne Lê Puellier e a sua mulher Péronnelle, tinham sido escolhidos, muito antes da chegada de Fiora, para velar pela manutenção da pequena propriedade. A sua casa nas margens do Cher fora levada por uma grande cheia um ano antes e Luís XI, que conhecia Étienne desde a infância e os recolhera em Plessis, prometera arranjar-lhes uma casa mais bonita do que a primeira se aceitassem tratar de La Rabaudière. O que eles tinham feito com grande alegria, porque eram pessoas para se atirarem para o fogo a um simples sinal do seu ”bom sire. Moravam, nas águas-furtadas da casa, num belo quarto cuja janela, coroada com uma empena com a flor-de-lis, abria para o brilhante manto de ardósias que cobria a casa. Como bons originários de Tours, sólidos e amáveis, amavam o trabalho e teriam sido as duas pessoas mais felizes do mundo se o Céu lhes tivesse concedido um filho, mas as orações, as novenas e as frequentes visitas à tumba do grande São Martinho, glória da cidade vizinha de Tours, tinham-se revelado inúteis e aos quarenta e cinco anos bem vividos Péronelle sabia que não tinha grande coisa a esperar da mãe natureza. Consolava-se regalando o seu Étienne com os tesouros de uma cozinha cuja qualidade era comparável à do mestre Jacques Pastourel, que reinava nas cozinhas reais e muitas vezes o Rei, de regresso de uma das suas caçadas, instalava-se à sua mesa.

Péronelle era redonda como uma maçã, com um rosto de linhas doces cuja beleza residia nos dois grandes olhos da cor exacta da pervincas que tinham dado o nome à casa e Étienne tivera de se impor mais de uma vez para impedir os galãs de lançarem piropos àqueles olhos. E saíra sempre vencedor, porque era tão quadrado quanto ela era redonda, e o uso alternado da cana-de-pesca, da enxada e do machado tinha-o dotado de músculos com os quais era preciso contar.

Longe de os entristecer, a chegada de Fiora e de Léonarde provocou-lhes uma mistura de prazer e alívio. Não sabiam ao certo a quem o Rei dera a Casa das Pervincas. Tinham-lhes dito, apenas, que se tratava de uma jovem a quem Luís XI queria muito. E o casal temia que se tratasse de uma favorita qualquer, tanto mais insuportável quanto não teria saído, certamente, da coxa de Júpiter e que a idade do Rei teria tornado arrogante. Que Luís XI tivesse arranjado uma amante quando jurara não tocar em mais nenhuma mulher senão na sua o que devia acontecer de vez em quando, já que a Rainha Carlota, vivendo todo o ano no castelo de Amboise, a umas boas seis léguas de Plessis já era suficientemente preocupante para aquelas duas boas almas.

A beleza da recém-chegada, a sua gentileza e o rosto respeitável de Léonarde tiraram-lhes desde logo, de cima dos ombros, a maior das suas preocupações e Douglas Mortimer, que eles conheciam bem e que o Rei encarregara de acompanhar a nova proprietária, tirou-lhes as restantes: Dona Fiora era a filha de um antigo amigo do Rei Luís e este decidira tomá-la sob a sua protecção após as numerosas infelicidades de que fora vítima. O mais grave era, talvez, ter casado, em tempos, com um senhor borgonhês demasiado amigo do defunto Temerário para aceitar tornar-se francês e que, a despeito das orações a jovem, decidira pegar de novo em armas e partir à aventura.

Assim, Dona Fiora, desolada, decidira refugiar-se junto do seu velho amigo cuja confiança recusava trair.

Um discurso bastante raro da parte do escocês, que, geralmente, não pronunciava mais de três palavras por hora e que tinha impressionado fortemente Étienne, muito mais falador do que ele, e provocado algumas lágrimas na sensível Péronnelle. Posto o que o casal adoptou Fiora e fez os impossíveis para que esta sentisse a felicidade que era viver na região de Tours. Com tanto mais entusiasmo quanto o acordo entre Péronnelle e Léonarde fora imediato a despeito de alguma diferença de idades. Muito piedosas tanto uma como outra, souberam entender-se na arte da lida da casa porque, se bem que Léonarde tivesse reinado em tempos num palácio florentino e numa villa sumptuosa, era capaz de pôr um freio na supremacia dos seus talentos e admirar de boa-fé a especialidade em que Péronnelle era mestra, isto é, a arte culinária. Por seu lado, Péronnelle dera o justo valor ao tacto da velha solteirona, entregara-lhe as chaves das arcas e dos armários e tirava proveito dos conhecimentos trazidos do outro lado dos Alpes pela sua companheira. Por outro lado, não se cansava de a ouvir evocar as maravilhas da fabulosa villa de Florença, casa que ela nunca teria oportunidade de visitar. Não era raro ver, na cozinha, Léonarde a fiar enquanto descrevia à sua nova amiga, ocupada a mexer um molho, os sons, as cores e os odores dos mercados das sextas-feiras. Outras vezes produzia-se o contrário e Péronnelle iniciava Léonarde nos usos e costumes da região de Tours, assim como nos mexericos e histórias que percorriam a cidade e o campo, porque tinha uma espécie de dom, que era o de estar sempre ao corrente do que se passava nos arredores.

Incontestavelmente, Péronnelle era faladora e, por esse motivo, recordava um pouco a Léonarde a gorda Colomba, que era ao mesmo tempo a sua melhor amiga e a sua melhor fonte de informações em Florença. Mas o débito tumultuoso da governanta dos Albizzi era muito diferente do de madame Le Puellier. Esta era uma contadora nata, que sabia dar sal e pimenta à mais banal das disputas entre dois camponeses no mercado do bairro de Notre-Dame Ia Riche. Além disso, a sua linguagem, despojada de qualquer vulgaridade, tinha uma certa pureza e elegância, e Léonarde não se fez rogada, cumprimentando-a por isso.

Isso deve-se disse Péronnelle ao facto de eu ter nascido nesta região. Nós, os de Tours, somos conhecidos em todo o reino como os que melhor falam a nossa língua. Mas não me pergunteis de onde nos vem isso, seria incapaz de vos responder. No entanto, penso que é um pouco por essa razão que o nosso bom sire, o Rei Luís, gosta tanto de estar, não apenas com os grande burgueses de Tours, mas também com as pessoas mais humildes, como o meu Étienne e eu.

Léonarde adquiriu um novo respeito pela sua companheira, assim como um pouco mais de amizade por aquela doce região onde era tão bom viver. Cada vez gostava mais dela e acabou por temer os dois acontecimentos susceptíveis de perturbar a sua beatitude: a chegada súbita de Philippe para levar a sua mulher de boa vontade ou à força para a sua fortaleza borgonhesa e a realização da ameaça proferida por Fiora: partir para Roma para pedir ao Papa a anulação do seu casamento. O facto de a jovem parecer gostar da sua nova casa e nunca pronunciar o nome do seu marido não a tranquilizava nada: conhecia demasiado bem a sua impulsividade e a sua necessidade de estar sempre em movimento, inerente à sua natureza.

Assim, quando, certa manhã do mês de Março, Fiora, ao levantar-se, e recusando a sua malga de sopas de leite, declarou que estava enjoada e desmaiou graciosamente entre os pés de Léonarde e de Péronnelle, as duas mulheres olharam uma para a outra com os olhos brilhantes como velas e caíram nos braços uma da outra antes, sequer, de lhe prestar socorro.

Um bebé! clamou Péronnelle. A nossa querida senhora está à espera de um bebé! Louvados sejam Nosso Senhor e Nossa Senhora, que abençoaram esta casa!

Por seu lado, Léonarde chorou de alegria e uma vez a futura mãe instalada confortavelmente no seu leito, correu ao priorado de Saint-Côme para ali depositar uma esmola e queimar algumas velas. A demente viagem a Roma ficava fora de questão, já que a união entre Philippe e Fiora ia dar fruto.

A notícia, quando recobrou a consciência, deixou Fiora estupefacta. O pensamento de que Philippe, durante as noites apaixonadas de Nancy, lhe tivesse feito um filho, nunca lhe tinha passado pela cabeça. O seu amor por ele estava escondido no fundo do seu coração, sob uma camada de rancor e ciúme tão espessa, que lhe acontecia esquecê-lo. E eis que nascia um ramo desse amor sufocado, um ramo que ia germinar durante a Primavera que se anunciava e o Verão que se seguiria, para florir quando amadurecessem as uvas. E que os laços que a uniam a Philippe se iam tornar demasiado fortes, tão fortes que só a sua vida os cortaria.

O mal-estar que se apoderara dela abandonou logo de seguida, como uma vaga que se retira. A casa estava tranquila, quente e silenciosa, à excepção dos pequenos sons que vinham da cozinha onde Péronnelle tocava, com as suas caçarolas de cobre, uma música triunfal. Então, Fiora levantou-se e, sem sequer se dar ao trabalho de calçar as pantufas, foi até uma alta e estreita janela de Veneza, muito semelhante à que o seu pai mandara vir para ela e que era a maior riqueza do seu quarto. Ali, deixou cair a camisa e examinou o seu corpo com a ideia de que, talvez, encontraria uma mudança qualquer, mas a sua cintura continuava fina, o ventre liso e os seios exactamente os mesmos da véspera.

Ainda é muito cedo disse Léonarde, que acabava de entrar e a surpreendera nessa posição. Se fizemos bem as contas, estais grávida há dois meses, meu cordeirinho. Espero que estejais contente?

Era evidente que estava e era uma sensação deliciosa após dois meses de retiro para dentro de si própria. Saber que começava a germinar uma vida dentro de si tirava-lhe o sentimento acabrunhante de não ter, neste mundo, qualquer utilidade, nenhum preço real, já que o homem que, numa noite de Inverno, lhe jurara protegê-la, amá-la, defendê-la, mantê-la no seu leito e no seu quarto até que a morte os separasse, preferira a guerra e o serviço de uma princesa que se dizia ia tornar-se alemã. Doravante, Fiora tinha uma razão para viver e um objectivo: dar à luz o mais belo bebé do mundo e depois, mesmo que o seu pai nunca mais regressasse, educá-lo, fazer dele um homem forte e sábio, para quem as armas e o furor dos combates não representariam o bem supremo; um homem que saberia parar para cheirar uma flor, para admirar a beleza de uma paisagem ou de uma obra de arte, ou, simplesmente, para falar com um amigo, a um canto de uma rua, de coisas úteis para o Estado, ou das últimas descobertas do espírito humano. Um homem, enfim, que se parecesse mais com Francesco Beltrami do que com o seu próprio pai.

Era, sem dúvida, ilógico e até aberrante, mas a ideia de que o seu filho pudesse vir a ser um grande fanfarrão unicamente ligado à força e à brutalidade deixava-a horrorizada. Vira demasiada guerra durante demasiado tempo e demasiado perto de si para lhe achar qualquer encanto.

E se for uma rapariga? - perguntou Léonarde, que continuava a ser a confidente dos pensamentos da jovem.

Ainda não tinha pensado nisso. Para mim, o bebé de Philippe só pode ser um rapaz. Aliás, é preciso que seja um rapaz! Não ides, certamente, concluir que não seria capaz de amar uma rapariga? Pelo contrário, porque ela seria mais minha. Mas é preciso, uma vez ou outra, dar um jovem macho aos senhores. E estou persuadida de que devo dar continuidade aos Selongey.

Não acrescentou, mas isso era a sua esperança secreta, que o encanto de um filho talvez conseguisse fazer com que Philippe compreendesse a sã compreensão da vida familiar. Preparou-se, desde então, para o grande acontecimento, escutando sensatamente os conselhos que Léonarde e Péronnelle lhe prodigalizavam. Esta última começou a torturar o cérebro em busca de iguarias que não produzissem qualquer repugnância à futura mãe, tentando, mesmo, o seu apetite. As suculentas e pesadas salsichas, de que Tours se orgulhava com razão, foram banidas em prol de uma alimentação mais ligeira. Fiora passou a comer lacticínios, queijos frescos, bolos leves, galinhas que se desfaziam na boca e o melhor peixe que Étienne ia pescar no Loire. Também teve, enquanto duraram os enjoos, chás de cidreira e de menta e quando a Primavera cobriu as encostas de primaveras e fez explodir nas árvores frutíferas do pomar enormes ramos brancos e cor-de-rosa, passados os primeiros tempos difíceis, sentiu-se como não se sentia há muito tempo e tomou parte nos preparativos do nascimento: a confecção do enxoval.

A vida, na Casa das Pervincas, era muito calma, retirada e até solitária. Fiora regozijava-se porque, por um momento, receara que a vizinhança imediata do castelo real fosse uma fonte de agitação, senão de invasão. O que seria o caso, sem dúvida, se Luís XI estivesse em Plessis, mas, praticamente no dia seguinte à chegada das viajantes, ele abandonara a sua casa predilecta com a maior parte da sua corte para se juntar aos seus exércitos do Norte.

O Rei não tencionava, com efeito, confiar a ninguém a recolha da herança do Temerário e, de facto, dera ao seu inimigo poucas hipóteses de escapar à armadilha de Nancy: no preciso momento em que o gelo do lago Saint-Jean se fechava sobre o corpo agonizante do último dos grandes duques do Ocidente, já os exércitos do Rei de França tomavam posição nas fronteiras da Lorena, perto de Toul, perto de Metz, assim como no Somme e há muito tempo que só esperavam um sinal para mergulhar na Borgonha, cujas fronteiras já tinham ultrapassado. De seguida, a guerra desencadeava-se em Artois e na Picardia, ao mesmo tempo que as poderosas cidades flamengas, mais aliviadas do que desgostosas com uma morte que as libertava de uma tutela cujo peso recusavam, davam a saber a Maria de Borgonha que o tempo dos seus privilégios tinha terminado e que era, no seu palácio de Gand, mais prisioneira do que soberana. Para lho provarem, fizeram rolar as cabeças do último chanceler da Borgonha, Hugonnet e do senhor de Humbercourt, que era um dos mais sólidos conselheiros de Maria.

Não sabendo para que lado se virar, a infortunada herdeira escrevera, no fim do mês de Março daquele ano de 1477, ao filho do Imperador Frederico, considerado por ela como seu noivo, uma carta desesperada, chamando-o em seu socorro. Mais ou menos no momento em que Philippe de Selongey se introduzia em Dijon, a capital do ducado, da qual esperava, levando-a à rebelião, fazer o centro da resistência.

Na sua propriedade de Tours, protegida pela floresta e pelo rio, Fiora ignorava todos esses acontecimentos. Teve uma ideia quando, em Abril, recebeu a visita inopinada do senhor de Argenton, Philippe de Commynes, que na qualidade de primeiro conselheiro do Rei ela pensava estar a seu lado na guerra.

Philippe de Commynes mostrara ser seu amigo em condições difíceis e ela acolheu-o com o prazer devido a uma pessoa de quem se gosta, oferecendo-lhe repouso a um canto da chaminé onde ardia uma pilha de toros odoríferos e uma taça do vinho que todas as casas acolhedoras ofereciam a um viajante. Enquanto isso, Léonarde prevenia, sob as suas ordens, Péronnelle, para que esta regressasse à boa cozinha. Commynes era comilão, Fiora sabia-o, e possuía um bom apetite flamengo, que era preciso contentar. Porém, todas essas atenções arrancaram apenas ao conselheiro real um grande suspiro:

Ides arrepender-vos por vos preocupardes dessa maneira comigo. Não imaginais, sem dúvida, que vos trago qualquer mensagem do vosso sire?

De facto confessou Fiora. Mas, se não é o caso, não sois menos bem-vindo. Será que depois de Senlis já não somos amigos?

Espero que sim e foi por isso que, a caminho do meu exílio, não me pude impedir de passar um momento junto de vós. Uma maneira como outra qualquer de me consolar.

A caminho do vosso exílio? Estais zangado com o Rei?

Zangado é de mais. Digamos que indisposto e que ele me quer longe por um certo tempo. Mandou-me a Poitiers.

A Poitiers? E que ides vós fazer a Poitiers?

Não sei bem. Desembrulhar não sei que história provincial com os almotacés da cidade, uma miséria para um homem como eu. É verdade que o indispus com as minhas censuras.

Censurastes o Rei, vós?

Eu. E o pior é que não me arrependo e estou pronto a recomeçar.

Mas, porquê?

Porque pergunto a mim próprio se ele não enlouqueceu! Por favor, Madonna, dai-me mais um pouco de vinho de Bourgueil! Preciso muito, porque tenho coisas amargas a dizer. Não reconheço o nosso sire. Tão sensato, tão prudente, tão preocupado

1 Ver Fiora e Carlos, o Temerário.


com a vida dos outros... e eis que se comporta exactamente como o defunto duque Carlos.

Quereis dizer que ele massacra os que lhe resistem?

Mais ou menos isso. No entanto, ia tudo tão bem. O Rei começou por intimar à ordem René da Lorena, para que se mantivesse tranquilo e trouxesse as suas tropas até ele. Depois, comprou Sigismond de Áustria para que ficasse no seu Tirol e fez o mesmo com os Suíços, para que se contentem com o que ganharam. E depois, logo a seguir à vossa chegada, partimos para o Somme. Então...!

E Commynes, com a prolixidade e o luxo de pormenores de um homem para quem a política é uma segunda natureza, contou à sua anfitriã como Luís XI penetrara na Picardia e em Artois com o falacioso pretexto de proteger os bens de Maria de Borgonha que, aliás, era sua afilhada como um bom padrinho em socorro da sua órfã. Numerosas cidades, como Abbeville, Doullens, Montdidier, Roye, Corbie, Bapaume, etc., tinham-se deixado tomar sem grandes dificuldades e sem grandes queixas; mas outras, mais bem guardadas, talvez, pelos seus governadores borgonheses, tinham recusado render-se e tinham pedido ajuda a Maria. Souberam, então, quanto pesa a cólera do Rei de França: assaltos, pilhagens, execução de notáveis, expulsão dos seus habitantes e destruição, no todo ou em parte, das cidades culpadas. Já não era a Aranha Universal tecendo pacientemente a sua teia do fundo do seu gabinete, era Átila conduzindo as suas tropas à matança. Arras, meio destruída, foi esvaziada dos seus habitantes, substituídos por gente pobre, que, também ela, tinha perdido tudo.

Foi aí concluiu Commynes que interveio a divergência entre o Rei e eu. Censurei-o por esses excessos tão pouco conformes com a sua natureza e ele censurou-me por eu ser demasiado flamengo e sentir simpatia pelos seus inimigos. É por isso que me vedes na estrada de Poitiers com, como única consolação, o pensamento de que vou poder saudar Hélène, a minha bela mulher, na sua cidadela de Thouars.

