Segunda parte AS ARMADILHAS DE ROMA

CAPÍTULO V OS DO VATICANO

Sua Santidade Sisto IV não estava de bom humor. O mau tempo que assolava Roma desde há vários dias, frio e húmido, tornava mais doloroso o seu reumatismo e acordava até, por instantes, a gota latente que o atormentava tanto e tão cruelmente. Para evitar uma nova crise, o Papa comera frugalmente legumes e lacticínios, sem o mais pequeno dos copos daquele vinho de Castelli Romani de que tanto gostava. Assim, enquanto o seu estômago gritava de fome, o Papa, com dois favoritos nos calcanhares, aproveitava as tréguas que a chuva lhe concedera para atravessar a praça do Vaticano e ir inspeccionar o estaleiro da sua capela em construção.

Ia em passo apressado, envolto num gorro duplo de raposa, o ”camauro”, debruado a pele e enfiado até às sobrancelhas para se proteger do frio. Grande e quase tão largo, de feições duras, nariz na linha da fronte, queixo agressivo, boca cerrada, olhar inquisidor e cabelo grisalho, o seu rosto berrante era totalmente barbeado. A sua silhueta sem elegância, que lhe dava o ar de estar sempre embrulhado na roupa que vestia, conferia-lhe, mesmo assim e ele sabia-o uma impressão de força que não era desprovida de majestade.

A despeito dos joelhos doridos, Sisto ultrapassou com relativa facilidade os materiais que se amontoavam no estaleiro. u trabalho não avançava segundo a sua vontade. Havia mais de Quatro anos que aquela capela começara, ainda nem sequer

1 A Capela Sistina


punha a questão do telhado e o pontífice só se deslocara ali na intenção de dizer das suas aos da obra. Quando tinha pela frente uma contrariedade, era preciso outra coisa, que não as suas velhas dores, para o impedir. Além disso e os seus favoritos sabiam-no adorava encolerizar-se.

Desta vez, não tinha razão. Resolvera mandar construir aquela capela para dar ao Vaticano um lugar de culto digno do trono de Pedro, um recinto vasto onde a pompa papal pudesse mostrar-se à-vontade, coisa impossível na velha basílica onde repousava o túmulo do Príncipe dos Apóstolos. Esta não passava de uma velha igreja decrépita, pouco mais imponente do que a igreja de um prior de província com o seu campanário de esguelha e o telhado inclinado sobre três abóbadas sobrepostas em arco de volta inteira. Tinham-se feito algumas reparações, mas o conjunto permanecia mortificante e, sobretudo, cheio de correntes de ar. A nova capela seria nobre, muito alta para que a música e os cânticos pudessem ter toda a amplitude, e magnificamente decorada, para que os séculos vindouros conservassem a recordação do construtor. E Sisto, que decidira baptizá-la de capela da Conceição, esperava, no seu íntimo, que o seu nome lhe ficasse ligado. Ao verem chegar o Papa, os operários, que trabalhavam a bem dizer molemente, desataram a manejar as colheres com ardor, ao mesmo tempo que as grandes pedras voavam em cima dos palancos. Na esperança evidente de evitar a tempestade que os espreitava e que não falhou. Sisto IV começou a vociferar como um simples mortal, ostentando com furiosas invectivas a voz que tinha forte, bela, poderosa e dotada de uma grande eloquência. Arquitecto e trabalhadores viram-se em breve de joelhos na poeira e curvando humildemente as cabeças à espera que a borrasca passasse. Mas até um Papa tinha de recuperar o fôlego de vez em quando.

Aproveitando uma acalmia, o arquitecto Dolci culpou o mau tempo, fonte de numerosas doenças que se abatiam sobre os seus operários. Chega! cortou Sua Santidade. Tu tens sempre desculpas na ponta da língua, signor Dolci. Mas eu quero a minha capela e quero-a depressa. Estou farto de esperar!

Que Sua Santidade tenha um pouco mais de paciência. As janelas acabam-se sem que Ela se dê conta e espero que Ela fique satisfeita. Tão altas e tão largas, não são nobres e de uma grande beldade?

Subitamente, o Papa desatou a rir:

É mesmo teu, isso! Eu ralho-te merecidamente e tu arranjas-te para me arrancares cumprimentos. As tuas janelas são belas, concordo, mas um telhado por cima delas dar-me-ia mais prazer. Estou cansado de ver cair a chuva na minha capela.

As duas personagens que acompanhavam o Papa tinham ficado um pouco para trás, ao abrigo de uma porta. Uma era o tesoureiro do Vaticano, um financeiro retorcido de nome Meliaduce. A outra era o cardeal vice-chanceler, uma personagem notável, merecedora de que nos detenhamos nele por um instante. Era um prelado de feições belas e de compleição vigorosa, muito moreno de pele sob uma coroa de cabelos de um negro de azeviche, com grandes olhos escuros à flor do rosto. O longo nariz curvo, de narinas sensíveis, a boca bem debruada mas espessa e sensual denunciavam o pândego, ao mesmo tempo que o esplendor um pouco vistoso demais do hábito púrpura de arminho, as fortes mãos morenas e a tez cor de azeitona o denunciavam como estrangeiro. De facto, o cardeal Rodrigo Bórgia vira a luz do dia em Espanha, em Jativa e lá teria ficado, talvez, se o seu tio, arcebispo de Valência, não tivesse sido elevado, alguns anos mais cedo, ao pontificado supremo sob o cognome de Calisto III e não tivesse levado consigo para Roma a família inteira. Este Rodrigo, hábil e enigmático, soubera conduzir a sua barca melhor do que os outros e era agora, aos quarenta e sete anos, o terceiro dignitário da Igreja. Sem contar que era, logo a seguir ao cardeal francês d’Estouteville, o mais rico do Sacro Colégio e provido de numerosos bens.

A cena entre o Papa e o seu arquitecto parecia diverti-lo. Inclinou-se para o seu vizinho e murmurou:

Sabeis, messer Meliaduce, como vai terminar isto? Dolci Vai chorar que tem falta de dinheiro, que o travertine e o carrara não cessam de encarecer, que o cobre está fora de preço e que, em resumo, não pode fazer mais com o que recebeu. O Santo Padre vai clamar um pouco, vai chamar-vos e pedir-vos-á que abrais os cordões à bolsa.

Mas ela está quase vazia, a minha bolsa! Onde quer Vossa Eminência que eu vá buscar o dinheiro? Ainda ontem o sobrinho de Sua Santidade, o conde Girolamo, me exigiu três mil ducados.

Não esperais amolecer-me com uma miséria dessas? Haveis de encontrar o vosso dinheiro, meu amigo. Aliás, aí está! Chamam-vos! Como vedes, tinha razão.

Ao mesmo tempo que o tesoureiro o deixava, de dorso curvado e arrastando os pés, para se juntar ao seu senhor, o cardeal foi examinar os trabalhos em curso com olhar conhecedor. Tinha o gosto do fausto e, partilhando o do Papa pelos edifícios, aprovava os numerosos trabalhos que este empreendia um pouco por toda a Roma, da qual queria ressuscitar o esplendor.

Deixando o seu tesoureiro com o seu arquitecto, o Papa reuniu-se a Bórgia:

Regressemos! As pernas doem-me cada vez mais.

Vossa Santidade devia repousar um pouco.

Estou demasiado velho para repousar. Na minha idade não há tempo a perder. Conduz-me à biblioteca! Nada como uma hora de leitura para acalmar os humores.

Solidamente amparado pelo seu vice-chanceler, Sisto dirigiu-se lentamente para as grandes salas onde tinha instalado a Biblioteca vaticana, a sua obra mais preciosa até àquele dia e, à medida que se aproximava, o seu humor melhorava. O antigo monge franciscano, pobre e sem nascimento, que fora Francesco della Rovere, não amava nada como as letras e as ciências, com excepção do ouro e do poder. Professara sucessivamente nas universidades de Pavia, de Florença, de Bolonha e de Siena; conservara uma vasta erudição e um grande apetite pelo saber, virado, sobretudo, para o estudo dos astros. Os melhores momentos do seu dia eram passados no meio dos tesouros que tinha acumulado e na companhia do sábio humanista Platina, de quem fizera seu guardião.

Quando os guardas abriram diante do Papa e do cardeal as portas da longa galeria inteiramente forrada de armários pintados e dourados e mobilado com grandes mesas onde se amontoavam manuscritos e instrumentos de óptica, Platina avançou ao seu encontro, apoiando a sua perna defeituosa numa bengala. Quis ajoelhar-se para beijar o anel do Pescador, mas Sisto impediu-o, sabendo que qualquer genuflexão era para ele um sofrimento e segurou-o familiarmente pelo braço para o levar na direcção de uma estante. Ali estava pousado um grande livro encadernado a veludo carmesim e com ferragens de prata, que tinham libertado da corrente que o ligava a um dos armários:

Vejo que tiraste o Santo Agostinho. Mostra-me depressa essas passagens que te pareceram tão espantosas!

Com um pequeno gesto desenvolto tinha despedido o cardeal Bórgia, mas estava escrito que, naquele dia, o Papa não teria direito ao seu divertimento. No momento exacto em que Bórgia ia transpor a porta, uma nova personagem deslizou por ela: o mestre-de-cerimónias da corte pontifícia, Agostino Patrizi, cujo rosto pálido parecia sofrer de perpétuas ofensas. Imbuído das regras de uma etiqueta severa, nas quais acreditava mais do que na lei divina, Patrizi tinha o génio de incomodar o Papa nos momentos mais inoportunos, mas era-lhe tão cegamente devotado que este lhe perdoava muitas coisas, incluindo uma das suas célebres cóleras, quando o mestre-de-cerimónias passava dos limites. Ao que se arriscava naquele dia.

O que é que tu queres? atirou-lhe o Papa quando o viu. O outro ajoelhou-se de imediato:

Muito Santo Padre balbuciou ele há já várias semanas, dissestes-me que vos prevenisse, estivésseis onde estivésseis, se Gian-Battista de Montesecco viesse ao palácio.

Sisto virou de imediato as costas a Santo Agostinho:

Ele está aqui?

Sim, Vossa Santidade!

Suportara a tortura sob o pontificado de Paulo II, um Papa que não gostava dos livros e menos ainda de quem os escrevia.

Sozinho?

Não. O vosso escravo núbio, Domingo, está com ele... e também uma mulher.

Que género de mulher? Não faças essa cara! Descreve-a! O ar ofendido de Patrizi era, com efeito, mais evidente do que nunca. O homem ergueu os olhos para o céu e suspirou:

Jovem, morena... e creio que se pode dizer que é muito bela. Pelo menos, seria se não tivesse um ar tão cansado.

Quem diria? murmurou Bórgia entredentes. Agora brincas aos alcoviteiros, monsenhor? Onde a desencantaste, essa?

Desdenhando responder, Patrizi fez o gesto de afastar uma mosca inoportuna e avançou para o Papa, que coxeava ligeiramente na sua direcção.

Eles que esperem na sala do Papagaio, cujas portas mandarás fechar cuidadosamente. Ah! Já me esquecia: manda prevenir o cardeal camerlengo, mas ele que venha só! Dá-me o teu braço, Rodrigo!

Bórgia fez-se tanto menos rogado quanto aquele preâmbulo o atraíra, sentindo-se cheio de curiosidade. Já que se tratava de uma mulher, e sobretudo de uma desconhecida, o apetite proverbial do belo cardeal espanhol manifestava-se. Sempre ”maravilhosamente disposto para o amor”, mantinha, para além de uma amante da qual tinha dois filhos, numerosas cortesãs que contribuíam para o prazer dos numerosos palácios que possuía na Zecca. Farejando, por outro lado, um odor de mistério porque Montesecco, o homem de mão do Papa, desaparecera do Vaticano há vários meses, teria levado Sua Santidade nos braços se Esta tivesse manifestado a intenção.

Infelizmente, para sua decepção, uma vez chegado aos seus aposentos, Sisto IV agradeceu-lhe hipocritamente a sua ajuda, deu-lhe a sua bênção e marcou encontro para o dia seguinte.

1 Cardeal da Cúria Pontifícia, que administra a Justiça e o Tesouro, preside à Câmara apostólica e governa a Igreja quando o Trono Sagrado está vago.


Dizer que Fiora estava cansada era um eufemismo. A jovem nunca conhecera antes semelhante lassitude, mesmo depois do nascimento daquele bebé em quem não ousava pensar para não aumentar o desespero, nem na vida estafante que conhecera no ano anterior ao seguir os passos do Temerário.

Durante semanas, a carraca traçara o seu difícil caminho ao longo das costas de França, de Espanha e de Portugal levada pelas tempestades do equinócio, durante as quais a prisioneira pensara morrer cem vezes. Ao passar pelas antigas colunas de Hércules, a sorte de um nevoeiro súbito livrara-os de um pirata mouro e só uma vez entrado no Mediterrâneo é que o corajoso navio conhecera um pouco de calma. Mas o Outono estava à porta e fora preciso lutar contra uma nortada furiosa que se levantara ao largo da Córsega e o atirara para a costa, felizmente suficientemente perto de Civita Vecchia para que pudesse entrar no porto, evitando, assim, o naufrágio.

Fiora passara todo esse tempo fechada na sua cabina sem ver ninguém, à excepção de Domingo, que velava por ela com uma constância que acabara por comovê-la. O negro levava-lhe de comer, lavava-lhe a roupa e até lhe contava as pequenas coisas que aconteciam a bordo do barco. Evidentemente, tratara-a do enjoo que a deixara sem forças no fundo da sua cama, desejando perdidamente que aquele navio infernal se afundasse para acabar com o seu suplício. Mas, após duas boas semanas, as náuseas tinham desaparecido e Fiora, que não pudera, durante esse tempo, meter no estômago outra coisa que não chás de menta frios e açucarados, pôde alimentar-se um pouco melhor. Os caldos de cereais e a carne seca não eram susceptíveis de lhe abrirem o apetite, mas era preciso viver. Uma curta escala que fizeram em Cádiz permitiu embarcar víveres frescos, ovos e laranjas e prosseguir a viagem sem grandes estragos. Aliás, Fiora não era a única vítima do enjoo. Montesecco sofrera dele severamente e, por isso mesmo, só visitara duas vezes a sua prisioneira. Do que ela não se queixara.

Devido ao facto de estar quotidianamente com o grande núbio, Fiora acabara por saber certas coisas acerca dele. Primeiro, gozava da confiança do Papa, apesar de ser um escravo ligado à sua casa particular. O Santo Padre apreciava a sua força, a sua sabedoria e o seu gosto pelo silêncio. Se o enviara juntamente com Montesecco, fora para ter a certeza de que a prisioneira teria uma hipótese de chegar ao seu destino sem ser molestada em demasia.

É estranho disse então a jovem. Quando me salvaste dele na barca, ele acabava de me ameaçar, dizendo que, se não lhe obedecesse em tudo, me meteria no porão e entregar-me-ia aos seus homens que eram dez, dos quais um tártaro e um negro. Há outro negro?

Não. Eu sou o único e isso foi pura fanfarronice. Queria aterrorizar-te desde logo.

Nesse caso, por que é que ele deixa que sejas tu a tratar de mim? Ele não tem medo que...

Fiora ouviu, pela primeira vez, Domingo rir. Um riso à sua medida, que fez vibrar os pequenos caixilhos da janela.

Não tenho vergonha nenhuma de confessar disse ele, então. Há dez anos, os turcos privaram-me da minha virilidade. Uma provação cruel, mas à qual devo bastantes compensações: por exemplo, ter sido oferecido ao Papa pelo senhor Ramon Zacosta, grande mestre dos cavaleiros de São João de Jerusalém. Foi ele que me baptizou com o nome de Domingo depois de enforcar, em Rodes, o pirata que me tinha cativo na sua galera com outros escravos. Então, o meu novo senhor ainda não se tinha tornado no Soberano Pontífice, mas tratou-me bem porque eu sou letrado. E eu sou-lhe totalmente devotado.

Então, sabes por que me mandou raptar? Tenho assim tanta importância para que ele envie a França um bando de malfeitores e, sobretudo, um servidor do teu valor?

Eu não sei nada, senão que ele nos prometeu ouro se te levássemos para Roma. Mas as suas ordens foram formais: não te podíamos fazer qualquer mal e, repito, Montesecco quis meter-te medo. Tu és bela e ele esperava, fazendo de ti sua amante, conseguir um golpe duplo.

Muitas vezes, durante a interminável viagem, Fiora dera a volta aos seus pensamentos sem conseguir encontrar-lhes um sentido e, por fim, acabara por renunciar. A clausura forçada alterou-lhe a saúde, se bem que Domingo abrisse a janela de manhã, à tarde e sempre que o tempo o permitia, para que o ar do mar pudesse refrescar a cabina. A alimentação aleatória e a falta de exercício, juntamente com as recordações dos que deixara para trás, faziam o resto e quando, enfim, pôde abandonar o navio, Domingo pediu que ficassem dois ou três noites no castelo papal de Civita Vecchia para que a prisioneira se recompusesse um pouco da travessia: ela tinha um aspecto assustador e o Papa não ficaria contente.

Obteve sem dificuldade esse favor, porque Montesecco e o seu bando também não estavam muito frescos. E só dois dias depois de ter desembarcado é que o núbio fez subir Fiora para a liteira com as armas papais que a devia conduzir a Roma.

A despeito da sua situação dramática, esta sentira como que um frémito de alegria ao pisar, de novo, solo italiano. Ao longo das vinte léguas que separavam do mar a antiga cidade dos Césares e mal-grado as rajadas de chuva que alagavam os campos, a jovem respirou com uma espécie de avidez o ar que soprava dos Apeninos. Aquelas nuvens, que voavam tão baixo, tinham, talvez, sobrevoado Florença, a sua Florença jamais esquecida, jamais renegada, da qual a separavam umas setenta léguas, mas a região plana que atravessavam não evocava, em nada, as doces colinas toscanas. Era uma região de pântanos glaucos, que sob o céu cinzento parecia feita de mercúrio, pequenos bosques e, de vez em quando, a silhueta imponente e negra de um grande pinheiro. Aquela região era a região da febre que regressava todos os Verões e Fiora pensou que, mesmo com sol, devia exalar uma profunda melancolia. Assim, foi com um certo alívio que viu perfilarem-se, ao longe, as formas amplas dos montes Albano. Roma, anunciada já por numerosas ruínas antigas, não estava longe.

Agora, sentada num tamborete de veludo, à janela de uma pequena antecâmara pintada com frescos e cujo chão de mármore estava, em parte, coberto por um tapete de Korassan, a jovem via, no pátio que acabava de atravessar e na verdade, sem qualquer interesse, o vaivém dos soldados armados de longas alabardas e uniformes onde sobressaíam as samarras púrpuras ou violetas e até trajes mais modestos. Um profundo sentimento de despropósito enchia-lhe o espírito. Que fazia ela ali, naquele palácio cuja sumptuosidade se dizia oferecida a Deus, mas que se dirigia, sobretudo, a um homem cujo poder, era verdade, se estendia aos limites da Cristandade. O seu destino ia depender daquele homem, do qual estava prisioneira. Nem sequer sabia porque a tinham feito percorrer um bom terço da Europa.

Montesecco ia e vinha diante dela, escavando a lã do tapete com tacões impacientes. Refeito dos seus males, tinha pressa de tocar no preço do seu feito, mas os olhares triunfantes que, de tempos a tempos, lançava sobre a sua prisioneira deixavam esta gelada. Aquele rufia não tinha qualquer interesse para ela. Tudo o que a jovem desejava era dormir, dormir até mais não, fosse ele no fundo de uma tumba no caso de o Papa a ter mandado raptar para a matar, já que lhe prestaria um serviço se lhe permitisse juntar-se aos dois homens que amara: o seu pai e Philippe.

O grande e pálido mestre-de-cerimónias, que parecia deslocar-se flutuando como uma alga na água, pôs fim à espera. O Papa esperava-os. Enquanto os conduzia na direcção da porta coberta de placas de prata cinzelada, flanqueada por dois guardas, Patrizi lançou sobre Fiora um olhar descontente:

Vós não estais em estado de ser apresentada ao Santo Padre! disse ele com desdém. Não podíeis ter feito alguma toilette antes de vir?

Ela veio como estava cortou Montesecco. As minhas ordens eram trazê-la logo que chegasse. Podes estar certo que Sua Santidade não está à espera de a ver coberta de cetim e brocados.

Quando as portas se abriram, Fiora pensou que, desde a grande tenda do Temerário, não via nada tão faustoso como aquela sala onde acabavam de a introduzir. A decoração, para além dos frescos nas paredes, do tecto em madeira dourada, dos estuques e mármores das consolas e das molduras, constava de panos de seda bordados a ouro dispostos por baixo dos quadros e, sobre o chão de mármore de uma brancura deslumbrante, numerosos tapetes orientais. Cuidadosamente alinhados, os tamboretes, as poltronas e as almofadas dispunham-se em redor da espécie de trono onde estava sentado o Sumo Pontífice. Mas assim que pousou os olhos nele, a jovem não viu mais nada. Um só olhar fora suficiente para compreender que não podia esperar dele qualquer bondade. Agachado no fundo de uma grande poltrona de veludo vermelho com pregos de ouro e ornamentado com grandes pompons, o capelo escarlate sobressaindo na brancura do seu traje, de sobrolho agressivo e olhar venenoso, parecia-se com um qualquer batráquio irritante saído de um conto fantástico. Sob a arcada rectilínea das sobrancelhas grisalhas, as pupilas tinham o reflexo surdo das águas estagnadas de um pântano, chocadeira incessante de animais viscosos.

Ide ajoelhar-vos diante do último degrau do trono! murmurou Patrizi. Em seguida, prostrai-vos.

Aquele que eu vejo é o Sumo Pontífice, ou um ídolo bárbaro? ripostou a jovem a meia-voz. Eu ajoelho-me porque o protocolo assim o exige, mas não faço mais nada.

Num passo como que por milagre singularmente firme, a jovem caminhou na direcção do trono de Pedro. Uma voz de bronze, que tinha as sonoridades de um zangão, acolheu-a a meio do caminho:

Filha da iniquidade! Como ousas aparecer perante Nós com esse passo seguro, quando devias rastejar na poeira para tentar desviar a Nossa cólera?

Ao ouvir aquilo, Fiora parou onde estava:

Ninguém me ensinou a rastejar, Muito Santo Padre e no entanto já me aconteceu achar-me diante dos tronos dos príncipes mais poderosos deste tempo. Eu sei o que devo ao Vigário de Cristo, mas sou uma dama nobre e não uma escrava acorrentada apesar do tratamento que sofro há dois meses, no maior desprezo pelos meus direitos e pelo facto de me encontrar nas terras pessoais do Rei de França. Portanto, sob a sua protecção.

Sem apressar o passo, a jovem prosseguiu o seu caminho através do arquipélago rutilante de tapetes. Então, chegada ao primeiro dos degraus, pegou numa almofada de brocado e colocou-a sob os joelhos antes de se deixar cair.

Posso saber articulou ela calmamente a que devo a honra de me ajoelhar, a esta hora, perante Vossa Santidade?

Aquela coragem e audácia tranquilas pareceram desarmar por um instante a cólera de Sisto, cólera essa artificial, aliás, sob a qual ele se esforçava por esconder a alegria que sentia por ver assim, reduzida à sua mercê, a mulher em quem ele via uma inimiga irredutível. Por um momento ele olhou para ela, descontente por ver tanta rigidez naquela forma delgada, feminina, visivelmente esgotada pela longa viagem. Sob o traje grosseiro, o corpo parecia diáfano e o rosto tinha a palidez do marfim, mas o porte continuava altivo e o Papa teve de confessar a si próprio que poucas princesas seriam capazes de manter, diante dele, aquela confiança orgulhosa.

Tu cantas muito alto para uma rapariga nascida na palha podre de uma prisão!

Esbofeteada por aquela evocação do seu infeliz nascimento, Fiora sentiu-se corar, mas não enfraqueceu:

Estou surpreendida disse ela por o soberano Pontífice saber a esse ponto a história de uma mulher que não devia ter qualquer interesse para o sucessor de São Petro. Nascida na prisão, sem dúvida, mas nobre, mesmo assim, e fui, além disso, criada por um dos maiores homens de Florença. De modo que...

Chega! Eu sei quem tu és, mulher! Por tua causa, um dos nossos melhores servidores, um santo homem, suporta um dos mais duros cativeiros numa prisão desumana...

Se é frei Inácio Ortega que Vossa Santidade canoniza assim, com tanta ligeireza, o Paraíso deve ser de acesso singularmente mais fácil do que me tinham dito. Portanto, basta matar um Rei para que se tenha acesso a ele sem mais obstáculos? Frei Inácio tentou assassinar o Rei Luís de França e, se eu consegui impedi-lo, devíeis, Muito Santo Padre, agradecer-me: o sangue dos Reis teria deixado uma mancha indelével na brancura do Cordeiro, de quem vós sois o representante...

Que história é essa? exclamou Sisto cujos grossos e nervosos dedos reduziam a fio os pompons da sua poltrona. Frei Inácio foi incumbido de obter a libertação de um príncipe da Igreja retido numa dura prisão, no desprezo pelo menor dos direitos, pelo Rei Luís. Ele não é nosso servidor, antes da Rainha Isabel de Castela, que o reclama. Além do mais, não é a primeira vez que te encontramos no nosso caminho da verdadeira fé e da honra do Cristo Rei! Já em Florença, há dois anos, causaste horror e escândalo com as tuas torpezas.

É torpeza querer defender a memória de um pai assassinado? E, se houve escândalo, fui muito menos responsável do que aqueles que, diante da criança indefesa que eu era, acumularam armadilhas e ardis. Era para glória da Rainha Isabel que frei Inácio, ligado aos Pazzi, conjurava para a perda dos Médicis?

O som das alabardas batendo nas lajes do solo cortou a sátira violenta em que Fiora estava lançada, fora de si, decidida a jogar tudo por tudo. Uma nova personagem fazia a sua entrada, uma entrada singularmente majestosa, cuja progressão ela seguiu com uma espécie de admiração. Se alguém merecia o título de Príncipe da Igreja, era aquele homem que acabava de entrar e que passava de um tapete para o outro, num restolhar de folhas mortas, o esplendor do seu traje púrpura.

Que era idoso ninguém duvidava, mas aos setenta e cinco anos, Guillaume d’Estouteville, cardeal camerlengo e arcebispo de Rouen, conservava uma juventude que muitos lhe invejavam, a começar pelo próprio Papa. Grande, magro, distinto até à ponta dos dedos das mãos que tinha admiráveis, verdadeiras mãos de prelado, era o cardeal mais rico do Sacro Colégio, e o mais faustoso. Arrancara à ruína certas igrejas e espalhara a sua riqueza por inúmeros lares miseráveis porque era, também, um homem de bem, e Roma devia-lhe isso. Quanto ao Papa, este respeitava, naquele antigo monge Beneditino saído de uma grande família normanda, o sangue real de França a avó materna do cardeal era irmã do Rei Carlos V a vasta cultura e o espírito desligado do diplomata. Dotado, ainda por cima, de uma grande eloquência e de ideias nitidamente avançadas para o seu século, Estouteville, no decurso de uma legação em França, reformara profundamente a Sorbonne e reclamara a revisão do iníquo processo de Joana d’Arc. A sua posição em Roma era suficientemente excepcional para que o próprio Papa lha invejasse.

As suas pernas não deviam causar-lhe a menor das preocupações a despeito da idade, porque se ajoelhou para beijar o anel com uma ligeireza perfeita, mas, ao levantar-se, foi sobre Fiora que pousou o olhar interrogativo dos seus olhos, que tinham a cor cândida das flores do linho. Do fundo da sua poltrona vermelha, Sisto IV grasnou:

Olhai para esta mulher, meu irmão! Foi por causa dela que vos pedimos que viésseis aqui. Conhecei-la?

De todo! disse o cardeal, que acrescentou com um meio sorriso: Se fora o caso, creio que me recordaria. Dir-me-eis, Muito Santo Padre, quem é?

Um ser tanto mais nocivo quanto perigoso. Esta Fiora Beltrami, que foi amante do último duque de Borgonha, é-o agora do vosso Rei, Luís de França!

O estupor e a indignação varreram de repente, do espírito de Fiora, toda a prudência, assim como toda a noção de respeito para com tão altas personagens.

Que história é essa? exclamou ela. Eu nunca fui amante do Temerário e muito menos do Rei.

Os relatos dos nossos espiões são, no entanto, formais grunhiu Sisto IV. Seguistes, sim ou não, entre outros seguidores seus, o defunto duque desde o primeiro cerco de Nancy até à sua morte?

Sim, é verdade. Mas era sua refém, porque, apesar de ser casada com um dos seus capitães, ele via em mim uma espia do Rei de França.

Curioso! Uma refém, a sério? No entanto, nós ouvimos dizer que ele disse a essa refém, antes do último combate, ternos adeus, e que lhe deu a sua jóia preferida?

Perdoai-me por intervir, Santo Padre disse o cardeal francês mas esta mulher não acaba de dizer que é casada com um capitão borgonhês?

Vai fazer três anos, no começo do ano que vem, que casei em Florença com o conde Philippe de Selongey, embaixador junto de Monsenhor Lourenço. O casamento, primeiro, foi secreto, mas depois foi conhecido de todos.

Onde está o vosso marido, nesse caso?

Morto, Eminência! Executado em Dijon em Julho último por ordem do Rei... desse Rei de quem ousam dizer ser eu amante.

Um sorriso carregado de veneno apareceu nos lábios do Pontífice, ao mesmo tempo que o seu olhar duro se iluminava:

Que inverosimilhanças! Faço de vós juiz, Estouteville. A minha gente foi buscar esta dita dama borgonhesa a um pequeno domínio próximo do castelo de Plessis-lès-Tours, domínio esse que lhe foi oferecido pelo Rei.

É verdade disse Fiora erguendo o tom. O Rei Luís deu-me esse solar, onde ainda está o meu filho recém-nascido, a minha governanta e os meus servidores, como recompensa por um serviço que lhe prestei.

Grande serviço, de facto! rangeu o Papa. Por causa desta criatura imunda, um dos meus núncios apodrece numa dessas jaulas de ferro desumanas de que o Rei Luís tanto gosta. E está na companhia do nosso infeliz irmão, o cardeal Balue.

Eu impedi, de facto, o vosso dito núncio de assassinar o Rei. Quanto ao vosso Balue, não sei nada dele, senão que é um traidor.

Tanto barulho por causa de uns sinais de amizade cedidos a Borgonha! O duque está morto. Portanto, já não há razão para conservar o nosso irmão na prisão e foi por isso que te raptei, filha da iniquidade: se Luís XI te quiser rever viva um dia, terá que libertar Balue e, sobretudo, frei Inácio Ortega. Enfim, terá de nos dar todas as garantias de que mudará de política quanto a Florença, cujo senhor só sonha em se rebelar contra a nossa autoridade.

Florença nunca reconheceu outra autoridade que não a dos seus superiores e daqueles que lhe deram riqueza, honra e liberdade: os Médicis!

Ouçam-na, mas ouçam-na! berrou o Papa, erguendo-se nas suas pernas doridas, o que aumentou a sua cólera. Esta rapariga é uma verdadeira princesa! Ousa falar de direitos, de liberdade e discutir política connosco? Cardeal, tratai de enviar rapidamente um emissário a França para dar a conhecer as condições de resgate que vos vamos ditar. Esta mulher esperará a resposta na prisão.

Se é assim, podeis mandar executar-me imediatamente disse Fiora com amargura. O Rei nunca aceitará as cláusulas do vosso contrato, Santo Padre! Aliás, talvez mesmo, a esta hora, ele já não tenha por mim a menor das amizades: dei-lhe a conhecer, o meu desejo de lhe devolver o meu solar, porque o meu filho não poderá crescer e ser educado nas terras daquele que ordenou a morte do seu pai.

Queres dizer que o Rei não erguerá um dedo para te salvar?

Exactamente. Vossa Santidade, ao mandar-me raptar, fez um mau negócio.

Naquele momento a porta da sala abriu-se e antes que monsenhor Patrizi a tivesse podido anunciar, entrou, num passo rápido, uma jovem que avançou ousadamente para o trono. Muito jovem, na verdade, mas encantadora com os seus cabelos cor de mel e os olhos cor de aventurina, estava vestida com tanta magnificência que Fiora não pôde deixar de a admirar. Nada mais elegante do que aquele vestido de cetim negro bordado a ouro que abria para uma saia de cetim carmesim. Uns enormes rubis de um vermelho-profundo brilhavam-lhe no pescoço, no corpete, nos agrafos das amplas mangas e na coifa que segurava a massa dos seus cabelos. Sobre os ombros trazia um grande manto de veludo verde-campo forrado de zibelina negra. Nas suas mãos e orelhas brilhavam outros rubis.

A expressão de cólera do Papa apagou-se como que por encanto e transformou-se num amável sorriso quando a bela criança se aproximou para lhe beijar a mão e depois a face, antes de se instalar familiarmente numa das almofadas dispostas nos degraus do estrado, onde o rio cintilante do seu vestido se instalou.

Minha sobrinha reprovou-a docemente o Papa quando perdereis esse hábito de entrar aqui como um furacão sem vos preocupardes com o protocolo?

Nunca, creio! Se vos desagradasse, não teríeis esse olhar vivo e esse sorriso caloroso que tanto gosto de ver em vós declarou ela com um sorriso radioso que enviou, depois, ao cardeal d’Estouteville, a quem estendeu a mão sem cerimónia.

Estais mais bela do que nunca, Madonna disse este galantemente.

Estou, não estou? disse ela com uma satisfação infantil. Ninguém diria que espero um filho para a Primavera!

Enquanto falava, os seus olhos fixaram-se em Fiora. Por um instante, os dois olhares engancharam-se, fundiram-se. Não havia qualquer desdém no da sobrinha do Papa, nem Fiora pensou ler neles qualquer simpatia.

Tenho outro defeito acrescentou tranquilamente a recém-chegada. Os meus ouvidos são demasiado finos e ouço muitas vezes coisas que não me são, forçosamente, destinadas. Além disso, sou deploravelmente curiosa e acontece que essas mesmas coisas me intrigam mais do que as outras.

E isso quer dizer?

Que gostaria de saber, por exemplo, por que razão Vossa Santidade mandou raptar esta jovem dama? Onde a prendeu? E por que razão representa ela um negócio tão mau? O Rei em questão não será o vosso, monsenhor d’Estouteville?

Pode ser que tenhais razão, Madonna disse o prelado um pouco embaraçado mas trata-se de negócios de Estado e, por maior que seja a afeição de Sua Santidade pela vossa pessoa...

Deixai-vos de rodeios, meu irmão! cortou o Papa novamente irritado. Ela não tem nada a ver com isto. Catarina, sabeis como sois querida ao nosso coração paternal, mas gostaríamos que ficásseis fora desta história que diz unicamente respeito à nossa política.

A política é uma coisa, a caridade é outra! disse audaciosamente a jovem. E eu estou a ver aqui, diante de vós, uma jovem dama, certamente nobre a despeito do traje grosseiro e, mais certamente ainda, extremamente fatigada.

Que ela se ajoelhe, então, em vez de nos desafiar! Vós ignorais tudo acerca dela, Catarina: é uma florentina, uma inimiga resoluta dos Pazzi, que nos são próximos, como sabeis. Por duas vezes, atravessou-se nos nossos desígnios e a sorte normal que lhe deveria estar destinada é a morte. Mas...

Fiora juraria que os olhos de Catarina brilharam ao ouvir o nome dos Pazzi. A jovem começava a juntar as ideias e já sabia quem tinha diante de si: a sobrinha do Papa, de facto, mas por aliança, Catarina Sforza, filha bastarda do duque de Milão, casada aos onze anos com Girolamo Riario, o sobrinho favorito do Papa talvez mesmo seu filho! um rústico de quem se dizia que fora merceeiro ou funcionário alfandegário e em cujas mãos ávidas Sisto queria colocar um reino cujo centro seria a Toscânia.

Mas continuou a jovem com audácia Vossa Santidade ainda não está certa se o seu negócio é mau?

Com efeito. No seguimento da resposta que monsenhor d’Estouteville receber de França, decidiremos o seu destino. Entretanto, vai ser conduzida ao castelo de Saint-Ange, ficando lá presa enquanto for essa a nossa santa vontade.

Se tencionais tratá-la como refém, não a deixeis apodrecer na palha da vossa prisão! Confiai-ma. Saberei guardá-la como deve ser e, pelo menos, será bem tratada, coisa que o Rei de França vos agradecerá se chegardes a acordo.

Era mais do que Sua Santidade podia suportar, mesmo da parte de uma jovem pela qual, com toda a evidência, nutria uma ternura particular. Endireitando-se, o Papa ordenou:

Mais uma vez, minha sobrinha, cessai de vos meterdes neste assunto! Será como eu disse: ela irá para a prisão... e vós, vós vindes jantar connosco.

Os guardas aproximavam-se. Então, para grande surpresa de Fiora, monsenhor d’Estouteville interpôs-se:

Um momento ainda, Santo Padre, por favor! Fechá-la-íeis no castelo de Saint-Ange se ela representasse a moeda de troca paga adiantadamente?

Não. Tinha decidido enviá-la para o convento de Santo Sisto.

Nesse caso, por que mudar de plano? Eu conheço bem o Rei Luís e a sua grande inteligência. Ele não é daqueles que dão a sua amizade a qualquer pessoa. Sobretudo quando essa amizade chega ao ponto de oferecer um castelo e terras na sua vizinhança imediata. E, a menos que Vossa Santidade pense em declarar guerra ao meu país, o que me dilaceraria o coração...

Declarar guerra a França? Sois louco, meu irmão! A Aranha Universal tem o melhor exército do mundo. As armas da Igreja não seriam suficientes.

Nesse caso, não mudeis nada no vosso primeiro projecto. Mandai conduzir Dona... Fiora? É esse o nome?

Que nome lindo! exclamou Catarina que, decididamente, não gostava de estar muito tempo calada. O que é que vem a seguir?

Beltrami, Madonna respondeu Fiora oferecendo à jovem uma reverência e o esboço de um sorriso. Podeis acrescentar condessa de Selongey

- Basta de vaidades mundanas! exclamou Sisto cuja tez morena estava de novo púrpura. Talvez tenhais razão, Estouteville. Enviemo-la para Santo Sisto! Ficará lá bem guardada e teremos sempre tempo de lhe cortar a cabeça ou de a enforcar Se o senhor dela não corresponder convenientemente às nossas expectativas. Que a levem e que digam ao capitão da guarda que a levem imediatamente. A superiora está à espera.

Foi necessário a Fiora um grande autodomínio para saudar o Papa, que só de muito longe se parecia com a ideia que ela tinha de um vigário de Cristo, mas ajoelhou-se quase aos pés do cardeal d’Estouteville.

Agradeço-vos a vossa caridade, monsenhor, e tende a bondade de rezar por mim e pela criança a quem me arrancaram. Juro-vos que sou digna da vossa protecção!

A mão extremamente branca, onde brilhava uma pesada safira, traçou sobre a sua cabeça inclinada o sinal da cruz e o olhar azul seguiu-a enquanto ela se virava para dona Catarina:

Obrigada, Madonna! Não vos esquecerei.

Por fim, a jovem colocou-se entre os soldados e voltou a atravessar a sala escoltada por eles. Chegava à soleira quando se apercebeu de que um grupo de homens, a maior parte jovens e ricamente vestidos, atravancava a antecâmara. Uma personagem de uma trintena de anos, mas já gorda, perorava no meio deles, acusando os guardas e o mestre-de-cerimónias.

Vós deixastes passar a minha mulher! Eu quero juntar-me a ela. Aliás, Sua Santidade está à minha espera!

Um momento, messer Girolamo, só um momento! pedia Patrizi. O Santo Padre disse formalmente que não queria ser perturbado por ninguém.

E a condessa Riario é ninguém, talvez?

Ninguém a pode impedir, monsenhor. O seu encanto dá-lhe direito a todas as indulgências.

Fiora desinteressou-se do debate e continuou o seu caminho. Entrevira Riario, a sua cabeça de traços pesados, de cabelos rígidos, a insuportável vulgaridade do seu comportamento que o seu traje bordado a ouro só agravava. Que a encantadora Catarina fosse casada com aquele pacóvio era um dos despropósitos que pareciam ser lei naquele palácio mais do que real.

O destino acabava de a fazer cair num mundo do qual ela não fazia a mínima ideia, mesmo quando morava em Florença. Aquele Papa sem grandeza, unicamente preocupado com a sua política tortuosa e os seus bens terrenos, do qual se podia perguntar que género de orações dirigiria a Deus se por acaso lhe acontecia orar! aquela corte povoada de homens de mão e de escravos, e até aquela bela Catarina, habituada a instalar-se nos degraus do trono papal, tudo servia para confirmar o que Inácio Ortega e a sua estadia no convento de Santa Lúcia, em Florença, o que ela suspeitara: aquela Roma, nos caminhos da qual penavam ainda tantos peregrinos, tanta gente pobre, sustentada pelo único e paciente desejo de rezar no túmulo do Apóstolo e de receber a bênção do soberano Pontífice, aquela Roma não estaria em vias de se transformar num covil de ladrões?

Pela sua parte, Fiora ia, em breve, constatar o que era um convento romano; sentia, apesar de tudo, uma espécie de alívio ao pensar que encontraria ali, pelo menos, a calma da clausura, o silêncio e a paz, tudo aquilo de que o seu corpo esgotado e o seu espírito dorido tinham necessidade. Mesmo em Santa Lúcia, conseguira dormir, e era de repouso que mais precisava depois do que acabava de suportar. Mais tarde, recomeçaria a pensar e a procurar o meio de beneficiar o menos possível da hospitalidade papal.

O grande Domingo desaparecera e ela sentiu pena. Ele representara para ela o apoio que agora lhe ia faltar. No pátio do Vaticano, fizeram-na montar uma mula que um grupo de soldados rodeou de imediato. O seu chefe parecia-se muito com Montesecco, com quem, aliás, ela o viu falar por um instante. Saberia, mais tarde, que os dois homens eram irmãos, se bem que muito diferentes.

A noite chegara. Uma noite húmida e fria, que mudava o aspecto das coisas e perturbava as chamas dos archotes nas mãos dos servidores. Passado o grande portal, mergulharam nas trevas exteriores, mas os olhos de Fiora acostumaram-se depressa e ela apercebeu que a noite era menos sombria do que pensara. As únicas luzes ainda visíveis iluminavam as túnicas, com as armas do Papa, à cabeça da escolta. A jovem esforçou-se por descortinar o melhor possível o caminho que a faziam seguir, precaução indispensável no caso de uma possível fuga.

Depois da praça de São Pedro, pouco maior do que a praça de uma aldeia, desfilaram diante de alguns edifícios, à porta dos quais ardiam potes de fogo dentro de jaulas de ferro e depois diante de uma fortaleza constituída essencialmente por uma enorme torre cilíndrica, no topo da qual se adivinhava a silhueta gigante de um anjo de asas abertas. Em frente, uma ponte, guarnecida de lojas com as persianas fechadas, passava por cima do Tibre, cuja água negra era quase invisível. Em seguida mergulharam num dédalo obscuro, que parecia ser um enorme estaleiro de construção separado por terrenos baldios.

Abandonada durante muito tempo pelos papas em favor de Avinhão, a Roma dos Césares e os seus monumentos gigantescos ter-se-ia, certamente, esboroado tranquilamente até à desaparição total se certos Papas como Nicolau V e, sobretudo, Sisto IV, não tivessem tomado nas próprias mãos vigorosas o seu destino, obrigando os arquitectos que reconstruíam as igrejas a procurarem a pedra fora da cidade em vez de irem buscá-la aos velhos edifícios vizinhos, transformados, assim, em confortáveis pedreiras.

Evidentemente, com o regresso dos Papas, a riqueza afluíra de novo a Roma. Os Pontífices construíam na colina vaticana para substituir o antigo palácio Latrão destruído por um incêndio e, em redor deles, cardeais e altos funcionários apressavam-se a construir palácios maiores e sobretudo mais ricos do que os das antigas famílias que tinham continuado a viver em Roma. Mas essas construções todas faziam-se sem ordem, Roma não comportava senão algumas praças e, para além de ruelas caprichosas, uma ou duas artérias algo largas e arejadas como o Corso, assim chamado porque servia antigamente para corridas de cavalos, de burros... e de judeus. Sisto IV, que decidira fazer daquele imenso lugar perigoso e arruinado, onde dominavam as ruínas, uma cidade civilizada, ordenada, de ruas pavimentadas com outra coisa que não pedras redondas do rio, tinha muito que fazer para edificar uma capital à medida das suas ambições. Depois de ter construído uma ponte sobre o Tibre, o hospital do Santo Espírito, igrejas e conventos, cobria agora Roma de estaleiros, abatia os casebres e limpava os monumentos antigos, entregues à hera e às ervas daninhas.

Àquela hora vespertina, as construções novas e velhas confundiam-se fraternalmente na mesma atmosfera cinzenta, sob uma bruma que baralhava tudo e Fiora acabou por renunciar a distinguir um caminho qualquer no dédalo por onde iam. Não sabia que cavalgavam na direcção do Circo Máximo, que passavam diante das ruínas ainda em pé do palácio de sete andares de Séptimo Severo para encontrarem, depois, as termas de Caracala, que erguiam para o céu negro um imponente fragmento mutilado da grande arquitectura imperial. A majestade daquele fantasma da antiguidade, vermelho e negro, forçou, mesmo assim, o seu interesse, e a jovem perguntou ao capitão o que representava aquilo. Ele respondeu, acrescentando:

Tereis o tempo todo para os admirar. Eis o convento de Santo Sisto, para onde vos levo: está mesmo em frente.

Com efeito, um pouco abaixo do caminho onde as grandes lajes romanas ainda afloravam, erguiam-se as paredes ocres que encerravam uma confusão de vegetação, construções baixas mas harmoniosas e o campanário quadrado de uma igreja. Quando a escolta fez alto, puderam ouvir o eco de um cântico religioso abafado pela espessura das paredes e também o coaxar das rãs no pântano vizinho.

Com o punho enluvado de couro, um dos soldados foi bater à porta onde se apercebia uma estreita abertura. O homem bateu várias vezes, até que um rosto delgado, enquadrado num véu branco, se mostrou por trás das grades.

Por ordem de Sua Santidade, o Papa, abri! ordenou o capitão, que se mantinha junto de Fiora. Trago aquela que vos anunciaram.

A estreita abertura fechou-se e a porta abriu-se lentamente, mas sem barulho, descobrindo a forma branca da irmã rodeira:

Que o Senhor tenha na Sua guarda o nosso Muito Santo Padre! murmurou, ela benzendo-se. Entrai, minha irmã! É verdade que vos esperávamos.

Fiora desceu da sua mula e avançou ao mesmo tempo que a escolta recuava, já que os homens não padres não tinham o direito de transpor a clausura. A voz da religiosa era doce e os cânticos que se ouviam de uma grande beleza. Uma mão pálida estendeu-se para Fiora que, muito naturalmente, estendeu a sua com a sensação de que se apaziguavam as suas angústias, desconfianças e medos. Seria aquele convento um asilo de paz?

CAPÍTULO VI O JARDIM DE SANTO SISTO

O convento das dominicanas de Santo Sisto, que beneficiava da protecção muito particular do Papa, era o asilo preferido das raparigas nobres que tinham escolhido renunciar ao mundo, mas uma jovem viúva também podia encontrar nele refÚgio, ou uma mulher qualquer devidamente protegida. Vinda directamente do Vaticano, Fiora foi recebida com cortesia pela madre Girolama, mulher de uma certa idade, que devia ter sido de uma grande beleza e que, com toda a evidência, tinha o hábito do comando. Tinha olhos claros que olhavam a direito, uma voz sonora e musical e um sorriso pouco frequente mas caloroso, que ganharam de imediato a confiança de Fiora. Depois de ter sucessivamente temido ser entregue ao carrasco e ir suportar um calvário no fundo de uma prisão, era bom entregar-se nas mãos da madre Girolama.

Estais num estado lastimável constatou esta olhando para a sua nova pensionista com um olhar apiedado. Estais doente?

Não, madre, não creio. Mas, durante dois longos meses, viajei por mar, onde sofri muito. A alimentação fez o resto.

Estou a ver. Por esta noite, vou conduzir-vos ao vosso quarto, onde vos levarão uma refeição.

Poderei ter água para me lavar? Não me lavo decentemente há semanas.

Não ousava propor-vo-lo disse a prioresa com um meio sorriso. Já me aconteceu ter pensionistas que desdenhavam os cuidados do corpo e confesso que não as apreciava muito.

Trazer-vos-ão água e toalhas, mas, quanto à roupa, só vos posso oferecer um hábito de noviça.

Sentir-me-ei feliz por usá-lo. Quanto a estas...

Serão lavadas e, se não as quiserdes mais, dá-las-emos aos pobres. Enquanto estiverdes aqui, não precisareis delas. E agora vinde! Creio, na verdade, de que precisais, sobretudo, de repouso.

A cela que a acolheu dava para uma galeria de pequenas colunas que, abria directamente para o jardim. Com o seu estreito leito de cortinas brancas e o seu mobiliário simples, parecia-se muito com a que Fiora ocupara em Santa Lúcia de Florença, no tempo da catástrofe que lhe destruíra a vida. A irmã leiga que se lhe juntou acendeu uma pequena braseira para combater a humidade fria, permitindo-lhe lavar-se sem tremer demasiado, depositou uma rosa tardia numa pequena bilha de majólica verde e começou a falar alegremente enquanto desdobrava os lençóis frescos que destinava ao leito e sacudia os cobertores.

Assim, Fiora soube que ela se chamava irmã Querubina, nome pouco vulgar, mas cujo rosto rosado e bochechudo e olhos de um azul ligeiro justificavam. Era filha de um camponês dos arredores de Spolète, cujo senhor fizera com que Querubina entrasse para o convento ao mesmo tempo que a sua filha mais nova, Prisca, irmã de leite da pequena camponesa, que lhe era muito ligada. Há cinco anos que estava em Santo Sisto e sentir-se-ia muito feliz porque não imaginava que houvesse um lugar mais belo no mundo se a irmã Prisca não estivesse a definhar desde o último Verão sem que conseguissem encontrar remédio para o seu mal.

Não podemos fazer nada concluiu ela afastando as mãos desoladas. É o pântano que está ao lado do convento. No Verão há muitos mosquitos e os mosquitos transmitem a malária.

Em resumo, Santo Sisto era, talvez, o mais belo lugar do mundo, mas provavelmente, um dos mais insalubres. Graças a Deus, o Verão acabara há muito e, quando regressasse, Fiora esperava já ter deixado o convento. Mas, nessa noite, ao meter-se entre os lençóis frescos que cheiravam a bergamota, depois de ter comido pasta de manjericão e uma suculenta salada de frutas, a jovem pensou que, com ou sem mosquitos, aquele convento era, à sua maneira, um daqueles lugares privilegiados onde a dor fez tréguas e onde se pode ainda acreditar na misericórdia divina. A irmã Querubim estava um pouco decepcionada por não ter recebido nenhumas confidências em troca da sua história, mas Fiora desculpara-se invocando a sua verdadeira vontade de dormir e prometendo ser mais comunicativa numa outra ocasião.

A impressão deliciosa de se encontrar ao abrigo da maldade dos homens e de retomar plena posse de si mesma persistiu nos dias que se seguiram. Sob a direcção doce mas firme da madre Girolama, o convento parecia formar uma grande família, na qual cada membro parecia satisfeito com a sua sorte. Serenas, as dominicanas encontravam no trabalho, na música, na meditação e na oração a paz de espírito e a segurança de alma que só uma ordem espiritual pode dar. Os sons do exterior, o sussurro das intrigas e os gritos de agonia das vítimas que, todas as noites, a incessante e eterna querela das duas poderosas famílias que partilhavam Roma, os Orsini e os Colona, abandonava nos bairros ou nas sombras de uma ruela, quebravam-se contra as muralhas de Santo Sisto. Ali, cantavam-se louvores a Deus e trabalhava-se para Sua maior glória. Os ofícios eram de uma grande beleza. Fiora gostava de tomar parte neles e juntar a sua voz às das freiras que a tinham acolhido com uma gentileza simples sem lhe fazer demasiadas perguntas.

Sabia-se, claro, que ela era florentina, a única do convento, e souberam também, depois, que era viúva de um dos melhores capitães do Temerário. Mas o defunto duque de Borgonha era completamente desconhecido das freiras, com excepção de uma, que, após algumas hesitações, foi, uma manhã, ter com Fiora ao jardim.

A jovem fizera desse jardim o seu lugar de predilecção e quando o tempo o permitia instalava-se nele com um bordado, ou percorria lentamente os carreiros traçados cuidadosamente. Não tinha qualquer comparação com o da Casa das Pervincas, nem sequer com o da villa Beltrami, em Fiesole, de que Fiora tanto gostara. Este, a despeito do Inverno próximo que o privava da maior parte das suas flores, reunia, em redor de um grande pinheiro manso, um pequeno bosque de limoeiros, romãzeiras e loendros. Encerrado entre carreiros cobertos de pequenas placas de mármore que iam dar a tanques onde cantavam fontes, era uma confusão de plantas mediterrânicas das mais odoríferas, de onde saía, por vezes, uma moita de roseiras ou as longas plumas da giesta de Espanha. Evidentemente, havia uma horta sabiamente ordenada e plantada com grande rigor, protegida dos ventos por sebes de ciprestes, mas tudo o resto parecia obra de um jardineiro ao mesmo tempo genial e um pouco louco.

Sentada no banco que elegera desde o primeiro dia, com uma toalha de altar que oferecera a si mesma para bordar entre as mãos, mas na qual os seus dedos se afadigavam pouco, Fiora viu aproximar-se uma jovem religiosa. A jovem reparara nela na capela pela sua voz angélica e o seu rosto parecera-lhe vagamente familiar. Fiora sorriu-lhe para a encorajar a aproximar-se, porque a jovem era visivelmente tímida:

Desejáveis falar-me, irmã? perguntou ela.

Perturbei-vos e peço-vos perdão disse a pequena freira, corando violentamente.

Não devia estar no convento há muito tempo, porque usava, tal como Fiora, o hábito branco das noviças.

Dizei antes que me surpreendestes em flagrante delito de preguiça, porque, como vedes, sonhava. Vinde, sentai-vos neste banco!

Obrigada. Há vários dias que desejo falar-vos, mas tive que reunir toda a minha coragem. Disseram-nos, apenas, que sois uma donzela de Florença, casada com um grande senhor de Borgonha. E queria saber... Sereis, por acaso, a condessa de Selongey?

Sou disse Fiora espantada. Como descobristes?

Peço-vos, não penseis que cedo a uma vulgar curiosidade. Compreendereis melhor quando vos disser quem sou.

Sois a irmã Serafina. Gosto tanto de vos ouvir cantar, que me informei.

Sim. Aqui, chamo-me Serafina, mas lá fora chamava-me Antónia Colonna.

Uma luz brusca entrou no espírito de Fiora, ao mesmo tempo que uma lufada de alegria:

Battista! exclamou ela. Mas era nele, claro, que vós me fazíeis pensar. Sois da família dele?

- As nossas mães são irmãs e nós temos a mesma idade. Se fôssemos gémeos, não éramos mais próximos um do outro. Desde que partiu que me escreve com alguma frequência... e, por vezes, fala de vós. Creio que eram ambos amigos?

Mais do que amigos! Dizeis que ele é para vós como um irmão. É um pouco o que ele foi para mim, um irmão, cheio de atenções e gentileza. Então, eu era refém do duque de Borgonha e foi graças a Battista que não caí no desespero em determinadas circunstâncias. Mas, após os funerais do duque Carlos, ele desapareceu e eu nunca mais soube nada dele. Ides dar-me notícias dele neste momento? acrescentou ela com uma certa animação. Suponho que regressou a Roma?

Não. Ficou lá!

A irmã Serafina desviou o olhar para que a sua companheira não lhe visse as lágrimas e em Fiora a alegria deu lugar à inquietação.

Ficou em Nancy? Mas porquê? Ele não foi ferido na última batalha que custou a vida ao duque e eu ouvi dizer que, devido à sua idade, não ficaria como prisioneiro!

Com efeito, ele podia ter regressado. Se ficou lá, foi por vontade própria. Pediu para ser admitido entre os monges encarregados de velar pelo túmulo onde está sepultado aquele a quem ele chamava o grande duque do Ocidente. Nunca mais voltará!

Desta vez, Serafina chorou sem procurar esconder-se e Fiora, incomodada, não soube como apaziguar, ou, pelo menos, adoçar a sua dor. Ao mesmo tempo, reprovava-se a si própria: reencontrado o seu amor, nunca mais pensara no pajem e deixara Nancy sem tentar vê-lo de novo. Mas a conduta de Battista não era menos incompreensível. Amava tanto o duque a ponto de querer ser seu servidor eterno? A ponto de enterrar com ele todas as esperanças a que tinha direito na vida? Querer ficar junto do túmulo? Que coisa absurda! Que acontecera, portanto, no lago Saint-Jean, aonde Battista guiara aqueles que procuravam o corpo do vencido? Que perturbação operara a descoberta do cadáver meio comido pelos lobos, na alma daquele rapaz que sonhava com a glória, que amava a vida e que, jovem, belo, rico e príncipe, não desejava mais nada? A não ser, talvez, o amor... um amor que só esperava por ele e que nunca ousara dizer o seu nome. Entretanto, Serafina continuou:

Ninguém, entre nós, compreendeu a sua decisão e menos ainda o nosso tio, o conde de Celano, com quem Battista tinha partido para se juntar aos exércitos de Borgonha. Ele tentou tudo para o trazer de volta, mas teve de defrontar uma vontade terrível, irredutível. Battista queria ser monge.

Que coisa insensata! Mas, enfim, pode-se entrar, assim, na religião sem o consentimento do chefe de família? O pai dele autorizou-o?

De maneira nenhuma. Ele alimentava grandes esperanças por Battista.

Nesse caso, por que não apelou ao Papa? Eu sei que vós sois uma das famílias mais poderosas de Roma.

Fomos, mas já não somos. Os Orsini é que são os mais poderosos, porque o príncipe Virgínio é amigo íntimo do conde Girolamo Riario, o preferido entre os quinze sobrinhos do Santo Padre. Evidentemente, não renunciámos à guerra contra essa família de feirantes, mas, neste momento, os riscos e os perigos são nossos.

Quinze sobrinhos? Que família! E tudo homens?

Não. Também há raparigas e casam-nas bem. Quanto aos rapazes, se não são cardeais, desemburram-nos para fazer deles verdadeiros senhores. O ”conde” Girolamo, que casou com a bastarda preferida do duque de Milão, conseguiu a Romanha e espreita Florença. Um outro é prefeito de Roma, o cardeal Gíuliano della Rovere é bispo de Lausana, de Avinhão, de Constança, de Mende, de Savone, de Viviers e de Vercelli. O seu palácio del Vaso, que nos tiraram, está cheio de objectos raros, de artistas, de eruditos e de poetas, porque ele interessa-se muito mais pelo pensamento grego, ou romano, do que pelos Evangelhos. Um outro, defeituoso fisicamente, casou com uma filha do futuro Papa Júlio II, que mandará Miguel Ângelo decorar a capela Sistina natural do Rei de Nápoles, que foi forçada a esse casamento, tal como Catarina Sforza. Não vos posso dizer tudo, mas dentro de pouco tempo o jovem Rafael Riario, que tem dezassete anos e estuda em Pisa, receberá o chapéu de cardeal por São Jorge, em Velabro, e esta não é, certamente, a última benesse que o Papa concede à sua família. Roma, e até a Itália inteira, não passam, para ele, de um imenso jardim, no qual pilha os frutos mais suculentos para os oferecer aos seus, ao mesmo tempo que espolia os que lhe desagradam.

E vós, os Colonna, desagradais-lhe?

É claro. Felizmente, ainda temos muitos amigos e partidários. Isso permite-nos fazer a essa gente todo o mal que podemos.

Fiora mal podia acreditar no que ouvia. Aquela pequena freira, votada, em princípio, à oração, ao perdão das injúrias, à renúncia e ao único amor de Deus, acabava de despir a doçura da sua aparência para deixar aparecer o fundo de uma alma plena de azedume e, talvez, de ódio. A jovem aprovava os assassínios com que se deitava, todas as noites, Roma. Então, veio-lhe, muito naturalmente, uma pergunta:

Foi de vossa inteira vontade que entrastes aqui, irmã Serafina?

Quando estivermos sós, prefiro que me chameis Antónia. A jovem calou-se por um momento, hesitando em entregar-se mais, mas decidiu-se, pensando, provavelmente, já ter dito de mais:

Quanto à vossa pergunta, fui eu que pedi para colocar o véu, para não casar com Leonardo della Rovere, aquele que casou com a napolitana. O meu pai evitou aborrecimentos mais graves ao abandonar àquele aborto a maior parte do meu dote. Confesso que estava revoltada quando aqui cheguei, mas agora já não tenho vontade de me ir embora. De que me serviria, se Battista não vai regressar?

Nos seus grandes olhos negros, semelhantes, na ocasião, aos do Papa por quem ela sentia uma espécie de vertigem, Fiora leu um desespero tão pungente que teve vontade de tomar

Cada cardeal era, de certo modo, cura de uma paróquia romana aquela criança nos braços, como uma irmã infeliz. Mas tudo dizia, na atitude de Antónia, que teria recusado essa piedade.

Amáveis-lo a esse ponto?

Continuo a amá-lo e amá-lo-ei sempre, enquanto viver. Mas, agora, punhamos as minhas misérias de parte! É dele que vos queria ouvir falar, porque vivestes muito tempo perto dele.

Mais de um ano: desde o primeiro cerco de Nancy até ao segundo.

Um ano! Teria dado a minha vida por esses meses e posso confessar-vos: tive ciúmes de vós, detestei-vos. Ele dizia que vós éreis tão bela... e tinha razão.

Mas não tínheis razão. Quem nos conheceu, o ano passado, poderia dizer-vos: éramos uma espécie de irmãos de armas, porque Battista era, também ele, um refém. Respondia com a sua vida se eu tentasse fugir. O duque Carlos sabia empregar todos os meios para obter o que queria. Sinto-me culpada por não ter procurado rever Battista antes de partir de Nancy e prometo-vos, que se conseguir regressar a minha casa, o que espero, que irei lá e será bom que Battista me diga o que lhe passou pela cabeça para agir assim.

De qualquer maneira, mesmo que ele regressasse, já não sou mais do que a irmã Serafina...

Sois noviça, como ele também deve ser. Tentai não pronunciar os votos tão cedo e rezai para que eu consiga fugir!

Com uma espontaneidade infantil, Antónia atirou-se-lhe ao pescoço e pousou nas suas faces dois grandes e sonoros beijos. As nuvens que um instante antes enevoavam os grandes olhos negros acabavam de dar lugar a um céu nocturno cheio de estrelas.

Farei tudo para vos ajudar! prometeu ela.

A jovem não teve de dizer mais nada. A irmã Querubina acorria, segurando as saias nas mãos para andar mais depressa e virando-se de vez em quando para ver se alguém a seguia.

Salvai-vos, irmã Serafina! disse ela. A nossa madre superiora vem para aqui com monsenhor, o cardeal vice-chanceler, que manifestou o desejo de vos ver, Dona Fiora!

O vice-chanceler? Quem é ele? perguntou a jovem. Sinto-me um pouco perdida no meio desses cardeais todos.

Mas a irmã Serafina já tinha fugido sem se despedir e desaparecera no meio dos limoeiros. Foi Querubina que se encarregou de responder:

Sua Eminência o cardeal Bórgia, espanhol e homem muito belo. Tem uns olhos... como duas brasas!

Um momento mais tarde, enquanto se ajoelhava para beijar o anel do prelado, Fiora pensou que a irmã Querubina, que fugira, aliás, tão depressa como tinha aparecido, emitira, na sua candura ingénua, um julgamento de uma grande justeza: sob as suas sobrancelhas negras, as pupilas de Rodrigo Bórgia ardiam literalmente, mas como o seu sorriso de belos dentes brancos era amável quando agradeceu à madre Girolama por se ter dado ao cuidado de o levar até à sua pensionista! No quadro austero da murça branca, o rosto desta estava da cor das belas cerejas com que Péronnelle fazia as suas óptimas compotas. E quando se afastou, Fiora constatou que o seu passo era de uma ligeireza completamente nova.

Imóvel no esplendor dos seus arminhos brancos de neve e dos seus veludos púrpuras, o cardeal esperou que ela tivesse desaparecido para se virar para Fiora que se tinha levantado e depois o seu olhar vasculhou a luxuriante vegetação em redor do banco. Sem dúvida pouco satisfeito com o seu exame, disse subitamente:

Demos alguns passos, está bem? Podíamos ir até àquele tanque que estou a ver além. Sempre gostei de fontes. São, juntamente com os sinos, as vozes mais harmoniosas que a terra pode oferecer ao Senhor. Há lá um banco, onde poderemos conversar...

Pelo que Fiora concluiu que o belo cardeal não gostava de música e que desejava, sobretudo, que ninguém escutasse o que tinha para dizer. O que a espantou: ela nunca o tinha visto antes e, se era enviado pelo Papa, como tudo fazia supor, não via muito bem o que teriam para lhe transmitir de tão confidencial.

Caminhando modestamente um pouco atrás do seu imponente visitante, ela não se pôde impedir de reparar que, sobre as luvas vermelhas, o anel pastoral não era o único ornamento, estava ao lado de pesados anéis enriquecidos de pedras preciosas, a ”capa magna” era bordada a ouro, sobre a murça de arminho a cruz de ouro, comprida como a mão de um homem, estava ornamentada com grandes rubis e o chapéu vermelho de abas largas, sinal distinto da dignidade que marcava o perfil imperial dos Bórgia, tinha laivos de ouro e um rico alfinete. Nem o cardeal d’Estouteville, que tanto impressionara Fiora, era assim tão faustoso. Quanto ao Papa, devia desaparecer por completo ao pé do esplendor do seu ”irmão em Jesus Cristo”.

Chegado ao banco indicado, o cardeal sentou-se, espalhando em seu redor um tal rio de tecidos e veludos que não ficou espaço algum para Fiora, que, aliás, não foi convidada a sentar-se. A jovem ficou, portanto, de pé diante dele, não ousando ser a primeira a romper um silêncio que o visitante parecia ter o prazer de prolongar. O seu olhar brilhante examinou a jovem com uma insistência que fez corar um pouco as suas rosetas e com um prazer evidente, que se abriu num sorriso afável. Por fim, decidiu-se a falar.

A despeito do que dizem, a estadia em Santo Sisto parece ter uma feliz influência na vossa saúde, dona Fiora. Estáveis num triste estado aquando da vossa chegada, mas parece que reencontrastes todo o vosso esplendor.

Se bem que lhe estivesse reconhecida por ele evitar os ”minha filha”, ou os ”minha pequena” habituais às gentes da Igreja quando se dirigiam aos simples mortais, Fiora ficou surpreendida pela sua curiosa maneira de começar. Era a maneira de um homem galante, sem dúvida, mas os padres cultivavam pouco, geralmente, os cumprimentos.

Agradeço a Vossa Eminência uma solicitude que me comove disse ela prudentemente mas não compreendo como pode ela fazer a diferença. Não me lembro de vos ter visto aquando da minha chegada ao Vaticano?

Mas eu, vi-vos: não aquando da vossa chegada, mas quando deixastes o palácio. Vós sois daquelas mulheres que despertam o interesse e eu quis saber mais acerca de vós. E isso foi relativamente fácil. Eu tenho excelentes relações com o cardeal d’Estouteville, a quem a vossa presença em Roma provoca grande embaraço.

Não vejo porquê. O seu papel limita-se, se bem compreendi, a dar a saber ao Rei de França que, por ordem do Papa, eu fui raptada a alguns passos da sua residência, sequestrada num navio e conduzida até aqui após uma viagem que durou o dobro do tempo que duraria normalmente.

Rodrigo Bórgia desatou a rir. Ele gostava de rir, isso permitia-lhe mostrar os seus belos dentes e ajudava o seu encanto junto das mulheres:

E achais esse papel fácil? Eu não tenho o privilégio de conhecer o Rei Luís e deploro-o, mas, pelo que ouvi dizer, esse género de mensagem tem poucas hipóteses de lhe agradar, sobretudo acrescida de condições que, quanto a mim, não podem ser aceites por um soberano. Frei Inácio Ortega, que eu conheço bem, não passa de um fanático perigoso e devia agradecer a Deus o facto de não ter sido executado. Eu tê-lo-ia feito. Quanto ao cardeal Balue, não passa de um pretexto cómodo para permitir a Sua Santidade imiscuir-se nos assuntos de França. Posso perguntar-vos quais são, ao certo, os sentimentos do Rei Luís por vós?

Fiora começava a achar que a conversa tomava um rumo estranho. A menos que aquela visita fosse uma armadilha, mas não lhe parecia que o Papa fosse o inspirador.

Conhecer os sentimentos do Rei foi sempre a mais difícil das empresas, monsenhor, porque ele é um mestre em dissimulação. No entanto, creio que tem amizade por mim, porque já o provou.

Mas não amor?

Nunca compreenderei de onde veio essa história. Pela minha parte, nunca ouvi dizer que o Rei tivesse amantes.

Já teve, quando era mais novo e elas até lhe deram filhos, mas na sua idade e com a sua saúde, que dizem má...

Se é, ou não, não tenho nada com isso, monsenhor. Se quiserdes acompanhar-me à capela, estou pronta a jurar pelos santos Evangelhos que não sou nem nunca fui sua amante. Foi por isso que, no outro dia, disse que o Papa tinha feito um negócio lorpa: Luís de França não cederá em nada por mim.

E, sobretudo, não abandonará Florença e, para o Santo Padre, a questão é essa. Foi por isso que vos vim ver.

Que esperais de mim? Que ajude o Papa a desfazer-se dos Médícis? Não conteis com isso! Eu sou florentina antes de mais e os Médicis são-me muito queridos. Não farei nada contra eles, nem com risco da minha própria vida.

Longe de mim semelhante ideia! Eu não gosto particularmente de Lourenço e do irmão, mas, a mim, é-me insuportável que Riario se transforme no senhor de Florença. Mas eu não vim aqui para vos falar de política, antes para vos dizer o seguinte: o palácio de um cardeal e, particularmente, o do vice-chanceler da Igreja, é um lugar de asilo inviolável, no seio do qual cessa a vontade do Papa.

Ele calou-se, talvez para deixar que as suas palavras adquirissem o peso do seu significado. Apenas se ouvia o som da fonte, cuja água escorria, em forma de chuva, no tanque de mármore branco. Como sentisse necessidade de retomar contacto com qualquer coisa real, Fiora mergulhou as mãos na água, deixando a água límpida deslizar sobre elas e refrescá-las.