É verdade que não a vedes muitas vezes. É normal uma mulher viver fechada nas suas terras com a família enquanto o marido vive na corte do soberano? murmurou Fiora, sonhadora.

Parece que não a iríeis ver se o pudésseis evitar? Acho-vos gente bem estranha, vós todos, Franceses e Borgonheses! Entre nós, marido e mulher vivem junto um do outro até que a morte os separe. E não me digais que isso é uma vida burguesa: Monsenhor Lourenço e Dona Clarissa, sua mulher, se não estão sempre sob o mesmo tecto, moram, pelo menos, na mesma cidade. Aqui, o Rei vive em Plessis e a Rainha em Amboise; a vossa mulher vive em Thouars e vós junto do Rei e...

À medida que falava, Fiora ia ficando excitada. O marfim pálido do seu rosto enrubesceu um pouco, ao mesmo tempo que uma lágrima lhe cintilava nos seus grandes olhos cinzentos. E a sua voz quente deixava perceber uma ligeira falha. Commynes contemplou-a por um instante sem dizer nada, deleitando-se com o espectáculo da sua beleza que parecia caminhar na direcção da perfeição, como uma rosa prestes a desabrochar. A jovem estava sentada numa cadeira alta de carvalho esculpido, delicadamente estofada com almofadas de brocado de um verde-prateado que punham reflexos de águas profundas no vestido de tecido suave e ”esbranquiçado”, bordado com delicadas folhas de salgueiro e pálidas violetas que formavam grinaldas em redor das mangas, no profundo decote que uma gargantilha de musselina tornava mais modesto e na barra da saia. Os seus belos cabelos, simplesmente entrançados com uma fita, formavam uma espessa trança que deslizava ao longo do seu pescoço gracioso, dando-lhe o ar de uma rapariguinha.

Com aqueles adornos simples, estava mais deslumbrante do que nunca. No entanto, o olho vivo do senhor de Argenton parecia reparar que, sob as largas pregas aveludadas presas sob os seios por um grande cinto de prata, o corpo parecia estar ligeiramente arredondado. Viu-a, então, com outros olhos: já não era unicamente um ser de uma sedução excepcional e de uma coragem pouco comum, era também uma mulher fragilizada por uma futura maternidade, que não sabia grande coisa, sem dúvida, acerca do homem que amava; uma mulher que tinha, sobretudo, uma grande dificuldade para se adaptar àquela forma de vida separada, que a vida da corte e as exigências da guerra impunham. Em Itália, a guerra era assunto de mercenários: o príncipe que fosse capaz de escolher os melhores e mais numerosos tinha grandes hipóteses de a ganhar. As gentes de Florença, assim como as outras, pagavam para ficar em suas casas, desobrigadas de se matarem umas às outras de tempos a tempos, mas quando um perigo qualquer se aproximava das muralhas, era toda a população que se batia, as mulheres ao lado dos homens. Fiora não compreendia por que razão o serviço de um suserano qualquer havia de a condenar à solidão.

Docemente, ele pegou numa das belas mãos que repousavam nos joelhos da jovem, colocou-a entre as suas e terminou a frase que deixara em suspenso.

... e vós próprios, ainda mais separados, já que o vosso marido serve a duquesa Marie enquanto vós estais ligada a França.

Pelas minhas amizades e pelos meus interesses, já que a pouca fortuna que me resta se encontra neste país e, enfim, porque não tenho qualquer razão que me leve a combater o Rei Luís, que foi bom para mim.

Mas esperais uma criança e o vosso dilema é, ainda, mais doloroso. Que posso fazer para vos ajudar, minha amiga?

Ela corou e as lágrimas que não conseguiu reter deslizaram-lhe pelas faces.

Vós, que sabeis sempre tudo, podeis dizer-me onde ele está? Deixei-o há quatro meses e, desde então, não tenho quaisquer notícias.

Gostaria de vos fazer a vontade, mas é difícil, mesmo para mim. Maria de Borgonha e a duquesa viúva são mantidas sob grande vigilância pelos de Gand no seu palácio de Coudenbergh, mais reféns do que soberanas e os nossos espiões não têm meio de saber o que se passa. No entanto, posso dizer-vos que se monsenhor de Selongey estava até há pouco junto delas, parece que desapareceu.

Desapareceu?

Não entendais isso no mau sentido, Madonna. Penso que ele já não está em Gand e que Madame Maria o encarregou de uma missão, talvez no Condado de França, mais provavelmente na Borgonha, onde, parece, a notícia da morte do Temerário não provocou grandes lágrimas. Ele deve ter ido reaquecer esse entusiasmo enfraquecido.

Por outras palavras: está em perigo! Meu Deus!

Acalmai-vos, peço-vos. O que eu disse não passa de suposição. A duquesa pode, também, tê-lo enviado junto do noivo para lhe pedir que se apresse. Repito-vos: não sabemos nada. O que posso prometer-vos é que vos darei notícias assim que as receber.

Credes que tereis algumas em Poitiers?

Lá estais vós a malhar em ferro frio! disse Commynes rindo. Mas podeis estar certa que tenho, aqui e ali, alguns informadores e que, de qualquer maneira, não ficarei muito tempo em Poitiers... Vou-me aborrecer sem o nosso sire... mas ele ainda se vai aborrecer mais!

Léonarde, que entrava para anunciar a refeição, encontrou os dois a rir, o que a tranquilizou. Commynes, apesar de se ter tornado francês, guardava algo de borgonhês que a inquietava vagamente, mas no decurso da refeição esqueceu-o. O senhor de Argenton continuava a ser um conviva amável, alegre e eloquente. Embalado por um salmão do Loire com limão seguido de umas salsichas de galo e de um suculento fricassé de galinha-do-mato e perdiz com cogumelos, tudo regado com belos vinhos do Loire que Étienne Lê Puellier trazia piedosamente da adega da casa, foi brilhante e estrondoso de bom humor. Fiora ria e Léonarde, feliz por isso, concedia todas as atenções ao visitante de passagem.

No dia seguinte, Commynes retomou o caminho do seu exílio, deixando para trás uma Fiora cheia de esperança. Com efeito, pouco desejosa de servir o império alemão, a alta nobreza borgonhesa começava a olhar com olhos meigos para as mãos carregadas de presentes que o Rei Luís lhe estendia. As reuniões sucediam-se, ainda por cima porque o Rei pagara alguns dos resgates que os nobres prisioneiros do último combate deviam pagar ao duque da Lorena. E, no momento de a deixar, Commynes murmurara:

Até o grande bastardo Antoine, o irmão preferido e o melhor capitão do defunto duque está a pensar em se virar para nós. O vosso marido não poderá continuar a brincar durante muito tempo aos irredutíveis. Um dia fará como os outros: escolherá a França.

Não podia ter-lhe dito nada mais reconfortante. Se o grande bastardo achava que a Borgonha se devia virar para o seio francês, ainda por cima porque as suas armas tinham a flor-de-lis, arrastaria consigo aqueles que tinham estima e amizade por ele. Philippe era desses. Talvez continuasse amuado durante mais algum tempo. O importante era que não cometesse nenhuma acção irreparável e Fiora recordava-se demasiado bem de ter conseguido, à justa, evitar-lhe o cadafalso por ter tentado assassinar o Rei Luís. Evidentemente, se ele escolhera seguir a duquesa Maria para a Alemanha, era possível que não regressasse tão cedo.

Fiora recusou essa ideia com todas as suas forças. Tinha de manter o espírito livre e cheio de esperança, para”que o seu filho herdasse dela essa boa disposição. Depois do nascimento, talvez se pudessem pôr em busca de Philippe. O Rei estaria, provavelmente, de regresso das suas campanhas e a sua ajuda seria ”preciosa. A criança faria o resto.

Pouco tempo depois da visita de Commynes, um outro viajante bateu à porta do solar. Era, vindo de Paris, o jovem Florent, o aprendiz de banqueiro de Agnolo Nardi. Chegou numa noite de chuva, completamente ensopado a despeito da grande capa com capuz que o envolvia e em cima de um cavalo também ele ensopado, mas os seus olhos brilhavam como velas acesas e a alegria emanava de todos os traços do seu rosto.

Florent trazia, com uma longa carta de Agnolo cheia de pormenores financeiros e afectuosos, todo o calor amável dos habitantes da rue des Lombards e uma bolsa bem pesada, que continha os interesses de Fiora nos negócios da antiga casa Beltrami. Fiora espantou-se por terem confiado uma soma daquelas a um jovem lançado à sorte nos grandes caminhos, mas este limitou-se a rir dos seus receios: graças a Deus, a polícia do Rei Luís era eficaz e as estradas de França, percorridas pelos cavaleiros da posta real, eram extremamente seguras.

Nesse caso, por que razão não foi isto tudo entregue na posta? perguntou maliciosamente Fiora, que há muito estava ao corrente dos sentimentos que por ela nutria o jovem. Sinto-me confusa por vos terdes dado a tanto trabalho, Florent. Esta viagem toda, com este tempo...

Ainda por cima disse Léonarde, fazendo-se eco da sua patroa porque a Primavera ainda vem longe. As gentes daqui prevêem um longo período de chuva. O regresso não será nada agradável.

Ocupado a queimar-se heroicamente com a malga de vinho de ervas a ferver com que Péronnelle o gratificara enquanto a sua capa fumegava diante da lareira da cozinha, Florent fez sair do recipiente duas faces vermelhas e brilhantes como uma maçã camoesa e um olhar de épagneul apaixonado.

Com vossa permissão, Dona Fiora... eu não vou regressar. Vim para ficar e mestre Nardi sabe-o!

Quereis ficar aqui? Mas, Florent, para fazer o quê? Eu não preciso de um secretário!

Para ser vosso jardineiro. Sabeis muito bem que não tenho o gosto da escrita e que, em casa de mestre Nardi me ocupava muito mais com as flores e os legumes do que com as contas e as letras-de-câmbio.

Mas, e o vosso pai? Ele queria que vós vos tornásseis banqueiro. Deve estar furioso.

Esteve disse Florent alegremente enquanto sacudia a trunfa cor de pintainho que, ao secar, se parecia com um telhado de palha mas a minha mãe tomou a minha defesa. Convém-lhe que eu queira tratar do jardim de uma grande dama. Ainda por cima porque o meu irmão mais novo, que só gosta da finança, já se precipitou para tomar o meu lugar. Portanto, estou livre para vos servir...

Vergonha não vos falta, meu rapaz interveio Léonarde, que fazia grandes esforços para parecer severa. Não vos passou pela cabeça que não precisamos de vós?

Os olhos de épagneul encheram-se de lágrimas.

1 Raça canina


Num solar é sempre preciso um jardineiro e o vosso parece-me belo. Oh, suplico-vos, dona Fiora, não me mandeis embora! Deixai-me ficar aqui junto de vós. Farei o que quiserdes... o maior dos trabalhos, o mais duro. Não ocuparei grande espaço: um pouco de palha na cavalariça e um pouco de sopa. Não vos custarei nada.

Nem pensar disse Fiora. O que conta é que não tenho aqui futuro para vós.

Um futuro onde não estejais presente não tem qualquer interesse para mim. De qualquer maneira acrescentou ele, teimoso, não me afastarei. Mesmo que não me queirais, ficarei na região. Hei-de arranjar qualquer coisa. Sou jovem e forte.

Enquanto Fiora, emocionada, interrogava Léonarde com o olhar, Étienne, que, sentado na chaminé, secava as polainas e os borzeguins enquanto mastigava um pedaço de chouriço seco, tossiu como fazia sempre nas raras ocasiões em que tomava a palavra e declarou:

O trabalho, aqui, não falta. Fazia-me jeito uma ajuda... sobretudo no jardim, que é grande!

Dito isto, voltou-se para o seu chouriço e para o seu silêncio, deixando que as mulheres resolvessem o problema. Para Péronnelle, aliás, o assunto estava encerrado. Se o seu senhor e dono era a favor do rapaz, ela adoptava-o sem mais aquelas.

Podíamos instalá-lo no sótão? disse ela. Dava jeito um homem em casa, já que Étienne se instalou na casa dos trabalhadores com os cães para melhor vigiar os vagabundos.

Florent olhou para ela como se para a própria mãe. A boa mulher, então, tratou de o alimentar, colocando na longa mesa da cozinha um pedaço de pão fresco, um presunto trinchado, uma malga de sopa de couves com belos pedaços de toucinho, um grande tacho de carne de porco frita, queijo de cabra, compota de morango, uma pequena porção de manteiga e um jarro de vinho fresco. Após o que se virou para Fiora com um olhar de interrogação:

Então, que fazemos, minha senhora? Adoptamo-lo ou atiramo-lo para as trevas exteriores onde é tudo ”choro e ranger de dentes”?

Por minha fé, Deus me livre de vos contrariar se o pondes debaixo da vossa asa disse Fiora, rindo. Sede bem-vindo, portanto, Florent. Espero que sejais feliz aqui e que nunca vos venhais a arrepender de terdes deixado mestre Nardi.

Não receeis! disse ele, radiante. Muito obrigado, dona Fiora. Não vos arrependereis de me terdes tomado ao vosso serviço.

Ao meu serviço é dizer muito. Digamos que figurais, doravante, entre aqueles que dão vida a esta casa, para que ela seja um lar doce e caloroso, uma concha macia e bem protegida para a criança que vai nascer.

Estais à espera?...

Com a colher suspensa sobre a malga, Florent olhou para a cintura da jovem. Ficou muito corado e de boca aberta, sem saber o que dizer.

É verdade! disse Fiora, sorrindo. Vou ser mãe em Setembro. Isso altera as vossas intenções? Não sei quando regressa o meu marido, o conde de Selongey... nem se o voltarei a ver um dia, porque tenho medo que esteja em perigo, mas sou sua mulher, apenas sua mulher e nenhum homem, nunca, poderá tomar no meu coração o lugar que lhe pertence acrescentou ela gravemente. Aqui, todos o sabem e quero que também o saibais. Continuais a querer ficar connosco?

Deixando cair a colher, Florent levantou-se e plantou o seu olhar azul no da jovem:

Apesar de me ter dedicado a vós, dona Fiora, nunca ousei esperar outra coisa que não um sorriso ou uma palavra de amizade. Desejava velar por vós, mas podeis estar certa que velarei pela criança com o mesmo cuidado e devoção que teria para com a sua mãe.

Vendo, sem dúvida, que havia ali demasiada emoção, Léonarde colocou ambas as mãos nos ombros do rapaz para o obrigar a sentar-se de novo.

Bem dito! disse ela. E agora comei a vossa sopa, meu amigo. Mereceste-la e a sopa de couves fria não presta para nada. A gordura condensa!

E se comêssemos com ele? propôs Fiora. Tenho uma certa fome e ele deve ter tantas coisas para nos contar!

Um instante mais tarde, todos os que estavam na cozinha estavam instalados em redor de Florent, comendo e bebendo com apetite, ao mesmo tempo que o recém-chegado dava, entre duas colheradas, notícias de Paris em geral e de Nardi em particular. Havia, também, muitas perguntas a fazer, porque se passara mais de um ano desde que, tendo abandonado Nancy na companhia de Douglas Mortimer, deixara Fiora e Léonarde como reféns do duque de Borgonha. Fiora deixou que Léonarde lhe respondesse, sabendo que esta, com a sua prudência e discrição habituais, diria apenas o que deveria ser dito.

Se bem compreendi disse Florent quando esta terminou estivestes em guerra este ano todo que passou?

É verdade! Se me tivessem dito, quando servia em Florença na casa de ser Francesco, que teria, um dia, recordações militares, ter-me-ia rido! No entanto, como vedes, saímos dela vivas!

Separaram-se depois daquela conclusão optimista. Florent caía de sono depois da sua longa corrida e foi, com gratidão, para o cubículo que Péronnelle lhe preparara perto dos seus próprios aposentos. Como a chuva cessara momentaneamente, Étienne foi fazer uma ronda com os cães antes de ir para a cama, enquanto a sua mulher cobria de cinza as brasas da lareira que, assim, regressariam facilmente à vida na manhã seguinte. A casa, como um punho sólido e amigo, fechou-se sobre aquele novo hóspede para satisfação geral.

Sinto uma certa vergonha disse Fiora enquanto Léonarde a ajudava a despir-se em aceitar que este jovem se dedique desta maneira ao meu serviço. Seria muito mais feliz e rico se nunca me tivesse conhecido.

Feliz por trás de uma escrivaninha? Lembrai-vos, meu cordeirinho, ele passava o tempo todo no jardim da dama Agnelle. Limita-se apenas a mudar de jardim. E confesso-vos que a sua presença sob este tecto me parece bem reconfortante. Nada como uma devoção sincera para viver em paz.

Nessa noite, Fiora adormeceu com uma confiança e uma alegria que não sentia há muito, embalada pelo crepitar ligeiro da chuva que o vento vindo de oeste projectava contra as janelas do seu quarto. A chegada de Florent parecia-lhe um bom augúrio, porque a simplicidade do coração do jovem era daquelas que fazem nascer em seu redor, senão a felicidade, pelo menos uma espécie de contentamento que se lhe assemelha um pouco. As duas mãos da jovem estavam pousadas sobre o ventre, como costumava fazer para se sentir mais próxima daquela pequena vida que palpitava dentro dela e para melhor a proteger contra o que quer que fosse. Tudo estava bem naquela noite de Primavera que acabava de trazer um amigo...

A partir da manhã seguinte, Florent, que se levantara cedo, tomou o seu lugar nos usos e costumes do solar como se nele tivesse nascido. Enquanto esperava que Étienne o levasse a dar a volta da propriedade, foi buscar água para Péronnelle e renovou, por toda a casa, a provisão de lenha. Estabeleceu-se instantaneamente um entendimento entre ele e a boa mulher que, com o correr dos dias, se pôs a imaginar que um filho, talvez um pouco grande demais, lhe fora enviado do céu como um presente. Quanto a Étienne, o silencioso, o ardor no trabalho do jovem parisiense, o seu amor pela terra, pelas plantas e pelos animais conquistaram-lhe, em breve, a estima. Tinha prazer na sua companhia a todos os instantes.

Fiora não o via muito. Florent colocou, logo a partir do primeiro dia, muita discrição nas suas relações com a jovem castelã, contentando-se em avistá-la enquanto ia e vinha pela propriedade e em trocar algumas palavras quando ela aparecia no jardim. E Léonarde, que temera, por um instante, ver sem cessar pelos cantos da casa o seu rosto extasiado de amor, louvou-o pela sua conduta sábia. Além disso, tinha de admitir que o antigo aprendiz de banqueiro era, em questões de jardinagem, uma espécie de pequeno génio: à medida que lhes prodigalizava os seus cuidados, os canteiros enchiam-se de cor e perfume. Nunca se tinham visto goivos tão grandes e perfumados nem bons e peónias tão floridas. Florent, ao percorrer os arredores em busca de novas plantas, tornara-se amigo do jardineiro do castelo de Plessis, que lhe prodigalizava conselhos e sementes com uma generosidade real. Quando começaram as longas tardes do começo do Verão, Florent, vendo Fiora e Léonarde demorarem-se num velho banco de pedra para ali respirarem o odor das ”suas” rosas, da ”sua” madressilva e do ”seu” jasmim, sentiu-se pago pelas suas penas e agradeceu ao Senhor de todo o coração por lhe permitir estar perto daquela que era a mais magnificente estrela da Sua Criação...

Assim ia a vida na Casa das Pervincas, infinitamente doce e calma, longe do tumulto e furores da guerra, sem que ninguém imaginasse que nesse mesmo momento se representava um desses dramas suscitados pela loucura dos homens. Fiora preparava o nascimento do filho de Philippe sem imaginar por um único momento que em Dijon esse mesmo Philippe iria em breve subir para o mesmo velho cadafalso da praça Morimont que vira morrer Jean e Marie de Brévailles. O curso irisado do Loire e a fresca espessura das florestas encerravam-na numa espécie de anel mágico, no qual vinham quebrar-se os sons longínquos do século.

CAPÍTULO III O PRISIONEIRO

À medida que se aproximava a data do parto, Fiora, longe de se abandonar às alegrias do repouso e às doçuras das almofadas macias, dava provas de uma actividade crescente. Não estava muito tempo no mesmo lugar para pavor de Léonarde e Péronnelle, que temiam a cada instante um acidente quando a viam trotar pelo jardim e pelo bosque, subir para a mula para ir orar ao priorado de Saint-Côme ou ir buscar ovos à granja. Havia nela uma alegria que a atirava para a frente. Parecia-lhe que, quanto mais se mostrasse forte, mais o seu filho seria vigoroso e bem constituído.

Foi assim que no vigésimo quinto dia do mês de Agosto, que era o dia de São Luís, padroeiro do Rei de França, convenceu Léonarde a acompanhá-la a Tours para ver a cidade adornada e rezar uma última vez no túmulo do grande São Martinho. Já lá fora diversas vezes, sentindo-se com isso extremamente bem, com uma grande paz de alma e queria agora tirar dessa oração uma energia suplementar para a prova que a esperava.

Léonarde torceu um pouco a orelha. A criança talvez se fizesse anunciar dentro de uma semana e não era prudente aventurar-se numa cidade em festa, mas Fiora estava tão firmemente agarrada à sua ideia que foi impossível convencê-la do contrário. Até porque Florent pôs fim à questão dizendo que poriam uma sela de mulher bem estofada na mais doce das mulas e que, de

1 A sela de amazona ainda não tinha sido inventada a sua autora foi Catarina de Médicis As mulheres viajavam numa espécie de cadeira de espaldar, onde iam sentadas como numa cadeira vulgar


qualquer maneira, ele escoltaria as damas para as proteger se houvesse grandes multidões nos adros das igrejas e nas ruas.

Nesse dia fazia um tempo delicioso, de uma grande doçura e bem agradável depois dos fortes calores que, durante uma quinzena, tinham caído sobre a região, obrigando Florent a uma intensa actividade para manter o seu jardim vivo e fresco. O céu estava de um azul-profundo, semeado de pequenas nuvens brancas que se pareciam com cordeiros e toda a natureza, lavada pela grossa chuva que se seguira a uma vigorosa tempestade, resplandecia de verdura e de flores, como se estivesse na sua primeira juventude.

Enquanto a ajudava a sentar-se na pequena cadeira fixada na albarda da mula, Florent pensava que Fiora, a despeito da sua cintura deformada, estava mais bela do que nunca. O seu vestido de algodão fino e o véu fixado num toucado em forma de crescente eram do azul terno da flor do linho, reflectindo-se nos seus olhos e fazendo cantar a sua tez delicada. Nenhum sinal desagradável lhe desfeava o rosto e o bater das suas pálpebras dava-lhe ainda mais encanto. E o bravo jovem, com a simplicidade do seu coração, perguntou a si próprio como podia um homem, que tivera a incrível sorte de a ter nos seus braços, de beijar os seus doces lábios, de mergulhar as mãos naquela cabeleira sedosa, aceitar viver, nem que fosse por um único dia, longe de tanta graça. Era preciso que aquele conde de Selongey fosse um grande imbecil e, pela sua parte, Florent esperava nunca mais o ver. Entraram em Tours pela porta de La Riche, a mais próxima do solar e foram imediatamente apanhados pelo encanto. A despeito da ausência do Rei, que não voltaria a ver, talvez, antes do Outono, a cidade parecia uma noiva em dia de casamento. As janelas tinham as mais belas colchas, as mais belas tapeçarias, picadas com todas as flores dos jardins. Se bem que fosse sexta-feira, todos os habitantes tinham os seus trajes de domingo. No entanto, e porque era dia de mercado, as lojas estavam abertas. Entre dois ofícios religiosos, todos, naquela manhã, se dedicavam às suas ocupações.

Em redor da antiga basílica de São Martinho, do seu claustro e das suas torres românicas, a animação já era grande, porque era um dos mais importantes locais de peregrinação da Europa. Há mais de mil anos que, nas margens do Loire, naquele mesmo local, o corpo de Martinho, soldado romano tornado bispo e confessor, por amor, dos seus irmãos humanos, atraía multidões vindas de todos os horizontes. Dizia-se que o santo ressuscitara três mortos e restituíra a saúde a milhares de doentes incuráveis. Leprosos, enfermos, dementes a quem chamavam lunáticos e até possessos, tinham-se visto livres dos seus males e purificados devido ao simples contacto com o seu túmulo. Assim, os peregrinos vinham, numerosos, em busca daquela esperança que era, além disso, uma etapa do ”caminho das Estrelas”, a longa estrada que, dos países nórdicos, ia até Santiago de Compostela.

A igreja actual era a quarta a ser construída sobre o sepulcro de Martinho, morto por volta do ano 400. Houvera, primeiro, um modesto oratório de madeira e depois uma capela que perecera num incêndio sem que, aliás, o santo sepulcro tivesse sido atingido. O bispo Henri de Buzançais, após os terrores do ano mil, tinha mandado construir uma basílica, mas esta teve algumas desgraças e foi necessário reconstruí-la entre o xi e o xiI séculos, ao ponto de a igreja ser praticamente nova. O Rei Luís e a sua generosidade velavam por ela. O soberano assegurava a sua manutenção e quase não se passava um ano sem que fizesse uma doação, apesar de a sua grande devoção ir para Notre-Dame de Cléry.

Como era hábito, a igreja estava cheia quando Fiora e Léonarde, deixando Florent a guardar as montadas, se esforçaram por penetrar nela. Homens, mulheres, velhos, crianças, peregrinos de passagem ou doentes na maior parte, amontoavam-se sem brutalidade, esperando até, sensatamente, a sua vez de se aproximarem do sepulcro através do deambulatório que rodeava o coro. Todos cantavam louvores a Deus e à glória do grande São Martinho, ao mesmo tempo que os monges faziam os possíveis para os canalizar e, sobretudo, convencer aqueles que tinham chegado ao fim a dar lugar aos outros. Alguns, com efeito, agarravam-se às grades douradas, pretendendo ficar ali até que

1 Onde está enterrado.


o voto fosse satisfeito e suplicando que não os arrastassem dali. No entanto, a era das grandes peregrinações tinha passado. O século presente era de uma fé menos exaltada e já não se ia tantas vezes a Roma e ainda menos a Jerusalém. Apenas Compostela, na Galiza, continuava a atrair as multidões que percorriam os numerosos caminhos que estrelavam a Europa, mas as grandes peregrinações da Páscoa já estavam longe naquele mês de Agosto. São Martinho de Tours, assim como Lê Pu, Conques, o Mont Saint-Michel-au-péril-de-la-mer e muitos outros grandes centros de piedade conservavam, no entanto, numerosos fiéis, os que não temiam uma ou duas centenas de léguas.

Vendo tanta gente, Léonarde quis evitar a Fiora uma espera em pé demasiado longa, mas a jovem resistiu. Esta decidira que naquele dia pediria a protecção do santo e nenhuma força humana a impediria de tomar o seu lugar na fila de espera. Aliás, apercebendo-se do seu estado, uma peregrina e um velho monge, que dirigiam um grupo de fiéis vindos da Normandia, arranjaram-lhe um lugar e ela pôde aproximar-se do relicário que, parecendo um sol, irradiava no coro do venerável santuário. As centenas de círios que o rodeavam acendiam cintilações no revestimento de ouro e prata e nas profundezas das pedras preciosas de diversas cores que nele estavam encastoadas.

Fiora ajoelhou-se junto do sepulcro e estendeu a mão através das grades para chegar a uma das placas de ouro cinzeladas. Os seus dedos encontraram um grande topázio polido, que acariciaram. Ao mesmo tempo, dirigiu ao habitante do precioso sarcófago uma oração fervorosa, talvez a mais ardente que formulava há muito tempo. A fé perdida durante meses voltara com a certeza de ser a única no coração de Philippe, mas nunca atingiria o grau de devoção confiante e pleno de certeza de Léonarde. Para a velha solteirona só havia uma solução para os problemas que não conseguia, por si só, vencer: o recurso a Deus, à Virgem ou ao santo mais apto, segundo a sua especialidade, para a satisfação do pedido. Naquele dia, e porque pedia pelo seu filho, Fiora rezou com todas as forças da sua alma.

Ao deixar a igreja, a jovem sentia-se mais serena. O bebé já podia vir ao mundo. Fora confiado a São Martinho e ela agora estava certa de que seria belo, forte e puro de todo o mal. Assim, distribuiu esmolas pelos mendigos que solicitavam a sua caridade, feliz por ouvir as bênçãos com que eles a cobriam e os votos que formulavam pela sua maternidade.

Pelo braço de Léonarde, demorou-se um instante a seguir as evoluções de um saltimbanco que rodopiava numa corda estendida entre duas estacas. O rapaz era jovem, ligeiro, sorridente e no seu fato matizado, parecia uma chama volteando no ar pela vontade de um mágico invisível.

Se quereis fazer compras, temos de nos apressar aconselhou-a Léonarde. Vamos ter com Florent.

Ao aproximarem-se do local onde tinham deixado as mulas, as duas mulheres viram que o jovem estava a conversar com um estrangeiro. Estes não eram raros em Tours, tal como nos outros lugares santos, mas o interlocutor de Florent apresentava um aspecto suficientemente particular para chamar a atenção. Alto, magro e até ossudo, o seu rosto em forma de lâmina de faca mostrava uma tez bronzeada e uns olhos negros de mediterrânico. O seu fato era o de um mercador abastado, mas tinha uma certa maneira de levar maquinalmente a mão à cintura, como se procurasse o punho de uma espada, e isso despertou Fiora.

Ao vê-las aproximarem-se, o homem saudou profundamente as duas mulheres, endereçou a Florent uma despedida desenvolta com a ponta dos dedos e perdeu-se na multidão.

Quem era aquele homem? perguntou a jovem.

Um mercador. Veio comprar sedas, mas o que é engraçado é que é vosso compatriota, dona Fiora.

Florentino? Parece-me que, se já o tivesse visto, lembrar-me-ia!

Não. Não é de Florença. É de uma outra cidade cujo nome esqueci. E não me pergunteis o seu, porque compreendi-o mal e seria incapaz de vo-lo repetir...

Interessante disse Léonarde, zombeteira. Podeis, ao menos, dizer-nos o que queria?

Posso. Ele reparou na beleza das nossas mulas e queria comprar uma para substituir a que morreu de doença. É claro que recusei sem lhe dar a mínima esperança. Foi por isso que se afastou ao ver-vos aproximar, sem dúvida para não parecer importuno.

O que supõe uma grande delicadeza disse Léonarde. É curioso, mas não me parece que seja homem para tais escrúpulos. Fiora, essa, não disse nada. Não gostara do olhar que o desconhecido lhe dirigira. Não se parecia, de todo, com os olhares masculinos a que estava habituada. Não tinha qualquer admiração, qualquer doçura, antes uma crueldade fria juntamente com uma expressão de triunfo, que lhe provocara um arrepio na espinha. Fora como se, saindo de um local iluminado, se visse subitamente em frente de um abismo, no fundo do qual rastejassem animais imprecisos. Estais tão pálida! notou Léonarde de súbito inquieta, Quereis regressar? Não, não, estou bem! Não quero regressar sem ter feito as minhas compras. A má impressão desapareceu imediatamente face à luz quente do Sol e à alegria geral. Os sinos despejavam na cidade um carrilhão pleno de alegria e Fiora adorava o som dos sinos: atribuiu rapidamente o que acabava de sentir a um aumento de nervosismo devido à gravidez e foi alegremente que subiram todos para as mulas para percorrer a Grand Rue que atravessava a cidade de leste para oeste, desde a porta Billault, ou da porta de Orleães à porta de La Riche. O espectáculo da rua, apesar de não ser um dia de festa, era recreativo. Um pouco por toda a parte demoliam-se os edifícios mais velhos para construir outros novos e não era raro ver uma bela casa de madeira nova, de empenas flamejantes, com a loja aberta no rés-do-chão e um jardim nas traseiras, vizinho de um terreno ainda vago ou de um casebre que ainda não recebera o golpe de picareta dos demolidores. O Rei Luís, que gostava mais daquela cidade do que da sua capital, não cessava de se preocupar com ela: queria-a rica, poderosa, soberba e mais bem construída do que qualquer outra. Fora ele que decidira estabelecer em Tours fábricas de tecidos de seda, de ouro e de prata, cuja reputação começava a estender-se para lá das fronteiras e os diversos portos estabelecidos no Loire, na base das altas muralhas que cercavam a cidade, tinham uma actividade incessante. Porque a seda bruta, cujo único fornecedor era até há pouco Florença, era trazida do Oriente pelos navios franceses. E os burgueses de Tours, que no princípio se tinham insurgido contra a presença de operários vindos do lado de lá dos Alpes, tinham acabado por compreender que, uma vez mais, o seu Rei tivera razão e que a sua visão, a longo prazo, lhe permitia, sempre, ultrapassar os acontecimentos e produzir riqueza.

Por sua parte, Fiora, esquecendo que aquele comércio fazia concorrência à cidade da sua infância, gostava da loja de mestre Guin de Bordes, que passava por fornecer os mais belos tafetás, sobretudo aquela seda espessa a que começavam a chamar o ”gros”NI de Tours. A loja, com as suas madeiras escuras admiravelmente enceradas e os armários a abarrotar de maravilhas, agradava-lhe pela sua elegância e Fiora encontrava nela a boa companhia e a cortesia que lhe lembravam as lojas de outros tempos.

Queria um vestido novo, como acontece muitas vezes quando se vive durante muitos meses com a cintura deformada, comprou alguns de tafetá de um belo vermelho-coral e depois escolheu um tecido de veludo cor de ameixa para Léonarde e um belo pano de um azul quente que destinava a Péronnelle. Florent carregou tudo na sua mula e dirigiram-se para Carroi-aux-Herbes, perto do castelo, que dominava a imensa ponte sobre o Loire e as suas ilhas até ao bairro de Saint-Symphorien. Havia lá um certo albergue, célebre pelos seus patês de lúcio e Fiora, como lhe acontecia frequentemente desde que estava grávida, morria de fome. Instalaram-se, portanto, sob uma ramada contígua ao albergue para ali restaurar as forças da futura mãe.

O local era encantador, um pouco afastado da rua que, no prolongamento da ponte de vinte e cinco arcos, estava sempre muito animada. Através da parra já moribunda das vinhas apercebiam-se as pimenteiras azuis, os cata-ventos do castelo e a

Símbolo dos tecidos de Tours, como a renda de Bruxelas


flechá da capela onde Luís XI tinha casado com Carlota de Sabóia e onde os seus pais, Carlos VII e Maria de Anjou, tinham feito o mesmo. Esses acontecimentos não tinham sido suficientes para ligar o Rei àquela fortaleza elegante, tendo preferido Plessis.

Depois de terem provado o patê, regado com um excelente vinho de Vouvray, os três companheiros concederam a si próprios um momento de descontracção mastigando umas ameixas de conserva. A verdura onde estavam abrigados protegia-os do sol que aquecia os telhados das casas e iluminava o Carroi, mas o seu calor era normal para a época, não era a canícula que tinham tido de sofrer. Fiora e Léonarde sentiam-se fundir numa sensação de bem-estar que, geralmente, prenuncia o sono.

Não seria melhor regressarmos? perguntou esta. Não é propriamente um local onde devamos fazer uma sesta.

Está-se aqui tão bem! replicou Fiora. Só mais um bocadinho.

Nem por todo o ouro do mundo seria capaz de dizer porque lhe apetecia demorar-se ali. Talvez por causa daquela profunda paz, total, que a banhava, uma paz tanto mais preciosa quando se adivinha obscuramente que não vai durar, que se vai passar qualquer coisa e que o combate vai recomeçar. Evidentemente, não imaginava que esse combate pudesse ser outro que não o parto próximo e no entanto...

A quietude em que a cidade inteira parecia estar mergulhada voou subitamente em estilhaços. Ouviram-se gritos que ninguém compreendeu, sons diversos e o pisar de centenas de pés que corriam sobre o pavimento da rua. O estalajadeiro apareceu à porta para perguntar o que se passava e viu que toda aquela gente corria para a ponte. Alguém berrou:

Um prisioneiro! Trazem um prisioneiro numa jaula! Na ponte!

Fiora pôs-se imediatamente de pé, movida por uma força interior que não podia controlar.

Vamos ver!

Sois louca? protestou Léonarde. Para que ides contemplar um desgraçado?

. Não sei, mas tenho de ir. Para o terem metido numa jaula

é porque deve ser um prisioneiro importante.

É insensato! Isso não é bom para vós nem para a criança.

Ajudai-me, vós! acrescentou ela na direcção de Florent, que também se levantara e olhava para a jovem com inquietação.