O convento onde me encontro não é um lugar de asilo?

Não inteiramente. Puseram-vos aqui; podem fazer-vos sair, quer queirais, quer não. Não é o caso em minha casa.

Percebo muito bem, mas, então, por que razão me ofereceis um refúgio? Vós sois um dos mais altos dignitários da corte papal e...

Acabo de vo-lo dizer: não vim aqui para falar de política. Ficai a saber, apenas, que nem sempre aprovo a do Vaticano. Além disso, pode ser que eu esteja a cuidar do futuro ao obsequiar o Rei de França. Enfim, ficaria inconsolável se vos acontecesse algum mal, porque, como fidalgo que sou, gosto de me dedicar ao serviço das damas, tanto quanto aprecio uma obra de arte. E vós sois uma coisa e outra.

Fiora sacudiu as mãos, enxugou-as ao véu que lhe cobria a cabeça e virou-se para Bórgia, que se tinha levantado.

Falemos claro, monsenhor! Estou aqui em perigo?

Não imediato, talvez, mas não tardará. Ouvi uns rumores que tenho de confirmar. É claro que, depois do que suportastes, adivinho que vos é difícil confiar, mas escutai o seguinte: caso um acontecimento qualquer vos inquiete, ficai a saber que a partir de amanhã alguém da minha parte virá pescar no lago vizinho. Se precisardes de ajuda, atirai um véu como esse, com uma pedra embrulhada, por cima do muro que vedes além. Chegada a noite, saltareis, vós mesma, esse muro. Estarão à vossa espera. Aquilo foi tão surpreendente que Fiora não respondeu de imediato, tentando reflectir. No entanto, murmurou:

A vossa bondade confunde-me, monsenhor, mas, ao ir para vossa casa, não estaria apenas a mudar de prisão? Se quereis socorrer-me, ajudai-me a regressar a França.

Cada coisa a seu tempo! Não podeis deixar Roma sem preparação. A vossa fuga causará um turbilhão, que é preciso deixar estalar a seu tempo. Estais assim com tanta pressa de regressar a casa?

Tenho um filho de três meses. O pai dele morreu e só me tem a mim.

Mantende a esperança e confiai em mim. O importante é pôr-vos a salvo. Em seguida, faremos com que possais partir.

A conversa terminara. O cardeal já erguia uma mão cintilante de jóias para uma bênção, sob a qual Fiora se viu obrigada a curvar-se, mas não por respeito. Simplesmente, devido às aparências, porque acabava de perguntar a si própria se aquele homem de olhar acariciador seria, realmente, um príncipe da Igreja. Se ele tivesse vindo só e não escoltado pela madre Girolama, ela teria duvidado.

Reflecti! murmurou ainda ele sem mexer os lábios mas reflecti depressa! O tempo urge.

A samarra púrpura deslizou ao longo das lajes brancas com um frufru de seda. Fiora ficou a ver afastar-se a silhueta imponente do prelado por entre os maciços de folhagem. Que aquele desconhecido tinha encanto, era inegável, mas no seguimento das atribulações dos últimos dois anos, a desconfiança tornara-se-lhe natural. Que o belo cardeal quisesse obsequiar o Rei de França não era, em si, nada de extraordinário. Bastante mais novo do que o Papa, podia muito bem ambicionar a tiara papal e a amizade de França seria, então, importante, mas aquela vantagem inicial valeria o risco de dar asilo a uma fugitiva?

1 A coroa tripla que coroava o Papa.


O tempo passou-se mais depressa do que Fiora pensara, que foi surpreendida pelo fogo-de-artífício do pôr do Sol e pelos longos rastos vermelhos anunciando vento para o dia seguinte. Sobre aquele fundo sangrento, as árvores do jardim escureceram e a jovem teve frio. Dirigiu-se ao banco onde tinha deixado o bordado, meteu-o num saco de tela e regressou ao claustro cujos frescos se descoloriam sob a luz púrpura. A jovem seguia em passo lento, subitamente esmagada pelo sentimento da sua solidão e com a desesperante ideia de que estava perdida para sempre no coração de um mundo desconhecido e hostil, recheado de armadilhas tanto mais pérfidas quando se escondiam sob aparências sedutoras.

A necessidade de voltar a ver o seu bebé, a querida Léonarde, Péronnele e o seu Étienne sempre intratável, Florent, que tanto a amava e a sua Casa das Pervincas foi de repente tão violenta que a jovem passou um braço em redor de uma coluna ainda tépida do sol e apoiou-se nela, tal era a vontade de se agarrar a qualquer coisa sólida. Fiora fechou os olhos, deixando que as lágrimas corressem livremente.

Não choreis! cochichou uma voz doce, ao mesmo tempo que uma pequena mão quente se pousava na sua. Vim buscar-vos para vos conduzir à capela, porque chegou a hora das completas. Cantarei ao Senhor, mas também cantarei para vós!

Através do nevoeiro provocado pelas lágrimas, pareceu a Fiora que estava a ver, de novo, Battista e a ouvi-lo dizer: ”Amanhã é dia de Natal e nós somos ambos dois exilados. Se quiserdes, passarei o dia junto de vós e cantar-vos-ei canções da nossa terra.” O tempo passara, mas continuavam a ser exilados.- ele nas neves da Lorena, onde preferira enterrar-se e ela sob aquele sol romano, que não se parecia com nenhum outro.

Um impulso atirou-a para o pescoço da pequena irmã Serafina, que a abraçou:

Perdoai-me este momento de fraqueza, que não consegui reter murmurou ela. Estava a pensar nos meus, no meu filho...

O cardeal Bórgia não vos trouxe más notícias, ao menos?

Não. Mas, confesso-vos, não sei que pensar. Se quiserdes, podemos falar do assunto. Por agora, obrigada, obrigada pela vossa amizade...

Sorriram ambas e depois, de mão dada como duas rapariguitas, juntaram-se à dupla fila branca e negra das dominicanas que se dirigiam para a capela.

Como irmã Serafina, a prima de Battista pensava o melhor do cardeal vice-chanceler, que diziam grande esmoler, generoso e pleno de indulgência para com os pecados dos outros, mas como Antónia Colonna, o seu julgamento alterava-se curiosamente. A jovem era suficientemente sensata para entrar no jogo, porque a nobreza romana não tinha nenhuma simpatia por aquele bando de espanhóis vindos da sua província de Valença na bagagem do tio Calisto III. Tudo os tinha, então, oposto aos romanos: diferenças de carácter, de costumes e até de civilização. Os espanhóis vinham de uma nação ainda muito feudal. Tudo isso contribuíra para um desentendimento, sem contar com a forte xenofobia dos italianos que, individualistas até ao extremo, começavam agora a sentir de novo o chamamento das antigas civilizações e a impregnarem-se delas. Acharam, primeiro, grosseiros e pouco frequentáveis aqueles homens ainda marcados pelos furores da sua velha luta contra os Mouros, mas os recém-chegados tinham dentes grandes e o amor pelo fausto. Integraram-se rapidamente e, sob a batuta de Rodrigo, impuseram-se, gabando o gosto dos romanos pelas festas e, sobretudo, adoptando a sua moral bastante particular, que dizia que o crime podia ter a sua grandeza e que o homem, liberto dos antigos constrangimentos pela cultura, era mais ou menos único juiz do seu próprio comportamento.

No que dizia respeito ao vice-chanceler, a sua reputação estava, doravante, bem assente: a missa não era a sua ocupação principal e não tinham conta as suas amantes, das quais a favorita, uma tal Vanozza casada com um funcionário, lhe dera já dois filhos, Juan e César, reconhecidos pelo marido postiço, mas que o cardeal adorava e clamava, publicamente, do seu sangue. No entanto, Varozza, ricamente instalada numa bela casa da praça Pizzo di Merlo e possuindo uma vinha numa das colinas de Roma, não podia ambicionar a exclusividade de um homem do qual se dizia e a irmã Serafina corou violentamente ao pronunciar aquelas palavras impuras que ”mais carnal não podia existir”.

Creio disse ela concluindo que antes de vos colocardes sob a sua protecção, deveis pensar bem no que arriscais. Ele não vos disse nada acerca desse perigo iminente?

Nada. Não tem a certeza e quer certificar-se de certas coisas.

Também pode ser um perigo imaginário, para vos atrair com mais segurança. Vós sois muito bela e essa é, sem dúvida, a principal razão para que ele se interesse tanto por vós, vindo até visitar-vos aqui sem autorização do Papa.

Nesse caso, que devo fazer? Ele também me disse que me ajudaria a regressar a França.

E, evidentemente, vós estais pronta a correr todos os riscos só pela felicidade de reencontrar os vossos?

E para poder fazer algumas perguntas ao nosso Battista, não esqueçais!

Não esqueço e gostaria de vos poder ajudar, mas acreditai-me: não vos precipiteis! Eu vou fazer chegar uma carta ao meu tio, o protonotário Colonna, pedindo-lhe que me venha aqui falar. O Papa não gosta dele, mas é um homem fino e astuto, que consegue sempre saber o que quer. Ele já nos salvou de muitas coisas más.

Aquela promessa reconfortou Fiora. Na situação em que se encontrava, precisava muito de amigos. Sem eles não voltaria a ver a doce região do Loire.

A jovem decidiu, portanto, seguir o conselho da sua companheira e usar aquela virtude da paciência que Demétrios dizia ser a mais importante de todas. Talvez porque era a mais difícil de praticar. De qualquer maneira, não era a única e, ao escutar a voz de cristal da sua nova amiga cantando louvores à Mãe de Deus sob as abóbadas brancas da capela, veio-lhe a ideia de que as orações com que Léonarde devia, desde a sua partida, sobrecarregar Deus, a Santíssima Trindade, a Virgem Maria e os santos e santas que mereciam a sua confiança, tinham, talvez, servido para encontrar um anjo no seu caminho.

O assunto da visita do cardeal Bórgia ainda não tinha terminado, porque, ao sair do refeitório, a madre Girolama levou-a consigo para dar alguns passos sob as arcadas do claustro iluminado por dois grandes círios amarelos.

Espero começou ela fixando a ponta dos pés que Sua Eminência não vos tenha dito nada de inquietante? É raro a nossa modesta casa ser honrada a este ponto.

Fiora pensou, irreverentemente, que a madre Girolama ardia de curiosidade, como uma vulgar irmã leiga e escondeu um sorriso ao abrigo do véu branco.

Fui eu a primeira a ficar surpreendida, minha mãe, mas, de facto, Sua Eminência veio para me exortar a ter paciência e a ser obediente. As maneiras um pouco vivas, talvez, que tive diante do Santo Padre na noite da minha chegada inquietaram-no. Ele sabe, com efeito, que pertenço ao séquito do Rei de França e fez-me compreender que, para o bem de todos, é preferível que eu me submeta a uma vontade contra a qual, de facto, não tenho forças.

A jovem seria incapaz de dizer de onde lhe viera a inspiração para aquela obra de arte de hipocrisia, mas ao ver a sua companheira aprovar silenciosamente com ar compenetrado, teve quase vergonha de enganar assim aquela santa mulher que a tinha acolhido tão generosamente.

A santa obediência, minha filha suspirou a madre Girolama. É o nosso primeiro dever entre todos e eu fico agradecida ao cardeal por vo-lo ter vindo recordar, já que a vossa conduta pode ter alguma importância para a política de Sua Santidade. Eu conheço pouco o cardeal, mas sei que é um grande diplomata, muito preocupado com o seu cargo. Nesse ponto, só fazemos bem se seguirmos os seus conselhos. E exorto-vos a que os sigais!

A cem léguas de distância de imaginar que género de conselhos o vice-chanceler acabava de dispensar à sua pensionista, a madre Girolama foi meditar, como fazia sempre todas as noites antes de se deitar, na vida eterna e nos melhores meios de guiar nessa via as jovens almas confiadas à sua guarda. Fiora, essa, um pouco atrapalhada, preferiu empurrar a porta da capela para passar um momento na sua obscuridade apaziguadora, em frente da pequena chama rosada que velava junto do tabernáculo. A despeito de uma piedade tépida, compreendia por vezes Léonarde, que ao menor aborrecimento ia depositá-lo aos pés de um altar qualquer. Talvez lhe fosse dado receber, do alto, a luz?

Mas nada aconteceu; nem nessa noite nem nas noites seguintes e passaram-se cinco dias sem que qualquer notícia animasse, para Fiora, a vida regrada do convento. Se a irmã Serafina fizera passar, por intermédio da irmã Querubina, um bilhete para o palácio do cardeal Colonna, este ainda não aparecera em Santo Sisto.

A impaciência tomava conta de Fiora, porque não havia nada mais enervante do que temer uma coisa sem saber ao certo o que era. Com a aproximação do Natal, o tempo mudou e tornou-se pior ainda do que no momento da sua chegada. Desencadeara-se uma tempestade sobre o Mediterrâneo e as rajadas de vento de oeste varriam a costa tirrena, levando, por vezes, as frágeis casas dos pescadores. Na cidade, o vento arrancava dos telhados as telhas redondas e os ramos das árvores e fazia desabar um pouco mais as ruínas cada vez menos altaneiras dos antigos palácios imperiais. Precipitava-se pela mais pequena das portas abertas, apagava as velas da capela e fazia voar as cinzas das braseiras. As correntes de ar acabaram a obra da malária e a irmã Prisca morreu na primeira noite de Inverno nos braços da pobre Querubina cuja figura, normalmente tão alegre, estava inchada das lágrimas.

Quando a levaram para a terra, vestida com o hábito severo da ordem e de pés nus, Fiora assistiu, como as outras, ao serviço fúnebre e ao enterramento que se seguiu, mas só o seu corpo estava presente. Ouvia o uivo do vento, que fazia estalar os hábitos das freiras como se fossem estandartes nos respectivos paus e o seu espírito vagabundeava pelo jardim, junto ao muro que dava para o lago. O enviado do cardeal estaria no seu posto a despeito daquele tempo horroroso? Parecia-lhe pouco provável.

No entanto, mal o serviço terminou, pegou numa manta preta e quis descer ao jardim para ter a certeza. Tinha reparado no local exacto do muro por onde seria necessário lançar o sinal branco e segui-lo chegada a noite. Havia ali um velho pé de glicínia que devia ter conhecido a sua infância no tempo dos Guelfos e dos Gibelinos e que se agarrara firmemente às pedras do muro com os seus ramos cinzentos e nodosos. Graças a ela, a transposição do obstáculo far-se-ia com relativa facilidade. Mas, no momento em que se dirigia para os canteiros, a madre Girolama foi ter com ela.

Tendes intenção de descer ao jardim com este tempo?

Por que não, minha mãe? Não passa de uma tempestade e eu preciso de respirar outra coisa para além do fumo das velas.

Não respirastes o suficiente no cemitério de onde vimos? Pela minha parte, estava com dificuldade em me manter de pé! Mas a questão não é essa. Sois chamada ao parlatório.

Eu? É outra vez... o cardeal Bórgia?

O cardeal não ficaria no parlatório. Ele tem todo o direito de transpor a clausura. É de uma dama que se trata e ela mostrou uma autorização para vos falar que tem o selo privado de Sua Santidade.

Eu não conheço ninguém aqui. Quem é?

Ela deu o nome de Boscoli e eu não vos sei dizer mais nada, senão que está de grande luto. Uma viúva, provavelmente.

Boscoli? disse Fiora, reflectindo em voz alta. O nome não me diz nada. Sabeis mais qualquer coisa sobre essa dama?

Não vos posso responder, Dona Fiora. De qualquer maneira, não arriscais nada falando com ela. Quereis que vos acompanhe?

É muita bondade vossa, mas talvez seja melhor ir sozinha.

Nesse caso, sobretudo, lembrai-vos das boas resoluções que monsenhor vice-chanceler obteve de vós e guardai na memória que essa dama é, de certo modo, uma enviada do nosso Muito Santo Padre.

Tentarei lembrar-me, Reverenda Madre.

Fiora pensou que tudo dependia do que a dama em questão lhe ia dizer, mas que fosse uma enviada de Sisto IV só fazia

Nome de dois partidos poderosos que dividiram a Itália do século xii ao século xv. Os primeiros eram partidários dos papas, os segundos, dos imperadores da Alemanha. As suas lutas ensanguentaram as cidades da Península e prolongaram-se até à invasão francesa de 1494.


aumentar a sua desconfiança. Sem se dar ao trabalho de tirar a capa negra, a jovem dirigiu-se para o parlatório do convento.

Este era uma grande sala em pleno arco abobadado, caiada e dividida ao meio por uma espessa grade de ferro. Do lado do claustro, o único ornamento era um crucifixo de bronze, mas do lado dos visitantes uns frescos altos, coloridos, retratavam o martírio do bem-aventurado Sisto II, decapitado no ano 258 com quatro dos seus diáconos no cemitério de Calisto. O artista pintara o santo maior do que as outras personagens para mostrar a que ponto lhes era superior.

Ao abrir a porta, que teve o bom gosto de não ranger, Fiora viu apenas uma silhueta negra, de formas amplas, que lhe virava as costas. A visitante estava em contemplação diante da cena em que um carrasco musculoso decapitava a cabeça aureolada de ouro do mártir. E Fiora, pela primeira vez, abençoou as horríveis sandálias de corda trançada que calçava no convento, nas quais os seus pés nunca estavam quentes, porque lhe permitiam avançar até à grade sem fazer mais barulho do que um gato. A jovem desejava observar a visitante, mas não viu grande coisa para além de um amplo manto de um bom tecido negro de ramagens prateadas e cujo capuz estava orlado de pele de raposa escura. E como lhe era impossível saber mais, decidiu-se:

Posso saber, Madonna, a que devo a honra da vossa visita? disse ela com voz clara.

A mulher levou o seu tempo para se virar, mas, quando o fez, Fiora teve de fazer apelo a toda a sua vontade para não lançar um grito que talvez a outra esperasse. Aquela que a olhava com um sorriso de desdém e uns olhos brilhantes de alegria maldosa não era outra senão Hieronyma...

CAPÍTULO VII O ESCRIBA REPUBLICANO

A despeito da separação a que a grade a impunha, Fiora recuou instintivamente um passo, como teria feito se lhe tivesse aparecido uma serpente no caminho, mas o seu rosto permaneceu perfeitamente impassível. Pelo contrário, Hieronyma aproximou-se da clausura até tocar nas grades com a sua mão enluvada de negro.

Bom dia, prima! disse ela com uma voz chiante que Fiora não lhe conhecia e que era devida, sem dúvida, aos dois dentes que lhe faltavam no maxilar superior. Levou tempo a encontrarmo-nos de novo, mas espero que aprecies as circunstâncias presentes no seu justo valor?

Anunciaram-me uma senhora Boscoli! Que comédia é esta?

Comédia? De maneira nenhuma: é esse o meu nome. Há pouco mais de um ano casei aqui mesmo com o senhor Bernardo Boscoli, um jurista da corte pontifícia. Infelizmente, tive a infelicidade de o perder o Verão passado... a peste!

Com a ponta de um dedo, ela esmagou uma lágrima fictícia, ao mesmo tempo que Fiora oferecia a si mesma o luxo de um sorriso carregado de desdém:

Isso não é nada lisonjeiro da tua parte: escolher a peste após alguns meses, apenas, de casamento! Mas é, pelo menos, uma atitude que eu posso compreender. E agora, diz-me o que vens fazer aqui e vai-te embora!

O rosto de Hieronyma, que ainda não tinha perdido o brilho da sua maturidade maravilhosa, ficou púrpura sob o impulso de uma cólera brutal que fez brilhar os seus olhos negros e depois amareleceu de uma vez só, como se o fel que lhe enchia a alma acabasse de se infiltrar sob a sua pele loura. Ela engordara durante aqueles dois anos, mas adquirira uma espécie de majestade perversa que lhe ia muito bem e Fiora pensou que a Górgona da lenda devia parecer-se com ela. Retomando o fôlego que a insolência da sua inimiga lhe cortara por um momento, pareceu inchar ainda mais.

Baixa o tom, minha filha! Tu não estás aqui em posição de dar ordens sibilou ela. De facto, já não és grande coisa e basta um piparote para te mandar de novo para o sítio de onde vieste, para a palha de uma prisão, para o cadafalso.

O gosto amargo do ódio invadiu Fiora e encheu-lhe a boca. Aquela mulher miserável, que tinha assassinado o seu pai, destruído a sua vida, que ousava prostituir o seu corpo ao serviço de Satã e que escapara por milagre à justiça dos Médícis, ousava ir ali desprezá-la e insultá-la. Sem a grade, talvez se tivesse atirado sobre ela para a estrangular com as suas próprias mãos e livrar, por fim, o mundo de uma criatura imunda. Um violento esforço de vontade salvou-a das manifestações de uma cólera que teria dado, talvez, prazer a Hieronyma. Mais direita do que nunca, apontou-lhe um dedo e deixou cair:

Eu sou infinitamente mais do que tu nunca serás, apoiante do demónio. E já te escutei o suficiente!

Girando nos calcanhares, a jovem virou as costas à grade e dirigiu-se calmamente para a porta do parlatório. Um grito de Hieronyma reteve-a:

Espera! Eu ainda não disse tudo!

O que tu podes dizer não me interessa.

A sério? Tu, que não quiseste ser minha nora, gostarias, talvez, de saber que vais ser minha sobrinha?

O quê?

O grito de Fiora ecoou no silêncio. Com as mãos enfiadas nas mangas forradas de pele de raposa, Hieronyma olhava para a sua adversária por baixo, como se procurasse o local sensível onde poderia ferir, e mordia nervosamente o lábio inferior. Escondida por trás das peles como um animal maldoso no fundo do

1 Ver Fiora e Lourenço, o Magnífico


seu covil, gozava visivelmente ao ver empalidecer o belo rosto da jovem. Esta, finalmente, encolheu os ombros.

És louca! lançou ela, desdenhosa.

Olha que não! O Muito Santo Padre, que é muito amigo da nossa família e de quem Francesco Pazzi, meu cunhado, se tornou banqueiro, o Muito Santo Padre, portanto, após longas hesitações acerca do destino que convinha reservar-te, quis pedir a nossa opinião. Matar-te seria demasiado simples, mesmo que acrescentássemos à coisa alguns adornos e não serviria para nada. Ao passo que, casada com Cario Pazzi, meu sobrinho, serias ainda de alguma utilidade para a nossa casa.

Eu já sou casada.

Eu sei. Cumprimentos, aliás! O conde de Selongey, o sedutor embaixador do duque de Borgonha em Florença! Conseguiste um grande golpe! Infelizmente, ele está morto, e tu és viúva... como eu.

E tenciono continuar assim! Portanto, depois de teres berrado por toda a Florença que eu era indigna do mais miserável dos homens, depois de teres tentado reduzir-me ao estado de mulher pública, tens a audácia de quereres casar-me com o teu sobrinho? Por quem te tomas? Esqueces que me arruinaste?

Arruinei? Achas? A mim, parece-me que não estás tanto como pretendes. Os Médicis trataram disso. Agnolo Nardi, em Paris, está em vias de te entregar uma bela fortuna, sem contar com o que os Médicis guardaram, como a villa de Fiesole, por exemplo, que pode regressar à tua posse. Sem contar com os favores do Rei de França, sem contar...

Contas demasiado! rugiu Fiora, enjoada. Sinto vergonha por teres usado, quando eras rapariga, o nome Beltrami e lamento que tenhas abandonado o dos Pazzi, que te convinha às mil maravilhas por ser uma família de piratas. Nunca infligirei ao meu filho a vergonha de ver a sua mãe usar esse nome! Vai sonhar para outro lado!

Talvez venhas a ser obrigada a admitir que os meus sonhos são a simples realidade. A escolha que te é proposta é reduzida: ou te casas com Cario, ou serás executada.

Sem esperar pela resposta do Rei de França? Espantar-me-ia muito.

Pobre inocente! A tua morte já está decidida. Se o Rei não aceder às reclamações do Santo Padre, receberá, em troca, as profundas lamentações do Vaticano. O clima de Roma é insalubre, toda a gente o sabe. Terás sido vítima da febre dos pântanos. A tua única hipótese de vida é aceitar o que eu te ofereço, com, evidentemente, o acordo do Papa.

Nunca! Prefiro a morte.

E a do teu filho? Nós sabemos onde ele está. Será muito fácil fazê-lo desaparecer. Pensa, prima, mas pensa depressa! Amanhã vimos buscar-te.

Se o olhar de Fiora pudesse matar, Hieronyma teria caído morta. O furor que se apoderou dela foi tão violento que aniquilou a angústia, o desespero e a manteve de pé, direita e orgulhosa diante daquela criatura demoníaca que de mulher só tinha a aparência. Fiora adivinhou que não podia, fosse a que preço fosse, permitir que a outra visse que as suas ameaças a tinham tocado profundamente, porque, então, aquela mulher não cessaria de abusar do poder que pensava ter sobre ela. Uma ideia nasceu na sua mente: Hieronyma exagerava, talvez, o seu poder, sobretudo no que dizia respeito ao pequeno Philippe. Os que o rodeavam deviam guardá-lo bem e, por outro lado, o primeiro cuidado de Léonarde, uma vez liberta das cordas que a atavam, fora, certamente, correr a Plessis para se queixar violentamente. A criança devia estar bem protegida.

Uma vez mais, ela virou as costas sem uma palavra e transpôs a porta do parlatório. A voz odiosa de Hieronyma perseguiu-a.

Não penses que foges! As portas do convento estarão guardadas esta noite.

O pesado batente da porta, ao fechar-se, cortou aquela última irrupção de fel. Esgotada pela tensão nervosa que impusera a si própria, Fiora encostou-se a ele e fechou os olhos, esperando que o seu coração recuperasse um ritmo normal. Reabriu-os quando uma mão se pousou no seu ombro:

Não há um minuto a perder disse a voz doce da irmã Serafina. É preciso preparar a vossa fuga. Aquela mulher é abominável.

Estivestes a ouvir?

Tive essa curiosidade e peço-vos perdão. Eu sei, as paredes são espessas e a porta também, mas quando a entreabrimos... Não podeis cair nas mãos dessa criatura.

Conhecei-la?

A minha mãe conhece-a e posso dizer que não tem boa reputação. Mora no palácio que o Papa deu, no Borgo, a Francesco Pazzi e dizem que é ela que manda. Mas, não percamos mais tempo! Eu vou ao jardim atirar um véu branco por cima do muro. É melhor não irdes vós mesma.

Quando ela ia partir, Fiora reteve-a por uma manga:

Um momento! Eu agradeço-vos muito, mas já vistes o tempo que está? Certamente que não está tempo para pescar no lago e ninguém, certamente, espera o nosso sinal.

Também ontem fazia mau tempo e antes de ontem. No entanto, o enviado do cardeal estava lá. Num dos extremos, entre os muros da cidade e o lago, há uma espécie de ruínas, perto das quais ele está.

Fostes lá ver?

Onde pensais que rasguei o hábito antes de ontem?

A irmã Serafina, com efeito, recebera nesse dia uma reprimenda da parte da mestra das noviças pelo grande rasgão no seu hábito. Ela pretendera tê-lo rasgado contra um dos bancos do refeitório, mas a peça de vestuário trazia uns traços castanhos-esverdeados dificilmente imputáveis a um móvel, ainda por cima encerado de fresco. O assunto ficara concluído com uma série de Avé-Marias na capela com os braços em cruz, prova de que a noviça saíra bastante cansada e que, agora, provocava alguns remorsos em Fiora.

Eu vou lá concluiu ela. Não quero que sejais punida de novo.

Não tenhais medo: eu conheço a fundo as armadilhas da glicínia e é melhor que ninguém vos veja no jardim neste momento.

De qualquer maneira não servirá de nada. Ouvistes tão bem como eu: esta noite o convento estará guardado.

Certamente que não do lado do pântano. Esse lado é muito mais vasto. Além disso, quem se aventurar nele sem auxílio atolar-se-á irremediavelmente e conhecerá uma morte horrível. Por mais avisada que esteja, a signora Boscoli não sabe tudo.

Um momento mais tarde, Antónia regressou para dizer à sua amiga que o sinal fora dado e que o enviado de Bórgia estava lá.

Esta noite cochichou ela acompanhar-vos-ei até ao muro para vos mostrar o local por onde atirei o véu. E agora recuperai a confiança! Ainda por cima, já não chove...

Não passava de uma acalmia. Durante a refeição da noite, que as freiras comiam sempre ao som de uma leitura piedosa, a tempestade recomeçou e Fiora, incapaz de se interessar pela Cidade de Deus de Santo Agostinho, escutava com alguma inquietação as rajadas de chuva nos vitrais e o assobio do vento por baixo da porta do refeitório. De tempos a tempos procurava o olhar da irmã Serafina, mas esta devolvia-lhe um rosto de tal modo sereno que a jovem acabou por se tranquilizar. No fim de contas era melhor, para que a evasão tivesse sucesso, que o tempo estivesse mau em vez de uma bela noite doce, clara e constelada de estrelas indiscretas.

Após o último ofício e a reverência à madre superiora, Fiora regressou à sua cela para ali esperar que a sua amiga a fosse buscar. Não se despiu, contentando-se em estender-se sobre a cama depois de ter soprado a vela. Como estava muito frio e como Querubim, para seu desgosto, se tinha esquecido de acender a braseira, estendeu o manto por cima de si. Subitamente, ouviu um ruído que lhe gelou o coração: no exterior, alguém tentava virar a chave na fechadura da sua porta.

A decepção foi tão violenta que quase gritou. Todas as suas esperanças desapareciam de repente e teria de suportar a escolha abominável com que a ameaçara Hieronyma: casar com aquele Cario desconhecido e que a repugnava antecipadamente, ou morrer: o altar ou o cadafalso!

Philippe! gemeu ela do fundo da sua angústia porque me abandonaste? Sem a tua paixão pela guerra, teríamos sido felizes.

Quanto tempo ficou ela assim, de olhos muito abertos para as trevas do seu quarto, escutando o vento a rugir na galeria e a fazer ranger os ramos das árvores? Seria impossível de avaliar, mas, de qualquer modo, não fecharia os olhos antes do regresso do dia... E então, de repente, ouviu-se junto à porta um ligeiro ruído e uma forma negra, mais negra ainda do que a escuridão, deslizou até junto do leito:

Estais pronta? sussurrou a irmã Serafina. Instantaneamente, Fiora pôs-se de pé:

Como fizestes para entrar? Alguém fechou a minha porta e eu ouvi a chave na fechadura.

Foi, sem dúvida, a nossa madre Girolama. A dama Boscoli deve ter tomado as suas precauções, mas, felizmente, esqueceram-se de tirar a chave. E agora vinde, mas primeiro envolvei-vos no vosso manto. É preciso ficar tão invisível quanto possível.

Ela própria se fundia por completo na noite e, sem a segurança tranquilizadora da sua mão, Fiora poderia pensar que falava com um fantasma. Uma atrás da outra, saíram ambas para a galeria e depois mergulharam na tempestade e no jardim. Fiora teve a impressão de mergulhar numa floresta submarina. Não havia um ramo, uma folha que estivesse imóvel e que não sacudisse a sua carga de água.

Não vejo nada! murmurou ela, cega por uma bofetada molhada que lhe atingiu o rosto em cheio.

Não tenhais medo, eu conheço o caminho de cor. Sou capaz de vos levar até ao muro de olhos fechados.

Pela minha parte, quer estejam abertos, ou fechados, a diferença é igual. Que noite!

Não vos preocupeis! Os guardas do convento estão abrigados onde podem e no pântano não deve haver nem um gato. Vede, estamos a chegar!

Pouco a pouco, Fiora foi vendo e, por fim, distinguiu, mesmo à sua frente, uma massa mais negra ainda, que era o muro coberto de plantas. A irmã Serafina guiou a mão que segurava até que esta se fechou sobre um ramo espesso:

Eis a glicínia. Trepai! Quando estiverdes no alto, assobiai! Ou me engano muito ou aquele que vos espera está mesmo junto do muro... Que Deus vos guarde!

Às apalpadelas, Fiora procurou a cabeça da noviça e beijou-a.

Por que não vindes comigo? Tenho medo que fiqueis em perigo quando se aperceberem da minha fuga.

Não tenhais. Mesmo que a madre Girolama duvide de qualquer coisa, não dirá uma palavra.. Ela gosta muito de mim, ao mesmo tempo que detesta o Papa, a sua tribo e os seus amigos. Estou certa que no fundo do seu coração ficará contente com o seu fracasso.

Mas, ela fechou-me na minha cela?

Simples descargo de consciência. Ela deixou a chave na porta. Quando virdes Battista, abraçai-o pela prima Antónia e dizei-lhe...

Confiai em mím. Sei exactamente o que lhe vou dizer. Com decisão, Fiora empunhou uma braçada de ramos a escorrer água e começou a trepar para o topo do muro. Chegou lá acima sem grande dificuldade, mas foi preciso agarrar-se com força para não ser levada pelo vento que batia como um chicote. Então, ouviu uma voz:

Não assobieis! Estou aqui! Ouvi-vos chegar. Descei suavemente para não desequilibrar a barca.

Ela passou para o outro lado do muro e apalpou com os pés para encontrar apoio. Aquela descida pareceu-lhe durar uma infinidade de tempo. Subitamente, uma mão fechou-se sobre uma das suas pernas e depois sobre as duas.

Já vos tenho segura. Deixai-vos cair!

Ela deslizou, mas as mãos em questão já lhe apertavam a cintura e ela viu-se sobre um soalho movediço, que só podia ser o da barca. O homem segurava-a contra si com firmeza e, para sua grande surpresa, a jovem respirou um delicado perfume de âmbar. No entanto, o que ela tocava era um tecido rude, um burel qualquer e, aliás, a grande silhueta que ela mal distinguia era a de um monge.

Peço-vos perdão por estes dias de espera disse ela docemente. Este tempo abominável...

Chhh! Falaremos mais tarde. Sentai-vos ali e não vos mexais!

Ele instalou-a no fundo do esquife e depois, empunhando uma longa vara, mergulhou-a na água lodosa e dirigiu-se para a margem. Mas quando ele disse as últimas palavras, quase com naturalidade, Fiora identificou ao mesmo tempo a voz e o perfume. A jovem não foi capaz de guardar para si a descoberta:

Como, monsenhor? Viestes vós mesmo? Fostes vós que esperastes estes dias todos?

Ela ouviu-o rir suavemente:

Não. A minha ausência teria sido notada no Vaticano. Simplesmente, o meu servidor tinha ordens para me prevenir quando fizésseis o sinal. Mas, agora, calemo-nos! Este pântano passa por ser assombrado, mas dois fantasmas a conversarem assim animadamente, como numa sala, pode levantar suspeitas.

Fiora guardou silêncio enquanto o seu companheiro se consagrava à navegação que o vento não facilitava e que se tornou ainda mais difícil quando abandonaram o abrigo do muro. A barca deslizou lentamente sobre a água espessa e, por vezes, atravessava maciços de caniços, pelos quais roçava. Apesar do frio, o odor a lodo e vegetais apodrecidos era penoso e, no seu manto ensopado, Fiora tremia. Mas não só porque se sentia molhada. Um pouco de medo aumentava o seu mal-estar por se sentir assim entregue por completo a um homem em quem não confiava totalmente. Que a tivesse ido buscar era incrível e não se explicava de modo racional. A menos que esperasse um pagamento que a jovem não se sentia disposta a dar-lhe...

O pequeno barco entrou uma última vez nos caniços, bateu em qualquer coisa dura e parou.

Conseguiste, monsenhor? disse uma voz em espanhol.

Consegui. Vai buscar os cavalos e depois, quando tivermos partido, afunda a barca.