Mas este abanou a cabeça sem responder. Conhecia suficientemente bem Fiora para saber que quando ela franzia a testa e cerrava os dentes, era impossível fazê-la desistir de uma decisão. Desta vez, a jovem contentou-se em virar o olhar para o seu jardineiro.

Vinde comigo, Florent! disse ela. Deveis ser suficiente para me proteger da multidão. A dama Léonarde espera-nos aqui!

Não faltava mais nada! protestou esta. Começo a estar farta de vos repetir que onde fordes, também eu vou. No entanto, exijo que levemos as mulas. Ir a pé seria uma loucura. Mas continuo a dizer que um tal espectáculo não foi feito para uma jovem perto do fim... aliás, para mulher nenhuma!

Um instante mais tarde, empoleirada na sua mula guiada por Florent o jovem achara mais prudente deixar a sua no albergue com as compras Fiora avançava com dificuldade no meio da multidão que se formara aos primeiros gritos e se amontoava para transpor a porta de Saint-Genest, que dava directamente para a ponte. A corrente passava lentamente, porque naquele local o Carroi-aux-Herbes, separado do castelo por um profundo fosso alimentado pelo Loire, estreitava. Em breve não correria de todo. Desencorajado, Florent virou-se para Fiora, que dava ares de impaciência.

Faríamos bem se esperássemos aqui! O prisioneiro não vai ficar na ponte. Vai, certamente, entrar na cidade. Vê-lo-emos ao passar.

Antes que a jovem pudesse ter respondido, o jardineiro interpelou um dos soldados que guardavam a ponte levadiça do castelo.

Sabeis para onde conduzem o homem que está a chegar?

Para o castelo de Loches, talvez... a menos que seja para Plessis... ou então para casa de um notável qualquer!

Para casa de um notável? Para quê?

Ora, para que o guarde! É um sinal particular da benevolência do nosso sire, confiar um prisioneiro a alguém que ele estima respondeu o homem, divertido com a cara pasmada do jovem, que, aliás, não se deu por satisfeito e parecia querer ir ao fundo da questão:

Será preciso que ele tenha uma grande porta, o vosso notável, para meter por ela uma jaula com o respectivo ocupante!

É mais simples do que isso explicou o outro, imperturbável atira-se abaixo um bocado de parede e reconstrói-se depois. Avisam-se os pedreiros com antecedência. Queríeis atravessar a ponte? acrescentou ele lançando um olhar de admiração para Fiora. A jovem dama mora, talvez, em Saint-Symphorien?

Não! Só queríamos ver o cortejo. Moramos em Plessis acrescentou ele com ar negligente.

Nesse caso, ficai perto de mim. Não o perdeis de certeza. Por falar nisso, lá vem a multidão.

Galantemente, depois de, com uma piscadela, ter avisado a outra sentinela, o homem levou as duas mulas para a ponte levadiça do castelo, o que assegurou às duas mulheres um local óptimo, ao abrigo da confusão. Era tempo. Todos aqueles que não tinham podido transpor a porta cuja alta ogiva se destacava no céu fulgurante, foram empurrados para trás por uma força contra a qual nada podiam, ao mesmo tempo que aqueles que estavam na ponte não podiam recuar, já que o cortejo do prisioneiro lhes cortava a retirada. Alguns terão, sem dúvida, caído à água, porque se ouviram uns gritos e uns ”plof” estrondosos. Fiora sentiu apertar-se-lhe o coração, esperando perdidamente que aquele prisioneiro especial não fosse o seu marido. Esse temor tinha a ver com certas palavras que chegavam até ela:

Parece que é um rebelde borgonhês! Bateu-se contra o nosso Rei! Um dos homens daquele maldito Temerário! Palavras vindas não se sabia de onde, gritos lançados por gente que, no fundo, não sabia nada, injúrias estúpidas, gratuitas e demasiado levianas face a um homem reduzido à impotência por fim, sob o arco de ferro forjado, apareceu a jaula, minando a vaga de cabeças. Aos solavancos sobre as pedras do rio que pavimentavam a ala, uma espécie de plataforma grosseira avançava com dificuldade no meio de um grupo de cavaleiros de lança em punho e, sobre essa espécie de plataforma, uma jaula suficientemente alta para que um homem se pudesse manter de pé, uma jaula feita de grossas ripas de madeira com cantos de ferro, na qual um homem, vencido, talvez, pelo calor do Sol contra o qual nada o protegia, estava sentado.

Não se lhe podia ver o rosto, porque a sua cabeça estava escondida nos braços pousados sobre os joelhos, talvez para se proteger dos projécteis de toda a espécie que a populaça lhe lançava com gritos de morte. Aquele homem era um daqueles borgonheses contra os quais fora preciso combater mais de um século e mesmo naquela região, onde a vida era doce, o rancor era tenaz. À medida que a carroça avançava, a multidão urrava cada vez mais e os guardas tiveram que fazer uso das suas lanças para a manter à distância. Sem essa precaução talvez ela tivesse, sem saber nada do cativo, tomado a carroça de assalto.

Um suspiro de alívio saiu do peito de Fiora. Philippe era moreno e os cabelos daquele, se bem que muito sujos, eram da cor do trigo. O desgosto apertou-lhe a garganta. Detestava, com todas as suas forças, aquela gente, tão amável e tranquila em tempos normais, mas que, à vista de um desconhecido do qual se dizia ser um inimigo, se transformava numa horda de lobos. A jovem olhava para aquela cena cruel sem conseguir desviar o olhar e sentiu uma imensa piedade por aquele infeliz que devia sofrer o martírio de mil mortes com aquele dia de Verão e sem uma gota de água. O seu olhar perfurou Florent:

Vai-me buscar um jarro de vinho fresco ao albergue!

O tom era daqueles que não admitiam réplica. Compreendendo que, se não obedecesse, arriscava-se a ser despedido naquele mesmo momento, Florent não discutiu, esquivou-se rapidamente e regressou alguns minutos depois com um pichel que entregou, tremendo, à jovem.

Que pretendeis fazer? murmurou Léonarde que, entretanto, tinha compreendido.

No entanto, Fiora consentiu em explicar:

Talvez tenhamos conhecido este homem no ano passado, no campo do duque Carlos. Quero dar-lhe algum socorro.

E, sem esperar mais, forçou a mula através da multidão na direcção da jaula.

Minha senhora! Onde ides? gritou o soldado que lhe oferecera o refúgio da ponte levadiça.

Onde devo ir! Aquele homem é um prisioneiro. Não é um condenado!

Perante o avanço do animal, a multidão abriu-se quase sem protestar. Aquela mulher tão bela e visivelmente perto do fim da gravidez impunha-se-lhe. Mas um dos lanceiros quis opor-se:

Que fazeis? Fora daqui!

Eu sou amiga do Rei Luís, cujo aniversário se celebra hoje, e quero oferecer um pouco de vinho a esse infeliz. Tendes ordens para vos opordes?

N... não, mas...

Tendes ordens que vos impeçam de receberdes isto? Também deveis ter sede, assim como os vossos camaradas. Acabada a vossa tarefa, podeis beber à minha saúde. Só vos peço um instante!

Na sua mão de dedos finos brilhavam algumas moedas de ouro. O soldado avistou-as, maravilhado.

Quem sois? balbuciou ele. Sois bela como a Virgem Maria, Nossa Senhora!

Pouco importa quem sou. A minha tarefa é a de socorrer aqueles que necessitam. Posso aproximar-me?

A multidão, que antes resmungava, acalmou-se, seduzida pela imagem extraordinária daquela jovem vestida de azul, cuja autoridade era a de uma princesa e cujo olhar cinzento, tranquilo, se pousava nela. Aquela cena, no fim de contas, era mais interessante do que a que consistia em lançar gritos e atirar talos de couve a um homem acorrentado que parecia insensível. O sargento afastou-se:

Fazei como desejais, nobre dama... mas só por um instante!

Fiora já estava perto da jaula. A sua mula colocava-a à mesma altura do prisioneiro e, para imobilizar a montada, a jovem agarrou uma das ripas:

Tomai este vinho, meu amigo, e bebei! Precisais muito dele!

O som da sua voz quente conseguiu atravessar a espessa camada de vontade indomável em que o homem estava envolvido para não ouvir nem ver nada. A sua cabeça curvada descolou do círculo dos seus braços e ergueu-se mostrando um rosto macilento, mas, para Fiora, imediatamente reconhecível.

Mathieu! balbuciou ela enquanto as mãos ávidas agarravam no pichel emaciado e o prisioneiro bebia avidamente. Mathieu de Frame! Mas, como é possível estardes aqui? Onde está Philippe?

Ao ouvir o seu nome, o prisioneiro estremeceu e agora olhava para a jovem por cima da borda do pichel com uns olhos cheios de dor.

Morto!... disse ele por fim. Foi apanhado... como rebelde, em Dijon... e executado. Eu quis revoltar a multidão para o arrancar ao cadafalso. Foi por isso que me prenderam.

Por um instante, ficaram ambos num profundo e doloroso silêncio. Com o coração parado, Fiora olhava para o homem acorrentado. A sua voz, curiosamente sem timbre, pareceu-lhe vir de muito longe.

Morto? Quereis dizer... que o mataram?

Os homens do Rei, sim! O governador de Dijon, o senhor de Craon! Eu não o vi morrer porque me levaram antes... mas já estava na base do cadafalso... Perdoai-me! Trouxestes-me socorro e eu martirizo-vos.

Fiora já não ouvia nada. À sua volta tudo oscilava: o céu anil, os reflexos do rio no interior da velha porta, os cata-ventos do castelo, as ripas da jaula e o rosto jovem e patético do prisioneiro que, de olhos arregalados, a via empalidecer sem nada poder fazer para a ajudar. Mas Léonarde não estava longe. Instantaneamente, a sua mula atirou-se contra a de Fiora e a velha solteirona recebeu nos braços a jovem desmaiada.

Ajudai-me! gritou ela. Não vedes que ela desmaiou? Ou tendes corações de pedra, insensíveis a qualquer aflição?

O sargento veio em seu socorro e, na multidão, já algumas mulheres se esforçavam por se aproximar dela.

Não devia ter permitido isto! disse o soldado, arrePendido.

Nunca fizestes nada melhor, meu amigo! Mas é preciso admitir que, no seu estado, o espectáculo deste infeliz não é o que lhe convém. Não podeis ser um pouco mais humanos com os vossos prisioneiros?

Visivelmente aborrecido, o homem lançou em redor um olhar inquieto e depois, inclinando-se para a velha solteirona murmurou-lhe rapidamente:

Ela conhece este homem? É um amigo?

- É, mas que tendes vós com isso?

Não vos preocupeis! Dizei-lhe que tentarei ajudá-lo um pouco. Para que ela se lembre do sargento Martin Venant. E agora, ide ter com ela. Temos de continuar! Transportada por dezenas de braços prestáveis, Fiora fora tirada da sua sela e conduzida para o albergue do Carroi onde ela tinha tomado a sua refeição. Florent, perdido de angústia, segurava numa das suas mãos frias. Enquanto o sargento dava as suas ordens, Léonarde virou-se para ele:

Para onde levais este homem? Sabeis?

Para o castelo de Loches! Deus vos guarde! Léonarde não respondeu à saudação que lhe dirigiam. Já partira na direcção do albergue, em cujo interior tinham estendido Fiora num banco com uma almofada sob a cabeça. A estalajadeira dava-lhe palmadas nas mãos e Florent borrifava-lhe as têmporas com vinagre, mas nada feito: com o nariz contraído, as faces brancas e os olhos fechados, a jovem não reagia. Respirava com dificuldade mas respirava e via-se, por isso, que o golpe não a matara.

A despeito do medo que lhe apertava o coração, Léonarde esforçou-se por manter a calma. Apalpou as mãos e os pés de Fiora, tão geladas umas como os outros e ordenou:

Dai-me aguardente e mandai aquecer um tijolo para lhe pôr aos pés! E um cobertor! Pagaremos o que for preciso!

Não quereis que lhe preparemos um quarto?

Não, obrigada. É melhor tentar levá-la para casa. Nós moramos no solar de La Rabaudière, em Montils.

A Casa das Pervincas disse a mulher com um meio sorriso. Conheço essa casa. Uma bela casa!

Sim, mas neste momento parece ficar no fim do mundo! Vamos, Florent, mexei-vos em vez de olhardes para a vossa patroa com esses olhos cheios de lágrimas! Tratai de encontrar uma liteira, uma padiola, uma coisa qualquer, sei lá!

Sempre a falar, a velha solteirona introduziu com precaução e com alguma dificuldade uma colher de aguardente de ameixa entre os dentes cerrados da doente. Uma criada trouxe o tijolo quente e o cobertor em que envolveram o corpo que, bruscamente, se pôs a tremer como se um vento glacial tivesse entrado na sala. A bebida forte começava, também, a fazer efeito: Fiora tossiu várias vezes, sufocada. Léonarde endireitou-a e bateu-lhe nas costas. A tosse acalmou e as faces ganharam um pouco de cor.

Abrindo, por fim, os olhos, Fiora viu rostos desconhecidos inclinados sobre ela, mas apercebeu-se logo de seguida que estava nos braços de Léonarde. A jovem tentou sentar-se sem o conseguir.

O que é que eu estou a fazer aqui? perguntou ela com a voz ainda estrangulada pela aguardente.

Mas a jovem era das que acordam rapidamente e, de imediato, recordou o que acabava de se passar. Desatou a chorar e escondeu o rosto no ombro da sua velha amiga.

Levai-me daqui! suplicou ela. - Depressa! Depressa! Quero voltar para casa!

Felizmente, Florent estava de volta com uma boa notícia: a abadessa do convento vizinho possuía uma liteira e punha-a voluntariamente ao serviço de uma nobre dama em dificuldades. O veículo estava a chegar.

Léonarde agradeceu aos estalajadeiros e queria pagar os seus cuidados, mas estes recusaram:

Pobre dama, tão jovem! disse a estalajadeira, apiedada. Deve ter-lhe acontecido uma grande dor, para ficar nesse estado! Estava tão alegre e comia o patê com tanto apetite! Só tendes de me mandar o cobertor um dia destes! Cuidai dela!

Era uma recomendação supérflua e enquanto a liteira abacial as conduzia, às duas, ao solar, Léonarde perguntava a si Própria com angústia como havia de tratar aquela nova e terrível ferida que o destino infligira ao seu querido cordeirinho. Já uma vez, após a batalha de Grandson, onde tinham visto cair Philippe de Selongey, Fiora acreditara-o morto, mas talvez, no fundo de si própria, houvesse uma pequena esperança: acontece que por vezes, em combate, um ferido, dado como morto, regressa à vida. Fora o que se passara com Philippe: a sorte enviara-lhe Demétrios Lascaris, um dos melhores médicos da cristandade e Fiora vira o seu marido regressar vivo para ela. Mas que esperança, mesmo insensata, poderia haver depois de uma execução capital? Léonarde, aflita, esforçava-se por lhe acalmar os soluços dilacerantes que pareciam não cessar nunca. Fiora, mergulhada no poço da sua dor, parecia desaparecer um pouco mais a cada instante que passava e não ouvia nenhuma das palavras apaziguadoras que a velha governanta lhe prodigalizava. Talvez pensasse que depois do choro viria o sangue, e depois do sangue a vida?

Chorou assim durante todo o caminho e, se as lágrimas eram menos, os espasmos ainda a sacudiam quando Étienne e Florent, precedidos de uma Péronnelle aflita e incapaz de compreender o que se passava, a levaram para o seu quarto e estenderam no leito.

Só depois de deitada é que se acalmou progressivamente até atingir uma espécie de prostração, talvez ainda mais aflitiva do que o violento desespero que a precedeu. A jovem ficou assim durante horas, imóvel, aparentemente insensível, não ouvindo nada mas com os olhos bem abertos, o olhar fixo num ponto das cortinas que rodeavam o seu leito. Respirava entrecortadamente e arquejando dolorosamente de vez em quando, coisas que Léonarde escutava com o coração dilacerado, aterrorizada com a ideia de que a sua querida Fiora estivesse, talvez, a perder a razão.

Fora preciso pôr Péronnelle mais ou menos ao corrente e esta propôs, de imediato, mandar buscar o prior de Saint-Côme que, como bom discípulo do patrono da sua casa, gozava de grande reputação médica em casos de loucura e de exorcista em casos de possessão diabólica. Esta última palavra desagradou a Léonarde:

Ainda não chegámos aí! disse ela em tom seco. A nossa jovem dama está sob uma grande dor, que a invadiu ao ponto de lhe retirar os sentidos. Eu vou velar por ela esta noite

e se amanhã ainda estiver neste estado, veremos o que havemos de fazer. Por hoje, contentemo-nos em fazer com que beba um pouco de chá de tília com mel.

Enquanto a corajosa mulher, dócil, ia em busca do que lhe pediam, Léonarde acomodou-se junto da cabeceira de Fiora como tantas vezes antes, quando a jovem estava sofredora ou simplesmente febril e, pegando-lhe na mão abandonada sobre o lençol, levou-a aos lábios sem procurar reter as lágrimas que, desde o drama, se esforçava por conter:

Meu Deus orou ela em silêncio não a leveis, peço-Vos! Não permitais que o seu espírito se vá juntamente com aquele que ela tanto amou e se perca nas brumas da loucura! Ela tem um filho que vai nascer e que já não tem pai. Não lhe leveis a mãe! Eu sei que ela ainda vai sofrer, sei que está aos pés de um novo calvário e que a inconsciência pode ser uma misericórdia, mas...

Léonarde interrompeu-se. Fiora acabava de lançar um gemido e a velha governanta, erguendo a cabeça, viu que a jovem olhava para ela com uns grandes olhos, cheios de angústia.

Sinto-me mal! sussurrou ela. É como se me tivessem espetado uma faca no ventre!

Uma dor aguda, brutal, fora buscá-la ao abismo, para o fundo do qual ela se sentia descer, para a trazer de volta à superfície da vida. Para lhe escapar, a jovem virou-se de lado, encolhendo as pernas, mas o sofrimento não se apaziguou. Era como se uma onda abrasadora lhe percorresse as entranhas e, no seu espírito esgotado pelo desgosto, não compreendia de onde lhe vinha.

Já Léonarde tinha puxado para trás os lençóis e os cobertores e examinava o corpo enroscado, passando pelo ventre uma mão prudente. Procurando um certo conforto, o olhar de Fiora Parecia o de um animal prisioneiro. Subitamente, como que por milagre, a dor apaziguou-se sob as mãos de Léonarde e Fiora sentiu que os lençóis estavam húmidos...

- O que é que... o que é que eu tenho? murmurou ela.

Através das lágrimas que a inundavam, o rosto enrugado de Léonarde pareceu-lhe radioso:

Nada, meu cordeiro, nada que não seja natural! A criança está a chegar. Ides precisar de alguma coragem.

Coragem? Já não tenho nenhuma e creio que nunca mais a terei! Philippe! Meu Philippe!

A dor, que renascia, varreu momentaneamente o desgosto para deixar Fiora num simples estado de sofrimento. Péronnelle, que chegava com o chá, compreendeu, ao primeiro olhar o que se passava:

A criança está a chegar? exclamou ela alegremente. Vou preparar tudo o que é preciso!

E pôs-se, de imediato, a acender o fogão do quarto, no qual colocou um pote de água a aquecer. Já a havia na cozinha, mas ela achava que talvez não fosse demais. Após o que mandou aquecer alguns lençóis para substituir os de Fiora e empilhou uma infinidade de panos e toalhas. Léonarde, essa, não abandonou a cabeceira nem a mão da futura mãe que se agarrava à sua.

Quanto tempo durou a tempestade de dor que assolou Fiora? A jovem seria incapaz de dizer, mas pareceu-lhe uma eternidade. O tempo apagou-se e, com ele, a consciência de tudo o que não era a tortura do seu corpo. Até o seu desgosto desaparecera. Em breve, a dor não lhe dava descanso. Era como se a criança, qual gigante sacudindo as paredes da sua prisão, fizesse rebentar tudo dentro dela para chegar mais depressa à luz. A única coisa real para lá da angústia do suplício era o rosto ansioso de Léonarde iluminado pelas chamas da chaminé, a mão de Léonarde que apertava a sua com força e a voz de Léonarde que lhe murmurava palavras de encorajamento.

Fiora já não gritava, mas escapava-se dos seus lábios secos um gemido contínuo, que Péronnelle humedecia de vez em quando. A jovem arquejava, presa na armadilha daquele sofrimento sem remissão que nenhuma força humana, nenhuma magia podia fazer cessar e que era preciso suportar até ao seu fim natural. Por instantes, Léonarde passava-lhe pela fronte cheia de suor um pano embebido em água da rainha-da-hungria e o odor fresco reanimava, por um instante, a parturiente, mas

1 água-de-colónia


depois a criança regressava à carga e voltava a mergulhar a sua mãe no martírio.

Já esgotada pelas abundantes lágrimas que derramara, Fiora desejava desesperadamente um instante, um único, de remissão, que lhe permitisse abandonar a sua imensa fadiga. Tinha tanta vontade de dormir!... Dormir! Deixar de sofrer! Esquecer... aquela dor terrível cessaria um dia? Conseguiria dormir de novo?

Péronnelle, que sabia decididamente fazer tudo e que não ignorava nada acerca da maneira de conduzir um parto, examinava Fiora de tempos a tempos e esta suplicava-lhe que a deixasse em paz. Em seguida, sussurrava a Léonarde os progressos que constatava.

Quando a noite estava a atingir o seu termo, a consciência da jovem começava a enevoar-se quando Péronnelle, que até tinha afastado Léonarde, lhe ordenou que ajudasse e fizesse força.

Não posso... não posso mais... soluçava Fiora. Deixai-me morrer!

Vós não ides morrer e a criança vai chegar dentro de alguns minutos. Mais um pouco de coragem, minha querida!

Coragem? Fiora já não sabia o que isso era. No entanto obedeceu, quase maquinalmente e, subitamente, sentiu uma dor mais forte do que todas as outras, uma dor superior a todas as dores, que lhe arrancou um verdadeiro uivo. No jardim onde esperava, Florent deixou-se cair de joelhos, as mãos a taparem os ouvidos. Mas foi o último. No instante seguinte, Fiora, findo o parto, mergulhava, enfim, na inconsciência feliz que tanto desejara. Não ouviu nem o canto do galo, nem o choro enraivecido do bebé em cujas nádegas Péronnelle batia, nem o grito de alegria de Léonarde:

É um rapaz!

A jovem preferira desmaiar.

Quando voltou a si, pareceu-lhe que flutuava através de uma bruma ligeira. O seu corpo não existia. Tinha, miraculosamente, rompido as amarras que o prendiam a uma terra cruel e sem piedade, ao ponto de Fiora acreditar, por um instante, que atingira a morada dos bem-aventurados. No entanto, a voz familiar de Léonarde demonstrou-lhe que continuava a fazer parte do mundo dos vivos:

Ela abriu os olhos dizia aquela voz. Trazei-me, depressa, um ovo batido com leite, Péronnelle! É preciso restituir-lhe as forças.

Instintivamente, Fiora deixou deslizar as mãos ao longo do corpo e constatou que este estava de novo liso, quase como no passado. Recordou-se, então, do que suportara e pediu com uma voz ainda fraca:

A criança? Já nasceu?

É claro que nasceu! Ei-la!

Entre as mãos de Léonarde estava um embrulho branco, de tecido fino, que a velha solteirona, com gestos piedosos, alojou entre os braços e o peito da jovem mãe. Fiora ergueu-se um pouco e viu um pequeno rosto vermelho e amarrotado no enquadramento alvo de uma touca de cambraia bordada, dois punhos minúsculos, mas perfeitos, que permaneciam, cerrados, junto do pequenino nariz. A jovem afastou um pouco o braço para melhor o segurar e instintivamente sorriu àquele bebé, que era o seu.

Meu Deus, como ele é feio! murmurou ela acariciando com um dedo cauteloso uma das mãozinhas.

Quereis dizer é que é soberbo! anunciou Péronnelle, que acabava de entrar com água de rosas. Há-de ser um belo rapaz, podeis acreditar! Mas, não se parece nada convosco...

Uma cotovelada cortou-lhe a palavra, mas já Fiora examinava os traços miúdos, ao mesmo tempo que a vaga amarga do desgosto, por uns momentos afastada pelas dores do parto, se apoderava dela de novo:

Parece-se com o pai... com o pai que nunca verá! Foram necessários muitos cuidados e muitas palavras para que Léonarde conseguisse vencer aquela nova crise de lágrimas. Fiora acabou por se acalmar e aceitou comer um pouco, após o que caiu no sono reparador que pedira durante a provação nocturna. Léonarde tirou o bebé que ela tinha no seio e foi deitá-lo no berço que colocara no seu quarto, a fim de que a mãe pudesse repousar em paz.

Como este tivesse, também, adormecido, ela foi buscar água para fazer a toillette que a sua noite de vigília tornava indispensável, vestiu um vestido lavado, uma coifa recentemente engomada mada e desceu à cozinha para tomar o pequeno-almoço de que sentia necessidade.

Péronnelle estava ocupada a gabar ao seu Étienne as inumeráveis qualidades daquele a quem já chamava ”o nosso filho” enquanto lhe servia uma grande escudela de sopas de leite com canela e umas filhós bem quentes, mimoseando-o sempre com a sua incessante tagarelice. Étienne achou que era uma excelente ocasião para fugir, engoliu de um trago uma grande malga de sidra caseira e desapareceu.

Estavam as duas a debater os nomes que o pequeno receberia no baptismo quando Florent regressou do pomar com um grande cabaz de ameixas no braço. O seu rosto sombrio provocou a reacção das duas mulheres:

Não é preciso fazeres essa cara, meu rapaz! disse Péronnelle. O parto da nossa jovem dama, felizmente, correu bem e é isso que conta. Por agora, está a ter o descanso que merece.

Esqueceis muito depressa o que aconteceu ontem cortou o jovem. - Ela sofreu durante toda a noite e agora está a dormir, mas não vai dormir para sempre. Que vai acontecer quando acordar para a realidade?

Achais que não pensei nisso? disse Léonarde. Ainda há pouco ela desatou a chorar, quando eu pensava que não lhe restava uma única lágrima no corpo. Vai ser preciso vigiá-la de perto e, sobretudo, esperar que ela passe para o filho todo o amor que sentia por messire Philippe. Mas é certo que estamos todos nas mãos de Deus, nós, que a amamos...

Sem dúvida, mas não passa disso! Lembrais-vos, dama Léonarde, daquele mercador que me queria comprar uma mula, ontem, no adro de Saint-Martin?

Daquele estrangeiro cujo rosto me faz lembrar alguém?

Sim. Bem, acabo de o encontrar na alameda dos carvalhos. Vinha para aqui.

Para fazer o quê?

Perguntei-lhe. Respondeu-me que procurava o castelo do nosso sire, o Rei...

Que disparate! Ele não passou diante de Plessis e não viu Os guardas à entrada?

Foi isso que lhe fiz notar. Ele respondeu-me que os guardas, justamente, o tinham recebido com grosseria e que queria saber se não haveria outra entrada menos áspera. Confesso que não fui muito mais amável do que as sentinelas. ”O Rei, disse-lhe, ainda não regressou da guerra e os estrangeiros não têm nada que aparecer no castelo dele.” Então, ele disse que sabia isso muito bem, mas que lhe tinham gabado tanto as maravilhas daquele castelo que desejava admirá-lo antes de regressar ao seu país. Pensava que talvez houvesse uma porta de comunicação entre o parque real e este. Para terminar, até chegou a levar a mão à bolsa. Dar-me dinheiro, a mim, para que o deixasse entrar em nossa casa! concluiu Florent, ainda corado de indignação. Já vistes semelhante coisa?

E que fizestes vós? perguntou Léonarde enquanto deitava uma colher de mel na sua filhó.

Disse-lhe que não comia daquele pão e que faria melhor em seguir o seu caminho. O que ele fez, aliás, encolhendo os ombros, mas com um sorriso de que não gostei nada. Virou-se várias vezes para olhar para a nossa casa. Talvez me engane, mas fiquei com má impressão dele.

Péronnelle, em cuja alma dormia um cão de guarda, declarou, então, que também não gostava nada daquela história e que ia mandar Étienne a Plessis para falar com messreetienne Lê Loup, criado grave do Rei, que velava pelo castelo na sua ausência, para o advertir do incidente. Não que temesse que um estrangeiro solitário pudesse causar algum dano no domínio real sempre poderosamente guardado, mas para que Lê Loup consentisse em estender a vigilância à casa das pervincas.

Léonarde admitiu que era boa ideia e pediu que a vigilância fosse suficientemente discreta para não inquietar Fiora, já que esta recebera, no espaço de dois dias, mais do que a sua conta de dor e angústia.

Talvez estejamos a fazer do buraco de uma toupeira uma montanha concluiu ela. Pode ser que esse estrangeiro não passe de um curioso.

Por trás de um curioso pode esconder-se um espião afirmou Florent, que não desarmava. Ou pior ainda: um apaixonado!

Por que razão seria pior um apaixonado do que um espião?

. perguntou Léonarde sem conseguir conter o riso.

. Eu sei o que digo. Eu sei muito bem que são muitos os homens que admiram dona Fiora e que os haverá sempre, mas não gostaria que tivesse de fazer frente ao amor de uma personagem como aquela. Não vistes os seus olhos? São frios e cruéis. Aliás, não acredito que seja mercador. Cheira a guerra a quinze passos.

Léonarde, desta vez, não disse nada. A recordação que guardava do estrangeiro dizia-lhe que Florent, talvez inspirado pelo seu amor sem cessar acordado, podia muito bem ter razão. Ainda por cima porque o desconhecido vinha de Itália e Léonarde sabia, por experiência própria, que as gentes de baixa condição floresciam ali mais facilmente do que no reino de França, onde o rude punho do Rei Luís e a polícia do grande preboste Tristan L’Hermite faziam reinar nos vagabundos um temor saudável. De qualquer maneira, não fazia mal a ninguém que a casa fosse mais bem guardada. Pelo menos até ao regresso do Rei, que não devia tardar.

Assim, os dias correram sem que voltassem a ver a inquietante personagem.

CAPÍTULO IV O ATENTADO

Contrariamente ao que temiam os seus companheiros, Fiora recompôs-se rapidamente do parto. Cinco dias depois já estava de pé e parecia ter recobrado a saúde, mas não tinha leite para dar ao pequeno Philippe. Foi preciso recorrer, sem demoras, à ama cujos serviços Léonarde e Péronnelle tinham assegurado adiantadamente, prevendo aquele género de incidente que por vezes ocorria. Era uma rapariga forte da aldeia vizinha de Savonnières, que, deixando o seu último rebento aos cuidados da sua mãe e do rebanho de cabras familiar, se foi instalar no solar com evidente satisfação. De resto, foi uma aquisição bastante agradável, porque estava sempre de bom humor, era plácida e silenciosa, adorava visivelmente as crianças e ligou-se instantaneamente à que lhe confiaram. A cama fofa e a comida copiosa de Péronnelle fizeram o resto e Marceline era o seu nome passou a fazer parte dos habitantes da Casa das Pervincas com a intenção, bem assente, de ficar nela o mais tempo possível. Entendeu-se rapidamente com a gente da casa e, se Fiora a impressionou, pareceu-lhe a coisa mais natural do mundo, já que era a castelã. Não imaginou, nem por um só instante, que se desenrolava um drama diante dos seus olhos.

Fiora, com efeito, já não era a mesma e aqueles que viviam a seu lado mal a reconheciam quando ela aparecia, uma silhueta negra, alta e magra, que os véus do luto faziam fantasmagórica. Já não ria, mal falava e passava longas horas sentada no banco de uma janela a ver passar o Loire na ponta do seu pequeno domínio sem tocar nos bordados que a tinham distraído durante a gravidez, as suas longas mãos ociosas abandonadas no tecido negro do seu vestido. Aparentemente, não tinha lágrimas e nem uma única vez pronunciou o nome do marido. Pior ainda, quando Léonarde tentou aproximar-se com palavras apaziguadoras, ela cortou-a rapidamente.

Não! Por piedade, não me digais nada! Não me faleis dele nunca mais. Philippe está morto e longe de mim... e a culpa é toda minha!

Então, a jovem abandonou a sala como se fugisse e desceu ao jardim para se ir sentar sob um pequeno berço de rosas musgosas, obra-prima de Florent. Este não andava longe, aliás, ocupado a limpar um maciço de goivos que os gatos tinham danificado numa noite de lua cheia. O seu primeiro movimento foi de ir ter com a jovem, mas apercebeu-se do seu rosto imóvel, do seu olhar sem vida e não ousou, temendo uma resposta que o ferisse. A sua bela dama parecia ter perdido a alma.

Em certo sentido era verdade. Fiora ligava o seu desespero e a sua mágoa àquele instante demente, insensato, em que se arrancara aos braços de Philippe para se afastar dele, decepcionada e ferida no seu orgulho. No entanto, esperara-as tanto, procurara-as tanto, aquelas horas de felicidade que acabava de interromper. E tudo porque Philippe, em vez de se consagrar a ela, pretendia continuar a levar a sua vida habitual, dedicado por inteiro ao serviço do suserano, depois de a ter relegado para o seu castelo borgonhês. No momento, a ideia parecera-lhe absurda e quando ele pronunciara a palavra obediência, todo o seu ser se revoltara. A vida que ele lhe oferecia, não a queria. Não lhe cabia a ele, que lhe provocara tanto mal, provar, enfim, que a amava mais do que tudo no mundo e tentar fazê-la feliz? Sim, pensava ela e pensara-o durante cada um dos momentos que se tinham seguido até àquele minuto terrível em que Mathieu de Frame lhe contara o que acontecera em Dijon, num dia daquele mês de Julho em que, na doçura daquele mesmo jardim, ela se abandonava à felicidade de transportar o ”seu” filho, acariciando a esperança de o ver, um dia, regressar.

Os pensamentos torturantes continuaram a sua ronda. Se ela tivesse aceitado deixar-se conduzir a Selongey, viver a existência que ele lhe oferecia, teriam as coisas sido diferentes? Teria ele ficado com ela? A razão murmurava-lhe que não, que tudo se teria desenrolado na vida de Philippe como ele tinha decidido, que teria continuado aquela luta insensata por uma Borgonha independente que não passava de um logro e que não teria evitado o cadafalso.

O cadafalso! Que maldição arrastava ele, aquele velho montão de pedras e madeira, que, após beber o sangue dos seus pais, bebera o do homem que ela amava? Tudo o que fazia parte da sua vida ia, obrigatoriamente, acabar naquele local de justiça? Talvez, se tivesse mantido os braços com força em redor de Philippe, tivesse conseguido mantê-lo junto de si, impedindo-o de ir para aquele destino atroz e inútil!

Por mais afastada que a Casa das Pervincas estivesse dos barulhos do mundo, algumas notícias chegavam de tempos a tempos, notícias essas que Péronnelle trazia do mercado, ou que Florent apanhava na cidade. Assim, souberam que no dia 18 de Agosto, em Gand, Maria de Borgonha casara com Maximiliano. Seria, um dia, Imperatriz da Alemanha e já não precisava da Borgonha que a conduta perigosa do defunto duque, aliás, afastara de si. Philippe morrera por nada, por nada, nem sequer por uma ideia. Não se luta contra a História, mas ele não quisera saber: o que ele quisera fora conservar para a ”sua” princesa a herança ancestral e Fiora, agora, já não sabia muito bem o que odiava mais, se aquela Maria que levara Philippe à perdição ou o governador de Dijon como se chamava ele? O senhor de Craon? que assinara a ordem da execução.

Os únicos instantes em que o turbilhão dos seus pensamentos lhe dava algum descanso, Fiora passava-os junto do filho. O bebé era soberbo. O leite de Marceline parecia convir-lhe às mil maravilhas e o bebé prometia ser grande, forte e talvez feliz na vida: se palrava muito, chorava pouco e às vezes nem isso, porque quando ficava colérico, os seus olhos, ainda quase sem tonalidade, permaneciam secos. Diante dele, Fiora era toda adoração e quando o tinha nos braços e acariciava com a ponta do dedo a ligeira penugem castanha da sua pequena cabeça, envolvia-a uma tal vaga de amor que esquecia, por um momento, o sofrimento. Então, demorava-se junto do berço, uma barca frágil à qual, como se estivesse em vias de se afogar, se agarrava para não enlouquecer. Quando se afastava, os pensamentos amargos regressavam.

Aproximava-se a época das vindimas quando, de repente, a província se animou. O castelo de Plessis, que parecia um pouco adormecido na ausência do seu senhor, acordou. Limpou-se a fundo e encheram-se as cozinhas de provisões, ao mesmo tempo que começavam a chegar correios com ordens e algumas carroças com móveis: numa palavra, Luís XI estava de regresso.