Os cavalos estavam abrigados na casa em ruínas que a irmã Serafina assinalara a Fiora. Bórgia pegou em Fiora pela cintura e içou-a para um deles, porque a jovem estava demasiado transida para montar sozinha e depois saltou para o seu com uma ligeireza que traía uma longa habituação. Então, ele inclinou-se e pegou na brida de Fiora:

Eu vou guiar-vos. Temos bastante caminho a percorrer e infelizmente não podemos ir muito depressa, porque temos de passar por ruas que são verdadeiros charcos. Agarrai-vos bem... e tentai não bater tanto os dentes! Tendes frio a esse ponto?

Estou gelada!

Não penseis nisso! Quando chegarmos, encontrareis tudo o que for preciso para vos reconfortar. Mantende o vosso espírito fixo lá em cima! Tudo é preferível a casar com Cario Pazzi!

Daquela viagem, que a fez atravessar de norte a sul uma Roma nocturna batida por uma chuva diluviana, Fiora guardaria a recordação de uma espécie de pesadelo. O seu companheiro arrastou-a por um túnel negro e sem fim, de onde surgiam, por vezes, fustes de colunas esbranquiçadas, paredes arruinadas, um coto de vela vermelho balançando à porta de uma taverna e, por vezes, as pedras enormes e cinzentas de um palácio à porta do qual a resina dos potes de fogo não passava de brasas privadas de chama. Ouviam-se os ecos de uma festa, o som dos alaúdes e dos tamborins atravessar essas muralhas ou ainda, no exterior de um cabaré, os berros dos bêbedos e as canções acerca da bebida, mas a maior parte do tempo cavalgaram por uma cidade silenciosa como um cemitério. E Fiora tinha cada vez mais frio.

O ataque aconteceu quando estavam a chegar ao Corso. Saídos das sombras densas do palácio de San Marco construído em tempos pelo cardeal Barbo, uns homens atiraram-se à cabeça dos cavalos e arrancaram deles os cavaleiros, que rolaram por terra. Aquilo foi tão súbito que Fiora, meio atordoada, não teve tempo de ter medo, mas já Bórgia se levantava com uma ligeireza inesperada num homem com a sua corpulência e, blasfemando com uma exuberância que honrava o vocabulário de um príncipe da Igreja, apunhalou o mais próximo dos seus assaltantes. Uma lâmina brilhou na sua mão e ouviu-se um grito de dor. Mas dois dos outros bandidos, que estavam ocupados a segurar os cavalos, lançaram-se sobre ele. Fiora, corajosamente, levantava-se já para tentar ajudar o seu companheiro, atirando-se às costas de um dos agressores, quando uma voz seca estalou:

Parem ou largo os meus cães!

1 Que foi o Papa Paulo II. O seu palácio é hoje o palácio Veneza, que Mussolini tornou célebre.


Uns latidos furiosos sublinharam aquelas palavras e à luz da lanterna que segurava numa mão, viram ambos um homem que devia ter trinta e cinco anos, todo vestido de negro e com um grande capuz sem ornamentos enfiado até aos olhos. Na ponta de uma trela dupla enrolada em redor do seu punho esquerdo, dois grandes cães, tão negros como o dono, rosnavam mostrando os dentes impressionantes. Já os ladrões saltavam para os cavalos e fugiam sem mais palavras, abandonando sem hesitar o companheiro que arquejava numa poça de lama.

O recém-chegado aproximou-se dele e virou-o com a bota.

Não dura muito mais tempo constatou ele. Aliás, os homens de Soldan passam daqui a pouco. Eles encarregam-se dele.

A luz que ele erguia para examinar o moribundo desenhava um perfil acerado de ave de rapina, olhos profundamente enterrados no arco espesso das sobrancelhas e uma boca delgada e sarcástica. Endireitando-se, o homem atou os seus cães a um anel de ferro engastado na parede de uma casa vizinha, aproximou-se depois daqueles que acabava de socorrer e ergueu a lanterna para melhor os ver. A luz apanhou primeiro o vestido branco, evidentemente monástico de Fiora, antes de passar ao hábito castanho com que o seu companheiro estava vestido.

Uma freira!... e um monge! Que fazem a esta hora pelas ruas de Roma, meus amigos? Foge-se do convento, onde a vida, talvez, não tem alegria, para irem fornicar?

Salvastes-nos, estamos-vos agradecidos disse a voz autoritária de Bórgia. Não retireis mérito ao vosso feito insultando-nos! Tomai isto!

O ouro que subitamente brilhou na palma da sua mão arrancou um sorriso ao recém-chegado, que fez erguer a lanterna até ao rosto que o homem devia ter reconhecido.

Ah! Parece que me enganei: temos aqui um cardeal! Guardai o vosso ouro, monsenhor, sinto-me bem pago pela satisfação de ter trazido socorro ao meu próximo.

Quem sois? Parece-me que já vos vi?

Funcionário encarregado da polícia

O homem pareceu ficar ainda maior tanto se endireitou, e foi com orgulho que lançou:

O meu nome é Stefano Infessura, jurista, escriba, republicano e homem livre!

O Infessura! Eu conheço-vos! O inimigo da Igreja, do Papa e de toda a autoridade.

Não de todo, pois sou inimigo da desordem e, se sou amigo da liberdade, não é, certamente, a que vivemos nesta época: a liberdade de matar, de oprimir, de degolar gentes nas esquinas das ruas, a liberdade de transformar Roma num lugar perigoso, a vossa liberdade e a dos como vós. A minha não é a que vos permite a vós, príncipe da Igreja, raptar durante a noite uma religiosa, Evidentemente, ela é belíssima!

Eu não sou religiosa protestou Fiora cujo rosto, naquele momento, ficou iluminado pela lanterna. Sou uma prisioneira que se evade. E agora deixai-nos prosseguir o nosso caminho porque, se for apanhada, serei morta!

Ah!

A lanterna não baixou. O homem perscrutou os grandes olhos cinzentos que o olhavam com severidade, como se procurasse penetrar a verdade. E estes também não baixaram.

Quem te ameaça?

A curiosidade daquele desconhecido não chocou Fiora. Algo lhe dizia que podia confiar nele e, apesar da mão que Bórgia lhe pousava no braço para a incitar à prudência, ela respondeu:

O Papa e alguns do seu séquito, dos quais o cardeal Bórgia tenta proteger-me. Ouve. Já perdemos muito tempo...

O passo ferrado de um destacamento fazia ressoar, de facto, os ecos da noite. A milícia do Soldan a ronda romana não era lá grande coisa se se pensasse no número de mortes que se perpetravam quotidianamente, mas era preciso, contudo, contar com ela quando aparecia, se não se queria ir parar ao calabouço da Torre di Nona, que estava sob a sua jurisdição.

Não estão longe disse Bórgia e nós já não temos cavalos. É preciso caminhar e depressa.

Eu acompanho-vos declarou Infessura, indo libertar os cães. Ainda resta um lugar perigoso, perto das ruínas da coluna de Marco Aurélio. Zeus e Hera podem ser-vos úteis.

O escriba republicano, a sua lanterna e os seus molossos tomaram a dianteira. Solidamente segura pelo braço do cardeal, Fiora seguia o melhor que podia, se bem que o Corso fosse a maior via de Roma e o seu solo, onde alternavam as lajes antigas e um empedrado mal acabado, tinha muitos obstáculos para o peão que se aventurava nele de noite. A chuva desaparecera, como que por magia, com os malandrins, mas as goteiras substituíram-na com vantagem. Passaram sem estorvos o local delicado e, como a rua alargasse mais, puderam caminhar de frente.

Será indiscreto perguntou Bórgia ao seu companheiro perguntar-te o que fazes nas ruas à noite e com um tempo destes?

Não. Há três razões para isso: gosto de Roma, gosto de saber o que se passa nela quando as pessoas estão a dormir e gosto da noite. Durmo pouco e o dia é contrário ao meu feitio. Emprego-o a estudar e a escrever tudo o que aprendi.

Isso quer dizer que contarás no teu ”diário” o nosso encontro?

Eu escrevo para aqueles que virão depois de mim, não para os esbirros do Vaticano. O teu nome não será mencionado... e não conheço o dessa jovem. Só me interessa uma coisa: ela é uma vítima e, como tal, tem todo o direito à minha ajuda. Se me mentiram, o caso é entre vós e o vosso Deus.

Não temos razão nenhuma para mentir cortou Fiora.

Só tenho pena de não te poder agradecer.

Sorri para mim apenas uma vez e sentir-me-ei pago! Estavam a chegar ao seu destino, quer dizer, diante do menos convencional dos palácios romanos. Alguns anos antes, de facto, o cardeal Bórgia comprara, por dois mil florins de ouro, uma enfiada de velhas casas que tinham servido a Casa da Moeda e às quais chamavam, como consequência, a Zecca. Essas casas tinham, aos seus olhos, a vantagem de estarem suficientemente longe do Vaticano, porque se situavam na rua que, na outra margem do Tibre, ia do castelo de Saint-Ange à praça principal do bairro dos estrangeiros. Daquele conjunto um pouco disparatado,

Hoje praça de Espanha


a fortuna do vice-chanceler fizera uma residência de uma grande riqueza ornamental, que o povo romano não cessava de admirar desde que a descobrira, em 1462, por ocasião da grande procissão que conduzia a São Pedro a urna contendo o crânio de Santo André trazida da Grécia pelo déspota Morée. Com um certo segundo sentido e na esperança de que um dia ou outro o cardeal Bórgia se tornaria Papa, porque o costume dizia que o palácio do Eleito seria entregue, então, à multidão, que se enrolaria nele, deliciada, na mais alegre das pilhagens.

Bórgia bateu de uma certa maneira a uma pequena porta situada ao lado do grande portão e a dita abriu-se instantaneamente, libertando um rio de luz que se estendeu pela rua lamacenta. Ele quis fazer entrar Fiora, mas esta ainda não tinha acabado com o seu salvador:

Não esquecerei o teu nome disse ela calorosamente e espero voltar a ver-te, um dia.

Por que não vens sentar-te à minha mesa um dia destes?

propôs Bórgia. Tu és menos selvagem do que pretendes e eu sei que frequentas certas casas.

Nesse caso, esquece-as, porque pertencem a gente que tem, teve, ou terá contas a ajustar com o Vaticano. O Infessura em casa do vice-chanceler da Igreja? Talvez te tornasses suspeito, mas eu sê-lo-ia de certeza, pelo menos aos meus próprios olhos.

No entanto, guarda na memória, homem livre, que esta casa é um lugar de asilo. Podes precisar um dia.

Guarda isso na tua própria memória, monsenhor! Espero que a tua casa seja um verdadeiro refúgio para a tua jovem companheira... e mais nada do que isso! Quanto a mim, se o Papa decidir, um dia, suprimir-me, não virei ter contigo, saberei, em vez disso, morrer como romano. A morte de Petrónio sempre me seduziu, apesar de ele não ter nada de republicano! Que os deuses te guardem, jovem!

Talvez gostasses de dar um nome ao meu rosto disse esta vivamente. O meu é Fiora.

1 (Caio), escritor latino, favorito de Nero, escreveu o Satyricon. Comprometido numa conspiração, abriu as próprias veias em 65.


Obrigado por mo dizeres, mas dentro de poucas horas saberei tudo acerca de ti. Seja qual for o lugar de onde fugiste, as vozes da rua dir-mo-ão...

O homem fundiu-se na noite com os seus cães, ao mesmo tempo que Fiora se deixava levar, por fim, para o interior do palácio, mas não sem uma certa pena. Aquele homem ”livre” não se parecia com nenhum outro.

A casa de Rodrigo Bórgia, também ela, não se parecia com nenhuma outra e Fiora acreditou que estava a entrar num daqueles fabulosos palácios do Oriente, descritos pelo viajante veneziano Marco Pólo e por outros contadores mais recentes que encontrara em casa do seu pai, que se tinham aproximado dos faustos turcos do Sultão. Da sua Espanha natal, marcada pelo esplendor dos reis mouros, o cardeal trouxera o gosto dos pavimentos preciosos, dos tectos esculpidos, dourados e pintados como evangeliários, com cores resplandecentes. As suas armas um touro dourado sobre um campo cor-de-rosa encimadas pelo chapéu cardinalício, roçavam a parte de cima das portas e o couro das cadeiras. Os tapetes preciosos estavam por toda a parte, as almofadas enormes, as tapeçarias de brocado, as camas mortuárias forradas com os mais ricos tecidos. A baixela de ouro, de prata ou de cobre, os jarros e as taças enriquecidas de pedrarias sobrecarregavam os aparadores e as credencias ao ponto de cansar o olhar. E Fiora, que pudera contemplar à vontade o fausto guerreiro do Temerário e o seu esplendor pleno de majestade, acabou por achar que aquele palácio, tão afastado da elegância florentina, dava ao seu proprietário um pouco o ar de novo-rico.

De facto, no momento da sua chegada, Fiora não viu grande coisa de todas aquelas magnificências. Entreviu, apenas, um universo púrpura e dourado, onde fazia um calor delicioso e onde uma mulher grande, de tez amarelada, a despojou das suas roupas húmidas e maculadas de lama e a envolveu num lençol um pouco áspero, com o qual a esfregou vigorosamente até que a jovem cessou de bater os dentes. Em seguida, transportando-a nos braços como um bebé, levou-a para uma grande cama tão macia que a jovem teve a impressão de mergulhar num mar de penas, cobriu-a com lençóis de seda, fê-la beber um chá que se mantinha quente junto da chaminé, acendeu a vela dourada de vigia na cabeceira, apagou as outras velas e abandonou o quarto sem fazer o menor ruído. Já Fiora adormecia e navegava a todo o pano para o último refúgio dos infelizes: para o país do sonho.

Quando regressou, a meio do dia, encontrou uma realidade amarga, porque não se sentia nada bem: uns arrepios percorriam-lhe a espinha, a garganta doía-lhe e espirrou uma meia dúzia de vezes, o que atraiu para junto dela a mulher que vira na véspera e que acabara por acreditar integrada nos seus sonhos. Além disso, tinha uma enxaqueca.

Uma mão fresca pousou-se na sua testa e a mulher disse com um tom descontente:

Era o que eu temia! Apanhaste frio apesar dos meus cuidados e tens febre. Rodrigo não vai ficar nada contente!

Como é que ele está? perguntou Fiora cuja frase terminou com mais um espirro.

Está óptimo, como sempre. Umas gotas de água não alteram a sua soberba saúde. Ele possui a força do touro das nossas armas! acrescentou a mulher com uma súbita exaltação que surpreendeu Fiora.

Aquela criatura, aliás, era suficientemente surpreendente para que Fiora se interessasse por ela apesar do seu estado algo brumoso. Grande e talvez tão forte como Bórgia, mas ossuda, tinha uma longa figura cor de azeitona que não combinava muito bem com o seu vestido negro de aia espanhola, apenas suavizado pelo folho branco que se lhe fechava no pescoço alto com um belo alfinete de ouro e pérolas. Um véu negro estava preso nos seus cabelos penteados em redondo. Por fim, um molho de chaves pendia-lhe de um cinto de couro.

Gostaria de lhe agradecer disse ainda Fiora. Achais que terei ocasião para isso, hoje?

Ele disse-me que viria ver-te esta noite disse a mulher num tom descontente. Até ordenou que preparasse o jantar neste quarto e vai ficar muito desiludido por te encontrar nesse estado.

Depois da noite que passei, não é nada de espantoso. Além disso, eu não estou ”neste estado”. Estou muito constipada e espero, dentro de dois ou três dias, já estar boa.

Tu não o conheces. Ele tem horror à doença e aos doentes. E olha para ti! acrescentou ela, segurando na mão um espelho: Tens o nariz vermelho, o rosto inflamado... Não estás nada apresentável.

Bem, não me apresenteis! grunhiu Fiora, que começava a ficar aborrecida com aquela mulher e que, além disso, detestava que a tratassem por tu. Dizei a Sua Eminência o que se passa quando ele vier e suplicai-lhe que me conceda alguns dias para poder estar... apresentável.

Veremos! Por agora, é preciso fazer todos os possíveis para te curar.

A mulher pôs mãos à obra nesse mesmo momento e tratou de afogar a sua doente em chás, mel e leite com ovo, fê-la ingurgitar pílulas à força, obrigou-a a fazer duas fumigações, das quais a infeliz emergiu mais vermelha do que nunca e pretendeu, mesmo, administrar-lhe um clister, o qual Fiora recusou com as suas últimas energias. A jovem ignorava como estava a sua febre, mas sentia-se completamente embrutecida e, pior ainda, tinha náuseas.

Deixai-me em paz! gritou ela. Ainda me matais com tantos remédios, porque, ficai a saber, nunca os tomo!

Quando estamos doentes, tratamo-nos! ganiu a outra. Tens de beber este xarope próprio para adoçar a garganta e...

Não vou beber mais nada! A única coisa de que preciso é que me deixem dormir em paz!

Empunhando lençóis e cobertores, a jovem dispunha-se a desaparecer por baixo deles quando a entrada do cardeal pôs fim à cena. Fiora não o reconheceu de imediato. De facto, ele trazia um elegante gibão curto de veludo negro bordado a ouro, calções coleantes que prestavam justiça às pernas que tinha belas e, sobretudo, vinha de cabeça descoberta, o que lhe permitiu constatar que começava a perder cabelo.

Ao descobrir as duas mulheres frente-a-frente como dois galos furiosos, uma vermelha, desgrenhada e agarrada aos lençóis e a outra brandindo um frasco e uma colher, ele desatou a rir.

Não podíeis gritar menos alto? disse ele retomando o fôlego. Ouve-se a vossa voz no outro lado da galeria. Gostaria que, pelo menos, durante alguns dias, a presença de dona Fiora em minha casa permanecesse ignorada da maior parte dos domésticos.

Brandindo sempre o frasco e a colher, a aia avançou para ele como se pretendesse rachá-lo ao meio.

Esta rapariga está doente, Rodrigo. Não podes jantar com isto! Olha para ela! Está de meter medo! Fiz tudo o que podia para a tratar, mas ela quer impedir-me.

O que eu quero é que essa mulher pare de me envenenar com as suas drogas. Mas ela não cessa de repetir que vós ficareis, certamente, furioso, ao saber que... Que apanhastes frio a noite passada? Não estou nada surpreendido... nem furioso, aliás.

Mas tu disseste que jantavas com ela disse a aia, que parecia prestes a chorar.

Não vejo onde está a dificuldade, Juana! Pões a mesa junto da cama e mandas servir um jantar ligeiro. Vamos, acalmai-vos as duas! A culpa é minha, já que não vos apresentei uma à outra a noite passada. Precisava de repousar e pensava fazê-lo quando acordásseis, minha cara amiga.

E explicou de imediato a Fiora que ”dona Juana de Llançol” era uma prima afastada cuja família tivera dificuldades e que ele trouxera de Valência quando, cinco anos antes, o Papa o enviara ao seu país natal numa embaixada. Ela velava ”pelos armários e pelos servidores da casa”, possuía a sua total confiança e uma boa parte da sua afeição.

A Juana, que o escutava com lágrimas de ternura, ele disse que a sua convidada não era ”esta rapariga”, mas sim ”uma nobre dama vinda de França” que tivera a infelicidade de desagradar a Sua Santidade e à qual convinha oferecer uma grande hospitalidade.

Aquele discurso, aparentemente muito natural, não abrandou a desconfiança de Fiora. Por que razão esperara Bórgia que chegasse a noite para prevenir Juana? Além disso, na noite anterior, esta estava, visivelmente, à espera de ambos, não fizera qualquer pergunta nem erguera o sobrolho ao constatar que a recém-chegada usava o hábito de noviça.

Ao confrontar aquela singularidade com as confidências de Antónia Colonna a propósito do ”homem mais carnal que existe”, Fiora acabou por perguntar a si própria se não estaria nos seus hábitos percorrer as ruas de Roma de noite para arrebanhar raparigas e por que não, no fim de contas? seduzir de tempos a tempos uma pensionista de um convento qualquer. Sem dúvida, não ficaria com elas muito tempo, daí vindo o desvario da aia, ao constatar que a última descoberta resolvera adoecer. As suas suspeitas confirmaram-se ao ouvir Juana resmungar:

Devias ter-me prevenido que não era como habi...

Um gesto autoritário cortou-lhe a palavra e ela pareceu encolher sob o olhar brilhante em que ele a envolveu. Fiora achou que era tempo de intervir se não queria fazer daquela mulher, visivelmente tola, uma inimiga mortal.

Dona Juana deu-se a muito trabalho comigo, Vossa Eminência e tenho medo de ter sido mal-agradecida, mas confesso-vos que só a ideia de jantar me faz vir o coração à boca. O odor da comida...

É-vos insuportável? disse Bórgia com humor. Muito bem, minha querida, tratai-vos, eu vou jantar a casa de uma amiga. Mas talvez possamos conversar um pouco?

Certamente aprovou Fiora, encantada por se ter safado. Gostaria muito de saber notícias.

É o que eu pensava. Vai-me buscar um copo de vinho de Espanha, Juana e depois, deixa-nos sós! Virás depois acomodar dona Fiora para passar a noite.

O cardeal seguiu a saída da aia com o olhar e depois aproximou uma cadeira do leito.

Creio disse ele baixando o tom que achareis interessantes as notícias que vos trago. Fazia eu companhia ao Santo Padre na sua altanaria, onde ele estava a dar de comer à sua águia, quando Leone da Montesecco, o chefe da sua guarda, encarregado de vos ir buscar a Santo Sisto, regressou com as mãos a abanar.

E então?

Não me lembro de o ver antes tão encolerizado. Toda a gente teve a sua parte: o capitão porque não vos trazia, o cardeal d’Estouteville, convocado imediatamente e acusado logo de vos dar refúgio e até a águia, que ficou privada de metade da sua refeição: o Papa deixou-a ali plantada e regressou ao seu quarto, onde partiu dois ou três vasos para distender os nervos. O resto caiu em cima de dona Boscoli, que acabava de chegar com o sobrinho. Dizei-me, Dona Fiora, ela foi ontem ao convento?

Foi, mas o Papa deve sabê-lo: ela tinha uma autorização de visita.

É o que diz a madre Girolama. Acrescentou que a dama, sempre em nome do Papa, lhe deu ordem para fechar a vossa porta à chave.

E o Papa não sabia de nada? Foi ela que mandou pôr guardas diante das portas?

Não. A ordem veio do Vaticano, mas a autorização para vos visitar era falsa. O Santo Padre arrastou dona Boscoli pelas ruas da amargura, acusando-a de ter estragado tudo só pelo prazer de vos ir enervar.

O cardeal calou-se. Juana estava de regresso com um tabuleiro de prata, sobre o qual vinha um magnífico copo vermelho e dourado de Veneza e um jarro da mesma origem. Ela pousou tudo sobre uma mesa, encheu o copo com os gestos piedosos de um oficiante no altar e entregou-o ao primo com uma espécie de genuflexão que ele pareceu considerar natural.

Obrigado, Juana! Podes retirar-te. Eu chamo-te daqui a pouco.

A cólera do Papa não caiu também sobre vós? espantou-se Fiora.

Por causa da minha visita da semana passada? A prioresa de Santo Sisto é uma mulher inteligente. Ela achou preferível não falar disso, pensando, sem dúvida, que, se se calasse, talvez a pudesse ajudar. O que fiz. Expliquei ao Papa que era tudo culpa da dama Boscoli, que vos assustou em vez de deixar que o Santo Padre conduzisse o assunto como muito bem entendia. Acrescentei que vós sois, sem dúvida, uma mulher cheia de recursos. Em seguida, a zaragata tornou-se quase geral quando o cardeal d’Estouteville, que propusera espontaneamente que lhe revistassem o palácio, regressou, mas desta vez como acusador.

Como acusador? E quem acusou ele?

Mas, o papa, minha bela amiga, o Papa muito simplesmente. O cardeal camerlengo não é uma pessoa qualquer e, além disso, é o mais poderoso dos cardeais franceses. Foi preciso dizer-lhe exactamente o que se tinha passado e ao saber a escolha que vos ia ser dada, o machado do carrasco ou a mão do triste Cario, ele encolerizou-se, protestando com a injúria feita ao seu soberano, porque dispunham assim de vós sem sequer esperar pela resposta do Rei de França. Ameaçou queixar-se ao soberano. Não entro nos pormenores das injúrias trocadas: foram tão grandes, que a minha memória preferiu esquecê-las.

Monsenhor d’Estouteville não tem, portanto, medo do Papa?

Por que havia de ter medo? Ele representa aqui o Rei Luís de França, é o chefe da diplomacia vaticana, é também o cardeal mais rico de todos e, além disso, é de sangue real. É uma coisa que conta para o pobre monge franciscano, saído do nada, que ele ajudou a subir ao trono de São Pedro.

Estou a ver. Qual foi a conclusão dessa... zaragata?

Bem, por agora ficaram todos nas suas posições. O Santo Padre clama que, se põe a mão em vós, mandar-vos-á executar, quer isso agrade, ou não, a dona Boscoli e o cardeal determina, porque está longe de andar aos gritos, que se o Papa dispuser de vós sem o consentimento do Rei Luís, as alianças ficam como estão e ele nunca mais verá, nem em sonhos, o monge Ortega e o cardeal Balue.

Fiora guardou silêncio por uns momentos, brincando com o tecido sedoso do seu lençol, que enrolava e desenrolava em redor dos dedos.

E esse casamento de que me falaram... a dama Boscoli? Gostaria de ter a vossa opinião acerca desse assunto.

Bórgia olhou por um instante para a jovem envolta na seda branca dos lençóis que deixavam aperceber a curva suave de um ombro e o seu olhar acendeu-se ao imaginar outras curvas suaves, mais saborosas ainda, que se escondiam sob o luxo daquele leito principesco.

Que opinião vos posso dar? É preciso odiar-vos muito para ousar propor uma união entre vós, bela entre todas as belas, e aquele infeliz.

Em tempos, Hieronyma quis casar-me com o filho, Pietro Pazzi, que era um monstro e que suava maldade por todos os poros da pele. Foi por causa dele que ela mandou matar Francesco Beltrami, o meu pai. A despeito do meu nascimento... irregular, Hieronyma está possuída pela raiva de me casar na família, tanto teme que uma parcela, por mínima que seja, da nossa fortuna destruída lhe possa escapar.

Abandonando a sua cadeira, Bórgia foi encher de novo o seu copo e no momento em que o ia levar aos lábios, ofereceu-o à jovem:

Bebei! Estou certo que vos fará bem.

Ela pegou no copo, nas transparências do qual a chama de uma vela acendia fulgores sumptuosos:

É assim tão difícil falar-me de Cario Pazzi? Achais que preciso de ser confortada antes de abordar o assunto?

Ela esvaziou o copo de um trago e entregou-lho. Ele não pegou no objecto, envolvendo antes os dedos da jovem com a sua grande mão, pousou os lábios no local por onde ela tinha bebido e colheu uma última gota do vinho dourado.

É um outro género de monstro suspirou ele, por fim. Não é mau, disso estou certo, mas é uma dessas ruínas humanas que, por vezes, nascem nas mais nobres famílias. Dizem que ele é produto de uma violação e que, ao nascer, rasgou irremediavelmente o corpo da mãe. A ideia de que vos possam casar com aquele dejecto humano é intolerável para qualquer homem normalmente constituído. Não posso suportá-la... Vós fostes feita para o amor dos príncipes...

Sentando-se na beira do leito, ele tirou docemente o copo dos dedos que o retinham ainda e atirou-o para a chaminé como se fosse uma coisa sem importância. A frágil maravilha quebrou-se numa enorme quantidade de estilhaços púrpuras e dourados.

Tocou nos vossos lábios murmurou ele com uma voz cuja rouquidão traduzia desejo. Mais ninguém tem o direito de nele pôr os seus.

Por entre as pálpebras pesadas, que se fechavam, o seu olhar filtrava-se, glauco, quase opaco. Entretanto, uma das suas mãos aprisionou o ombro que o tentava desde há um momento, ao mesmo tempo que a outra deslizava por cima da colcha bordada a ouro, procurando o contorno de um seio. Fiora recuou bruscamente para o fundo do leito e encostou as pernas ao peito.

Devo lembrar-vos, monsenhor, que estou doente? disse ela com uma voz tão fria que gelou a cobiça de Bórgia.

Com pena, os dedos deslizaram numa carícia dupla. Ele levantou-se:

Perdoai-me murmurou ele. Os vossos olhos parecem-se com um céu tempestuoso, no qual deve ser muito fácil um homem perder-se... e eu não desejo outra coisa senão agradar-vos.

Ela viu que, ao levantar-se, ele titubeava um pouco e divertiu-se cruelmente:

Foi para me agradar que vos arriscastes daquela maneira, indo buscar-me a noite passada?

Por que havia de ser? disse ele num tom subitamente alto. Um objecto precioso não se confia às mãos grosseiras de um criado.

É a segunda vez que me comparais a um objecto. Esqueceis que sou uma mulher?

Oh não, não esqueço. Aliás, não penso noutra coisa. Sim, sois uma mulher e a mais desejável que eu jamais conheci. Logo no dia da vossa chegada. Estáveis magra como um gato esfomeado e pálida como um raio de luar, mas éreis para mim, que vos observava sem que me pudésseis ver, a mais bela de todas as criaturas e jurei nesse momento que seríeis minha.

Foi por isso que me fostes buscar ao convento e trouxestes para aqui?

Por que outra razão havia de ser? O Rei de França interessa-me, é verdade, mas se vós fôsseis feia, não me teria preocupado convosco nem por um único momento. Quanto a mim, sempre que quis uma mulher, tive-a sempre e rapidamente, mas, por vós, estou pronto a mostrar alguma paciência, porque sei que valeis a pena e porque o prazer, justamente por ter esperado, será maior ainda quando, por fim, vos possuir.

Perdeis o vosso tempo e a vossa paciência, monsenhor rugiu Fiora cada vez mais colérica. Confiei em vós porque esperava que me ajudaríeis a fugir... desta santa cidade e a regressar a casa.

Sem dúvida. Mas, por agora, é impossível e temo que ainda vá demorar algum tempo. Pelo menos, até que me tenhais dado o que espero de vós. Quero ser pago pelos meus esforços e perigos corridos pelos vossos belos olhos com a única moeda que me interessa.

Quer dizer, eu própria? Sois muito presunçoso, na verdade, Dom Rodrigo, mas eu só tenho vinte anos, enquanto vós tendes mais do dobro. Não pensastes que talvez eu não vos ame?

Ele desatou a rir, o que lhe permitiu mostrar à-vontade os dentes. Era muito orgulhoso deles e, por causa disso, ria muitas vezes. ”

Quem fala aqui de amor? Eu só procuro o prazer e quanto mais rara é a mulher, maior é o prazer. O prazer, minha florentina! Se não o conheceis, saberei ensinar-vo-lo, porque é mais enebriante se for partilhado. Oh, sei o que estais a pensar: entrego-me já a ele e fico livre mais depressa. Mas não é isso que eu quero. O meu apetite é exigente mas refinado e, por agora, perdoai-me se vo-lo digo, os medicamentos de Juana tornaram-vos pouco apetitosa.

Sufocada, Fiora sentiu-se corar e compreendeu que se sentia vexada, porque fora isso, exactamente o que pensara. Não era a primeira vez que se encontrava presa na armadilha dos desejos de um homem e até chegara ao ponto de os provocar, como em Thionville, quando fora ter com Campobasso.

Restaurai a vossa saúde, meu belo anjo acrescentou Bórgia com uma voz acariciante e tornai-vos tão resplandecente como no jardim de Santo Sisto! Quanto a mim, ornamentar-vos-ei como um ídolo, exaltarei a vossa beleza com tudo aquilo que a riqueza pode fazer para ornamentar um corpo de mulher e vou ter prazer nesse jogo... Quanto à minha idade, ainda não me provocou a menor preocupação e vereis que sou mais ardente no prazer, mais experiente e mais poderoso do que qualquer rapazola.

Perante o rosto espantado de Fiora, ele desatou a rir de novo:

Duvidais? As cortesãs de Roma chamam-me o touro Bórgia; Vós sereis a minha Pasifaeia e engendraremos um novo Minotauro.

Vendo-se, assim, confrontada de novo com a sua cultura grega, Fiora deixou sair a cólera que aumentava nela desde há instantes:

Eu não vou engendrar nada! uivou ela. Eu tenho um filho em França e quero ir ter com ele. Como pudestes imaginar por um só instante que tenho vontade de me entregar a vós?

Ele sorriu-lhe como se ela tivesse feito a mais amável das declarações e passou-lhe pela face um dedo acariciador:

Ela há-de vir, asseguro-vos. De qualquer maneira, como ides ficar aqui fechada durante algumas semanas, por que não passar esse tempo da melhor maneira possível? Eu sou um mestre na arte do amor...

O sangue que a ira lhe fizera subir à cabeça provocou em Fiora um acesso de tosse:

Repousai disse o seu estranho anfitrião. Dentro de momentos Juana virá acomodar-vos para a noite que se aproxima...

Por fim, ele saiu e, como que por magia, a doente parou de tossir. Ela já não sabia qual era a sua situação, senão que, muito provavelmente, aquele homem não era normal. Um instante antes, ela pensava em Campobasso, do qual ela ignorava o paradeiro, ou o que lhe acontecera e que era possuído, também ele por um verdadeiro furor genésico, mas, pelo menos, Campobasso tinha-a amado, ao passo que, para este, ela não era senão um animal raro, uma carne diferente daquelas a que estava habituado e que, por essa mesma razão, tencionava comer. Aquele homem pusera-a numa jaula e essa jaula estava rodeada de todos os perigos de uma cidade hostil. Além do mais, era um padre!

De repente, Fiora pensou em Léonarde. Pobre querida e santa criatura! Devia estar a milhares de léguas de imaginar o seu ”cordeiro” fechado naquela Roma que para ela era a antecâmara do

1 Rainha lendária de Creta, mulher de Minos, que foi mãe de Fedra, de Ariadne e do Minotauro, que ela teve com um touro pelo qual se deixara prender


Paraíso, ameaçada de morte pelo Vigário de Cristo e entregue aos caprichos lúbricos de um príncipe da Santa Igreja Católica.

Quando Juana regressou pouco depois com uma taça de chá, não compreendeu por que razão a doente desatou a rir-se-lhe na cara, atirou com o tabuleiro de pantanas, se deixou cair com a cabeça nas almofadas e se recusou a levantar-se. Pelo movimento dos ombros, a aia percebeu que chorava e não ousou insistir. As raparigas, e até as virgens que preparava para a cama do seu senhor não se comportavam como aquela, que nem sequer era virgem, Já que Rodrigo dissera que era uma ”dama”. Algumas choravam um pouco por causa das aparências, mas os tecidos preciosos com que as vestia, as comidas puxadas e os vinhos calorosos consolavam-nas e ficavam mais do que consentâneas quando chegava a hora do sacrifício.

Não sabendo que fazer mais, a prima de Bórgia abandonou o quarto na ponta dos pés, fechou cuidadosamente a porta, meteu a chave no cinto e foi-se deitar, mas a despeito da noite em branco que passara, não conseguiu adormecer e passou várias horas a perguntar a si própria o que teria acontecido entre aquela estranha criatura e o seu bem-amado Rodrigo.

CAPÍTULO VIII A NOITE DAS SURPRESAS

Fiora levou quatro dias a curar a constipação e, durante todo esse tempo, não voltou a ver Rodrigo. A devota Juana disse-lhe que o cardeal partira para o famoso convento de Subiaco, nos montes Sabina, que fazia parte dos seus privilégios e do qual só regressaria no fim da semana. Pelo que a jovem se mostrou aliviada. Aproveitou aquela pausa para se restabelecer por completo e para tentar fazer o ponto da situação.