Soube-se que não estava longe quando chegaram os objectos da sua capela, que nunca o abandonavam. De facto, estava em Amboise para ali visitar a Rainha Carlota, sua mulher. Esta preferia de longe o seu belo castelo, erguido na colina diante da qual corria o Loire, ao castelo de Plessis. Mas o Rei nunca ficava muito tempo e dois dias depois da chegada da capela, ouviram-se soar as trombetas de prata que anunciavam a sua aproximação.

Nessa noite, pela primeira vez desde o nascimento do seu filho, Fiora saiu do seu mutismo e, em vez de subir para o seu quarto depois do jantar, como se tornara seu hábito, ficou na sala e pediu a Léonarde que ficasse com ela. Como a noite estava um pouco fresca, Florent tinha acendido a lareira com troncos de pinheiro cuja resina estalava alegremente e perfumava a grande sala silenciosa. A jovem sonhou por um instante enquanto olhava para as chamas e depois virou para Léonarde um olhar cansado.

Peço-vos, desde já, perdão pelo que vou fazer, minha querida Léonarde. Acreditai que, antes de me ter decidido, reflecti muito. A ausência do Rei deu-me algum tempo, mas, já que regressou, não posso adiar mais.

Ignoro o que pretendeis dizer-me, Fiora, mas sabei que a única coisa que conta para mim, neste momento, é justamente que, finalmente, faleis comigo. Esse longo silêncio desesperava-me. Parecia-me... que já não contava para vós, que já não era a confidente das vossas penas e...

A voz resvalou para um soluço que a velha solteirona engoliu corajosamente, mas uma lágrima brilhou-lhe, mesmo assim, nos seus olhos azuis que pareciam conservar uma juventude eterna. A mão da jovem pousou na da sua fiel companheira.

Que posso eu dizer que vós não saibais já? Pelo contrário estou-vos reconhecida por me deixardes com o meu silêncio. Não era capaz de ouvir outras vozes que não as da minha dor e dos meus remorsos.

Aquelas palavras fizeram Léonarde pular e a sua tristeza varreu-se-lhe:

Eu sabia que era isso! Remorsos? Porquê? Porque não permitistes que messire Philippe vos fechasse em Selongey onde ele não ficaria muito tempo, apressado como estava por voltar ao combate? Quereis dizer-me que isso teria mudado o abominável seguimento dos acontecimentos e que seríeis menos infeliz no seu castelo do que sois aqui?

Sem dúvida que sim, mas estaria em Selongey, como ele queria e a diferença é essa. Léonarde, o homem que mandou matar o meu marido é governador de Dijon ”pelo Rei”... e eu não me reconheço o direito de educar o seu filho numa casa dada pelo Rei.

Doce Jesus! gemeu a velha solteirona, que mudou de cor não me ides dizer que vos ides lançar, de novo, na perseguição de não sei que vingança insensata? Não me ides dizer que vai recomeçar tudo de novo como durante aqueles dois anos terríveis que passámos, vós e eu? Diante de Deus que me escuta, juro que não o poderei suportar. Não, não conseguirei!

Desta vez, ela desatou aos soluços e escondeu o rosto nas mãos, que tremiam.

Acalmai-vos, minha querida disse a jovem docemente juro-vos por tudo o que há de mais sagrado que a ideia de vingança nunca me passou pela cabeça e que a questão não é essa. Eu sei muito bem o que sofrestes e até tive alguns remorsos. Aliás, não atingi a meta do meu último projecto. Tal como Demétrios! As mós do Senhor moem lenta mas seguramente e os grãos de areia que nós somos davam provas de uma grande presunção! Mais vingança não, minha Léonarde, nunca mais!

A sério?

-Já não confiais em mim? Se ainda há pouco vos pedi perdão pelo que vou fazer, foi unicamente porque sei que sois feliz aqui e que vos sentis ligada a esta casa, aliás tal como eu. Vai ser duro separarmo-nos, mas tendes de me compreender: mesmo que não guarde rancor ao Rei por uma condenação da qual, provavelmente, não teve conhecimento, esse senhor de Craon agiu em seu nome. Ficar aqui seria aprovar tacitamente o que foi feito. O meu filho reprovar-me-ia mais tarde.

Fiora tinha-se levantado e caminhava lentamente ao longo da chaminé com as mãos no fundo das suas largas mangas. Léonarde seguia-a com os olhos numa espécie de desânimo. Depois, o seu olhar deslizou pela decoração que as rodeava e, sentindo que o seu coração se apertava, compreendeu que se lhe tornara querida e que esperara terminar ali os seus dias. Por fim, falou:

Pensais, portanto, criar esta criança no amor exclusivo pela Borgonha e no ódio pela França?

Não. É claro que não, mas...

Quando ele tiver vinte anos, há muito que a Borgonha terá passado a ser uma província francesa. O Rei Luís já não fará parte, talvez, deste mundo, mas o seu filho reinará e o vosso será um dos seus súbditos. Quereis, desde já, colocá-lo num campo rebelde que, ainda por cima, praticamente já não existe, porque se trata, para os antigos súbditos do duque Carlos, de escolher entre a França e a Alemanha? Tendes de pensar no seu futuro. Onde está esse futuro, se ofendeis o Rei devolvendo-lhe o que ele vos deu?

O Rei é um homem sábio. Compreender-me-á, certamente. É mais normal que eu leve o meu filho para Selongey.

Estais certa de que continua a existir um castelo de Selongey?

Fiora tinha-se imobilizado e fixava Léonarde com um olhar estupefacto:

Por que razão não existiria?

Porque em todos os países do mundo, quando um homem é condenado por rebelião, os seus bens são recuperados pela Coroa e as suas defesas são destruídas. Pode ser que o castelo tenha sido arrasado. E se o nosso pequeno Philippe não tivesse mais nada senão este solar que vós quereis devolver?

Esqueceis que Agnolo Nardi faz frutificar a parte da fortuna que me foi deixada? Pelo menos, terá isso!

Pouca coisa para o grande senhor que ele tem o direito de ser. Por que, em vez de atirar amanhã os vossos títulos de propriedade à cabeça do Rei Luís, não lhe apresentais a vossa queixa? Ele demonstrou-vos que podeis confiar nele e que tem, por vós, uma grande amizade. Além disso, como dizíeis ainda há pouco, é um homem sensato... mas também não podeis esquecer o que messire de Commynes nos disse por ocasião da sua visita: ele mudou e parece que, agora, tem prazer na guerra que antes detestava. Até exilou o seu melhor conselheiro...

Para Poitiers? Não foi um grande exílio.

Sem dúvida, mas o senhor de Argenton pensava regressar brevemente e nós nunca mais o vimos. Cuidado com as ofensas ao Rei, Fiora! A profundeza do seu espírito talvez esconda abismos insondáveis. Para onde pensáveis ir, agora que o Inverno está à porta? Para Selongey?

Não, já não. Primeiro para Paris, para casa dos nossos amigos Nardi, que ficariam, tenho a certeza, muito felizes por nos acolherem e que...

... e que talvez ficassem menos se chegássemos a sua casa como indesejáveis, talvez como proscritas? Para onde iríamos, então, com um bebé de algumas semanas nos braços? Esta casa é vossa, Fiora, não tendes outra! Pensai nisso quando, amanhã, falardes com o Rei!

Tendes uma lógica terrível, Léonarde e pode ser que tenhais razão, mas parece-me que Philippe, lá onde está, me manda sair daqui, grita-me que o meu lugar e o do seu filho não é perto do Rei que ele odiava.

Lá onde ele está? Que sabeis vós da vontade daqueles que deixaram este mundo? A mim, parece-me que se deve, primeiro, procurar obter a graça e o perdão para todas as faltas cometidas. Fazei como quiserdes, meu cordeirinho, é a vossa yida e a do vosso filho que está em questão e pela minha parte estarei sempre pronta a seguir-vos para onde julgardes melhor, já que o mais importante é estar ao vosso lado. Mas falta a querida Péronnelle e o marido. Eles já estão muito ligados ao pequeno Philippe. Ides partir-lhes os corações.

Naquela noite, Fiora não conseguiu dormir. Reviu vezes sem conta o que Léonarde lhe dissera sem conseguir arranjar uma solução satisfatória. Bem entendido, Léonarde tinha razão em muitos pontos, mas a mesma ideia fixa estava sempre presente: ficar naquela casa seria trair a memória de Philippe e Fiora já reprovava demasiadas coisas a si própria para acrescentar mais aquela. No entanto, prometeu a si própria usar de diplomacia para evitar que Luís XI passasse de amigo a inimigo.

Decidira ir a Plessis logo de manhã, por volta da hora em que o Rei sairia da missa. Mas no momento em que se ia pôr a caminho ouviu o ladrar de cães e as trompas que anunciavam uma partida para a caça. Portanto, ainda mal regressara a casa e já ia partir para o seu divertimento favorito que era, ao mesmo tempo, uma verdadeira paixão. Mais valia não se arriscar a retardá-lo, porque ficaria, certamente, de mau humor.

Foi, portanto, ao fim da tarde que, metida num vestido de veludo negro e com uma coifa em tela prateada sustentando as suas musselinas fúnebres, ela montou na sua mula. Seguida de Florent vestido com a sua melhor roupa, dirigiu-se para o castelo através de Pavé”, o caminho coberto de grandes pedras que ligava a cidade de Tours à morada do soberano. Se a caça tivesse sido boa, a jovem tinha todas as hipóteses de ser recebida com afabilidade. Fosse como fosse, era normal que aparecesse para saudar o Rei, felicitando-o pelo bom regresso a casa. E Fiora partiu sem olhar para trás, para não ver Léonarde e Péronnelle, esta com o bebé nos braços, que a viam desaparecer. Os olhos vermelhos de Péronnelle, posta, sem dúvida, ao corrente por Léonarde, causavam-lhe uma impressão penosa e aborreciam-na ao ponto de, ao chegar à primeira cerca murada do castelo de Plessis-lès-Tours, quase virar a mula e regressar a casa, perguntando a si própria que direito tinha de causar tanta dor a gente tão boa. Mas aquilo fazia parte da sua natureza, ir até ao fim das suas decisões e, depois de uma curta pausa, avançou para as portas flanqueadas por duas torres ameadas guardadas por arqueiros da Guarda Escocesa.

A amizade já antiga que ligava Fiora ao sargento Douglas Mortimer era conhecida de todos e, longe de a impedirem de entrar, os soldados saudaram a jovem acrescentando aquele grande sorriso que todos os homens, normalmente constituídos, reservam para uma bela criatura. Reinava, no pátio, a actividade típica de uma mudança. De um lado estavam os alojamentos da Guarda, onde os pajens punham ordem, ao mesmo tempo que algumas raparigas do serviço doméstico levavam a roupa branca para a lavarem. No lado ocidental, perto da pequeníssima capela dedicada a Notre-Dame de Cléry, a que o Rei chamava a sua ”boa senhora”, ou a sua ”querida amiga”, porque era a sua preferida, os soldados, encarregados de guardar a grande torre quadrada que se erguia afastada das muralhas e à qual chamavam a ”Justiça do Rei”, aqueciam-se ao sol daquele fim de tarde ou jogavam aos dados. Do outro lado, uma outra igreja, dedicada a São Matias, servia de paróquia à população do castelo e de capela ao pequeno convento encerrado dentro das suas muralhas. Poder-se-ia dizer que se estava na praça de uma aldeia, mas essa aldeia morria junto de grandes e profundos fossos, transpostos por uma grande ponte levadiça que dava acesso ao pátio de honra, centro do castelo.

Este, que se via à esquerda ao entrar, compunha-se de uma grande casa ornada com uma galeria de arcadas belamente esculpidas suportando um terraço cheio de estátuas, para o qual se abriam umas altas janelas duplas. Umas elegantes águas-furtadas de empenas floridas animavam o grande telhado de ardósia e coroavam soberbamente os aposentos reais, que não tinham, na verdade, nada a ver com as descrições sinistras que os inimigos davam do Rei. Uma torre octogonal, encimada por uma alta guarita, fechava a escadaria e em frente das janelas dos aposentos abriam-se os jardins e os pomares sempre admiravelmente tratados, porque recebiam a água, assim como todo o castelo, por meio de tubos de chumbo ou de porcelana ligados à fonte de Carre. No entanto, tanto naquele pátio, como no precedente, havia um poço e um bebedouro.

O local, contrariamente ao que o precedia, era tranquilo, silencioso e estava quase deserto. O Rei, quando estava em Plessis, queria, antes de tudo, a calma necessária para poder reflectir. Apenas estavam de guarda, na base da escadaria, dois arqueiros e Fiora, que procurava Mortimer, aprestava-se para lhes

1 Rendo aqui homenagem a M Sylvain Livernet, cuja bela obra As torres no tempo de Luís XI me foi de grande utilidade para esta parte do livro


perguntar se sabiam onde ele estava quando viu aparecer Étienne Lê Loup, que se dispunha a atravessar o pátio. Reconhecendo a jovem, aproximou-se dela e saudou-a cortesmente:

O nosso sire partiu para a caça esta manhã, muito cedo, dona Fiora. Certamente não o ireis encontrar aqui.

Eu sei. Ouvi-o partir, mas penso que não deve demorar e é esse regresso que vim esperar, para o saudar e saber notícias da sua saúde.

Se levarmos em linha de conta a vida esgotante que tem tido estes últimos meses, é excelente. Aliás, vedes bem que, mal chegou, partiu para a caça. Esteve privado dela este tempo todo. Mas aconselho-vos a regressardes a vossa casa, porque o Rei não voltará esta noite.

Foi assim para tão longe?

Bastante. Foi para a floresta de Loches. Passará a noite no castelo dessa cidade. Talvez, até, lá fique vários dias, se os batedores fizeram bom trabalho.

Loches! Aquele nome soou sinistramente na memória de Fiora. Fora para essa fortaleza que tinham levado, metido numa jaula, Mathieu de Frame e talvez o Rei, a propósito da caça, fosse lá para o interrogar? Havia lá outros prisioneiros, sabia-o, a começar por frei Inácio Ortega, o monge castelhano que a perseguira com ódio e que ela impedira, mesmo à justa, de matar Luís XI em Senlis. Tinham-no mandado para Loches, também ele numa jaula, para expiar o seu falhanço. Estava lá, também, um cardeal cujo nome Fiora esquecera, mas parecia que o Rei tinha feito de Loches o lugar predilecto das suas terríveis justiças. Os homens eram ali tratados como feras, talvez pior ainda, e se Fiora não se preocupava com o destino do monge espanhol, o seu coração apertava-se ao recordar o jovem escudeiro acorrentado miseravelmente sob os risos e as injúrias de uma multidão tornada ainda mais cruel pelas libações de um dia de festa.

Tenho de falar com o Rei! disse ela, por fim. O melhor seria, talvez ir a Loches?

A jovem viu os olhos redondos do camareiro ficarem quase ovais devido ao estupor. O homem gaguejou:

Ir... a Loches?

Mas não teve tempo de continuar e dobrou-se em dois para uma profunda saudação, ao mesmo tempo que uma voz jovem e doce dizia:

Seria uma loucura, Madame, se me permitis a observação. O Rei nunca recebe ninguém quando lá vai, porque é a prisão dos prisioneiros políticos e quem ousa infringir as suas ordens incorre na sua cólera. Conheceis a sua cólera?

A voz pertencia a uma criança, uma rapariguinha que talvez tivesse treze ou catorze anos, por trás da qual uma mulher alta, vestida como uma dama da corte, se mantinha com as mãos no regaço numa atitude plena de dignidade. Quanto à pequena, Fiora, apiedada, pensou que nunca tinha visto uma adolescente mais desgraciosa... nem mais imponente. Sob o veludo azul-pavão do vestido bordado com pequenas flores de lis prateadas, os ombros pareciam desiguais e o corpo contrafeito. O rosto, de nariz muito grande, boca triste e olhos ligeiramente globulosos, parecia ter-se enganado de corpo e pertencer a uma mulher bastante mais velha. Mas quanta doçura e luz parecia ter aquele olhar castanho, quase doloroso. Não sabendo dizer quanto a impressionava aquela rapariguita, Fiora hesitava na conduta a seguir quando a dama que a acompanhava a informou, não sem uma certa severidade.

Inclinai-vos, Madame! É Madame Joana de França, duquesa de Orleães, que vos concede a honra de vos dirigir a palavra!

Fiora, confusa, mergulhou de imediato numa vénia. Portanto, aquela jovem era a filha mais nova do Rei, com quem, no ano anterior, o Rei obrigara o jovem duque de Orleães, seu primo, a casar, confiando cinicamente a um dos seus cortesãos que desejava esse casamento porque os filhos do jovem casal ”não lhes custariam nada a criar”. Uma maneira como qualquer outra de acabar com o ramo rival do velho tronco dos Capetos. Péronnele contara, numa noite de Inverno, a história com grandes pormenores e grandes suspiros e as suas ouvintes não tinham podido descobrir se ela lastimava mais o jovem duque de Orleães, que diziam belo e bem-feito, forçado a casar com um camafeu daqueles, ou a pobrezinha, cujo sangue real não a poupara à pior das humilhações: a de ser imposta à força a um rapaz que, diziam, amava com toda a sua alma. A jovem passara a sua infância no castelo de Linières, em Berry, onde ninguém, nem sequer a sua mãe, a ia ver e depois do seu casamento regressara para lá, confiada à guarda das Linières que a tinham criado. Era raro ser vista nos castelos reais, dos quais não gostava, aliás, porque sabia que a sua presença não era ali desejada.

Madame murmurou Fiora suplico a Vossa Alteza que perdoe a minha ignorância. Quanto à cólera do Rei, nosso sire, acreditai que a temo tanto como outra pessoa qualquer, mas desejo dar-lhe a saber factos de uma urgência tão grande...

Que estais pronta a afrontar todas as cóleras do mundo, mesmo a sua? Dizeis-me quem sois? Se já vos conhecesse, lembrar-me-ia, porque sois muito bela. Sois estrangeira, talvez?

De Florença, Madame. O meu nome é Fiora Beltrami e...

Ah! Já sei quem sois! Falaram-me de vós! exclamou Joana com um sorriso encantador que lhe devolveu a idade e lhe iluminou o rosto ingrato. O Rei, meu pai, tem-vos muita estima e amizade. Mas... estais de luto?