Esta não era muito brilhante a despeito do facto de Fiora morar num quarto sumptuoso, todo decorado com veludo verde às franjas douradas e cujo chão, de mármore de várias cores, desaparecia sob um fabuloso tapete que as mulheres do longínquo KermanKI tinham enchido de flores desconhecidas e de aves fantásticas. A jovem tinha calor demasiado calor porque Juana, temendo que ela ficasse de novo doente, mantinha o quarto quente como um forno e ela estava quase bem alimentada demais pela aia, que não cessava de lhe levar guloseimas e bolos, na esperança de a ver engordar.

Estás muito magra reprovava-a ela. Rodrigo gosta das mulheres um pouco redondas, com carnes macias. A amante preferida dele, Vanozza, que lhe deu os dois filhos que tem, Juan e César, é uma loura soberba que tem o ar de ser feita de cetim branco. Os seios dela são como pequenos melões e...

Eu não quero ter seios como pequenos melões e recuso ser tratada como um ganso na engorda. Em vez de me trazer

Cidade do sul do Irão


guloseimas, faríeis melhor se me dissésseis o que se passa na cidade.

Nada. Não se passava nada, pelo menos pelo que Juana sabia. Os gritos de guerra dos dois bandos rivais dos Colonna e dos Orsini perturbavam as noites todas, mas Fiora ouvia-os tanto como os outros habitantes de Roma e, todas as manhãs, eram encontrados um ou dois cadáveres a boiar no Tibre, ou abandonados a um canto de uma rua.

Curada, Fiora começou a aborrecer-se. A doença, pelo menos, era uma companhia e agora, reduzida à de Juana, a jovem viu-se a achar o tempo longo, porque as ordens do cardeal eram formais: a porta do seu quarto devia permanecer fechada à chave e, em caso nenhum, podia sair. Podia-se ter confiança em Juana para as respeitar.

O único momento um pouco agradável era a manhã. Depois de se levantar, Fiora tomava um banho que lhe preparavam numa pequena divisão ao lado do quarto, também ela muito ornamentada. Uma bacia escavada no solo ocupava quase todo o espaço; que era suficientemente grande para que duas pessoas ali pudessem tomar banho juntas, o que era, parecia, ”um dos grandes prazeres de Rodrigo”. A água que os escravos do palácio transportavam havia uma trintena de cores variadas saía lentamente por uma estreita conduta que desembocava numa goteira. Banhada, o que ela apreciava sempre muito, Fiora era massajada por uma grande rapariga negra que ria o tempo todo e a massajava como se estivesse a fazer pão com óleos perfumados, o que era menos agradável, mas Fiora saía das suas mãos transbordante de uma vitalidade da qual, em seguida, não sabia o que fazer. Depois de ter dado a volta ao seu quarto vinte vezes num sentido e outras vinte noutro, só lhe restava uma distracção: olhar pela janela. Mais uma vez, Juana só consentia em abrir uma depois de ter aplicado uma máscara no rosto da jovem e atirado um véu por cima dos seus cabelos.

O quarto ocupado por Fiora estava situado, na parte mais alta da torre quadrada, sem a qual não se podia conceber um palácio romano. Imediatamente acima só havia as seteiras em forma de asas de borboleta e os dois vigias, que se revezavam dia e noite. Todas as grandes casas da cidade ofereciam, aliás, aquele aspecto de fortaleza, mesmo se as suas muralhas eram pintadas e decoradas, mesmo se possuíam um jardim que, como o do palácio Bórgia, descia até ao Tibre. Fiora só o constatou mais tarde, porque as suas janelas davam, uma para o pátio interior do palácio sempre cheio de servidores, de guardas, de familiares e de escravos e a outra para a cidade.

Fiora, que desde o primeiro dia só pensava em fugir, teve um choque quando se apercebeu que o seu quarto se encontrava àquela altitude. Para escapar, o único meio seria uma escada de corda e ela não via como arranjar uma. Mas a vista era esplêndida e a jovem aproveitou para estudar, enfim, Roma, cuja maior parte se estendia na sua frente.

Juana, desde que não se tratasse do seu ídolo, era boa rapariga. Contente por ver a sua prisioneira interessar-se por qualquer coisa, deu-lhe de boa vontade todas as explicações que ela desejava.

A cor de Roma era de um tom ocre quente e profundo, a patina que os séculos tinham dado às igrejas, aos palácios, às casas e às torres medievais que afirmavam a sua arrogância. Tinham aberto a janela ao fim do dia e o Sol, no seu declínio, exaltava ainda as cores. À direita e para lá do Tibre de leito amarelado, Fiora viu a massa vermelha do castelo de Saint-Ange dominando o Borgo, as torres ameadas e as campânulas perfuradas do Vaticano encostadas aos grandes pinheiros, aos ciprestes e aos teixos negros de um jardim. Viu também a Torre di Nona, quartel-general da polícia, plantada, como uma ameaça, à entrada do populoso bairro do Transtevere.

Na outra margem, atravancada de moinhos, o panorama confundia-se um pouco com os fumos e as poeiras que não conseguiam dissimular o lado desolador. A via Papalis, uma das mais importantes, porém, mas que ninguém tinha pavimentado, serpenteava através daquilo que fora, em tempos, o Fórum e os palácios imperiais. Talhos e bancadas de carpinteiros amontoavam-se lado a lado com amontoados de ruínas de onde surgiam, aqui e ali, uma coluna partida ou a abóbada rachada de uma basílica. As vacas, que se viam nos terrenos livres, eram ali mais numerosas do que noutro lugar qualquer. Também havia porcos, que juntavam a sua porcaria e o seu chapinhar devastador ao descalabro geral.

Mal aparecendo entre duas casas, o arco de Constantino tinha um ar miserável sob a espessa camada de caca de pombo que o cobria. Quanto ao Palatino, o antigo palácio dos Césares, não passava de um montão de ruínas fechado entre as muralhas de sílex negro, coroadas estas pelos muros vermelhos ameados que assinalavam o domínio dos Frangipani. Tendas e casebres disformes escoravam as abóbadas dos antigos teatros invadidos por ervas daninhas e uma população miserável vivia ali como podia.

Dominando aquele caos, as quatro torres ameadas do Capitólio surgiam, melancólicas na sua decrepitude, encimadas por uma grande e triste campânula, mas, mais a oeste, face ao símbolo irrisório das liberdades romanas perdidas, duas torres ferozes, a dos Milices e a dos Conti, estavam próximas do palácio guerreiro dos cavaleiros de Rhodes.

Em redor do Coliseu, do qual tinham feito uma vasta e fácil pedreira, uns fornos de cal funcionavam ininterruptamente, descarregando uma fumarada negra que irritava a garganta e os olhos e era causa, segundo Juana, de males incuráveis. Dali, pelas encostas cheias de erva do Célio, chegava-se ao Latrão. Uma via suficientemente larga para que uma procissão pudesse ali desenrolar a sua pompa, a via Lata, ia dar à catedral de Roma. Sempre segundo Juana, nenhuma procissão se arriscava a passar por ali desde que, em tempos longínquos, uma mulher, que conseguira fazer-se eleger para o trono pontifício fazendo-se passar por homem e a quem chamaram depois Papisa Joana, se revelara ao seu rebanho dando à luz nas lajes da dita via Lata. Uma estátua representando uma mulher deitada e amamentando um bebé marcava o local e como o povo de Roma declarara esse local maldito e possuído pelo demónio, nenhum padre, nem nenhum cortejo, por razões ainda, mais fortes, se arriscava a passar por ali. Para chegar a São João de Latrão, toda a gente fazia um desvio que passava pelo que tinham sido os jardins de Mecenas.

Naturalmente, Fiora pôde aperceber as grandes ruínas das termas de Caracalla, próximas das muralhas da cidade e a frondosidade do jardim de Santo Sisto. De lá, a jovem refez o caminho pelo qual Bórgia a levara até sua casa e, ao mesmo tempo, a cidade inteira entrou nos seus olhos e na sua memória. Mas ela tinha necessidade de certas informações e, para as obter, apanhou um desvio:

No dia em que fui ao Vaticano disse ela em tom ligeiro conheci a sobrinha do Papa, a condessa Riario. Podeis dizer-me onde vive ela?

Dona Catarina? Claro. Vedes além a igreja de Santo Apolinário e também o palácio de São Marcos? Entre os dois há uma grande casa com ameias e uma torre: é ali que ela mora.

Ah, estou a ver! Mas também conheci uma outra personagem importante: o cardeal camerlengo...

O francês? Esse que dizem o mais rico de Roma? Bem, olhai...

Mas estava escrito que Fiora não conheceria a localização do palácio d’Estouteville. Um grupo imponente de cavaleiros atravancava a rua, rodeando a mula soberbamente arreada de púrpura e ouro que transportava o vice-chanceler da Igreja. Os passantes ajoelhavam-se na poeira para receber a sua bênção, assim como os servidores que vinham abrir as portas do palácio. Visto de cima, Fiora pensou que, sob o seu grande chapéu, ele devia ter o ar de um enorme cogumelo púrpura, mas ele levantou a cabeça e viu as duas mulheres. Com um gesto autoritário, ordenou-lhes que entrassem. Juana ficou verde.

Maria Santíssima! gemeu ela. Ele ficou furioso! Pensei que não fazia mal autorizar-vos a olhar pela janela. Ele não via inconveniente antes, quando...

Quando havia outras mulheres neste quarto? completou Fiora, que não se pôde impedir de rir perante a cara aterrorizada da prima do cardeal.

Esta, depois de ter fechado a janela, ia e vinha no quarto enquanto torcia as mãos.

Não vos rides, peço-vos! É... é terrível!

Tendes medo a esse ponto? Ele não vos vai bater?

Pior. Vai olhar para mim com cólera e encher-me de desprezo.

Não estais a exagerar um pouco? Por causa de uma simples janela?

Juana sabia do que estava a falar e, aparentemente, ainda estava longe da verdade: quando, um momento mais tarde, Bórgia surgiu, vermelho e esbaforido por ter galgado as escadas sob o impulso da cólera, despejou sobre a sua cabeça a mais bela colecção de injúrias hispano-italianas que era possível ouvir. Prostrada a seus pés no tapete e erguendo por cima da cabeça as mãos juntas e suplicantes, Juana soluçava, batia com a cabeça no solo e implorava o seu perdão com uma voz dilacerante. Como a cena lhe pareceu ao mesmo tempo ridícula e revoltante, Fiora decidiu imiscuir-se.

Chega! gritou ela para dominar o tumulto. Eu não vejo por que razão essa infeliz merece ser tratada como a estais a tratar. A sua única culpa foi a de me deixar respirar um pouco.

Levado pelo furor, Bórgia nem a ouviu. Então, ela foi buscar um espelho que estava em cima do toucador, agarrou o cardeal pela manga para o puxar para trás e colocou-lho diante do rosto que, vermelho e crispado, tinha algo de demoníaco.

Olhai para vós mesmo! Estais hediondo! E ousastes falar em me agradar?

Aquela brutal confrontação com a sua imagem sufocou-o. Fiora aproveitou:

Um nobre espanhol! Um príncipe da Igreja que se comporta como um carroceiro para com uma guardadora de vacas desajeitada! Devíeis morrer de vergonha! Fazeis-me horror!

Ela estava diante dele, direita e desdenhosa no vestido de cetim branco agaloado a negro e a ouro com que Juana a vestira nesse dia e brandindo o espelho como se brandisse um crucifixo em frente do Diabo e essa imagem exorcizou a cólera do cardeal. Este virou-se para Juana, sempre submersa na sua humildade e atirou-lhe:

Vai-te! E só me apareças quando eu te chamar!

Ela levantou-se e desapareceu com a rapidez de um rato perseguido pelo gato. Bórgia foi até à janela que dava para o pátio e abriu-a, tentando recuperar o fôlego. Pouco a pouco, foi ficando mais calmo, ao mesmo tempo que o seu rosto reencontrava a cor normal. Quando se sentiu melhor, deixou sair um grande suspiro e virou-se para olhar para a jovem. Sentada numa cadeira alta forrada de veludo verde, ela esperava sem dizer uma palavra. O espelho repousava nos seus joelhos.

Perdoai-me! Não devia ter dado livre curso à minha cólera, mas quando vos vi à janela, tive muito medo.

Patranhas! Eu tinha um véu sobre a cabeça e uma máscara a tapar-me o rosto. Dona Juana tem, aliás, dificuldade em fazer com que eu os aceite, mas foi a condição para me deixar respirar um pouco a essa maldita janela.

Não sabeis o que dizeis. A despeito desse véu e dessa máscara, podíeis ter sido reconhecida.

Reconhecida? Numa cidade onde ninguém me conhece?

Excepto todos aqueles que vos viram no Vaticano por ocasião da vossa chegada, excepto os vossos companheiros de viagem e as freiras de Santo Sisto.

O exemplo é feliz. Elas são freiras enclausuradas!

Ele suspirou de novo e, puxando outra cadeira, sentou-se em frente dela.

Foi, mesmo assim, uma grande imprudência. Todos os esbirros da cidade andam à vossa procura. Além disso, ignorais o que o Papa encontrou.

Reparo que, pela primeira vez, não dizeis o Santo Padre, um nome que lhe vai pessimamente. Muito bem, que encontrou ele?

Domingo, o eunuco núbio que vos guardava, possui um grande talento para o desenho. Fez alguns esquiços vossos, muito parecidos para terem sido feitos de memória, que os pregoeiros mostraram em todos os bairros. E como é oferecida uma soma de cem ducados a quem vos entregar...

Desta vez, Fiora empalideceu. Mediu, nesse instante, o poder do ódio de Hieronyma, visto que aquela mulher miserável soubera transmiti-lo ao Papa. Era ao mesmo tempo absurdo e aterrorizador, insensato. Que génio mal-intencionado presidira ao seu nascimento para que se visse assim, continuamente, alvo da hostilidade dos poderosos deste mundo? Tivera de fazer face à sua querida cidade de Florença sublevada contra ela, depois ao Temerário, o mais terrível príncipe que reinara na Europa e agora, ao Papa! Amara um homem e esse homem fora-lhe levado pela morte. O sangue incestuoso das suas veias era assim tão maldito? Os acontecimentos, que não cessavam de se virar contra ela eram, talvez, a prova.

Para lutar contra a angústia que lhe subia à garganta, ela apertou, com as duas mãos, os braços da poltrona. O espelho deslizou-lhe dos joelhos e quebrou-se. Seguiu-se um silêncio. O cardeal e a jovem olharam para os cacos espalhados pelo chão e depois, bruscamente, Fiora levantou-se:

Monsenhor disse ela fazeis mal em esconder-me e pondes em perigo a vossa casa. Mandai que me acompanhem ao Vaticano. Vou-me entregar.

Instantaneamente, ele pôs-se de pé e um relâmpago brilhou-lhe nos olhos negros. As suas duas mãos pousaram-se nos ombros da jovem.

Sois louca! Eu não vos disse isto para vos reduzir ao desespero, mas para que compreendais o interesse que tendes em ser prudente.

Eu sei... mas já não tenho vontade de ser prudente. Quero morrer, é tudo! A única coisa que vos peço é que entregueis ao cardeal d’Estouteville a carta que vou escrever. É preciso que o Rei Luís tome conta do meu filho e dos que me são queridos.

Mas vós não morrereis! Se vos entregardes, casareis imediatamente com Cario Pazzí...

No entanto, na outra noite, dizíeis que durante a disputa com o cardeal, o Papa gritou que me mandaria executar, quer isso agradasse a Hieronyma ou não!

Ela já o convenceu. Quando se trata de dinheiro, Sua Santidade torna-se muito maleável.

Isso não faz sentido. A minha fortuna já não é, de longe, o que foi noutros tempos. Além disso, não vejo como o meu marido, admitindo que eu case, poderia herdar bens franceses ou borgonheses, que pertencem, naturalmente, ao meu filho.


Estais certa de não possuir nada em Florença?

Certíssima. O palácio Beltrami ardeu, a villa de Fiesole foi confiscada e os negócios do meu pai são geridos por Angelo Donati.


Angelo Donati morreu. Lourenço de Médícis retomou a gerência dos vossos bens e dizem que no caso de vós quererdes regressar a Florença, reencontrareis a vossa villa... e outras pequenas coisas.

Dizem? Quem é que diz isso?

Rumores que correm, correntes de ar... Sua Santidade tem espiões muito activos na cidade da flor-de-lis vermelha. Não ignorais que ele tem, acerca dessa bela cidade, ideias bem assentes?

Púnhamos as coisas na pior posição possível: Riario toma Florença e terá todos os bens que quiser.

Oh não! O Papa quer que ele reine, mas não pode violar as leis nem despojar os habitantes. Sabe-se bem o que eles são capazes de fazer. É por isso que ele se interessa tanto por esse casamento. Os Pazzi daqui juntar-se-ão aos que ainda lá estão e reentrarão como triunfadores... mas legais.

E eu vou na bagagem deles? Muito obrigada.

Isso é menos certo disse Bórgia com um meio sorriso. Uma vez casada, não creio que a dama Boscoli vos deixe viver muito tempo. Acreditai-me! Sede razoável e preparai-vos para jantar comigo. Vou tentar distrair-vos.

Depende da distracção!

Ele desatou a rir e afastou-se na direcção da porta:

Não me olheis com esse olhar negro! Prometo-vos que não se passará nada. Talvez acrescentou ele com uma piscadela de olho eu não vos ache ainda suficientemente roliça para ser devorada!

Fico mais descansada! Ainda estais longe de estar satisfeito.

O jantar, foi encantador. Fiora estava feliz por saber que Lourenço de Médicis continuava seu amigo e que talvez, sob a sua égide, lhe fosse possível, um dia, regressar de cabeça erguida à cidade amada. Aquela notícia mudou um pouco os seus planos de fuga. A sua primeira intenção fora roubar uma barca para descer o Tibre e tentar, chegada à costa, embarcar para a Provença, mas não era uma boa ideia: os barcos de alto mar não viajavam durante o Inverno. Era preciso esperar pela Primavera.

Além disso, não possuía qualquer dinheiro para pagar a viagem. A possibilidade de passar por Florença oferecia perspectivas de esperança muito maiores. Setenta léguas, apenas, entre Roma e a capital dos Médicis! Os peregrinos, em busca dos grandes santuários, percorriam estradas bem mais longas e aquelas setenta léguas podiam fazer-se a pé.

Rodrigo Bórgia mostrou-se, nessa noite, o anfitrião mais atraente que podia haver. Com uma alegria natural, a sua conversação suavizou a refeição composta de ostras, pequenas lulas em molho escuro e espesso e galinha apresentada à romana, com pimentos, anchovas, tomate e presunto, tudo regado com um belo vinho de Frascati. Quanto à sobremesa de compotas, estas eram acompanhadas do suculento moscatel de Montefiascone, célebre por ter provocado, em 1111, a morte do cardeal Fugger.

Para divertir a sua convidada, Bórgia contou-lhe algumas histórias que lhe abriram, acerca da vida romana, vistas inesperadas. Assim, a jovem soube que o rapto era a distracção favorita da nobreza: raptava-se uma mulher ou uma rapariga e levava-se para um local afastado para uma pândega, após o que traziam de volta a heroína involuntária, deixando-a nas proximidades da sua casa. O que suscitava, claro, vingança, mas a vingança tinha uma reputação, em Roma, ao nível das belas-artes. Quanto mais cruel, mais era aplaudida. Bórgia contou a história da encantadora Lisabetta, mulher de Francesco Orsini, que, tendo sido surpreendida com um homem, teve de assistir à morte do seu amante, convidado para um festim e morto à paulada durante a sobremesa. Em seguida, o culpado foi colocado, em cruz, num quarto, onde, todas as noites, Lisabetta era atada ao cadáver até ao nascer do dia, levada depois para sua casa enquanto o Sol prosseguia o seu curso. Só recebia, como alimentação, dois bocados de pão e um copo de água.

Desta vez, Fiora não sorriu. Horrorizada, teve de esvaziar, para se recompor, um copo cheio de vinho.

E que lhe aconteceu?

Morreu, claro, e bem depressa, mas dizem que estava arrependida. Uma história edificante, não é?

É preciso ser homem para contar esse horror de modo tão ligeiro! Eu acho isso abominável. O vosso Orsini merece os tormentos do inferno. Quando penso que ao longo dos anos, os pobres têm usado as suas forças e o seu dinheiro em todas as estradas da Europa para vir rezar a esta cidade que eles acreditam santa, na qual eles vêem a Jerusalém celeste e o centro de todas as virtudes, quando não passa de uma cloaca!

Sois muito severa. Lembrai-vos que há aqui gente de muito mérito e quanto a esses peregrinos, conheço um que, tendo vindo há três anos para o jubileu, disse: ”Quando pomos os pés em Roma, a raiva fica e a fé vai-se... Dir-se-ia que isso vos diverte, a vós, um príncipe da Igreja? O vosso Sisto IV tem fé?

Evidentemente! Tem, até, uma devoção muito especial pela Virgem Maria, mas que quereis, é também muito ligado à sua família e não recua perante nada para que ela seja rica e poderosa.

Parece que também vós tendes filhos?

O cardeal pareceu fundir-se, de repente, num oceano de ternura:

São soberbos! Os mais belos rapazinhos que existem, sobretudo o meu Juan! Mas, confesso-vos, gostaria que a mãe deles me desse, agora, uma filha tão loura quanto ela. Chamá-la-ia... Lucrécia!

Em seguida, reparando nos lábios desdenhosos da jovem:

Vamos, não façais essa cara! A Itália é o país das crianças. Toda a gente, aqui, as tem.

Mesmo os cardeais, pelo que vejo?

Quase poderia dizer: sobretudo os cardeais, porque as mulheres que eles honram têm a certeza de que aos seus frutos não faltará nada. É assim que o cardeal Cibo tem um filho e o cardeal d’Estouteville também. O deste chama-se Jérôme e ele teve-o de uma forte e bela mulher, Girolama Tosti. É o actual senhor de Frascati, cujo vinho acabamos de beber. Quanto ao cardeal...

Piedade, monsenhor! Não digais mais! Gostaria de poder guardar um pouco da fé da minha infância!

A fé não é para aqui chamada! É preciso vivermos no nosso tempo e Roma, da qual não vistes, é verdade, senão o lado pior, não é, por isso, uma cidade menos agradável para nela se viver.

Nobres estrangeiros, como a Rainha da Bosnia, a Rainha de Chipre e a princesa grega Zoe Paléologue vivem aqui e não se queixam.

A sua situação não tem, certamente, nenhum ponto comum com a minha. Chega de conversa, monsenhor! Eu não quero ficar aqui. Dissestes, ainda há pouco, que Florença já não me é interdita: nesse caso, ajudai-me a regressar!

Ainda é muito cedo! Não cesso de vo-lo repetir.

Além disso, não me deixareis partir sem que eu pague um certo tributo, não é verdade?

Ele teve um riso doce e um pouco arrolhador enquanto olhava para o vinho dourado que lhe enchia a taça: Qual é o homem capaz de deixar passar o mais capitoso dos vinhos sem tentar encostar-lhe os lábios?

Os olhos de Bórgia brilhavam como carvões ardentes e Fiora sentiu-se, de repente, muito cansada. A jovem abraçou com o olhar a sumptuosa decoração verde e dourada, da qual já estava cansada.

Portanto, estou condenada a morrer aqui de aborrecimento? Quando poderei, ao menos, abandonar este quarto?

Seria imprudente. O meu palácio está cheio de servidores, de guardas e dos seus familiares; não posso estar seguro da lealdade de todos. Além disso, se fechasse as portas, seria dar a entender que há aqui um segredo. Sabe-se, claro, que mora uma beldade na torre, mas isso não tem nada de extraordinário!

Eu sei! exclamou Fiora, incapaz de se conter por mais tempo mas tendes de compreender que não posso ficar fechada entre estas quatro paredes sem fazer outra coisa senão olhar para elas? Depois de me terem raptado de França, só tenho visto prisões! Dois meses na cabina do navio, duas semanas em Santo Sisto, onde, pelo menos, havia um jardim e agora aqui! Prefiro morrer!

Acalmai-vos e tende um pouco mais de paciência! Mandarei trazer-vos livros, se gostais de ler e enviar-vos-ei um cantor cego, cuja voz é sublime. Virei ver-vos com frequência e por vezes, à noite, levar-vos-ei ao jardim...

Fiora teve de contentar-se com aquelas promessas, mas a impressão de sufoco aumentou à medida que os dias se passavam. Os livros foram-lhe de grande ajuda. Bórgia, que nunca lia nada, reunira, por vaidade, uma grande quantidade, sobretudo autores gregos e latinos, mas escolheu para ela os mais licenciosos e Fiora espantou-o quando lhe exigiu secamente autores ”sérios”, como Aristóteles ou Platão.

Que jovem tão séria! exclamou ele. As damas romanas gostam muito das histórias um pouco maliciosas. Predispõem maravilhosamente para o amor...

Mas eu não tenho nenhum desejo de ficar predisposta para o amor! Vede se compreendeis, monsenhor! Eu choro um marido que amava apaixonadamente e estou-vos muito agradecida pelo que fizestes por mim, mas ficai a saber que nunca serei vossa!

Ela pensou que ele se ia zangar, mas o cardeal contentou-se em sorrir com uma presunção que a arrepiou.

Saberei fazer-vos mudar de opinião!

Apesar do seu sorriso, havia uma ameaça nos seus olhos e Fiora deduziu dali que teria de ter muito cuidado. Havia demasiada violência contida naquele homem para que ele decidisse esperar muito tempo por ela. O cardeal estava persuadido de ser um amante excepcional e tentaria, mais cedo ou mais tarde, impor-lhe as suas carícias. Na sua ideia, ela ficar-lhe-ia, depois, indefectivelmente ligada. O que era o cúmulo do ridículo, mas que não traria nada de bom no futuro: admitindo que ela cedesse, uma única vez, aos seus desejos, nada lhe garantia que no dia seguinte Bórgia lhe abriria a porta da jaula e ajudaria a sua prisioneira a chegar a Florença. E Fiora achou que era tempo de tomar o seu destino nas mãos. E mais persuadida disso ficou após a cena absurda que teve por cenário o seu quarto de toilette.

Naquela manhã, Fiora acabava de entrar na grande tina cheia de água morna e perfumada. Era o único verdadeiro prazer do dia e ela gostava de o fazer durar um pouco mais, mas, para sua grande surpresa, Juana desapareceu sob o pretexto vago, depois de a ter ajudado a mergulhar no banho, de que a escrava negra, que a vinha habitualmente lavar, ainda não tinha chegado. A jovem não achou estranho, feliz, até, por ficar um pouco só e distendia-se voluptuosamente, de olhos fechados, quando ouviu o ligeiro ranger da porta. Pensando que era uma, ou outra, não se mexeu, mas a sensação de que algo de anormal se passava alertou-a e abriu os olhos. Plantado diante dela, Bórgia devorava-a com os olhos e, subitamente, deixando cair o roupão dourado que o envolvia, apareceu-lhe inteiramente nu. A jovem, estupefacta, ficou, por um momento, sem fôlego. Não que o seu corpo, moreno e vigoroso, fosse desagradável, mas uma grande parte era devorada por uma vegetação negra. Os pêlos negros e encaracolados subiam do baixo-ventre e assaltavam o peito, as axilas e os ombros. Fiora teve a impressão de ter diante de si um animal monstruoso, ainda por cima porque ele exibia complacentemente uma virilidade que explicava o cognome com que as cortesãs romanas tinham cognominado o ardente cardeal.

Ele olhava para ela com a cara gulosa de um lobo que se apresta a devorar uma ovelha, passando por um instante a ponta da língua pelos espessos lábios vermelhos-escuros. Espantada, Fiora encolheu-se e quando ele pôs um pé na água, na intenção evidente de se lhe juntar, ela lançou um grito que fez voar os pombos no alto da torre, saltou do banho empurrando o assaltante que caiu e ficou sentado e fugiu, ensopada, para o quarto. Ali, arrancando um dos lençóis do leito, enrolou-se nele a tremer, correu a refugiar-se num dos bancos de pedra encastrados em cada vão da janela e abriu esta, diante da qual ficou, decidida a atirar-se se Bórgia fizesse tenção de se aproximar.

Mas quando, no instante seguinte, ele reapareceu já vestido com o roupão dourado e vermelho de furor, contentou-se em atirar à jovem um olhar fulgurante, atravessou depois o quarto em grandes passadas e saiu batendo com a porta.

O barulho pareceu acordar Juana que, ocupada a preparar um vestido por ocasião da entrada de Fiora, ficara petrificada e seguira a cena com estupefacção.

Meu Deus! articulou ela, por fim. Não me ides dizer que o repelistes?

Ter-me-ia atirado da janela se ele tivesse tentado aproximar-se uma segunda vez!

Mas porquê? Porquê? Não é ele magnificamente belo?

É possível, mas eu não sou sensível a esse género de beleza! Não é um homem, é um macaco!

Como podeis dizer isso? Os pêlos do corpo dele são suaves como a lã de um cordeiro recém-nascido. Ele é o próprio deus do amor acrescentou Juana com um tremor na voz e quando nos possui, é o paraíso que se abre.

Fiora olhou para a aia com uma estupefacção sincera.

Que sabeis vós disso?

Dona Juana ficou vermelha como um pimento e começou a mexer nas chaves que trazia ao cinto, baixando pudicamente os olhos.

Sei! afirmou ela. Há vinte anos... amámo-nos... sob as laranjeiras do meu jardim, em Jativa. Nunca mais o pude esquecer e quando ele me pediu, há cinco anos, que viesse para Roma para velar por ele, não hesitei um instante.

Então... recomeçastes?

Não. Ele ama a juventude. Aliás, uma recordação destas chega para iluminar toda uma vida concluiu ela com espírito.

E agora tratais das raparigas que ele traz para aqui? Não tendes ciúmes?

Ultrajada pelo que ela considerava uma ofensa, Juana endireitou-se e voltou a ser, por um instante, o que fora em tempos: uma espanhola altaneira e desdenhosa, plena de devoção e unicamente consciente da antiguidade da sua raça.

Ciumenta, eu? E de quê? Dessas raparigas de nada que ele apanha para seu prazer e que eu visto e perfumo para que elas fiquem dignas de passar um momento no seu leito? Para mim, é a mesma coisa que pôr açúcar nos bolos de que ele gosta. O que conta, é que nas nossas veias corre o mesmo sangue. Essas raparigas não passam de um pouco de poeira. O prazer dele antes de tudo! Chegou-me a acontecer segurar em algumas enquanto ele saciava o desejo. E queríeis que eu tivesse ciúmes?

De facto, não suspirou Fiora. Belo trabalho fazeis, na verdade! Em todo o caso, metei bem isto na cabeça: eu não sou, eu, uma rapariga de nada, e o vosso Bórgia não só não me interessa, como me repugna!

O barulho de uma cavalgada na rua fê-las calarem-se. Juana abriu uma janela, olhou para fora e voltou a fechá-la, dando mostras de uma profunda aflição:

Ele vai-se embora! Expulsaste-lo! De que material sois feita?

Do material das mulheres honestas. Algo que parece não haver em Roma. Dizeis que ele se foi embora? E para onde, segundo vós?

Ele leva o chuço e a roupa de caça. Acho que vai para Magliana, aos javalis.

E... é longe, Magliana?

Uma villa nos arredores de Roma, mas quando ele vai para lá é para relaxar os nervos e demora-se, pelo menos, dois dias.

Dois dias de tranquilidade! Que sorte! Sorte? Quando regressa, vem ébrio de sangue e de vinho... e será com alegria que te atarei a esta cama! Fizeste troça dele durante muito tempo, minha bela! Vais pagar um preço bem alto!

E com a altivez soberba de uma rainha de teatro, Juana abandonou o quarto. O som da chave a girar várias vezes na pesada fechadura convenceu Fiora de que estava, uma vez mais, enclausurada. Mas preferia a solidão à companhia da adoradora de Rodrigo.

A jovem começou por se desembaraçar do lençol molhado, vestiu-se, escovou os espessos cabelos negros que entrançou simplesmente numa única trança grossa e foi sentar-se na poltrona de que gostava mais, para reflectir. Era preciso, custasse o que custasse, abandonar aquele palácio antes do regresso do seu proprietário, porque esse regresso, a acreditar no que lhe tinham dito, seria mais do que desagradável. Já era uma sorte Bórgia ter escolhido ir descarregar o seu furor nos javalis, em vez de se atirar a ela. Mas, como sair dali?

As únicas saídas à sua disposição eram as janelas e ela sabia há muito tempo que estavam situadas a uma altura demasiado grande para permitir uma evasão, mesmo atando uns lençóis uns aos outros e acrescentando alguns cintos.

Por outro lado e admitindo que conseguisse, não teria chegado ao cabo dos seus trabalhos. Para onde ir, uma vez fora do palácio Bórgia? O único asilo onde poderia refugiar-se, o palácio do cardeal d’Estouteville fora-lhe impossível saber onde era, se perto se longe, se de acesso difícil ou fácil. Aliás, qual seria o acolhimento? Bórgia dizia que Luís XI não respondera ao correio enviado pelo camerlengo e que, muito provavelmente, ele a abandonara ao destino que o Papa lhe reservaria. Talvez fosse falso, mas também podia ser verdade. Não encarregara ela, na véspera do seu rapto, a princesa Joana de romper os laços entre a viúva de Pilippe de Selongey e o Rei de França? Nesse caso, era possível que monsenhor d’Estouteville tivesse pressa de a levar, devidamente acorrentada, ao Vaticano.

Não, o melhor seria, sem dúvida, se conseguisse sair, dirigir-se para norte, quer dizer, na direcção de Florença, esconder-se até à abertura das portas e depois pôr-se a caminho. Infelizmente, entre Fiora e a bem-aventurada estrada da Toscânia estavam as paredes do palácio Bórgia, as portas do palácio Bórgia, os guardas do palácio Bórgia e, para terminar a prima de Bórgia... que parecia ter decidido reduzir a sua prisioneira à fome, porque não reaparecera em todo o dia.

Primeiro, Fiora pensou que não tinha importância. Tinha água numa garrafa e até vinho de Espanha. Tinha, também, frutos, que lhe permitiriam não passar fome. E, subitamente, teve uma ideia luminosa, deslumbrante. Simplesmente, era preciso, era preciso a qualquer preço, que Juana regressasse.

As longas horas da tarde foram passadas por Fiora a aperfeiçoar o seu plano e a reunir os objectos de que teria necessidade. Na divisão dos banhos a jovem encontrou a brocha de cabo longo que servia para limpar a tina de mármore. Depois, com a ajuda de uma tesoura, cortou as grandes toalhas em grandes tiras, que entrançou para as tornar mais sólidas e atou-as umas às outras. Por fim, examinou com um olhar crítico as roupas que lhe tinham sido dadas. Ali é que estava o ponto difícil. Como correr pelas ruas vestida de cetim, de brocado ou de musselina? Como, sobretudo, ir a pé com os sapatos que possuía? Eram todos de veludo bordado ou de cetim claro. Tinha mesmo uns de salto alto à Veneziana, que nunca calçara, achando-se demasiado alta. Naturalmente, as sandálias de corda trazidas do convento de Santo Sisto tinham sido queimadas, tal como o resto das roupas que de lá trouxera. Era uma pena, mas como não via nenhuma solução para o problema, decidiu entregar-se à Providência. Como consequência, escondeu a corda improvisada numa das arcas de roupa e sentou-se de novo para fazer de conta que lia A Divina Comédia. A jovem gostava do longo poema de Dante, mas a sua atenção estava longe, dirigida para os sons exteriores. Nas pregas do seu vestido dissimulava a arma improvisada que encontrara.