Estou. Pelo meu marido, o conde Philippe de Selongey, morto no cadafalso há dois meses em Dijon, por rebelião. Era... súbdito do defunto duque Carlos.

Oh! Perdoai-me se vos magoei, deveis sentir-vos muito infeliz. Sois vós que habitais o solar de La Rabaudière?

Sou. E desejava que o nosso sire me permitisse devolver-lho. Acabo de ter um filho e...

Não me expliqueis nada. Creio que compreendi. Tenho pouco crédito, infelizmente, e não posso fazer nada por vós. Tudo o que posso oferecer-vos é um conselho, se o quiserdes aceitar.

Reconhecidamente, Madame.

Não afronteis o meu pai neste momento! Ele ainda está muito agitado por causa da difícil conquista dos países do Norte. Como vedes, não conseguiu ficar aqui mais do que algumas horas. Dai-lhe tempo a que reencontre a serenidade... e sobretudo a sabedoria. Dentro de alguns dias tudo estará melhor e podereis, então, falar com ele. Mas, peço-vos, tende cuidado.

1 O jovem duque viria a ser o Rei Luís XIII e repudiaria Joana, no decurso de um processo de divórcio mortificante, para casar com Ana de Bretanha. Joana tornar-se-ia religiosa e fundaria a Ordem da Anunciada. O Papa Pio XII faria dela, mais tarde, Santa Joana de França.


. Porquê?

Porque ides, sem dúvida, ofendê-lo. Já lhe aconteceu ter recuperado um presente depois de a pessoa, a quem o dera, o ter desiludido, mas creio que nunca ninguém lhe devolveu um espontaneamente. Pode ser que não goste do gesto. Não sejais brusca e aproveitai esta espera para reflectir!

já reflecti muito, Madame.

Nesse caso, é a Deus que tendes de pedir conselho. Quanto a mim, rezarei por vós.

Sem dar tempo a que Fiora lhe agradecesse, a pequena princesa ia afastar-se num passo desigual que provocou um aperto no coração da sua interlocutora quando, subitamente, se virou:

Eu contava regressar a Linières amanhã, mas ficarei ainda alguns dias se me prometerdes que não sereis precipitada.

Vossa Alteza consentiria em ajudar-me?

Já vo-lo disse: eu tenho poucos poderes, mas gostaria de os pôr ao vosso serviço. Regressai a vossa casa e, sobretudo, ficai quieta até que vos mande chamar. Prometeis?

Prometo... mas não sei como dizer-vos...

Não! Não me agradeçais. Sou eu que, pelo contrário, o devo fazer.

Como Fiora, visivelmente, não compreendesse, Joana acrescentou com o belo sorriso que fazia esquecer a sua fealdade:

Acabais de me provar que se pode ser ao mesmo tempo bela como o dia e profundamente infeliz. Quando tiver vontade de me queixar, pensarei em vós!

A princesa pousou a sua pequena mão, frágil como a pata de uma ave, na de Fiora que quase se ajoelhou numa reverência e depois, tomando o braço de Mme. de Linières, dirigiu-se para o pátio inferior, devidamente saudada pelos guardas das portas. Fiora viu-a dirigir-se para a capela de Notre-Dame de Cléry, onde entrou.

Quando pensamos numa princesa disse Florent, que a seguira com os olhos imaginamos sempre uma dama alta e bela, soberbamente vestida e adornada. Não imaginava que O Rei pudesse ter uma filha tão horrível.

Calai-vos! Não sabeis o que dizeis! Horrível? Com aquele olhar luminoso, com aquele sorriso que parece conter toda a doçura do mundo? Estou certa que Deus não é da vossa opinião! Regressemos!

Como tinham assistido à sua partida, Léonarde e Péronnelle espreitavam o seu regresso. Quando souberam que Fiora não pudera encontrar-se com o Rei, tiveram muita dificuldade em esconder o seu alívio. Um dia ou dois não era grande coisa, mas era, de qualquer maneira, um certo tempo. E como o encontro com a jovem duquesa de Orleães fora reconfortante. Fiora prometera retardar a sua iniciativa até que ela a autorizasse, ou qualquer coisa parecida. Léonarde recobrou a coragem.

Algo me diz que não vamos deixar esta querida casa tão cedo confiou ela a Péronnelle. Tenho esperança de que o nosso sire saberá convencer dona Fiora a não se ir embora e que vamos passar juntas o mais delicioso dos Invernos.

Achais que sim?

Sim, acho. O que eu temia, acima de tudo, era que a nossa jovem castelã caísse em cima do Rei como um raio e provocasse o seu ressentimento. Mas, agora, acho que as coisas vão correr pelo melhor e que ficaremos todas juntas.

A pobre Léonarde pensaria muitas vezes naquelas poucas frases plenas de esperança, no decurso das intermináveis noites sem sono que iriam ser o seu calvário durante esse mesmo Inverno que esperara ser tão doce.

Sob as cortinas de brocado florido que rodeavam o seu leito, Fiora dormitava. Apoderara-se dela uma grande fadiga após o seu regresso de Plessis. Depois de ter aceitado de Péronnelle um caldo de legumes, vira Marcelline dar o seio ao pequeno Philippe e retirara-se depois sem aceitar que a ajudassem a despir-se. Uma vez mais, estava prisioneira daquele grande desejo de solidão que tanto desolava Léonarde, sendo-lhe quase insuportável a ideia de falar, escutar ou responder. Parecia-lhe ser uma pequena palha, uma rolha de cortiça transportada nas águas tumultuosas do destino, sem que fosse concedida à sua vontade a mínima hipótese de se exprimir. Não havia outra coisa a fazer senão encontrar um pouco de repouso e, atirando com a roupa à passagem sem se preocupar onde caía, meteu-se entre os lençóis frescos que cheiravam a íris e deixou o seu corpo descontrair-se até que a noite, insinuando-se por entre os caixilhos em cruz da sua janela, transformou as cores vivas do tapete de Smyrne estendido no chão de pedra numa amálgama acinzentado e invadiu o quarto, deixando penetrar nele uma frescura anunciadora de Outono.

Fiora não permitira que acendessem nenhuma das lareiras sempre preparadas em todas as chaminés da casa, assim como a lamparina colocada na sua cabeceira. Não lhe apetecia ler, se bem que o livro junto dela fosse um dos discursos de Platão de que ela mais gostava desde a sua infância estudiosa. De que lhe servia a sabedoria grega no fundo de um solar perdido entre o rio e a floresta, quando o seu coração e o seu espírito flutuavam à deriva sem saberem para que lado se virarem? A única coisa viva, naquele quarto, era a brisa da noite que passava por um dos vitrais abertos da sua janela e lhe trazia o odor a folhas molhadas que uma chuva recente estendera pelo jardim.

Um após outro, os odores familiares da casa apagaram-se. Fiora ouviu Florent tirar água do poço do pátio para que Péronnelle a tivesse quando, de manhã, acendesse o fogo da cozinha. Depois foi o passo de Étienne, que fazia uma última ronda e assobiava aos cães antes de se ir deitar nos alojamentos da criadagem; o das portas que Léonarde fechava uma após outra, aferrolhando-as; o estalido ligeiro da escada de madeira do segundo andar sob o peso de Péronnelle, que se encaminhava para o seu quarto, seguido mais leve do de Florent. Por fim, o ligeiro ranger da sua própria porta quando Léonarde a entreabriu para se assegurar de que Fiora dormia. No quarto vizinho, o bebé chorou um pouco e Marcelline cantarolou alguns compassos de uma velha canção de embalar para o adormecer, enquanto Fiora ouvia o leito ranger sob o peso da ama. Terminara.- a casa cessara de viver para deixar entrar os sons nocturnos dos campos que a rodeavam. Tudo estava em ordem, tendo cada um dos habitantes do solar levado consigo, para a depositar, a sua carga de preocupações e penas até ao regresso do dia. Apenas Fiora não depositara nada, se bem que tivesse tentado com todas as suas forças. Ter-lhe-ia feito bem esquecer as penas, os deveres e as obrigações que a sua viuvez e a honra do nome que usava lhe criavam, já que não era o que fora até ali: uma mulher muito jovem que não tinha ainda vinte anos, com um corpo feito para o amor e que nunca mais conheceria as carícias nem o sol vermelho do prazer, uma alma demasiado atormentada que queria viver, mas que não tinha a coragem para o fazer. Que esperar de uma vida onde já não haveria o riso de Philippe, as mãos de Philippe, a boca de Philippe, o corpo de Philippe, cujo peso imperioso e doce ela sentia ainda, ao fechar os olhos, quando ele a obrigava a abrir-se...

O pensamento da morte voltou-lhe à cabeça, como muitas vezes desde que reencontrara Mathieu e, nessa noite, impunha-se-lhe com mais força do que nunca Se desaparecesse, os que amava, os raros seres que a vida lhe deixara, poderiam continuar a viver naquela casa onde se sentiam tão bem. Enterrá-la-iam na ilha, perto do priorado de Saint-Côme, para que pudesse repousar em terra bendita e Léonarde iria pôr-lhe na campa, todas as manhãs, ramos de lilases, de peónias, de rosas e madressilvas, de cravos, de pervincas ou de campainhas-de-inverno, conforme as estações. Nas suas mãos, o pequeno Philippe ficaria bem, seria bem educado e, certamente, o Rei não lhe tiraria a sua protecção. Sim, seria a melhor das soluções, na condição de a morte vir naturalmente. Um suicídio só atiraria o opróbrio para cima daqueles que amava, a menos que a sua morte parecesse um acidente? Os pescadores da região diziam que o Loire tinha turbilhões estranhos, correntes violentas e fundões profundos. Mais de um imprudente tinha ali perdido a vida ao banhar-se.

Evidentemente, já não se estava na estação dos banhos. As manhãs já estavam frescas e brumosas, apesar de os pôr do Sol guardarem um pouco de calor nas suas cores púrpuras e douradas.

Fiora fechou os olhos para melhor saborear a ideia que tinha daquela maneira de deixar este mundo e não se apercebeu que, à força de se imaginar naquela prostração fatal, acabara por adormecer...

Acordou-a uma angústia súbita, que a fez sentar-se no leito com o coração a bater e a fronte cheia de suor. O quarto estava obscuro, mas levantara-se vento e o batente da janela batia contra a parede. Fiora atirou para o lado o lençol que tivera apertado contra o peito e quis levantar-se para ir fechá-la. Não teve tempo de pôr os pés no chão: o choque sufocante de um cobertor abateu-se sobre ela e sentiu, de imediato, uns braços rodeando-a e esforçando-se por segurá-la, ao mesmo tempo que uma corda a atava. A jovem debateu-se com uma energia selvagem e gritou:

Socorro!... Ajuda!... Aaaaah!

Procurando a sua garganta às apalpadelas, uns dedos sufocaram-lhe os gritos, mas a jovem ouviu outros que se faziam eco dos seus. Ouviu Marcellinne e também Léonarde, gritando e suplicando ao, ou aos agressores, que a libertassem. Houve, também, um ruído de luta seguido de um gemido de dor e depois uma voz áspera:

Estai quietas, ou esgano o miúdo como se fosse uma galinha!

Não! uivou Léonarde! O bebé não, o bebé não... por amor de Deus!

Deixai Deus em paz e dizei ao homem que vá fechar os cães se não quer que os degolemos. Um de nós vai acompanhá-lo para que não se afaste...

Através da espessura do cobertor, Fiora ainda ouviu a voz aguda de Péronnelle que berrava palavras sem nexo e, como a pressão que a martirizava pareceu abrandar, tentou desembaraçar-se daquele sufoco.

A jovem quis gritar de novo, mas, ao primeiro som, os dedos que lhe tinham abandonado a garganta apertaram-se, estrangulando-lhe o grito. Ela sufocou, ao mesmo tempo que um véu vermelho lhe caía diante dos olhos. Com um desespero brutal, pensou que ia morrer ali, estrangulada por um bandido qualquer, se bem que a voz que ouvira fazer ameaças, com um ligeiro sotaque estrangeiro, não lhe fosse desconhecida. Era demasiado estúpido acabar assim! Fiora encontrou forças para um último gemido antes de cair numa inconsciência total.

A água fria que lhe atiravam ao rosto acordou Fiora. A jovem tossiu e quis levar as mãos ao pescoço que lhe ardia, mas a corda que lhe manietava os braços afastados impediram-na. Abrindo penosamente os olhos, viu que se encontrara num pequeno quarto obscuro e inteiramente feito de pranchas de madeira que lhe davam o ar de uma caixa. Uma vela, pousada sobre um tonel, escorria cera e deitava fumo exalando um odor acre e, cortada num dos lados, uma pequena abertura quadrada deixava passar um pouco de bruma. Fiora estava deitada numa enxerga,t ainda vestindo a camisa com que se deitara e um cobertor talvez o mesmo com que a tinham atado cobria-a. A água correu-lhe ao longo das faces e do pescoço, molhando-lhe desagradavelmente os cabelos. Fiora virou a cabeça para ver de onde ela vinha e deixou sair um grito de pavor, ao mesmo tempo que tentava afastar-se o mais possível, o que via não era um rosto, antes um longo bico branco e uns grandes olhos bulbosos raiados de vermelho...

Quem sois vós? Que quereis?

Conversar, minha bela, conversar, simplesmente. Temos um longo caminho para percorrer, os dois, que será como tu decidires: relativamente agradável... ou muito penoso. De qualquer maneira, serás vigiada de perto e não te darei a menor hipótese de evasão.

Mais uma vez, quem sois e para onde me trouxestes? Dir-se-ia que estamos num barco?

Com efeito, o quadrado de madeira que encerrava a sua enxerga mexia ligeiramente e ouvia-se, no exterior, um ligeiro estremecimento, que podia ser provocado pela água contra um casco.

Bem adivinhado! Estamos, de facto, numa barca que desce o Loire, uma honesta barca de mercador, na qual ninguém terá a ideia de nos procurar, admitindo que somos procurados! O tom sarcástico do homem-pássaro passou, como uma grosa, pelos nervos de Fiora: Os da minha casa? Que fizestes deles? O meu filho não está... Morto? Por quem me tomais? Quanto aos da vossa casa, como dizeis, à excepção de um jovem energúmeno de cabelos desgrenhados que um dos meus homens feriu, portaram-se tão bem quanto possível, amarrados como salsichas. Espero, para bem deles, que alguém os liberte um dia destes.

Florent está ferido? Gravemente?

Não me façais mais perguntas! Eu não sei nada. E se vos posso dar um conselho, é que esqueçais essa gente. Passar-se-á muito tempo até que os possais ver de novo... se chegardes a vê-los, um dia!

Fiora torceu-se para tentar libertar as mãos, mas conseguiu, apenas, aumentar a dor. O homem mascarado porque era apenas uma daquelas máscaras que os médicos usam em tempos de peste inclinou-se para ela:

Se vos portardes bem, liberto-vos as mãos. Aliás, já vo-lo disse, sereis vigiada constantemente.

Nesse caso, por que razão me atastes?

Para que compreendêsseis melhor o que arriscais! Erguendo com uma mão o cobertor que cobria a jovem,

o homem pegou num punhal com a outra mão e rasgou a camisa de alto a baixo. O tecido sedoso deslizou de ambos os lados, revelando o corpo de Fiora na sua nudez total. Instintivamente, ela fechou os olhos com força para não ver mais nada: o que era uma reacção infantil. Não via nada, com efeito, mas sentia... Sentia os dedos duros do homem em redor dos seios e ao longo do ventre e mais abaixo ainda, entregues a uma exploração indiscreta. Ela torceu-se para escapar àquelas mãos que tomavam posse do seu corpo e gritou:

Deixai-me! Proíbo-vos de me tocar.

Cala-te, senão amordaço-te! Tu és bela, pequena, mas isso já eu sabia. Portanto, decidi o seguinte, porque devo entregar-te viva e no melhor estado possível: ou te mostras submissa, tranquila, e ficarás apenas fechada em minha casa. Ou me causas problemas, e ficarás acorrentada na carraca que nos espera em Nantes e entregar-te-ei aos meus homens todas as noites. Eles são dez, entre os quais se encontra um tuaregue e um negro do Sudão. Mas, está claro, serei o primeiro... e, por todos os diabos do inferno, pergunto a mim próprio por que não hei-de começar já! A mim o prémio!

O homem arrancou a máscara que lhe servira para assustar as pessoas do solar e Fiora, sem uma verdadeira surpresa porque esperava mais ou menos aquilo desde há alguns instantes, reconheceu o estrangeiro do adro de Saint-Martin, aquele que Florent vira rondar a casa. A jovem achara-o feio e inquietante por ocasião do primeiro encontro, mas desta vez o seu rosto, inflamado pela luxúria, pareceu-lhe a imagem do demónio. Compreendendo que ele ia violá-la sem demora a despeito do que dissera, ela lançou um longo grito que deve ter ecoado nas duas margens do rio. Furioso, ele aplicou-lhe uma mão brutal na boca, que ela mordeu. Por sua vez, ele gritou e depois, com todas as forças, esbofeteou-a várias vezes com precisão, para que as bofetadas fizessem o maior dano possível.

A cabeça de Fiora ia e vinha. Já não gritava, gemia, e as lágrimas de dor corriam-lhe pelo rosto abaixo, que ia ficando cada vez mais ardente. E depois, algo aconteceu. Alguém entrou na cabina e esmurrou o seu atormentador. Meio atordoada, a jovem, primeiro, não viu nada senão uma sombra que lhe pareceu gigantesca através das lágrimas. Depois, dessa sombra saiu uma voz extraordinária. Profunda como o mar, tinha a espessura untuosa de um bálsamo.

O mestre disse: viva e de boa saúde! Nada de ferimentos e nada de maus tratos, senão, não paga. E olha! Ela está a sangrar.

Ela mordeu-me, a galdéria. Gritou, gritou...

Domingo ouviu. Deixa-a e pensa na recompensa. Esta mulher vale muito ouro. Vai!

A porta rangeu de novo para saudar a saída do estrangeiro. Então, Fiora viu que aquilo que tomara por uma sombra era uma espécie de colosso negro cujo rosto e mãos se distinguiam mal das roupas sombrias e do turbante cor de borra de vinho que trazia. Quando ele se aproximou do leito, a chama da vela revelou o branco-leitoso dos grandes olhos castanhos e o brilhante dos dentes que apareciam entre uns lábios parecidos com duas almofadas avermelhadas. O homem olhou por um instante para a jovem atada à enxerga, como a vítima de um sacrifício qualquer monstruoso e encolheu os ombros. Os olhos de Fiora não eram outra coisa senão uma interrogação angustiada. A jovem tremia ao mesmo tempo de frio e de medo, porque aquele rosto sombrio não tinha nada de tranquilizador, mas as suas mãos tinham muito de doçura quando ele a cobriu com os dois bocados da camisa e com o cobertor. Em seguida, tirando do grande cinto que lhe envolvia o ventre um longo punhal de lâmina curva, cortou a corda que lhe atava os pulsos. Fiora suspirou de alívio e massajou os pulsos doridos antes de meter os braços por baixo do calor do espesso tecido lanoso.