O dia caiu sem que pensasse em levantar-se para acender as velas. O seu coração batia um pouco mais depressa a cada som que pensava ouvir vindo do interior da torre. Um obscuro pressentimento dizia-lhe que a sua fuga teria lugar, ou naquela noite, ou nunca. Iria Juana, por fim, mostrar-se, ou esperar o regresso do primo na esperança de que a solidão, a inquietação e a falta de alimentação tornassem a prisioneira mais maleável?

Para melhor respirar, porque se sentia sufocar, Fiora foi abrir a janela que dava para a cidade. O tempo estava húmido e fresco. Pesadas nuvens corriam de um lado ao outro do horizonte. O Sol, que não se mostrara durante todo o dia, não tinha qualquer razão para se deitar e Roma passou lentamente de uma espécie de claro-escuro para as trevas nocturnas que nenhuma estrela, certamente, viria iluminar. O ar cheirava a lodo e aos detritos de toda a espécie que enchiam o rio vizinho. Alguns pontos luminosos acendiam-se de longe em longe na imensidão cinzenta sem nada retirar ao lado sinistro com que a noite vestia a Cidade Eterna sob os seus campanários e torres de vigia.

Subitamente, Fiora pensou num pormenor de que se tinha esquecido. A jovem voltou a fechar a janela, foi acocorar-se diante da chaminé onde o fogo morria por falta de alimentação e acendeu duas velas nas brasas ainda vermelhas. Em seguida, entrou na sala de banhos que possuía o luxo inaudito de um grande espelho de Veneza pendurado na parede. A jovem levara consigo a sua luz, com que se pentear e, bem entendido, a sua brocha de cabo longo da qual decidira, chegada a noite, não se separar.

Uma vez ali, Fiora libertou os cabelos e dividiu-os em duas tranças que enrolou em redor da cabeça à maneira de Dona Juana. Estava mesmo a terminar quando ouviu, no quarto, um barulho de loiça que lhe fez bater o coração. Ao mesmo tempo, deslizou por baixo da porta um raio de luz. Teria chegado o momento?

Segurando firmemente o cabo de ébano na mão, ela abriu a porta e sentiu invadi-la uma onda de alegria. Juana estava ali. Inclinada sobre o estrado que um escravo tivera de montar para poder chegar até Fiora, a espanhola dispunha os alimentos e depois, deitando vinho numa taça, beberricou-o voluptuosamente antes de encher, de novo, o recipiente. Entregue ao seu prazer, não ouviu chegar Fiora.

Esta não hesitou. Brandindo a sua arma improvisada, abateu-a com todas as suas forças sobre a cabeça da aia, que caiu sem um grito. Aquilo foi tão súbito que a jovem, um pouco inquieta, acocorou-se junto da grande forma negra e inerte, temendo tê-la morto. Esse medo fora a única razão pela qual Fiora escolhera a brocha de ébano em vez do atiçador de bronze. Rapidamente se tranquilizou. Os cabelos tinham amortecido o choque e Juana ficaria apenas com um grande galo. Não havia tempo a perder.

Aguilhoada pela pressa, Fiora despiu a velha solteirona, que atou em seguida com os atilhos que confeccionara. Em seguida, meteu-lhe na boca um lenço, que ajustou com uma écharpe de seda. Por fim, puxou-a pelos pés para a sala de banho, onde a abandonou sobre o tapete antes de fechar de novo a porta à chave. Admitindo que Juana conseguisse libertar-se, demoraria algum tempo até que fossem em seu socorro, já que a pequena sala não tinha janela, apenas uns buracos de ventilação.

Após a porta fechada, Fiora exalou um profundo suspiro de alívio. Temia, tanto quanto desejava, o instante de atacar Juana e o mais difícil já estava. Bebeu um copo de vinho para se recompor e apressou-se a vestir as roupas da aia. Eram um pouco grandes, mas ela meteu as saias no cinto de couro que apertou ao máximo sem esquecer, claro, as chaves que estavam penduradas nele. Em seguida, prendeu com um alfinete o véu de musselina negra à cabeça e não hesitou um segundo em colocar em redor do pescoço a pesada corrente de ouro de que Juana tanto se orgulhava. Como não possuía um tostão, aquela corrente, vendida aos bocados, permitir-lhe-ia comer ao longo do caminho e, talvez, comprar uma mula.

Estava-lhe reservada uma boa surpresa: os sapatos da aia, uns robustos sapatos de couro, eram como as roupas, um pouco grandes, mas, metendo-lhe lá dentro uns pequenos tampões de pano para os encurtar, fez com que se sentisse bem dentro deles. Evidentemente, o odor das roupas que pedira emprestadas não era muito agradável. Juana gostava dos perfumes pesados. Tudo aquilo cheirava a incenso, a cravo picante e a azeite, mas Fiora pensou que a sua liberdade não tinha preço. Enfim, após um último olhar para aquele quarto do qual pensara nunca mais sair, abriu a porta e deslizou para o exterior. E foi com um grande prazer que girou três vezes a grande chave na fechadura. A seguir, tratava-se de sair do palácio, do qual ela ignorava os cantos para além do que pudera aperceber da sua janela: uns edifícios construídos em redor de um grande pátio de dupla fileira de arcadas dominadas pela torre no alto.

A jovem viu que se encontrava num patamar iluminado por uma lanterna de azeite. Um lanço de escadas estreitas subia para o terraço onde estavam os guardas e um outro descia para as profundezas do edifício. Foi por este último que ela se meteu, puxando o mais possível o véu negro sobre o rosto e esforçando-se por imitar o porte daquela a quem tirara as roupas.

A escada levou-a até ao rés-do-chão sem encontrar vivalma nos dois patamares por que passou. Então, viu-se face a uma espessa porta ferrada que dava, talvez, para aquele jardim que ela nunca tinha visto, e que parecia impossível de abrir. Recordando-se das chaves que levava à cintura, procurou uma que servisse, mas eram todas muito pequenas.

Ao lado da escada havia outra porta pintada e trabalhada. Aproximando-se, Fiora ouviu vozes e risos de homens. Em seguida ouviu-se um barulho de móveis a serem arrastados, ao mesmo tempo que o tom das vozes subia. Os homens iam bater-se naquela sala, que talvez fosse a dos guardas do palácio. A evitar, portanto.

Fiora voltou a subir um andar na esperança de que a porta que dava para esse patamar fosse possível de abrir. A jovem recordava-se, com efeito, de ter reparado, ao chegar com Bórgia na noite da fuga do convento, num balcão que devia estar situado ao lado dos aposentos da guarda.

Se pudesse chegar a esse balcão, que era utilizado para ver os espectáculos da rua, talvez conseguisse descer dali para o chão. Mas era preciso chegar lá.

Com extrema precaução, a jovem experimentou a grande fechadura trabalhada. A porta abriu-se facilmente e sem barulho. Para lá estava uma grande sala, mal iluminada por um candeeiro pousado em cima de uma mesa espelhada, que parecia mergulhar no infinito. A jovem avançou até ela com precaução, mas sem ser obrigada a sufocar o ruído dos seus passos.

Tapetes espessos cobriam as lajes escuras, sobre as quais as chamas das velas se miravam, como num lago. O tecto alto estava pintado à semelhança de um céu estrelado e só faltava um pouco de ar para imaginar que se estava no exterior. Os divãs dourados e as almofadas estreladas de ouro estavam por toda a parte e Fiora recordou-se de ter ouvido Juana gabar uma certa ”sala das Estrelas”, onde o seu querido cardeal dava sumptuosas festas.

A travessia daquela sala magnífica pareceu-lhe durar um tempo infinito. No entanto, via o suficiente para não bater em nenhuma das cadeiras, ou outros móveis que ali se encontravam espalhados. Por fim, ela sentiu sob a mão os bronzes de uma porta e quase gritou de alegria: aquela abria directamente para o balcão.

Fiora avançou lentamente, rasando as paredes pintadas de frescos com medo de ser vista da rua, mas reinava um silêncio total para lá da balaustrada de pedra esculpida. A jovem aproximou-se, um pouco encorajada pela possibilidade de a poderem confundir com Dona Juana, inclinou-se e não viu nada. A grande rua, iluminada vagamente pelos dois potes de fogo colocados à entrada do palácio, de cada lado do brasão com o touro de pedra, parecia deserta e nenhuma luz brilhava no jardim nem na casa em frente. Era tranquilizador, mas a altura a que se encontrava o balcão era-o menos. A escuridão dava a Fiora a impressão de estar à beira de um abismo sem fundo, onde iria morrer. Mas não tinha escolha e já não era possível voltar atrás. Era preciso fazer qualquer coisa, mesmo que, à primeira vista, o gesto parecesse irrisório.

Tirando o véu negro da cabeça, a jovem rasgou-o em dois ao longo do comprimento, atou as duas pontas o mais solidamente possível e depois atou o todo à fina balaustrada. Após o que, tendo feito um rápido sinal da cruz, subiu para cima do balcão virando as costas à rua, agarrou no véu com as duas mãos que tremiam um pouco as pernas também, aliás! e começou a descer suavemente. O coração batia-lhe com toda a força no peito. O primeiro andar de um palácio romano, tal como o de um palácio florentino, era, pelo menos, de três toesas e a corda improvisada não devia medir mais de uma, tendo em conta os nós que fora preciso fazer. Dentro de um instante, teria de saltar e o chão da rua, pavimentado com redondas e cruéis pedras do Tibre, não era nada meigo.

E foi preciso saltar mais depressa do que ela pensara. O véu era de seda e o nó central desfez-se quando ela o atingiu. Foi a queda. Assustada, Fiora teve, de qualquer modo, a presença de espírito suficiente para não gritar. No entanto, alguém gritou, porque, para sua surpresa, aterrou sobre qualquer coisa mole, o que suavizou a sua chegada.

Repreendida vivamente por um dilúvio de imprecações, Fiora olhou com estupor e desolação para o mendigo que se tinha deitado ao longo da parede do palácio, ao abrigo do vento e sobre o qual acabava de cair. De pé também ele, o homem mostrava, sob um velho chapéu amolgado, um rosto rubicundo eriçado de pêlos cinzentos e olhos furibundos:

Ma... magoei-vos?

É claro que magoaste! O que é que te deu p’ra me caíres assim em cima? Vens a fugir?... Qu’interessante, uma mulher a fugir do palácio Bórgia!

As suas mãos, que pareciam tão fortes como duas tenazes, tinham agarrado na jovem e não pareciam dispostas a largá-la. O homem procurava arrastá-la para o portal e ela resistia o melhor que podia quando, subitamente, do mais profundo da sua memória surgiu uma recordação: a de um homem velho que, uma noite, lhe oferecera a hospitalidade do seu tugúrio num palácio florentino em construção. O homem dissera que, através de uma simples palavra, se reconheciam todos aqueles que pertenciam à confraria dos mendigos e essa palavra veio-lhe, com toda a naturalidade, à boca:

1 Antiga medida francesa que media 1,949 m.


Mendici! murmurou ela.

Magia. O homem largou-a imediatamente, ao mesmo tempo que o seu olhar, de furioso, passou a curioso:

Também és, tu? Cust’acreditar. Devia conhecer-te, não?

Não. Sou de Florença e fui trazida para aqui à força. Vou voltar para casa...

À força? É verdade qu’és uma bela rapariga e qu’as raparigas bonitas desfilam, aqui. Sabes o caminho pr’a Florença?

Não, mas espero encontrá-lo. É preciso ir para norte?

É preciso sair pela porta del Popolo! Como me deste cabo do sono, eu mostro-te por onde... mas, se tivesses uma coisinha p’ra me dar pela dor que me causaste, fazia-me bem. Fizeste-me muito mal, sabias?

Sem responder, Fiora vasculhou na esmoleira de Juana onde tinha, sem a explorar, metido a corrente e a medalha com a intenção de dar esta. Para sua surpresa, sentiu sob os dedos a redondeza de algumas moedas, tirou uma com a impressão de que era um ducado e meteu-a, sem olhar para ela, na mão do mendigo que, esse, deu alguns passos na direcção dos potes de fogo. Ela compreendeu que não se enganara ao vê-lo morder a moeda.

É mesm’ouro! constatou ele. Também me espantava muito se não tivesses encontrado uma ou duas destas moedas nesta casa. Vem! Vamos embora! Eu mostro-t’o caminho e depois deixo-te. Não quero que me vejam na companhia d’uma mulher que está em fuga!

Ele arrastou-a por uma rua estreita que se abria a um canto do palácio e enfiou a direito por entre duas filas de casas de altura desigual. Os olhos de Fiora iam-se acostumando à escuridão. De resto, no céu, as nuvens, empurradas pelo vento vivo, afastavam-se, desfaziam-se, para deixar ver, por instantes, algumas estrelas. O homem caminhava rapidamente, mas ela seguia-o sem dificuldade. E então, de repente, deixou de haver casas, nada, senão um vasto espaço vazio, um enorme terreno vago onde se amontoavam as ruínas de uma igreja e uma espécie de túmulo todo amassado. O mendigo deteve-se:

Agora, deixo-te. Só tens que caminhar a direito, deixando à tua esquerda o mausoléu de Augusto.

Aquela coisa ordinária é o mausoléu de Augusto?

Ou o que resta dele. Faz como te digo! Primeiro, além ao fundo, verás as braseiras na muralha. A porta del Popolo é mesm’em frente.

Ela nem teve tempo de agradecer. O mendigo fundiu-se, sem fazer mais barulho do que um gato, na sombra densa da igreja arruinada. Fiora ficou ali por um instante, à beira daquele deserto, saboreando uma impressão maravilhosa esquecida há muitos dias: estava só, estava livre... Uma vez fora daquela cidade, uma vez transposta a porta da qual apercebia vagamente as fogueiras de vigília, só teria a longa estrada que ia dar à sua querida cidade do Lis vermelho. Esqueceu que era de noite, que estava frio e que, enquanto não estivesse longe das muralhas de Roma, que deixara para trás, estaria em perigo, já que era verdade que o primeiro contacto de um prisioneiro com a liberdade é sempre exaltante. Tinha vontade de correr para poder ter a impressão de que voava, mas teria sido perigoso naquele terreno desigual e sem a menor luz que lhe permitisse seguir um traçado qualquer, admitindo que houvesse um.

Fiora pôs-se, portanto, a caminho calmamente na direcção do ponto que lhe tinham indicado, tentando não tropeçar nos montículos de terra onde as lajes se sobrelevavam, lamentando não ter uma bengala ou um pau qualquer para apalpar o caminho. Chegava mais ou menos ao local do mausoléu abandonado, ao pé do qual aparecia uma luz vaga por entre os arbustos, quando dois braços se abateram sobre ela e a agarraram pela cintura, reduzindo-a à impotência a despeito da sua defesa, ao mesmo tempo que uma voz triunfante gritava:

Apanhei uma!

Estás a sonhar! disse uma outra voz. Deves ter apanhado um pastor qualquer!

Estou-te a dizer que é uma mulher! Até tem umas tetas bem redondas e firmes!

Outro par de mãos pousou-se em Fiora, apalpando-lhe os seios ou apoiando-se na sua boca para a fazer calar. Em breve havia quatro ou cinco sombras que a apertavam, cheirando a couro, a cavalo e até a imundície. A jovem pensou que caíra em poder de bandidos e esforçou-se por morder a mão que a sufocava sem o conseguir. Uma nova voz, imperiosa, ordenou:

Trazei-a aqui para vermos com que se parece! Resistir era impossível. As sombras que seguravam Fiora e que estavam mascaradas de negro arrastaram-na na direcção do mausoléu. Ela viu-se numa espécie de nicho no meio dos arbustos e iluminada por uma lanterna. Um pouco mais longe, estavam umas vacas presas.

Atiraram Fiora por terra e ela viu erguer-se, diante de si, também ele mascarado, um homem grande e forte, vestido com um gibão bordado sob uma grande capa negra e que, com as mãos nas ancas, a olhava rindo a bandeiras despregadas e mostrando umas presas de lobo.

Segurai-a! ordenou ele ao ver a jovem debatendo-se furiosamente para se levantar. É um verdadeiro gato furioso... mas dir-se-ia que tivemos sorte. Uma bela presa, por minha fé! Aquelas que vêm a estas ruínas à noite em busca de ervas não são assim tão apetitosas! Vejamos isto mais de perto! Abre-lhe o corpete, Orlando, e tu, Guido, levanta-lhe as saias.

Por um instante, Fiora, horrorizada, viu-se com os seios e as coxas ao ar, ao mesmo tempo que o chefe começava a desatar a braguilha. Ela torceu-se como um verme, o que fez os seus companheiros desatarem a rir.

Deixa-te de histórias, filha, não vais morrer! Nós só somos seis!

Livre por um instante da mão que lhe tapava a boca e que deslizou, Fiora berrou:

Socorro! A mim! Soe...

A jovem ouviu, então, uma voz que respondia em eco:

Ataca, Zeus! Ataca, Hera!

Surgidos da noite, as poderosas formas negras dos grandes cães que ela já conhecia abateram-se sobre quatro homens ao mesmo tempo, que começaram a berrar sob as mordidelas. Ao mesmo tempo, o seu dono aparecia no halo amarelo de uma lanterna. A sua bengala transformara-se numa longa espada cuja ponta se foi apoiar na garganta do homem que se preparava para violar Fiora:

Então, senhor Santa Croce disse a voz fria de Infessura agora são precisos seis para molestar uma burguesa romana?

Uma burguesa, isso? Estás a brincar, amigo? Que faria uma burguesa a estas horas nestas ruínas?

Até a mulher de um notário tem o direito de ir ter com o amante que é dos Colonna, como este velho mausoléu e tudo o que o rodeia. Devias saber isso, Giorgio Santa Croce! Assim como devias saber que estás longe de casa e que vinte homens estarão aqui dentro de instantes se eu assobiar de uma certa maneira!

Santa Croce hesitou, mas a ponta da espada fez sair uma gota de sangue do seu pescoço. Eras capaz de me matar por causa de uma burguesa?

Sem hesitar, porque o Papa dar-me-ia razão. Ele estima muito os magistrados desta cidade.

Está bem! Baixa a tua espada e chama os teus cães! Não quero que me devorem os meus amigos.

A bem dizer, destes só restavam dois, os que Zeus e Hera mantinham por terra sob a ameaça das suas presas avermelhadas. Os outros três tinham preferido uma fuga sem glória para tratarem das feridas e evitar aborrecimentos mais sérios. A uma ordem do dono, os dois animais foram sentar-se a seus pés. Mas um dos dois homens assim libertados teve um gesto de furor. Tirando um estilete do cinto, feriu Fiora:

Toma minha bela! Explica ao teu marido notário onde arranjaste isto!

Levantara-se de um salto e já fugia quando, lançada pela mão segura de Infessura, uma adaga o apanhou entre os ombros. O homem caiu por terra sem um grito, enquanto Santa Croce e o seu último companheiro se lhe juntavam e se inclinavam sobre ele por um instante antes de se porem ao largo sem mais insistências. Mas Fiora não viu aquilo: o golpe recebido, juntamente com o terror que acabava de experimentar, tinham sido superiores à sua resistência. Desmaiou...

Quando regressou a si, continuava deitada na erva húmida e o seu corpete continuava aberto, mas o seu salvador, de joelhos perto dela, aplicava-lhe um tampão de pano no ferimento. Ele sorriu quando a viu abrir os olhos:

Tiveste sorte. A lâmina deslizou na clavícula e não te atingiu a garganta. No entanto, este ferimento precisa de tratamento. Onde ias, assim sozinha e a meio da noite?

Para Florença...

A pé?

Ia a fugir. Evadi-me há pouco do palácio Bórgia.

Em poucas palavras, ela contou aquilo por que passara àquele estranho vagabundo da noite e sem procurar esconder nada, porque ele lhe inspirava uma total confiança. Tinha mesmo a impressão de que ele era o único homem sério e honesto de toda a cidade.

Juraria que se passaria assim. Mas ainda do que o touro ao qual gosta de se comparar, Bórgia é um bode malcheiroso. Correu demasiados riscos ao raptar-te de Santo Sisto para não reclamar o único pagamento que lhe interessa. Ele não se teria preocupado contigo, mesmo para agradar ao Rei de França, se fosses feia. Por Baco! Não tenho aqui nada para te fazer um penso e o sangue volta a correr se o tampão sair do sítio. Achas que lhe consegues pôr a mão em cima depois de te fechar o vestido?

Tenho de conseguir... mas, que vais fazer de mim? Eu... eu não me sinto muito bem...

Com o corpete no seu devido lugar, ela tentou erguer-se, mas sentiu que a cabeça lhe andava à roda. Infessura praguejou entredentes:

Tenho que te levar para um sítio qualquer!

Tirando do seu gibão um frasco envolto em prata, o ”escriba republicano” destapou-o, apoiou o gargalo nos lábios de Fiora e fez-lhe escorrer para a boca algumas gotas de um líquido tão forte que ela teve a impressão de engolir fogo líquido. O calor invadiu-lhe o corpo todo e pareceu-lhe que recobrava as forças.

Obrigada suspirou ela. Já estou melhor e se quiseres ajudar-me a levantar, creio que poderei caminhar. Não até Florença, claro. Oh, meu Deus! Sentia-me tão feliz com a ideia de regressar, de reencontrar em breve...

Deixa as ternuras para depois! Por agora, temos de te tratar! O mais normal seria levar-te para minha casa, mas é muito longe. Eu moro perto de Santa Maria Magiore, em Esquilino. Nunca conseguirás caminhar até lá.

Que fazer, então? Não há aqui perto um hospital, um convento?

Isso seria entregar-te. Não, já sei o que vamos fazer. Vou-te conduzir a casa de uma amiga. Ela saberá tratar-te e ninguém irá à tua procura no gueto de Roma.

Gueto?

Fiora sentiu retesar-se o braço que a segurava, enquanto a voz do seu companheiro voltava a ser seca e cortante:

Tu és dos que desprezam os Judeus?

Que ideia! Sofri desprezo suficiente dos outros para ter desses desdéns, simplesmente, tu sabes quem eu sou, não sabes?

Fizeram suficiente barulho acerca de ti.

Nesse caso, sabes que sou procurada pela polícia do Papa e eu não quero pôr ninguém em perigo por minha causa. Bórgia tinha os meios para se defender se me encontrassem em casa dele, mas uma mulher judia...

Anna também tem protecção. Além disso, durante as semanas que passaste em casa do vice-chanceler, as buscas acalmaram um pouco. O Papa anda cheio de raiva. Depois de ter mandado vasculhar por quatro vezes o palácio d’Estouteville, acabou por meter na cabeça que tu deves ter deixado Roma. Pelo menos, faz de conta. Vem, são horas de nos metermos a caminho.

É longe, esse gueto?

É quase tão longe como a minha casa, mas nós temos meios de te simplificar a viagem.

Firmemente suportada por Stefano, Fiora caminhou suavemente até ao Tibre, que corria do lado de lá do mausoléu. Zeus segurara na lanterna com a boca e iluminava o caminho, permitindo-lhes evitar os arbustos e os montes de pedras. Hera, de nariz ao vento, fechava a marcha. Chegados à margem na qual estavam duas ou três barcas, Infessura empurrou uma para a água e instalou Fiora nela, aos pés da qual se deitaram os cães.

Este barco murmurou Fiora, inquieta sabes a quem pertence?

Sei. Fica tranquila! O Infessura nunca enganará um dos seus irmãos humanos. Trá-lo-ei de volta assim que estiveres em segurança. Aliás, Pietro feriu-se há dois dias e não se pode servir dele.

Vasculhando na bolsa de Juana, Fiora tirou uma das três moedas que lhe restavam e estendeu-a ao seu guia:

Nesse caso, dá-lhe isto. Se não pode trabalhar, ficará contente por receber este ouro.

Na noite que os rodeava tinham tapado a lanterna Fiora viu brilhar os dentes do seu guia e ouviu-o rir docemente:

Eu sabia disse ele que valia a pena ajudar-te. Doravante sou teu amigo.

A barca deslizava pela água negra do rio. Stefano esforçava-se por mantê-la na escuridão, mas sem grandes esforços, porque a corrente ajudava-o. Percorreram assim a grande curva, na parte mais profunda da qual estava o Vaticano, as suas torres, os seus guardas e os seus espiões, mas o pequeno esquife, conduzido por mão de mestre, não fazia qualquer barulho para além, de tempos a tempos, de um chapinhar ligeiro que podia ser o de uma ave qualquer à pesca.

A viagem pareceu interminável a Fiora. O frio da noite gelava-a até aos ossos e o seu ferimento, sobre o qual ela não cessava de pressionar a mão, provocava-lhe dores no pescoço. No entanto, não se sentia abatida e chegou a divertir-se, por um momento, com o pensamento de que, chegada constipada ao palácio Bórgia, tinha agora todas as hipóteses de apanhar outra, agora que tinha saído de lá.

Infessura parou a barca em frente da ilha Tiberina e ajudou a sua passageira a desembarcar:

Estás cansada, não estás? perguntou ele, reparando que ela estava mais pesada mas fica tranquila, estamos quase a chegar. Lá está o palácio Cenci acrescentou ele designando a massa negra de uma construção feroz, com ares de fortaleza graças às pedras ciclópicas que formavam, no rés-do-chão, uma muralha cega com excepção de uma porta estreita e alta poderosamente chapeada a ferro. A casa do rabino Nathan fica em frente, perto da sinagoga. Anna é filha dele.

A ruela pela qual caminhavam prudentemente por causa das imundícies, cheirava a azeite rançoso e a podridão. As casas não passavam de construções informes, feitas de pequenos tijolos e barro e dominadas pelo nobre palácio. Por fim, no extremo de uma pequena praça, Infessura parou diante de uma morada maior e mais bem construída do que as outras. Era feita de boa pedra, que segurava o primeiro andar em sacada por cima de uma abóbada redonda que dava, sem dúvida, para um pátio nas traseiras e que tinha uma porta, no topo da qual se encontrava a mezuza. Aquele pequeno nicho, fechado por uma grade de bronze, deixava ver, ao abrir, uma fórmula bíblica escrita em caracteres hebraicos num pedaço de pergaminho amarelecido. Indicava a todos que aquela casa pertencia a um homem importante da comunidade judia.

O punho de Stefano bateu a essa porta segundo um código convencionado e ela abriu-se pouco depois pela mão de uma jovem usando um vestido de seda amarela com mangas flutuantes e cujos cabelos, negros como tinta, estavam entrançados em várias tranças sob uma espécie de tiara trabalhada, de onde caía um véu cor de açafrão, A jovem segurava uma vela.

Sou eu, Anna disse o Infessura. Trago-te uma amiga. Ela tem frio e foi ferida pelo bando de Santa Croce quando fugia do palácio Bórgia.

A mão que segurava na vela ergueu-se de maneira a melhor iluminar o rosto da recém-chegada.

Ah!... Entrai, claro, mas peço-vos que espereis um instante, porque tenho uma visita. Sentai-vos ali!

A jovem recuou para dar passagem. A porta dava para uma pequena sala pavimentada como uma rua e pobremente mobilada: uma mesa, três escabelos, uma arca e alguns bancos ao longo da parede. Foi um desses bancos, o mais afastado da entrada, que a judia designou. Ao fundo da divisão, uma cortina de grandes ramagens tapava alguns degraus que desciam para a sala seguinte. Subitamente, aquela cortina ergueu-se sob a mão de uma mulher pequena, magra e elegantemente vestida de veludo castanho e seda branca.

Que fazes aqui? disse Anna num tom descontente. Tinha-te dito para esperares. És muito curiosa!

Mas a mulher não a ouviu. Com os braços estendidos, precipitou-se para os recém-chegados com um grito de alegria.

Minha senhora! Minha querida senhora!

Fiora, que se tinha de pé por milagre e pela força do seu companheiro, ergueu os olhos e acreditou-se vítima de uma miragem. Tinha de ser, senão, como imaginar que Khatoun a ia abraçar? As suas pernas flectiram...

Desmaiou outra vez constatou Stefano. Tens de tratar dela imediatamente, Anna!

1 Ver Fiora e Lourenço, o Magnífico

CAPÍTULO IX TRÊS MULHERES

Era mesmo Khatoun. Fiora ficou convencida quando, ao cabo de alguns instantes, emergiu do seu mal-estar devido à fadiga e ao sangue perdido. O Infessura devia ter-lhe administrado uma nova dose do seu remédio miraculoso, acrescida, talvez, de algumas bofetadas, porque sentia as faces quentes e o gosto picante e perfumado de há pouco regressara-lhe à boca. O seu espírito recuperou toda a sua lucidez sob a influência da alegria ao ver a jovem tártara, o seu rosto triangular e os seus olhos de gato inclinados sobre ela.

Mas, que fazes tu aqui? Pensei que nunca mais te veria...

Nem eu, minha senhora. Foi uma grande felicidade para Khatoun, mesmo se ela te encontra num triste estado.

Já não sou a tua senhora há muito tempo.

Sê-lo-ás sempre para mim, mesmo que eu tenha de obedecer a outra pessoa qualquer. Como posso esquecer os dias felizes de outros tempos?

Abraçais-vos mais tarde disse uma voz severa. Gostaria de prosseguir o exame.

Fiora viu, então, que a tinham deitado em cima de uma mesa, a cabeça numa almofada e que Anna afastava suavemente Khatoun. A judia tirara o tampão de tecido aplicado por Stefano e segurava-o numa mão. Este estava vermelho de sangue, prova de que o ferimento tinha sangrado muito. Anna atirou-o fora, virou-se para pegar em algo atrás de si e arregaçou as mangas do seu vestido, deixando ver uns braços magros e dourados. Numa mão tinha uma espécie de agulha de ouro de ponta arredondada, que erguia no ar.

Segurai-lhe os braços ordenou ela. Tenho de sondar o ferimento e ela não se pode mexer.

Eu não me mexo afirmou a doente, o que provocou um breve sorriso nos lábios carnudos da judia.

É uma promessa que quase nunca ninguém cumpre. Prefiro que te imobilizem. Vai doer-te um pouco, mas, se te mexeres, pode ser pior.

As mãos de Khatoun e de Stefano caíram ao mesmo tempo sobre os braços de Fiora, que viu inclinar-se sobre ela, atento, o estreito rosto moreno da sua estranha médica. A despeito de uma boca um pouco grossa, Anna era bela graças aos mais belos olhos azuis que Fiora jamais vira. A curva aquilina do seu nariz era orgulhosa, como, aliás, todos os traços do seu rosto, e dela emanava um odor a manjerona, inesperado naquela cave. Porque a divisão para onde tinham levado Fiora tinha o ar de ser uma. Uma abóbada de pedras enegrecidas, que devia datar dos Césares, arredondava-se por cima da mesa, mas, virando um pouco a cabeça, Fiora pôde ver que desaparecia por trás de uma série de pranchas espessas de madeira, sobre as quais se amontoavam bilhas, frascos, caixas, sacos com ervas e estranhos vasos de vidro, ou ainda grossos livros de encadernações velhas: um conjunto que lhe lembrou o gabinete de Demétrios em Fiesole e a fez esquecer que, com efeito, a exploração do seu ferimento não tinha nada de agradável.

Não gosto dos ferimentos provocados por um estilete disse Anna, endireitando-se. Eles mergulham, muitas vezes, mais fundo do que os feitos por uma lâmina mais larga. Este é menos profundo do que eu temia, mas dir-se-ia que abriu uma cicatriz! Já foste ferida no ombro? perguntou ela a Fiora.

Já. Recebi um golpe de espada há pouco mais de dois anos.

Trabalho bem-feito. Quem te tratou, então?

Não creio que o conheças, se bem que seja italiano. Chamava-se Matteo de Clerici e era o médico do último duque de Borgonha...

O riso do Infessura cortou-lhe a palavra. Uma grande risada sonora e alegre, que não ia nada bem com a sua personagem de ave nocturna.

Ninguém diria, ao ver-te, que és um velho guerreiro, Dona Fiora! Portanto, conheceste o Temerário, esse príncipe fabuloso?

Vivi junto dele até à sua morte, mas disse Fiora com um sorriso pálido não és republicano? Por que te interessas assim por um príncipe?

O príncipe morreu e isso muda tudo. A sua história apaixona-me, como tudo o que é História em geral. Terás de me falar dele, Dona Fiora! Em seguida, virando-se para Anna: Podes ficar aqui com ela durante alguns dias até ficar melhor? Eu, depois, levo-a para minha casa. Não te escondo que os esbirros do Papa procuram-na e agora, sem dúvida, também os de Bórgia.

Anna, que limpava o ferimento com vinho de ervas antes de o embeber num unguento de odor picante, não tirou os olhos do seu trabalho:

Posso ficar com ela durante quatro ou cinco dias e penso que serão suficientes, se a febre não subir. O meu pai foi a Perusa, à cabeceira de um velho amigo. É uma sorte!

O rabino Nathan já não abre a porta ao infortúnio? perguntou Stefano com uma severidade onde entrava a decepção.

A todos, não. As boas disposições do Papa para com a comunidade judia de Roma são-lhe muito caras.

Também ao Papa. Ele arranca-vos muito ouro!

Sem dúvida, mas deixa-nos viver em paz e até nos protege contra os nossos vizinhos. Se ele e os Cenci nos tiram o apoio, as feras raivosas que estão à nossa porta e que nos espreitam, atiram-se a nós e queimam-nos as casas. Isso conta.

Que histórias! exclamou Khatoun, que até ali se tinha mantido em silêncio, contentando-se em manter nas suas as mãos de Fiora, que levava às faces de vez em quando como nos velhos tempos, quando viviam juntas no palácio Beltrami. Por que não há-de vir para nossa casa? Estou certa de que a condessa Catarina, a minha nova senhora, ficaria feliz por acolhê-la. Ela é a única, em Roma, que se preocupa com ela e que sempre fez tudo para a ajudar. O palácio é grande e...

Mas é o palácio Riario cortou o Infessura. Mais vale lançá-la aos tigres...

Além disso continuou Anna Dona Catarina vai em breve dar à luz. Tu sabe-lo muito bem, Khatoun, porque vieste sozinha, esta noite. A propósito, são horas de te dar o que vieste buscar e de regressares a casa.

Oh não! protestou Khatoun. Já, não! Acabo agora mesmo de reencontrar a minha querida senhora, que foi para mim como uma irmã e queres mandar-me já embora? Tenho tantas coisas para lhe dizer, tantas perguntas para lhe fazer...

Perguntas, só mais tarde! Ela já falou demais! Vamos levá-la para uma cama e tu vais-te embora. A tua escolta já deve estar preocupada. Podes voltar amanhã e sempre que quiseres acrescentou ela ao ver que o rosto da pequena escrava se enchia de lágrimas. Ajuda-nos a levá-la lá para cima!

Acendendo uma vela na grande lanterna de azeite que iluminava a sala, ela dirigiu-se para os degraus da escada para erguer a cortina enquanto Stefano e Khatoun ajudavam Fiora, devidamente ligada, a descer da mesa onde estivera deitada. Por uma escada estreita de pedras pouco segura, onde uma corda servia de corrimão, chegaram ao andar de cima. Acima do patamar forrado de madeira encontrava-se uma porta que Anna desdenhou. Virou-lhe, mesmo, as costas e fez força numa moldura grosseira. Abriu-se um painel, que ela transpôs para ir acender três grandes lâmpadas de cera fina colocadas num candelabro de prata. O local iluminou-se para espanto dos que seguiam a jovem. Separadas por espessas tapeçarias de veludo negro, erguidas por pesados ganchos de prata, estavam três divisões a seguir umas às outras, três divisões decoradas com um luxo oriental que revelava a real riqueza do rabino e da sua filha. Poucos móveis. Apenas leitos baixos e compridos, algumas arcas pintadas, mesas baixas incrustadas de marfim, uma profusão de almofadas cintilantes e tapetes, sobretudo tapetes. Da Arménia ou do Cáucaso, de longo pêlo, tão espesso como a erva dos campos, cobriam as lajes de pedra; de trama larga, leves e sedosos, decoravam as paredes. Pousado no chão, um grande jarrão de perfume em bronze exalava um vapor odorífico que lutava vitoriosamente contra os eflúvios malcheirosos da rua e nas janelas fechadas, que no lado de fora ostentavam cordas para estender roupa, havia reposteiros duplos, apanhados, de cendal amarelo-dourado e que, vistos do exterior, eram acinzentados.

Após depositarem Fiora num divã do quarto mais recuado, a judia foi buscar a uma arca uma túnica de seda amarela e depois, virando-se para o Infessura:

E agora, deixa-nos, homem livre! Volta, também tu, quando quiseres. Khatoun sairá daqui depois de ti!

É a segunda vez que me salvas disse Fiora estendendo a sua mão válida a Stefano. Como poderei agradecer-te?

Eu não sou nenhum Bórgia para te pedir um pagamento. Basta-me saber que somos amigos.

Isso é pouca coisa!

Achas? Para mim, ter amigos é como ter uma religião. A amizade, vê lá tu, é o amor sem asas. É menos exaltante, talvez, mas muito mais sólida.

Um momento mais tarde, deitada naquele leito estranho e acolhedor como um casulo, Fiora esperava pelo sono que Anna lhe prometera ao fazê-la beber uma malga de leite com algumas gotas de um licor desconhecido. No entanto, esse sono tardava em chegar. Talvez porque a jovem não conseguia esquecer a sua decepção. Evidentemente, acabava de escapar a grandes perigos, evidentemente, estava salva, mas não fizera mais do que passar de um quarto para outro, luxuoso sem dúvida, mas que ficava a perder no que respeitava ao ar livre e à liberdade. Teria preferido cem vezes terminar aquela noite encostada a um muro qualquer em ruínas, numa casa qualquer em ruínas, porque o dia seguinte veria abrirem-se para ela as portas daquela Roma que odiava com todas as suas forças. A estrada de Florença, por um instante entrevista, evaporara-se como uma miragem.

A droga começava a agir. O corpo dorido da eterna fugitiva distendeu-se, ao mesmo tempo que o seu coração se apaziguou. A despeito da sua sorte precária, não dava provas de ingratidão para com a sorte, que pusera no seu caminho Stefano Infessura e os seus cães e que, sobretudo, lhe permitira reencontrar Khatoun naquela noite? Era a infância, a adolescência feliz que acabavam de reaparecer diante de Fiora sob a aparência da pequena tártara, que Léonarde comparava de boa vontade a um gatinho por causa do seu rosto triangular, do seu gosto pelo leite e pelos bolos e da maneira que ela tinha de se enroscar nas almofadas de seda que compunham o seu leito. Era também a devoção e a horrível recordação da casa da Virago, o bordel das margens do Amo, de onde Khatoun, entregue como a própria Fiora à prostituição, desaparecera, uma noite, para seguir um homem apaixonado por ela. Fiora recordava-se que era um médico de Roma, mas, nesse caso, como fora Khatoun parar ao serviço da condessa Riario? Foi sobre esta última questão que a jovem ferida, por fim, caiu num sono que iria durar mais de doze horas.

A história de Khatoun era simples e triste. A jovem tártara contou-a a Fiora no dia seguinte. O homem que ela conhecera em casa da Virago, Sebastiano Dolci, era um médico rico de Roma que, sob o pretexto de viajar para se instruir, gostava de esquecer, na casa de Pippa, a austeridade exigida pelas conveniências de uma existência burguesa e conformista pela qual velava, depois da viuvez de Sebastiano, uma tia já idosa. Essa dignidade um pouco severa valera-lhe a consideração dos seus vizinhos e um gabinete com a melhor das freguesias. Mas, de tempos a tempos, Sebastiano, que só tinha quarenta anos, sentia a necessidade de se evadir e foi assim que, tendo ido um dia a Florença para ali se encontrar com um professor da Universidade, descobrira um lugar de prazer, ao qual acabara por votar uma certa fidelidade. Pippa sabia que género de raparigas ele preferia e ele raramente ficava desiludido, mas na noite em que ela lhe levou Khatoun, ele sentiu uma emoção tão profunda que recusou, chegada a manhã, separar-se dela e comprou-a à alcoviteira.

Pelo seu lado, Khatoun sentira-se seduzida por aquele belo, doce e terno homem, que ao saber que ela era virgem a tratara como teria tratado a sua noiva na noite de núpcias. Tinham feito amor alegremente e foi com a mesma alegria que a pequena tártara seguiu aquele novo senhor que só queria ser seu escravo. A jovem acompanhara-o a Roma com o coração tanto mais ligeiro quanto os latidos da Virago, de madrugada, lhe tinham anunciado que Fiora, liberta por Demétrios, conseguira escapar aos seus inimigos.

Sebastiano estava tão apaixonado que quis casar com Khatoun, na viagem de regresso numa pequena capela perto do lago Trasimène e foi quase em triunfo que a levou para sua casa na via Latina. Um triunfo que não fora do agrado de toda a gente.

O médico apaixonado bem dissera que a sua jovem esposa era uma princesa exilada que um navio veneziano embarcara em La Tana e trouxera para as margens do Adriático, mas a tia só via uma coisa: o seu sobrinho tinha-se apaixonado por uma rapariga de cor que não podia inspirar nenhuma confiança à cristã picuinhas que era. O facto de Khatoun ter jurado que era baptizada e crente não mudara nada: a tia recusara-se a dar-lhe, na casa, o lugar a que tinha direito, não a autorizando a existir, bem contra a vontade, mas pela força das coisas, senão na câmara conjugal.

Não ter que gerir uma casa não desgostara absolutamente nada a jovem signora Dolfi. Ela ignorava quase tudo acerca da profissão de dona-de-casa, porque, no palácio Beltrami, lugar onde nascera na realidade, tinha um papel puramente decorativo na generalidade e em particular o de ser companheira de Fiora. Sentia-se feliz por se consagrar unicamente ao seu querido Sebastiano e se, por vezes, os dias de solidão lhe pareciam longos e um pouco amargos, as noites compensavam-na amplamente pelo ardor que os jovens esposos punham no amor.

E então, no decurso de uma dessas noites, Sebastiano tivera que sair. Um doméstico do cardeal Cipriani, que sempre protegera a sua família, fora buscá-lo de urgência e Khatoun esperara em vão o seu regresso no leito de lençóis amarrotados, cuja almofada conservava ainda a forma da sua cabeça. Encontraram o cadáver no Tibre no dia seguinte e, nessa mesma noite, a pobre Khatoun, cuja tia nunca admitira a realidade do casamento, fora conduzida à força a casa de um traficante de escravos do Transtevere. O homem fechara-a o tempo necessário para que acalmassem, se os houvesse, os rumores causados pela morte do médico e a eventual curiosidade da polícia; muito eventual, aliás, porque aquele género de descoberta era demasiado frequente para que os homens do Soldan procurassem saber a verdade. Então, o mercador propôs aquela peça rara a lenda da princesa exilada era boa ao conde Girolamo Riario, que a ofereceu à sua jovem mulher, não sem a ter feito passar, primeiro, pelo seu leito.

Aquela última noite fora a última da lista de infelicidades de Khatoun. A jovem condessa Catarina era orgulhosa e um pouco arrogante, mas era boa e generosa. A sua nova escrava agradou-lhe ao ponto de fazer dela a sua nova favorita e até sua confidente. Junto dela, Khatoun reencontrou quase o papel que fora o seu em casa de Fiora durante tantos anos.

Mas não é como tu suspirou ela como conclusão do seu relato. Há uma violência nela que não ousa mostrar, porque está longe de ser feliz com o conde, que é bruto, um homem comum, cujo tio se tornou Papa e que, por isso mesmo, esmaga tudo à sua volta. A única coisa que ama é o ouro.

Mas a sua mulher é bela! Ele não a ama?

Ele tem orgulho nela porque é princesa, mas não se trata de amor. Imagina que ela tinha onze anos quando casou com ele e, por isso, ele exigiu que a noite de núpcias tivesse lugar nessa mesma noite. Creio que ela nunca lhe perdoará.

Mas ela está grávida, se bem me lembro?

Está. Vai dar à luz um dia destes. Apesar de odiar o marido, é obrigada a suportá-lo. Oh, tem grandes compensações: é a Rainha de Roma. Tudo o que conta na cidade está a seus pés. E depois, tem os livros, o saber. No palácio, há uma sala para onde ela gosta de se retirar para compor filtros, poções e unguentos para a beleza.

Ela faz alquimia?

Não sei se essa prática se chama assim, mas a condessa vem aqui muitas vezes. É ela que protege Anna, a judia é assim que a chamam porque aprende muitas coisas em casa dela. Além disso, Anna compõe-lhe leites, cremes e emplastros que embelezam ou ajudam a conservar a beleza. Dona Catarina escreve tudo num livro que guarda ciosamente.

Decididamente, é uma mulher surpreendente disse Fiora mas ela não se espanta com as tuas ausências? Há dois dias que vens aqui. Ela deu-te autorização?

Eu disse-te que ela é boa. Quase lhe confessei a verdade: que tinha encontrado a minha amiga de antigamente, que ela estava doente e que precisava de mim.

É verdade, Khatoun. Eu preciso de ti. Infelizmente, teremos de nos separar em breve. Assim que tiver recobrado as forças

1 As receitas de beleza recolhidas. por Catarina Sforza, condessa Riano, são um facto histórico assim como as suas relações com Anna, a judia que estava ao mesmo nível da sala de entrada, para ali ir buscar água e depois aventurou-se na adega que servia de laboratório à sua anfitriã e folheou alguns livros, mas a maior parte estava escrita em caracteres hebraicos e ela não compreendia nada. Apenas um tratado de Hipocrates, em grego, poderia ter retido a sua atenção, mas não sentia qualquer afinidade pela medicina e regressou ao seu quarto, não sabendo em que ocupar o tempo.


pedirei a Stefano Infessura que me ajude a sair de Roma. Quero ir para Florença, para estar ao abrigo das garras do Papa e de Hieronyma e depois regressar a França!

E eu vou contigo. Não te quero deixar mais... e depois, tenho vontade de ver outra vez Dona Léonarde e de conhecer o bebé Philippe.

Achas que Dona Catarina te permite uma coisa dessas?

Que permita ou não, não tem importância. Pela lei dos escravos, eu pertenço-te porque nunca me vendeste, nem expulsaste... nem libertaste.

Sim. Há muito que foste liberta, Khatoun. Desde o dia em que, para me tentares libertar, te atiraste para as patas da Virago. Sabe-lo bem.

Sei, mas não quero que isso se saiba.

A entrada de Anna interrompeu a conversação. A bela judia vinha renovar, como fazia duas vezes por dia, o penso da doente, coisa que lhe dava, aliás, grande satisfação. Fiora escapara, graças aos seus cuidados, à febre que teria retardado uma cura que avançava a grandes passos. Anna tinha, portanto, todas as razões para se alegrar e, no entanto, nessa noite, tinha ciúmes.

O Infessura não apareceu ontem, nem hoje disse ela quando prometeu que viria todos os dias...

. Não é antes a noite que é preciso esperar? perguntou Fiora. Não o vimos a última noite, sem dúvida. Deve ter sido impedido. Há-de vir esta...

No entanto, a noite passou sem que o escriba republicano batesse à porta. Nem o viram no dia seguinte e a quarta manhã nasceu sem que ele aparecesse.

É preciso saber o que se passa declarou Anna. Vou fechar esta casa cuidadosamente e vou a casa dele. Não abras a ninguém, nem sequer a Khatoun! acrescentou ela para Fiora.

Tirando rapidamente a sua tiara dourada e os seus vestidos tradicionais, Anna vestiu roupa de criada, calçou umas socas, enfiou um cabaz no braço como se fosse ao mercado e abandonou a casa pelo pátio das traseiras que a abóbada redonda fazia com que comunicasse com a rua.

Só, Fiora, que desde a véspera se sentia suficientemente bem para se levantar, errou pela casa. Tinha sede e desceu à cozinha, Maquinalmente, aproximou-se da janela diante da qual, naquela mesma manhã, Anna estendera algumas peças de roupa. Era possível observar o que se passava na rua. Por prudência, Fiora permaneceu ao abrigo dos cortinados. O espectáculo não tinha nada de muito interessante: alguns passantes pobremente vestidos, quase todos com a rodela amarela, crianças jogando ao pião em cima de uma antiga laje romana e, como pano de fundo, a fachada rebarbativa do palácio Cenci, que parecia fechado sobre si mesmo e cuja massa dominava desdenhosamente o bairro.

Subitamente, a atenção de Fiora fixou-se: um homem acabava de sair daquele palácio mudo, virando a cabeça para todos os lados como se procurasse saber de onde vinha o vento e depois, sem mesmo se dar ao trabalho de se içar para a sela, pôs-se em marcha lentamente, lentamente, observando as fachadas das primeiras casas do gueto. Aquele homem era GiovanniBattista de Montesecco. Era o homem que a raptara em França e a trouxera cativa para Roma.

O coração da jovem falhou um batimento. Que procurava ele naquele bairro miserável? Visitara, sem dúvida, um habitante qualquer do palácio Cenci, mas o local não era um lugar de passeio agradável e ele devia ter-se afastado rapidamente. No entanto, ia devagar, parava para ver qualquer coisa, voltava atrás e voltava a partir. Por trás dos cortinados, Fiora murmurou uma oração para que Anna não regressasse naquele instante. Mesmo disfarçada, atrairia certamente, nem que fosse pela sua beleza, a atenção daquele homem que era na realidade, sob o vocábulo de condottiere, um chefe de espadachins.

Felizmente, quando Anna reapareceu com o cabaz cheio, Montesecco já tinha desaparecido há alguns minutos na direcção oposta. Fiora desceu ao seu encontro, o que a surpreendeu:

Levantaste-te? Não será ainda um pouco cedo?

Por que não? Não tenho febre e as minhas pernas parecem-me sólidas. Enfim, não gosto de ficar deitada quando o posso evitar. Tens novidades?

Tenho, e não são boas. O Infessura foi preso antes de ontem.

Fiora sentiu-se empalidecer:

Meu Deus! E... sabe-se porquê?

Não, mas a opinião geral é que o Papa o mandou prender pelo Soldan por causa dos seus escritos, que percorrem as ruas da cidade. É o que ele chama as notícias da noite. Encontram-se muitas vezes no mercado do Campo del Fiori ou ainda perto de uma velha estátua, resto de um grupo antigo, que as pessoas do bairro chamam Pasquino. Stefano gosta de colocar lá os seus panfletos. Parece que o último falava do senhor Santa Croce, que teria tentado violar uma mulher nas minas do mausoléu de Augusto...

Doce Jesus! Mas, essa mulher sou eu! Que loucura, gritar essa história aos quatro ventos! Stefano salvou-me e foi lá que recebi o golpe de estilete.

Uma loucura, sem dúvida... a menos que ele tenha pensado que ninguém ousaria atacá-lo? O povo gosta dele e o que ele procura, no fundo, é sublevar esse mesmo povo para que Roma possa tornar-se uma república à maneira dos tempos antigos. Não se ensaia nada de dizer que não se faz nada de bom nesta cidade, que o número de roubos, de homicídios e de sacrilégios não cessa de aumentar. E que tem esperança na força de uma multidão indignada e furiosa.

Não sei se ele tem razão. Em todo o caso, já não é um ”homem livre” e eu sou um pouco culpada. Além disso, tenho que te falar no que vi há momentos.

Anna escutou, sem dizer uma palavra, o curto relato de Fiora e não se mostrou muito emocionada:

Pode ser que se trate de uma coincidência disse ela por fim. Os irmãos Montesecco, Gian-Battista que tu conheces, e Léone, o capitão da guarda pontifícia, têm excelentes relações com as famílias mais turbulentas da cidade, desde que não sejam aliadas dos Colonna. Os Cenci são desses, mas, em todo o caso, a presença desse homem nos arredores da nossa casa e, sobretudo, o interesse que ele parecia mostrar pela nossa vizinhança, não é nada tranquilizadora.

Tenho que me ir embora daqui disse Fiora. Quando é que o teu pai volta?

Dentro de dois dias, segundo parece, já que não recebi notícias. Mas, como hás-de sair daqui? E não me respondas: a pé. Ainda não estás em condições disso.

Tenho um ducado e também uma corrente de ouro com uma medalha que roubei aos que me mantinham em casa de Bórgia. Só preciso de uma montada, de um fato de rapaz e de umas tantas moedas para chegar a Florença. Lá, assim espero, estarei a salvo...

Isso deve ser possível. Mas, primeiro, vem comigo. Vamos já saber.

Levando Fiora pela mão, ela conduziu-a até à adega que a jovem visitara uns momentos antes. Ali, Anna fê-la sentar-se num banco e depois acendeu na chaminé uma braseira com pinhas que se inflamaram, crepitando. Enquanto esperava que se transformassem em brasas, Anna cortou uma mecha de cabelos à sua pensionista e colocou-a em cima de uma pequena pá de ferro, que levou ao fogo. Os cabelos encarquilharam-se e pouco depois só restavam umas tantas cinzas. Em seguida, inclinou-se sobre a tina na qual se reflectiam as três chamas do candelabro aceso em cima da mesa. Compreendendo que Anna procurava uma resposta para as perguntas que ambas faziam a si próprias, Fiora prendeu a respiração, olhando com curiosidade para as pupilas da jovem a dilatarem-se, ficarem enormes, de tal modo que já não conseguia desviar o olhar. Espiou a expressão daqueles olhos negros e pensou ler neles o terror...

Subitamente, Anna afastou-se da tina abanando a cabeça com irritação:

Não vejo nada! disse ela.

Tens o poder de ver o futuro?

Tenho, mas, no que te diz respeito, não consigo ver nada. Ela pareceu aborrecida, virou-se, levantou-se e caminhou pela sala com uma agitação que assustou Fiora:

Estás certa de não ter visto nada? perguntou ela docemente. Ou preferes não me dizer? Eu pensei ler o medo no teu olhar. Peço-te, seja qual for o meu destino, prefiro estar prevenida! Já passei por muita coisa, não me assusto com facilidade.

Após alguns instantes de silêncio, Anna pôs fim às suas idas e vindas e sentou-se ao pé de Fiora:

Talvez seja por tu estares demasiado perto de mim neste momento que eu não vejo nada senão um lugar escuro como uma prisão, uma multidão em fúria... e sangue!

O meu? perguntou Fiora, empalidecendo contra a sua vontade.

Não creio. Não me perguntes porquê, mas é como que uma voz secreta... só vi... novas provações pelas quais terás de passar.

A judia pegou na mão de Fiora, apertou-a entre as suas e semicerrou os olhos:

Não... Esse sangue não é teu, mas, mesmo assim, tu sofrerás... E há uma estrada para lá disso... Não sei onde vai dar.

Largando a mão da jovem, Anna ofereceu-lhe um sorriso cansado e foi buscar o castiçal para indicar que desejava regressar ao apartamento:

Se calhar, pensas que sou maluca suspirou ela. Mas eu estou aquém da minha reputação. De qualquer maneira, por vezes, tenho visões claras, mas sei que nunca atingirei nunca a clarividência da minha mãe... que morreu por causa disso.

Achar que és maluca? Certamente que não! Eu tinha um amigo em Florença, um médico vindo de Bizâncio, que, por vezes, via o futuro. Ele não sabia de onde lhe vinha esse dom. A tua mãe era assim?

A minha mãe era mais do que isso: uma daquelas grandes profetisas que o povo de Israel conheceu e que, talvez, venha ainda a conhecer. As tribos judias de Nápoles sabiam todas que Rebeca, mulher de Nathan, o rabino rico, estava inspirada pelo Espírito e, desde a minha mais tenra idade, senti por ela essa admiração e esse temor respeitoso que votamos pelos seres que não são deste mundo. Mal ousava chamar ”minha mãe” àquela grande mulher morena, muito bela, cujos olhos tinham sempre o ar de ver através de mim e cujo rosto, sempre grave, ignorava o sorriso. Ela marcou a minha infância de modo terrível, uma infância onde estava sempre presente algo parecido com um terror sagrado.

Ela morreu? murmurou Fiora, impressionada.

Morreu... e as chamas da fogueira para onde o Santo Ofício e a crueldade do Rei Ferrante de Nápoles a fizeram subir limitaram-se a acrescentar-lhe uma auréola flamejante e terrível que ainda hoje me assombra.

Vencida, talvez, por um silêncio há muito contido, Anna, a judia, contou, àquela desconhecida acolhida por caridade, mas na qual adivinhava uma irmã no sofrimento, o que fora a sua vida depois daquele momento terrível em que, rapariga de doze anos carregando as mesmas correntes que prendiam o seu pai, fora obrigada a ficar até ao fim em frente da enorme fogueira onde se consumia o corpo da sua mãe. Guardara desse momento uma recordação de horror que a fazia ainda tremer durante as suas horas de meditação, mas a sua alma ficara temperada para sempre, porque retirara do episódio uma imensa exaltação de orgulho. A mordedura do fogo, com efeito, não arrancara uma queixa a Rebeca, fechada no seu desdém e nas suas visões do Além. E a criança, sob as pálpebras fechadas que o calor fazia doer, rezara para que lhe fosse concedido saber morrer com a mesma coragem se, um dia, tivesse o mesmo destino.

Terminado o suplício, Nathan e a filha, poupados sabe-se lá por que milagre, foram arrastados pelos soldados de Ferrante até uma pequena baía a sul de Nápoles, onde atracavam secretamente os navios mercantes de Tunis. Como a frágil criança e o homem cansado não sucumbiram, é um dos mistérios da vontade humana e do ódio que, encerrado no coração dos mais fracos, pode levá-los mais longe do que os fortes. Vendidos como escravos, Nathan e a filha iriam suportar um novo calvário, mas, curiosamente, ao vendê-los aos tunisinos, os soldados de Ferrante salvaram-lhes a vida.

Perto da antiga Cartago vivia um rico judeu chamado Amos, parente de Rebeca e que beneficiava de um certo crédito junto do governador merínida da região. Chegado ao porto, Nathan

NT Merínidas dinastia de príncipes que expulsaram os Almoadas e reinaram em Marrocos de 1269 a 1550 Usavam o título de emir


pedira para falar com ele. Amos acorrera. Comprara sem dificuldade o pai e a filha e levara-os para a bela casa que possuía junto ao mar. Ali, os dois tinham reencontrado a força e a saúde.

No entanto, Nathan recusou a oferta de Amos, de os conservar junto de si. Queria regressar a Itália para preparar a sua vingança. A sua reputação era ali grande e, em Roma tinha muitos amigos na colónia judia. Além disso, sabia que não tinha nada a temer do Papa desde que não se lhe opusesse. Uma manhã, Anna e ele tinham embarcado em La Marsa, certos de encontrar, no fim do caminho do exílio, não só a protecção, mas também a possibilidade de refazer a fortuna.

Tinham-se passado sete anos desde esse regresso. Anna empregara-os no estudo e no desenvolvimento dos seus dons naturais. Junto dos velhos do gueto e daqueles que sabiam ler os astros, aperfeiçoara as lições de Rebeca e aprendera a arte temível dos filtros e dos venenos. E depois, limitara-se a esperar pelos clientes que, cada vez mais numerosos, tinham contribuído para a sua reputação, um nome que se dizia em voz baixa e que, uma noite, levara até sua casa a sobrinha do Papa.

Já vendeste, alguma vez, venenos? perguntou Fiora com uma ligeira hesitação.

Já. E sem remorsos. Cada vez que entreguei a alguém um licor, ou um pó mortal, senti alegria no coração, porque os padres são numerosos nesta cidade de papas e o meu veneno era, talvez, destinado a um deles. Odeio-os, odeio-os a todos, porque fazem parte daqueles que ajudaram Feirante a levar a minha mãe para a fogueira.

E não tens medo que um dia...

Que acendam uma para mim no Campo del Fiori? Não. Se conseguir matar Ferrante de Nápoles, irei para ela com alegria.

Compreendo bem o que sentes, porque também eu busquei a vingança, mas Deus chegou antes de mim...

E ficaste satisfeita?

Sim e não. Sim, porque a mão do Senhor caiu com mais força do que aquela que eu teria. Não, porque o desejo de vingança ainda está em mim. Enquanto a assassina do meu pai viver, não conhecerei a paz. Aliás, ela ainda me ameaça.

Ela está aqui, em Roma e tu queres ir para Florença?

Para chegar a ela teria que me entregar. Tenho de partir e tu sabe-lo bem, mas não renunciarei.

Eu ajudo-te, se quiseres!

A noite caía. Anna foi correr os cortinados e depois acendeu as velas.

Eu espero alguém, esta noite. Não te inquietes se ouvires barulho e, sobretudo, não te mexas.

E Khatoun?

Se ela vier, mando-a ter contigo.

No entanto, a noite passou sem que a jovem tártara aparecesse e a ansiedade fez companhia a Fiora até ao nascer do dia. Nas horas seguintes, Anna arranjar-lhe-ia, sem dúvida, os meios de fuga, mas o pensamento de se afastar de novo sem ter, ao menos, visto de novo Khatoun, era-lhe insuportável. Quando partira para França com Demétrios, Esteban e Léonarde, resignara-se com a separação porque acreditava que a sua pequena companheira de infância era feliz e ia a caminho do destino que escolhera. Mas deixá-la naquela situação de semiescravidão, de servidão privilegiada, talvez, mas de servidão, era-lhe intolerável. Evidentemente, Khatoun podia juntar-se a ela em Florença e fá-lo-ia, sem dúvida, se fosse livre, mas Dona Catarina não a deixaria, certamente, partir. Primeiro, porque o seu marido devia ter pago bom dinheiro por ela e depois porque, parecida naquilo com todas as grandes damas italianas, devia gostar muito daquela pequena personagem exótica. As tártaras eram raras e, por isso mesmo, mais preciosas.

Tinha, portanto, que se resignar: Anna, ao levar-lhe o pequeno-almoço, fizera-lhe mil recomendações acerca dos cuidados de que o seu ferimento ainda necessitava. Num saco colocara-lhe linho, ligaduras, um frasco de aguardente para limpeza e dois boiões de unguento. Em seguida examinara a sua paciente e, sobretudo, o ferimento em vias de boa cicatrização, sobre o qual estava colocado um penso espesso.

Parto esta noite, então? perguntou Fiora.

Partes. Uma hora antes do nascer do dia, levar-te-ei até à porta del Popolo, onde esperarás o momento de a transpor. Encontrei um macho e um fato de camponês. Com um pouco de sorte chegarás a Florença sem grandes dificuldades. O meu pai regressa amanhã e eu terei de estar aqui para o receber.

Mas uma sorte caprichosa decidira que Fiora não encontraria, nessa noite, o caminho interrompido e não veria nascer a aurora junto da porta del Popolo. Os sinos das inumeráveis igrejas e conventos acabavam de tocar para o último ofício e os criados tinham já aceso os potes de fogo nas suas jaulas de ferro à entrada dos palácios quando uma liteira fechada, escoltada por quatro cavaleiros, penetrou na rua e transpôs a abóbada que dava para o pátio.

Espantada, porque não esperava qualquer visita, Anna abriu uma janela estreita que dava para as traseiras da casa e debruçou-se. Em seguida, empunhando um archote, precipitou-se pela escada abaixo.

É Khatoun! exclamou ela. E a condessa Riario vem com ela. Não te mexas! Tenho de saber ao que vêm!

Fiora não teve tempo de fazer a si própria quaisquer perguntas. Num frufru de tafetá castanho-avermelhado, de peles fulvas e rendas cor de neve, Dona Catarina, espalhando uma torrente de palavras, já invadia a escadaria e irrompia na sala onde se encontrava Fiora. A sua gravidez quase no fim fazia-a quase tão larga como alta, mas o seu rosto continuava fresco como uma rosa e não perdera nada da sua combatividade:

Venho buscar-vos! clamou ela um pouco ofegante, antes de se deixar cair nas almofadas de um dos divãs, o que lhe colocou o ventre ao pé do queixo. E, graças a Deus, chego a tempo!

A tempo de quê, Madonna?

De vos impedir de fazer essa loucura de partir de madrugada, sozinha e, certamente, ainda não recomposta, pelo que Anna me diz.

Não tenho outra hipótese. O rabino Nathan regressa amanhã e a minha presença não lhe agradará nada. E não lho posso reprovar. Ele tem de manter a protecção do... Santo Padre!

A jovem condessa sorriu, o que fez brilhar o seu rosto e franzir as sardas:

Dir-se-ia que a palavra custou a sair! Não lhe queirais demasiado mal! Ele teria sido um bom homem, no fundo, se o seu séquito familiar não o levasse a excessos lamentáveis! Mas nós vamos ter muito tempo para conversar. Preparai-vos, ides comigo!

Perdoai-me, Dona Catarina, mas... para onde?

Para minha casa, claro! Não fiqueis com esse ar de espanto! O meu marido partiu a meio do dia para uma propriedade que o tio acaba de lhe oferecer em Segni. Isso dá-nos alguns dias para. primeiro, repousardes um pouco mais. Depois, sou eu que vos vou dar os meios para chegardes a Florença. Não procureis mais, foi Khatoun que me informou. Como eu sei que ela foi criada no palácio Beltrami, porque não me escondeu nada da sua vida passada, não tive dificuldade em adivinhar quem poderia ser essa amiga doente que ela visitava todos os dias.

E quereis ajudar-me a ir para Florença, vós, a condessa Riario?

Não. Por minha fé, Catarina Sforza! Os meus pais e os Médícis mantêm excelentes relações e vós lembrais-vos, talvez, da visita que fizemos a Florença, com grande aparato, há alguns anos?

Nunca mais a esqueci! Vossa Graça era ainda uma menina... O cortejo do duque de Milão foi magnífico.

E... Giuliano de Médicis ainda mais! Confesso que fiquei, naquele momento, apaixonada por ele... e um pouco, também, por Lourenço, tão feio mas tão fascinante! Ora, o acaso fez-me descobrir que o conde Riario... o meu marido, fomenta contra eles uma conjura com aquele macaco vilão que dá pelo nome de Francesco Pazzi e com o vosso amigo Montesecco!

Montesecco? Vi-o ontem, nesta rua. Saía do palácio Cenci e interessou-se muito pelas casas deste lado.

Isso não tem nada de espantoso. É possível que os Cenci estejam, também, nessa conspiração. Em que termos estais vós com os Médicis?

Lourenço salvou-me a vida, ajudou-me a fugir, protegeu-me no exílio e sei que nunca deixou de velar pelos meus interesses. Foi por isso que a ida para a sua cidade me pareceu o único caminho para poder, depois, regressar a França e juntar-me ao meu filho.

Foi por isso que decidi ajudar-vos a fugir de Roma. Tenho de enviar alguém de confiança a Florença, alguém suficientemente afastado de mim para que o meu papel neste assunto nunca seja conhecido, porque, senão, a minha vida não tem preço. Por sorte, vós estais aqui e, entre ambas, talvez consigamos evitar um grande mal.

Tão grande quanto isso?

Julgai! O meu marido e os seus amigos querem assassinar os Médicis... E isso dentro de pouco tempo... Mas, estamos a perder tempo! Apressai-vos, peço-vos!

Fiora ainda não estava decidida. Não gostava da ideia de ficar, mesmo por um dia ou dois, no palácio Riario, onde temia estar a meter-se na boca do lobo. Por outro lado, o que ali se tramava era francamente abominável e contrário aos seus próprios interesses. Se os Médicis fossem abatidos e se os Riario se tornassem senhores de Florença, todas as suas esperanças se desvaneceriam.

Se se sabe que fui para vossa casa disse ela não achais que o vosso marido ligará as duas coisas no caso de fazermos com que os seus projectos falhem?

Já vos disse que ele não está cá! E os criados vieram comigo de Milão: são-me totalmente devotados. Apressai-vos, peço-vos! Se quereis salvar-vos, ao mesmo tempo que preservais a vida dos vossos amigos, não tendes escolha. Dir-vos-ei mais coisas na minha liteira.

Finalmente, Fiora rendeu-se. O fato de camponês que Ana preparara não lhe podia ser de qualquer utilidade e ela decidiu vestir de novo as roupas de Dona juana, que tinham a vantagem de ser de uma grande discrição. A judia completou-as com um véu negro igual ao que Fiora usava por ocasião da sua fuga e que ficara atado à balaustrada do palácio Bórgia. Depois, no momento de lhe entregar a bolsa, aproveitou o momento em que Catarina se interessava por uma estatueta antiga colocada num nicho para mostrar a Fiora, na cova da sua mão, um minúsculo frasco metido num estojo de chumbo e cuidadosamente rolhado, que ela fez deslizar para dentro da bolsa de veludo, ao mesmo tempo que murmurava:

Se a tua inimiga beber isto, no vinho ou noutra bebida qualquer, morrerá no espaço de uma semana sem que ninguém consiga saber de que doença. Que Jeová fique contigo!

Fiora hesitou um momento em aceitar aquilo. O veneno era, aos seus olhos, uma arma indigna, mas não queria desagradar à sua anfitriã. Procurou a medalha de ouro que pertencera a Juana e quis dar-lha, mas Anna recusou:

Não. Tu não me deves nada, porque mereceste a hospitalidade. Dá isso a alguém que precise mais.

As duas mulheres beijaram-se sob o olhar impaciente de Catarina. Khatoun, a quem ela ordenara que ficasse em baixo, acabava de subir, por sua vez, inquieta por ver o tempo a passar e temendo, talvez, que Fiora não se deixasse convencer.

Depressa! Temos de ir. Podes confiar, sabes?

Eu confio. Para Dona Catarina ter vindo aqui em pessoa e em plena noite, quando devia estar no seu leito onde vai dar à luz, é porque o seu interesse por mim é grande.

Confortavelmente guarnecida de colchões de penas e almofadas espessas, protegida por cortinas de veludo castanho forradas de cetim branco e protegida das intempéries por guarda-ventos de couro brasonados, a liteira que esperava Dona Catarina possuía todas as qualidades necessárias para percorrer, agradavelmente, os mais longos trajectos. As três mulheres subiram para ela. A jovem condessa com uma satisfação que dizia muito da sua fadiga. Ela estendeu-se ao comprido na confusão sedosa, ao mesmo tempo que Khatoun tirava de um pequeno cofre um frasco de licor, do qual verteu algumas gotas para duas taças. Estendeu uma a Fiora e deu a beber a outra à sua senhora, cujos traços acabavam de se crispar e que tinha fechado os olhos.

Devíeis ter-me deixado vir sozinha, Madonna! reprovou-a ela docemente. Teria sido mais prudente. De qualquer maneira, a vossa liteira é respeitada até nos locais mais perigosos.

Catarina reabriu os olhos, pegou na taça, bebeu o resto de um trago e endireitou-se um pouco:

Eu tinha de vir. Dona Fiora não te teria, talvez, seguido sem a minha insistência. E temos de falar.