- Obrigada murmurou ela e obrigada também pelo que fizestes há um instante. Dizeis-me quem sois e qual...

Não fales! Dorme!

Como posso dormir na situação em que me encontro?

Não compreendeis...

Vais dormir. Com isto.

O negro tirou da sua túnica uma pequena caixa de prata, fazendo sair dela uma pílula que meteu na boca da jovem. Em seguida, pegando num jarro de água pousado a um canto, fê-la beber um gole.

Dorme! repetiu ele Domingo fica aqui.

A droga devia ser forte porque, mal a engoliu, Fiora sentiu o corpo distender-se sob a influência de um torpor que não era nada desagradável. Antes de fechar os olhos, teve tempo de ver o negro sentar-se de pernas cruzadas perto da estreita abertura por onde entrava o ar e fazer deslizar por entre os dedos as contas de um pequeno rosário de âmbar.

Quando reabriu os olhos após um tempo impossível de avaliar, a estreita cela de madeira estava iluminada por um raio de sol vermelho e horizontal que anunciava o ocaso. O homem negro desaparecera e Fiora viu que estava só. Endireitando-se, descobriu roupas pousadas a seus pés e apressou-se a vesti-las. Uma camisa e uns calções de tela de Flandres de boa qualidade, um vestido de tiritana grená com um cinto de couro entrançado e mangas abotoadas e, por fim, meias e uns sapatos que ela reconheceu por serem os mesmos que descalçara na véspera, quando se deitara. Estavam longe de ser elegantes, mas, vestida assim, Fiora sentiu-se melhor e, sobretudo, mais segura. Um véu e um grande manto negro com capuz completavam o equipamento. Deixou estes de lado e aproximou-se da abertura que deixava entrar a luz para aspirar o ar tépido já carregado de odores marinhos.

A barca continuava a avançar, empurrada por umas longas varas cuja entrada regular na água ela podia ouvir e pela corrente

Tecido grosseiro, meio lã meio algodão.

do rio. Uma margem coberta de ervas altas e orlada de caniços desfilava lentamente à altura dos seus olhos. Estava muito próxima e Fiora sentiu-se, irresistivelmente, tentada a tocá-la, a juntar-se-lhe. Tinha de arranjar um meio de deixar aquele barco e escapar àqueles inimigos desconhecidos que a levavam sabia Deus para onde. Talvez para África? O homem, no dia anterior falara de uma carraca à espera em Nantes e o negro Domingo dissera que ela valia muito ouro. Seria possível ter sido raptada para ser vendida como escrava a um sarraceno qualquer?

Para avaliar as suas hipóteses, a jovem aproximou-se da porta. Esta estava fechada à chave, claro, mas não parecia muito sólida. Tinha aquele aspecto frágil, um pouco vacilante, dos batentes que só estão seguros por um cadeado. Talvez fosse possível soerguê-lo introduzindo um objecto comprido e fino na ranhura? Fiora começou uma inspecção minuciosa à sua prisão, na esperança de encontrar o que precisava para quando chegasse a noite.

Evidentemente, não sabia para onde dava aquela porta, nem o que se encontrava por trás dela. O falso mercador falara em dez homens, mas Fiora precisava daquela actividade, que lhe permitia sonhar com a sua libertação, para não cair, de novo, no desespero.

A estrutura do leito era constituída por umas dobradiças de ferro lisas, das quais uma era móvel. Ajoelhada, Fiora tentava arrancá-la quando a voz profunda de Domingo a fez estremecer. A despeito do seu tamanho e peso, o negro entrara sem fazer mais barulho do que um gato:

Vais ferir as mãos para nada, jovem! Não tens qualquer hipótese de fuga. Come, antes, o que Domingo te traz!

O homem segurava na mão uma escudela de onde se escapava um odor de carne com especiarias, que recordou à cativa que tinha fome. Docilmente, ela sentou-se no leito para receber o que lhe traziam e devorou sem se fazer rogada o guisado de carne e rabanetes contido no recipiente. Em seguida, bebeu de um trago uma malga de vinho que lhe devolveu as forças e o gosto pelo combate que ela julgava perdido, acabrunhada como estava pela dor e pelo desgosto. Então, ergueu os olhos para o gigante negro que a observava:

posso, enfim, fazer algumas perguntas? disse ela.

Que queres saber?

Primeiro, quem sois?

Ninguém. Chamam-me Domingo, mais nada.

De facto, não é muito. O homem da noite passada, aquele que tinha uma máscara de pássaro, branca, e que vós impedistes de... Qual é o nome dele?

Ele próprio to dirá, se achar que o deve fazer. Domingo

só te pode dizer que é o chefe.

Lembrando-se da maneira como Domingo o expulsara da cabina, Fiora pensou que era um chefe muito esquisito, mas, sentindo que não saberia mais nada, mudou de assunto.

Por que me raptastes? Para onde me levais?

O negro abanou a cabeça coberta com o airbante, encolheu os ombros num gesto de impotência e não respondeu. Pegando nos utensílios que tinham servido para a refeição, dirigiu-se para a porta. Quando ia a sair, murmurou:

Se ele to quiser dizer, dir-to-á. Entretanto, repousa!...

Já repousei! exclamou Fiora, que começava a perder a paciência. Vai dizer-lhe que quero vê-lo!

Não tens interesse nenhum em dizer: quero!

As horas passaram, intermináveis para quem não tinha meio de as medir. A tarde caiu e veio a noite. Encostada à estreita janela, Fiora viu que a margem se afastava, sem dúvida porque o rio se alargava. Um odor a lodo dominava, agora, o da água. De tempos a tempos, ouviam-se umas vozes que se exprimiam numa língua desconhecida. Exausta, Fiora acabou por se deitar na enxerga, onde se encolheu depois de se ter envolvido na capa. Ignorava a localização daquela cidade de Nantes onde os esperava o navio de alto mar. Sabia apenas e por acaso que era um porto e que não estava nas terras do Rei de França, antes nas do duque da Bretanha. O que queria dizer que o socorro seria cada vez mais difícil, senão impossível.

Um pouco antes da alvorada, Domingo veio acordá-la. A barca Já não avançava, girava um pouco. À luz da vela, Fiora viu que a abertura da sua cela fora tapada com umas tábuas talhadas de Propósito para caberem no buraco.

Estamos em Nantes? perguntou ela.

Não faças perguntas. Vou tapar-te os olhos e depois levo-te. Não havia meio de recusar, já que a relação de forças era desigual. Fiora deixou que a vendassem, sentindo-se, em seguida, erguida do solo e transportada como um simples fardo. Através do tecido da venda apercebeu vagamente a luz e o calor de um archote. Ouviu algumas vozes, exprimindo-se sempre na mesma língua desconhecida, entre as quais a do falso mercador. Pela entoação, compreendeu que o homem dava ordens.

A viagem durou um certo tempo. Ao deixar a barca à vela, Fiora sentiu que a depositavam numa barca mais pequena cujas pranchas rangiam um pouco. Em seguida, Domingo voltou a pegar nela, mas, em vez de a segurar nos braços, o que era relativamente confortável, atirou-a para o ombro como um saco de farinha e subiu uma escada que devia estar colocada no flanco do barco. Ao odor do lodo juntavam-se agora os da madeira húmida e do alcatrão. Ouviu-se um som de passos sobre as pranchas de um pontão, depois uma escada, uma porta a abrir-se e, finalmente, Fiora foi depositada sobre um colchão ou almofadas que lhe pareceram fofas depois da esteira da barca e cuja tela deixava perceber algumas pontas de palha. A jovem esperava que lhe tirassem a venda, mas, pelo contrário, Domingo atou-lhe cuidadosamente as mãos e os pés. Ela protestou:

Por que me atais? Eu não me defendi, parece-me, e não gritei!

Sem dúvida e dirás a Domingo se te ato com muita força, mas não tenhas medo, não será por muito tempo. É só até que o barco esteja longe de terra. Domingo virá libertar-te e dar-te-á de comer.

Parece-me que isso ainda vai demorar. Quando partimos?

Em breve. A maré está a chegar! Fica tranquila. Domingo fica junto da porta.

Só, Fiora, a despeito das ordens do grande negro, retorceu-se para se tentar libertar. Mas não era fácil: as mãos estavam atadas atrás das costas e se bem que Domingo não as tivesse atado com muita força, os nós estavam bem-feitos e quanto mais Fiora puxava, mais eles pareciam apertar-se. Mas, ao agitar-se assim, a venda deslizou-lhe dos olhos e, se bem que não lhe tivessem deixado qualquer luz, viu que se encontrava, como supusera, no castelo da popa de uma carraca.

Aquele tipo de navio era familiar à jovem. Os dois barcos do seu pai, o Santa Maria del Piore e o Santa Madalena eram do mesmo género e ela visitara-os muitas vezes, conhecendo-os, assim, a fundo. Sabia que aqueles navios, dos quais muitos eram construídos em Génova e Veneza, tinham duas pontes e dois castelos, à maneira das galeras romanas. O da popa, um pouco mais elevado do que o da proa, encerrava as câmaras do capitão e dos passageiros ilustres. Fora para uma dessas que a tinham transportado e a jovem sabia como se abria o painel de pequenas vidraças com caixilhos de chumbo que dava para a parte de cima do leme. Se conseguisse libertar-se, podia atirar-se à água a despeito da altura e nadar para longe, para o porto, e não ser apanhada. Depois, seria uma questão de sorte...

Como o seu corpo magro tinha toda a ligeireza da juventude, a jovem conseguiu, não sem dor, é verdade, fazer passar o torso e as pernas pelo anel formado pelos braços e depois, tendo levado as mãos à altura da boca, atacou os nós com os dentes. O dia estava a nascer e acinzentava o vitral. Na ponte, ouviu-se o pisar dos pés nus da equipagem correndo para as manobras. Ouviu-se o longo ranger de um cabrestante. O barco moveu-se sob o assalto da maré e puxou a âncora como um cão puxando a trela. As ordens sucediam-se, berradas por uma forte voz italiana. Fiora apressou-se e conseguiu reter um grito de alegria quando, por fim, as cordas cederam. Libertar as pernas foi obra de uns momentos e, saltando da cama para o chão, correu para a janela, procurando abrir o ferrolho, infelizmente um pouco enferrujado, que a fechava. Em baixo, apercebeu a água cinzenta e mais longe uma floresta de mastros por trás dos quais subiam os telhados pontiagudos de uma cidade, as flechas das igrejas e as torres de um poderoso castelo.

Fiora enervava-se, a proximidade da liberdade tornando-a traPalhona. O barco, deu-se conta, estava em vias de deixar o molhe. Era preciso agir depressa. Os seus dedos esfolaram-se no ferro rugoso... e então a porta abriu-se e Domingo entrou. Com uma rapidez surpreendente para um homem da sua corpulência, correu para a jovem, subjugou-a e levou-a de volta para a cama, onde lhe voltou a atar as mãos:

Louca! murmurou ele. O chefe está a chegar. Se ele te descobrisse antes de Domingo...

O negro não terminou. Ela compreendera e, lembrando-se das ameaças que o homem lhe fizera, deixou-se amarrar sem luta. A ocasião perdera-se. Mais valia ter paciência e esperar, talvez, uma circunstância mais favorável... Paciência! Aquela virtude dos virtuosos, que o seu velho amigo Demétrios lhe pregara tantas vezes! Na verdade, sentia-se cansada, como se tivesse feito uma longa corrida. Assim, quando o seu raptor fez soar as pranchas sob as solas ferradas das suas botas, ela estava perfeitamente calma e imóvel.

Ele plantou-se diante dela, pavoneando-se, as pernas afastadas e as mãos agarradas ao largo cinturão de couro que lhe apertava a cintura, com a satisfação arrogante do brigão que conseguiu um bom golpe. Fiora perguntou a si própria, por um instante, se iria suportar, de novo, os seus assaltos, mas Domingo não parecia disposto a ceder o seu lugar e permaneceu de pé junto dela como um enorme cão de guarda. Foi a ele que o homem se dirigiu primeiro:

Trabalhaste bem. Graças a ti, eis-nos em segurança neste barco e a nossa bela prisioneira já não nos pode escapar. Podes libertá-la. Em seguida, deixa-nos sós.

Sem uma palavra, o grande negro desembaraçou Fiora das cordas, mas retomou o seu lugar à cabeceira da cama com uma firmeza que não deixava qualquer dúvida acerca da sua determinação. O outro fez uma careta:

Então? Não ouviste? Disse-te para nos deixares sós!

Não. Domingo foi enviado contigo unicamente para velar pela prisioneira. Ele responde por isso. Domingo vela e velará.

Mas, enfim insurgiu-se Fiora que, ao reencontrar a liberdade de movimentos, se sentia mais forte sois capaz de me dizer para onde me levais? Esse homem, ontem, disse que eu valia muito ouro. Quem é que dá esse ouro? Não ides, espero, entregar-me a um pirata sarraceno qualquer?

Ficai descansada! Essa gente não é suficientemente rica e é verdade que valeis muito ouro.

Então, quem? Para quem vela Domingo por mim? A quem é que ele responde por mim?

Ao Papa!

Fiora pensou que era uma brincadeira e encolheu os ombros.

. Não tendes piada nenhuma! Respondei-me seriamente.

Que arriscais, agora?

Mas, eu respondi-vos seriamente.

. Nesse caso, mentis! O Papa está em Roma. Se me levásseis para lá, devia estar, neste momento, atada no fundo de uma liteira ou de uma carroça a caminho de Marselha ou de outro porto qualquer da costa mediterrânica. Ora, ensinaram-me geografia suficiente para saber que vogamos no grande oceano.

Peste! Sabichona. Muito bem, minha querida, ficais a saber que vamos, de qualquer maneira, para Roma. A viagem, contornando a Espanha, é, sem dúvida, mais longa, mas mais segura. Não temos nada a temer, nesta carraca, dos vigias do Rei Luís. Por terra, arriscávamo-nos a deixar vestígios. Por aqui, não. De qualquer maneira, Sua Santidade não tem pressa. Ele disse-me: ”Gian-Battista, leva o tempo que for preciso para que a tua missão tenha sucesso. Se regressares no fim do ano, ficaremos satisfeitos.

Embasbacada, Fiora não acreditava no que os seus ouvidos lhe diziam.

O Papa! repetiu ela. Mas, que quer o Papa de mim? Tendes a certeza de que não vos enganastes?

Certeza absoluta. Vós sois dona Fiora Beltrami? O vosso amigo Nardi, que nós visitámos em Paris, deu-nos todas as certezas quando o... convencemos a dizer-nos onde estáveis escondida.

Um desagradável arrepio percorreu a espinha de Fiora. Aquele miserável sublinhara a palavra ”convencemos” de modo a enchê-la de medo.

Eu não estava escondida, mas espanta-me, de qualquer modo, que Agnolo Nardi vos tenha feito confidências.

Ele não estava muito disposto a isso. Até deixou que lhe

assássemos um pouco a planta dos pés. Não muito, ficai tranquila! Tivemos uma ideia melhor, ameaçando que faríamos o mesmo à mulher. Tornou-se, logo, mais falador! E, claro, tratámos de que não vos enviasse qualquer mensagem. Foi no seguimento desse encontro que tive o prazer de vos ver em Tours.

Horrorizada, revoltada de terror e desgosto, Fiora, com as garras de fora, saltou como uma pantera furiosa à garganta do miserável.

Ousastes? Em plena Paris! Atacar o melhor dos homens, a mais doce das mulheres! Que lhes fizestes? Respondei-me! Quero saber.

Surpreendido pelo ataque, o homem, sufocado, defendeu-se molemente. As forças da jovem estavam duplicadas pela raiva e talvez tivesse acabado com o seu inimigo se Domingo não a tivesse detido a tempo. O homem deixou-se cair no chão, massajando dolorosamente a garganta. Com a voz enrouquecida, lançou sobre a jovem uma torrente de injúrias italianas, às quais, fazendo apelo às suas recordações, ela respondeu com brio. Por um instante, a cabina ficou a parecer-se com um mercado da península, onde as disputas são o pão quotidiano. Fiora, um pouco espantada com aquele vocabulário metafórico que lhe vinha involuntariamente à mente, viu-se, de novo, uma florentina até à ponta das unhas e Domingo teve muita dificuldade para impedir que os dois adversários se pegassem de novo.

À fé de Montesecco! uivou Gian-Battista já se viu semelhante megera? Uma pantera não seria mais ruim.

Ousas falar de ruindade, miserável rufião? Quero saber o que aconteceu aos meus amigos!

Estão tão bem como tu e eu, melhor, talvez, do que eu. A partir do momento em que tive o que queria, deixaram de me interessar. Fica descansada, pode continuar a roubar os clientes. Quanto a ti... dá-te por feliz por não te pôr no fundo do porão. Tu vais ficar aqui com ela, Domingo! Se ela conseguir escapar, podes ter a certeza que te farei voar essa cabeça negra, por mais preciosa que o Papa a considere. Quanto a mim, estou farto de vós os dois.

O homem saiu titubeando um pouco para grande, mas fugaz satisfação da prisioneira, depressa assaltada de novo pela ansiedade. Que lhe poderia querer o ”vigário de Cristo”? Nada de bom, certamente. A jovem fizera malograr os seus planos acerca de Florença e enviado para uma jaula de ferro o homem que Sisto IV encarregara de apunhalar o Rei de França. Não era, certamente, para a cobrir de flores, que se dera ao trabalho de montar aquele rapto. Talvez o tempo de duração da viagem servisse para medir o tempo que lhe restava de vida? Que outra vingança, senão a morte, podia exercer o Papa?

Subitamente, o estômago de Fiora foi acometido por uma violenta náusea. O pesado barco, que atingira o alto mar, balouçava nas grandes vagas do Atlântico. A jovem, acometida por um enjoo tão súbito quanto imprevisto, conseguiu arranjar forças e deixou-se cair em cima da cama.

Certo de que ela não mexeria um dedo, Domingo saiu para ir buscar água.

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