Os vossos guardas não ouvem? murmurou Fiora, que bebera com prazer o excelente vinho de Chipre que lhe tinham oferecido.

A liteira está bem fechada. Além disso, o barulho das rodas e o passo dos cavalos são suficientes. Além de que não vamos gritar. Estamos suficientemente perto uma da outra para que nem o cocheiro oiça. A razão pela qual o meu marido montou esta conspiração...

Eu conheço-a há muito tempo cortou Fiora. Nós sabemos todos, em Florença, que o Papa quer que o vosso marido se torne senhor da cidade.

Sim, mas o problema tornou-se mais grave desde que nós possuímos Imola, o que quer dizer que somos vizinhos. Com os Médícis mortos, Girolamo, o meu marido, deixaria de se preocupar com eles e o seu poder estender-se-ia até ao mar. Quanto a Francesco Pazzi...

Quanto a esse, também estamos ao corrente. Exilado, ele perdeu uma parte da sua fortuna e, apesar de se ter tornado banqueiro do Papa, sempre sonhou em regressar a Florença.

Onde ainda mora a cabeça da família e alguns dos seus membros.

O velho Jacopo ainda é vivo?

Mais do que nunca, claro, e disposto a ajudar Francesco a regressar e a vingar-se. Quanto a Montesecco, o terceiro homem, era capaz de matar a própria mãe por um saco de ouro e prometeram-lhe muito mais.

Estou a ver. E o Papa, no meio disso tudo?

Esse é o ponto obscuro. Asseguraram-me que ele teria, expressamente, recomendado que não houvesse ”efusão de sangue”.

Não haver efusão de sangue? Parece-me difícil matar alguém sem que o sangue corra! Como é possível?

Minha querida, Sua Santidade não pode ordenar um assassínio. Nem deve, sequer, ter conhecimento dele...

Para poder berrar bem alto, uma vez dado o golpe e, até, deplorá-lo? E excomungar alguns comparsas, porque não vai ser o vosso marido, imagino, a fazer o trabalho?

É evidente que não. Ele nem sairá de Roma. Só Pazzi e Montesecco é que farão a viagem.

Em que ocasião? Não esperam, certamente, ser recebidos por Lourenço?

Então, Catarina explicou o que sabia acerca do plano. O Papa, que acabava de conferir o chapéu de cardeal ao seu mais jovem sobrinho, Rafaele Riario e o mandara regressar por essa ocasião da universidade de Pisa onde ele terminava os seus estudos, decidira nomeá-lo, ao mesmo tempo, núncio em Peruggia. Catarina achava aquela nomeação absurda, porque o novo cardeal só tinha dezoito anos e não tinha capacidade para chefiar uma legação difícil, mas o Papa, que sentia por ele uma ternura muito paternal, não queria saber. Uma vez entronizado, o jovem Rafaele iria, com grande pompa, visitar a sua querida universidade para lhe dar a sua primeira bênção. Em seguida, de regresso de Peruggia, passaria muito naturalmente por Florença, onde os Médicis não se atreveriam a recusar-lhe acolhimento, visto que as relações aparentes entre Lourenço e a Santa Sé eram proveitosas. O jovem cardeal ficaria alojado provavelmente em casa do velho Pazzi, mas os Médicis teriam de o receber várias vezes. A sua hospitalidade era demasiado grande e faustosa para que não acolhessem da melhor maneira um cardeal núncio. Então, chegaria a ocasião de abater os dois irmãos.

Em casa deles? No seu próprio palácio? indignou-se Fiora. É, não só monstruoso, mas insensato. Os assassinos serão massacrados no local.

Escolherão de preferência uma festa, ou uma cerimónia no exterior. Todos os Pazzi estarão juntos por essa ocasião e Montesecco levará os seus homens de mão. Até o bispo de Pisa, Salviati, terá decidido dar uma ajuda. Ele não gostou nada que Lourenço se tenha oposto à sua nomeação para arcebispo de Florença.

Desta vez, Fiora não respondeu. Aquele relato era espantoso, insensato. Toda aquela gente, inimigos, sem dúvida, mas também padres, iam atirar-se, como um bando de abutres, contra a sua cidade amada para assassinarem Giuliano, que ela amara em tempos e Lourenço, que lhe dera provas de tanta amizade. Ainda por cima, utilizariam, para levar a cabo os seus fins, o princípio sagrado da hospitalidade, tão caro a toda a Itália.

Não dizeis nada? perguntou Catarina.

Perdoai-me, Madonna, mas esses projectos enojam-me e compreendo que a filha mais nova do grande Francesco Sforza se recuse a ter obrigações para com um Estado com tais procedimentos.

Não foi a recordação do meu avô que me levou a isso, foi a da mulher que me educou: a duquesa Bona, mulher do meu pai e irmã da Rainha de França, que me levou para o lado dos Médicis. Foi também a do meu pai, assassinado há pouco mais de um ano. Além disso, repito-o, sempre amei Giuliano. Ajudais-me?

Estou pronta a partir para Florença imediatamente. Eu também amei Giuliano antes de conhecer o marido que tive a dor de perder. Se o puder impedir, não os deixarei morrer.

É melhor esperar dois ou três dias para nos prepararmos melhor. A visita de Rafaele a Florença deve efectuar-se por ocasião da Páscoa e a semana Santa aproxima-se.

O palácio Riario situava-se perto do Tibre e das duas igrejas de Santo Apolinário e de Santo Agostinho. Imponente casa quadrangular de construção recente, parecia capaz de aguentar um cerco, de tal modo era sólida e bem defendida. A noite impediu Fiora de apreciar a sua arquitectura, pois não havia luzes para a rua com excepção das habituais jaulas de fogo. Mas a grande abóbada, onde velava um corpo de guardas e que dava para o habitual pátio quadrado, deixou a jovem pouco à-vontade quando a liteira a transpôs e mais ainda quando as pesadas portas fizeram ouvir o seu ranger ao fecharem-se. Decididamente, Girolamo não deixava nada ao acaso. A sua casa parecia um cofre-forte. Não devia ser fácil sair dele sem o consentimento do proprietário.

O pátio estava silencioso, mal iluminado por quatro archotes: dois fixados à saída da abóbada e dois na base da íngreme escadaria de pedra que ia dar aos andares superiores. Quando a liteira e a sua escolta pararam junto desta, o silêncio era completo, como se o palácio estivesse desabitado:

Puxai o véu para o rosto, Dona Fiora! aconselhou Catarina. E tu, Khatoun, ajuda-me a descer! Não me sinto muito bem...

Não disse que era uma tolice? resmungou a pequena tártara que, ajudada por Fiora, extirpava a sua patroa das almofadas.

Mais do que uma tolice, foi uma grande imprudência. Ainda por cima porque eu poderia tomar isso como uma grande traição! rugiu uma voz de homem que arrancou um grito a Catarina.

Vós? Mas, que fazeis aqui? Pensava-vos em Segni?

Sem lhe responder, Girolamo Riario virou-se para Fiora e arrancou-lhe o véu que lhe cobria a cabeça. O seu rosto largo, de traços pesados, que a sumptuosidade de um gibão bordado a ouro não conseguia dar distinção, iluminou-se com um sorriso satisfeito:

Até que enfim vos encontro, minha bela! Que sorte que um homem de Santa Croce vos tenha reconhecido, na outra noite, e vos tenha seguido da margem enquanto descíeis o Tibre de barca. Na manhã seguinte soube logo onde estáveis...

Por que razão não fui presa, então, como Stefano Infessura?

Não foi por isso que se apoderaram dele, antes para lhe ensinar a ter moderação naquilo que escreve. Vai ser...

Não teve tempo de dizer mais nada. Furiosa, Catarina acabava de se colocar entre ele e Fiora, os braços estendidos num gesto de protecção, um gesto ao qual não faltava grandeza.

Ousastes estender-me uma armadilha, vós? A mim?

Não vos punhais com os vossos ares de princesa! Comigo não, que sou vosso marido, se bem que não corresponda ao vosso ideal masculino. Onde fostes buscar a ideia de que vos estendi uma armadilha, ou que procurei apenas ser-vos desagradável? Se fosse o caso, teria mandado prender essa mulher em casa da judia e teria mandado esta para a prisão para reflectir.

Sob que acusação? Anna tratou uma mulher ferida que lhe foi levada, mais nada. Além disso, não ignorais que o Santo Padre não quer que molestem os Judeus e, menos ainda, a casa do rabino Nathan.

E eu esperei que a nossa fugitiva saísse. Eu sabia que vos encarregaríeis disso a partir do momento em que me acreditásseis ausente. As visitas da vossa seguidora ao gueto fizeram-me ter a certeza. Como vedes, tinha razão, porque, sem qualquer dificuldade, sem barulho e sem violência, o belo fruto veio-me parar às mãos.

Não sejais estúpido, Girolamo! Que vos interessa esta jovem? Que tendes vós a ver com a política do vosso tio com o Rei de França e com o facto de um monge piolhoso e um cardeal francês estarem presos?

Absolutamente nada, tendes razão. Pelo contrário, pode servir, sem querer, a minha política, a que entendo ter com os Médicis. Enfim... ela vale cem ducados, o que não é de desprezar!

Vós tendes à vossa disposição o tesouro da Igreja e desonrais-me por cem ducados? Sois um monstro, um ser infame, desprezível, e eu...

Catarina permaneceu ali de boca aberta e depois, com um grito dilacerante, curvou-se, levou as mãos ao ventre e começou a ofegar como se acabasse de fazer uma longa corrida. Khatoun precipitou-se para a amparar, com os olhos arregalados de inquietação, mas Fiora ainda tinha na memória a recordação do seu parto para não reconhecer os sintomas. A jovem encarou friamente Riario:

Devíeis mandar que conduzissem a condessa ao seu quarto! A criança que ela espera não tarda...

Achais... achais que sim?

Fiora ofereceu a si própria o luxo de um sorriso. Aquele senhor todo bem-vestido acabava de mostrar, sob a sua carapaça, o simples mortal que era, ao mesmo tempo assustado e inquieto no momento da chegada do seu primeiro filho. Pela primeira vez na sua vida foi, talvez, natural... e até humano.

Tenho a certeza! disse ela suavemente. Ainda há sete meses passei pelo mesmo.

Mas ele não a escutava. Aos seus apelos furiosos, um grupo de mulheres surgiu, apoderou-se da condessa e, com toda a espécie de precauções, levou-a pela escadaria acima. Khatoun não as seguiu. Catarina já não precisava dela e a tártara decidiu ficar junto de Fiora. Esta sorriu-lhe e beijou-a:

Vai também, Khatoun. Tu estás ao serviço dela...

Não... Eu continuo a pertencer-te. Quero ficar ao pé de ti.

Para fazer o quê? Eu não sei o que vai ser de mim...

Eu digo-vos disse Riario que regressava, deixando as criadas encarregarem-se de Catarina, que ouviam gritar cada vez mais debilmente à medida que subiam a escadaria. Ides tomar conhecimento com o castelo de Saint-Ange. Se vos tivessem metido lá aquando da vossa chegada, como eu queria, teríamos evitado muita confusão...

E eu teria evitado ao Papa uma soma de cem ducados. Devíeis agradecer-me.

Surpreendido, Girolamo Riario olhou para ela com um olhar estúpido, em seguida, subitamente, desatou a rir com grandes gargalhadas e postou-se diante da jovem com os punhos nas ancas.

Mas, ela tem razão, a marota! Sabes, minha bela acrescentou ele estendendo para a face de Fiora um grande dedo que ela evitou como se fosse uma vespa tu interessas-me cada vez mais e quando o meu tio tiver acabado contigo, talvez,possamos...

Absolutamente não! cortou Fiora. Vós não me interessais. Acabemos com isto e já que decidistes meter-me na prisão, vamos embora e não se fala mais nisso!

Não, minha senhora, suplico-te! exclamou Khatoun, que desatou a soluçar enquanto se agarrava ao braço de Fiora. Não o provoques. Não te podem meter na prisão.

Chega berrou Riario. Vai ter com a condessa, se não queres que te levem lá a golpes de chicote! E não esqueças que é a mim que pertences. Paguei por ti muito dinheiro. Levem-na!

Dois criados agarraram na pequena escrava que chorava e se debatia, suplicando que a deixassem seguir o mesmo destino da sua antiga senhora.

Não lhe façais mal disse Fiora, comovida. Ela é tão nova e tão frágil. Acabará por me esquecer.

Não te atormentes por causa dela; a minha mulher gosta mais dela do que dos cães, ou da ama negra. Mas, no fundo, a rapariga tem razão. Por que te hei-de meter na prisão? Aqui não faltam quartos. Ficarias melhor num deles enquanto esperas que te conduza perante o Santo Padre.

À medida que se ia familiarizando, o seu tom natural ia vindo ao de cima e reaparecia o funcionário rabo-de-saia alfandegário dos cais de Savone. O verniz estalava tanto mais depressa quanto mais longe Riario ia ficando dos ouvidos da sua mulher. Rígida de desprezo, Fiora dardejou-o com um olhar gelado:

Qualquer prisão é preferível à hospitalidade de um homem como vós. Por conseguinte, agradeço-vos que mantenhais a devida distância de mim. Eu não sou uma das vossas cortesãs, mas sim a condessa de Selongey, viúva de um cavaleiro do Tosão de Ouro!

Belo nome! Aproveita-o enquanto é tempo! Algo me diz que não vais poder usá-lo por muito mais tempo... Mas já que a senhora Condessa prefere a prisão acrescentou ele com uma saudação grotesca vou ter a felicidade de a conduzir eu próprio à cela!

CAPÍTULO X CARLO

Foi precisa muita coragem da parte de Fiora para não desanimar com a fúria e o desencorajamento que se apoderaram dela quando, enquadrada por guardas, seguiu Riario ao longo da interminável rampa em espiral que subia pelo interior do castelo de Saint-Ange e ia dar aos terraços, aos aposentos do governador e também às prisões. Desde a sua chegada a Roma que não fazia outra coisa senão deslocar-se em redor da fortaleza papal e se, finalmente, estava nela confinada era porque lhe estivera, sempre, destinada. Tantos esforços para chegar ali! Dava, quase, vontade de rir, se o episódio que se desenrolara em casa de Anna, a judia, não tivesse inspirado à jovem reflexões estranhas. Por que razão insistira a condessa Catarina em levá-la para sua casa quando se dispunha a abandonar Roma? Por que razão, sobretudo, a escutara e seguira? A mulher de Riario podia muito bem tê-la posto ao corrente do perigo que ameaçava os Médicis levando-lhe os meios para os prevenir sem necessidade de a levar para sua casa? Teria agido preocupada com a sua saúde, ou levada, por uma mão muito mais segura, para uma armadilha sabiamente estendida? Uma armadilha na qual era impossível meter Khatoun. A pequena tártara não tinha, certamente, nada que se lhe reprovasse, senão, talvez, ter confiado à sua nova patroa o nome da amiga que ia visitar!

O cortejo desembocou, por fim, num terraço encimado por um caminho de ronda ameado onde velavam alguns canhões. Uma casa da guarda, iluminada do interior, difundia uma luz amarela que não diminuía em nada o lado sinistro do local. Uma luz débil, sem dúvida uma vela, aparecia nas janelas dos aposentos do governador, em frente do qual dois soldados, apoiados nas suas lanças, estavam meio adormecidos, ameaçando a cada instante cair sobre o monte de balas de pedra que esperavam um ataque hipotético. Sobre tudo aquilo reinavam, bem erguidos contra o céu e quase aos pés do Arcanjo, os aposentos reservados ao Papa no caso de esses acontecimentos desagradáveis o forçarem a procurar um refúgio. Na muralha havia um balcão embutido, que lhe dava uma aparência mais agradável

O aparecimento do conde Riario acordou a casa da guarda e as sentinelas. Sabendo que o governador, bastante doente, estava acamado, ele pediu para chamarem o vice-governador, um albanês chamado Jorge, que foram buscar a correr.

Este apareceu após alguns instantes e Fiora pensou que raramente vira uma figura mais patibular. Não tanto pelo rosto bexigoso, pelos cabelos gordurosos, pelo nariz achatado por cima de bigode à mongol e pela boca demasiado húmida, mas pelas fendas delgadas por trás das quais se filtrava o inquietante brilho do olhar. Aquele homem era cruel e falso. Quanto à saudação que concedeu ao sobrinho do Papa, era uma obra de arte de subserviência.

Estavas na prisão notou este. A esta hora da noite?

Sim. Prenderam, há pouco, mais um francês, um peregrino, por assim dizer. Estava numa taberna do Campo del Fiori. O patrão preveniu o Soldan, que o prendeu não sem alguma dificuldade, aliás: foram precisos doze homens para o conseguirem, porque ele deu cabo de três.

Curioso peregrino! Por que razão chamaram o Soldan?

O homem estava a fazer perguntas. Procurava uma mulher do seu país que tinha vindo rezar junto do túmulo do Apóstolo, parece, e que desapareceu há vários meses. Uma mulher... muito bela.

Riario agarrou em Fiora pelo braço para a aproximar da luz do archote:

Como esta, talvez?

O outro afastou os lábios para mostrar uma coisa parecida com um sorriso.

Juraria que sim! Encontraste-a, por fim, senhor?

Não sem dificuldade. E trago-ta para que ma guardes enquanto esperamos que o Santo Padre peça para a ver. Quanto ao teu francês, se bem compreendi, já estavas a fazer-lhe algumas perguntas?

Exactamente, senhor! Queres ir ver?

Vamos lá os dois! Não é verdade, Senhora Condessa? Pode ser interessante.

O movimento de recuo de Fiora foi facilmente neutralizado. Riario segurava-a e segurava-a bem. Quer quisesse, quer não, teve de seguir o albanês por uma estreita escada que mergulhava nas profundezas da enorme torre. O seu coração estava cheio de uma angústia que tinha dificuldade em reprimir ao pensar que, dentro de instantes, iriam metê-la, segundo parecia, numa câmara de tortura para assistir ao suplício de um francês, e de um francês que, sem dúvida, a procurava. Mesmo que não o conhecesse, ia ao encontro de uma terrível provação.

Jorge parou diante de uma porta de carvalho enegrecido que não tinha qualquer ferrolho e que, até, estava entreaberta, deixando sair uma luz avermelhada. Lá dentro ouvia-se ofegar alguém que devia lutar contra o sofrimento.

O espectáculo que descobriu era ainda pior do que esperava: um homem estava estendido em cima do cavalete, os punhos e os tornozelos presos em pulseiras de ferro ligadas a um cabrestante destinado a puxá-las até à deslocação. A máquina hedionda estava parada devido à ausência do vice-governador e o carrasco, um negro gigantesco e nu até à cintura, esperava placidamente novas ordens de braços cruzados ao lado da vítima. Fiora não teve qualquer dificuldade em reconhecer aquele rosto de olhos fechados e empalidecido pela dor: era o de Douglas Mortimer, o sargento da Guarda Escocesa do Rei de França e um dos seus melhores amigos.

A jovem não pôde reprimir um estremecimento que não escapou a Riario, assim como a súbita palidez das suas faces.

Algo me diz que vos conheceis, os dois? perguntou ele com um sorriso pleno de fel.

Já Flora se recompunha. Rezando mentalmente a Deus para que Mortimer não estivesse inconsciente e pudesse ouvi-la, declarou, mais alto, talvez, do que o necessário e com uma indignação que não precisava de forçar:

É evidente que conheço! É o intendente do meu solar de La Rabaudière. Está muito ligado a mim e não me espanta nada que se tenha posto à minha procura. Há meses que fui raptada.

Vosso intendente? Um simples camponês? Como se compreende, então, que ele tenha vindo a Roma? Quem lhe terá dito que vós estáveis aqui?

Quem havia de ser? Eu pensava que, desde a minha chegada, o cardeal d’Estouteville tinha enviado um mensageiro a Plessis-lès-Tours para dar a conhecer ao Rei Luís as exigências do Papa? O meu solar é vizinho do castelo real e os meus empregados devem ter sabido do meu destino. A propósito, o Rei não enviou um mensageiro, uma delegação, uma carta, qualquer coisa, como resposta à mensagem do cardeal?

Não enviou nada! disse Riario, encolhendo os ombros. Não deveis ter tanta importância como o meu tio imaginava.

Isso é uma grande mentira! disse uma voz que parecia vir das profundezas da terra e que era a de Mortimer em pessoa. A despeito da sua situação trágica, os seus olhos azuis, muito abertos, brilhavam com um fogo alegre que reconfortou o coração de Fiora. Graças a Deus, o escocês ouvira, reconhecera-a e, entre os dois, talvez conseguissem enganar o funcionário alfandegário disfarçado de príncipe que os observava.

Ah, tu, afinal, falas? grunhiu ele. Talvez consintas em nos dizer o teu nome?

Chama-se Gaucher disse Fiora Gaucher Lê Puellier. O tio e a tia dele, Étienne e Péronnele, são os guardiões da minha propriedade. Apanhastes uma grande presa, ha? Um simples camponês, que neste mundo só responde perante Deus e o seu senhor!

Mas que se atreve, mesmo assim, a acusar-me de mentiroso? Que pode ele saber das relações entre o Rei e o Sumo-Pontífice?

O que toda gente sabe em Plessis, onde todos têm pena de Dona Fiora continuou o falso Gaucher. Que o Rei Luís já enviou para aqui, e por duas vezes, gente dele... que nunca mais regressou!

Os caminhos não são seguros nos tempos que correm suspirou Riario hipocritamente. Acontece que não recebemos ninguém... e que tu tens sorte, amigo, por teres chegado inteiro.

O conde aproximou-se do corpo estendido, sobre o qual se debaiçou:

Tens a certeza de que não foste enviado pelo rei? Apetece-me atormentar-te um pouco mais, apenas para saber se não tens ainda alguma coisa para me dizer!

Já sou suficientemente grande para me enviar a mim mesmo! grunhiu Mortimer, forçando o seu tom de camponês. Lá em casa nós gostamos da nossa patroa e eu quis ver o que vocês tinham feito dela! Mas... nunca pensei que havia de a encontrar numa cave destas!... prisioneira, a bem dizer!

A bem dizer, não. Eu sou mesmo prisioneira, meu bom Gaucher. O Papa pôs a minha cabeça a prémio e não vou sair daqui viva! Fui apanhada esta noite, mas há meses que andam à minha procura!

Chega! rangeu Riario. Eu não vos dei autorização de falardes... sobretudo para dizerdes tolices! O Santo Padre é demasiado bom, meu rapaz, para mandar executar esta bela dama. O que ele quer, como ela é viúva, é dar-lhe um marido, um marido florentino, jovem, nobre...

E odioso! cortou Fiora, indignada. Nunca casarei com ele, estais a ouvir-me? Podeis arrastar-me até diante de um padre, mas ninguém me obrigará a dizer ”sim”. E agora, libertai esse rapaz, contra o qual não tendes nada!

Não tenho nada? Nada!... Pelo contrário, penso, talvez, que ainda nos virá a ser útil! Zamba acrescentou ele para o gigante negro põe mais algumas garras de ferro a aquecer!

Não ides continuar a atormentá-lo? exclamou Fiora. Que há-de ele dizer-vos mais?

Nada, sem dúvida, mas vós, vós podeis dizer muitas coisas! Basta uma pequena palavra: esse ”sim” que vos recusais a dizer com tanta teimosia!

Depois, mudando de tom:

Ou jurais que casareis, ou, à fé de Riario, esfolo este homem vivo diante dos vossos olhos!

Sois louco? exclamou Fiora, estupefacta.

Não creio, mas eu sei o que quero, o que o Santo Padre quer e saberemos forçar-vos porque, uma vez casada com Cario Pazzi, não nos preocuparemos mais convosco.

Não ides aceitar isso? gemeu Mortimer. Não têm o direito de vos forçar...

Temos. Temos o direito do mais forte! Decidi, Dona Fiora, mas depressa! Vede como estes ferros estão de um belo vermelho! Zamba está impaciente por começar. O que ele gosta mais é de arrancar a pele a um homem! Vamos, Zamba, ajuda um pouco a senhora condessa!

Com uma luva de couro, o carrasco pegou num dos ferros que estavam metidos nas chamas de uma braseira. Fiora gritou como se o ferro incandescente tivesse entrado na sua própria pele.

Não!...

Em seguida, mais baixo:

Se eu jurar, libertais-lo?

Imediatamente.

Que garantias tenho? Quem me diz que uma vez na posse da minha palavra não mandais degolar o meu pobre Gaucher?

Mas... a minha palavra!

Perdoai-me, mas a vossa palavra não me inspira grande confiança. Proponho o seguinte: ele assistirá ao casamento e com ele o cardeal d’Estouteville. Depois, será entregue ao cardeal, que o enviará ele mesmo... e em segurança, para França. Senão, juro por Deus, que me está a ouvir, que responderei ”não” enquanto me restarem forças e podereis matar-nos aos dois! E tomai cuidado para não ofenderdes o Rei Luís durante muito mais tempo!

O quê, declara-nos guerra?

Não, mas será preciso, então, desconfiar de todos aqueles que se aproximarem de vós. Ele sabe melhor do que vós servir-se do ouro e é tão rico quanto poderoso. Pode comprar qualquer consciência, qualquer amigo e pagar a dez, cem, mil assassinos. Ele abateu o duque de Borgonha, que era um príncipe a sério. Portanto, honrai a vossa palavra, ou tende cuidado!

Com os olhos arregalados pelo estupor, Riario olhava para aquela mulher que lhe fazia frente, ameaçadora, terrível, vingativa. Ele adivinhou obscuramente que ela era da raça das feras reais e que entre elas e ele próprio, príncipe de pacotilha, haveria sempre um abismo intransponível. Supersticioso, pensou ver brilhar nos olhos dela a chama sombria das profetisas antigas e sentiu um arrepio ao longo da espinha.

Liberta-o! ordenou ele ao albanês que, mudo e aparentemente tão insensível quanto uma estátua, assistira à cena.

Em seguida, virando-se para a jovem:

Aceitais casar?

Nas condições que acabo de impor, sim!

Muito bem. Vamos mandar este homem para a prisão, onde ficará até ao casamento. O que acontecerá em breve. E agora, vinde.

Não ides fazer isso? exclamou Mortimer cujo carrasco lhe friccionava os punhos e os tornozelos com a solicitude de um bom criado de quarto.

Não tenho escolha disse Fiora suavemente. Deixar que vos matassem seria uma coisa estúpida, porque o meu filho terá necessidade de... todos aqueles que me pertencem. Além disso, voltaremos a ver-nos... talvez mais tarde!

A capitulação valeu a Fiora terminar a noite num dos quartos destinados ao séquito do Papa e não numa das masmorras que povoavam as entranhas da fortaleza. As instalações eram espartanas, mas, pelo menos, tinha à sua disposição uma cama verdadeira, utensílios de toilette, água e sabão. Terrivelmente cansada, contentou-se em estender-se por cima da colcha sem mesmo se dar ao trabalho de se despir.

Mas não dormiu muito, já que os últimos acontecimentos da noite lhe tinham tirado o sono de que o seu corpo tanto necessitava. O seu ombro ferido doía-lhe, mas não tinha nada para mudar o penso, já que a ligeira bagagem que Anna lhe dera ficara na liteira de Catarina. Só lhe restava a bolsa de Dona Juana, sempre pendurada do seu cinto. Vasculhando no seu interior para tirar o lenço, os seus dedos voltaram a encontrar o pequeno frasco vestido de chumbo que a judia lá tinha metido. A jovem tirou-o e olhou para ele por um momento. Anna dera-lho para que ele fosse o instrumento da sua vingança contra Hieronyma, para que esta fosse eliminada para sempre. Agora, Fiora pensava que talvez ele pudesse servir para a sua libertação, o último socorro à beira do abismo para onde iria cair e onde se perderia para sempre. Para salvar Mortimer, entregara-se aos seus piores inimigos, mas, por outro lado, o escocês correra grandes riscos para a salvar. Não seria indigno da sua parte deixar-se morrer diante dos seus olhos e daquela maneira abominável? Além disso, sabia agora que, em França, não a tinham esquecido. O Rei dera-se ao cuidado de enviar duas delegações, além de Mortimer. Era encorajante, mas toda a força de que ele dispunha estava demasiado longe e os seus mensageiros deviam ter tido um destino trágico. Luís XI receberia, um dia qualquer, uma missiva hipócrita, anunciando-lhe um ou vários acidentes estúpidos. Um dia qualquer, uma vez ela casada com Cario Pazzi.

Uma única coisa a impediu de desarrolhar o frasco e beber o seu conteúdo de uma só vez: não era um veneno rápido. Anna especificara que a sua ”inimiga morreria no prazo de uma semana sem que ninguém conseguisse saber de que doença”. Com um suspiro, Fiora voltou a colocar o objecto no seu lugar. Haveria de encontrar, mais tarde ou mais cedo, uma faca qualquer ao alcance da mão, ou, melhor ainda, uma muralha alta de onde se precipitar, um rio onde se afogar... Porque, decididamente, não fora feita para ser feliz e já que a maldição que presidira ao seu nascimento continuava a fazer das suas, seria bem melhor para toda a gente e sobretudo para o seu filho, que essa fatalidade desaparecesse com ela.

Coisa extraordinária, uma vez tomada aquela fúnebre decisão, sentiu-se melhor, quase livre. Os batimentos desordenados do seu coração apaziguaram-se, o carrocel infernal que lhe girava no cérebro deteve-se e ela, finalmente, adormeceu.

O som dos sinos, tocando todos ao mesmo tempo, acordou-a. A jovem viu que o Sol já ia alto e compreendeu que estava alguém junto dela quando o seu olhar caiu sobre uns dedos negros que seguravam umas contas de âmbar. O homem olhou para o rosto que, subitamente, se iluminou com um grande sorriso:

Dormiste bem? Domingo sente-se feliz por te ver de novo. Estava preocupado contigo.

Porquê? Por ter conseguido escapar ao teu patrão?

Não, mas até um servidor fiel pode sentir amizade pelo ser que é confiado à sua guarda.

Como é que estás aqui?

Ordens, claro. Domingo tem de te preparar para a audiência que o Santo Padre te vai conceder ao fim do dia.

Não me lembro de ter pedido uma audiência. Mas, diz-me: que quer dizer este carrilhão? Até estou surda...

Não és a única, mas, esta manhã, a nobre condessa Riario deu à luz uma filha a quem vai ser dado o nome de Bianca. O Santo Padre está feliz e, por conseguinte, Roma está em festa. Não percebo porquê acrescentou o núbio abanando gravemente a cabeça envolta num turbante. Uma rapariga! Tanto barulho por uma rapariga! Mas, regressemos à tua pessoa! Não estás com boa cara, sabes?

Não me admira! Fui ferida e ainda estou fraca. Além disso, não tenho nada para tratar o ferimento.

Deixa, que Domingo trata disso! Para já, tiremos esses farrapos negros que te dão um ar de insecto maligno!

Ela deixou-se despir sem protestar. Tinham conhecido ambos, na carraca, uma longa intimidade e Fiora habituara-se a não ver um homem naquele bom servidor que, aliás, já não era. O delgado ferimento inflamara um pouco. Domingo limpou-o com aguardente cuja queimadura marejou de lágrimas os olhos da jovem e depois colocou-lhe um penso limpo. Feito aquilo, deixou-a fazer a sua toillete, anunciando que ia buscar-lhe comida. Antes de sair, estendera sobre uma arca roupa branca bordada, meias de seda, um vestido de veludo verde com um bordado de seda branco como a saia de baixo e umas chinelas a condizer. Uma grande capa do mesmo veludo e uma grande coifa dourada destinada a prender a cabeleira completavam aquela toillete que nenhuma mulher teria vestido com prazer, e Fiora só lhe concedeu um olhar distraído. Teria preferido o fato de camponês, que a teria protegido ao longo do caminho de Florença!

No entanto, sentiu-se menos abatida quando, lavada, vestida e penteada, se instalou diante da refeição copiosa que Domingo lhe trouxera. Fora sempre assim nos períodos difíceis da sua vida: tinha mais apetite do que em tempos normais. Assim, sabendo a dimensão do adversário que iria defrontar naquela noite, fez as honras ao que lhe era servido.

Contrariamente ao que supunha, não foi para a sala onde fora recebida a primeira vez que o mestre-de-cerimónias Patrizi dirigiu Fiora, antes para a biblioteca. Sisto IV sentara-se lá numa espécie de cadeira de marfim e, com umas lunetas encavalitadas no nariz, lia um grosso livro escrito em grego, pousado junto dele numa grande estante e seguia as linhas com a ajuda de um pequeno ponteiro de ouro. O Papa interrompeu a leitura quando Patrizi introduziu Fiora e a levou ao longo da grande sala até uma almofada disposta aos pés do Papa e na qual a fez ajoelhar como o exigia o protocolo. Mas, de repente, Sisto IV começou a ler em voz alta:

”Tentar lutar contra os males enviados pelos deuses é dar provas de coragem, mas também de loucura; nunca ninguém poderá impedir o que deve, fatalmente, acontecer...”

Em seguida, virando a cabeça para a jovem, perguntou, tão naturalmente como se tivessem estado a conversar na véspera ou algumas horas antes:

Que pensais deste texto, Dona Fiora? É de uma grande beleza, não é verdade?

Se Vossa Santidade o diz, deve ser. Pela minha parte, não gosto muito de Eurípedes e menos ainda do seu Hércules furioso. Prefiro antes Esquilo: ”Ah! triste sorte a dos homens: a sua felicidade parece-se com um esboço; vem a desgraça, três golpes com uma esponja húmida e lá vai o desenho...” Há anos que o desenho da minha vida está meio apagado e eu não pude fazer outro.

A surpresa do Papa não era fingida. Tirando as lunetas, olhou para a jovem com uma espécie de admiração:

Lestes, portanto, os grandes autores helénicos?

E latinos, também, Vossa Santidade. Fazem parte da educação normal das florentinas de alto nascimento. Além disso, o meu pai era um letrado, ao mesmo tempo que um bibliófilo esclarecido. A sua colecção de livros era... quase tão importante como a do palácio dos Médícis.

A sério? E... que lhe aconteceu?

Que acontece às riquezas de um palácio quando ele é entregue à pilhagem e depois ao incêndio?

É uma grande pena, na verdade! Sim... uma grande pena! E nunca soubestes...

Era mais do que Fiora podia suportar com tranquilidade. Não só não fora ali para falar de literatura, como o tom de ingénua desolação do Papa lhe parecia o cúmulo da hipocrisia. A jovem levantou-se como se impelida por uma mola:

Para onde foram? É a Hieronyma Pazzi... perdão, à dama Boscoli que deveis perguntar, a essa que, para pôr as mãos na nossa fortuna, não teve pejo de mandar assassinar o meu pai e que continua a perseguir-me com o seu ódio.

Abstende-vos, minha filha, de julgamentos temerários! enunciou o Papa com severidade. É muito fácil fazer acusações!

Julgamentos temerários? Perguntai seja a quem for, que todos vos dirão o mesmo! E, no entanto, é a essa miserável que me quereis entregar de mãos e pés atados! Depois de ter querido forçar-me a casar com o monstro do filho, quer agora forçar-me a casar com o sobrinho... um outro monstro, se bem compreendi! Eu, que só presto vassalagem ao Rei de França!

Aceitastes esse casamento, ou mentiram-me?

Aceitei, sim, esta noite e sob coacção, para não ver morrer um grande e corajoso amigo meu que, com pena de mim, me veio procurar! E vós dais a mão a infâmias destas! Vós, o sucessor do Apóstolo, o representante de Cristo!

A jovem esperava cólera por cólera, mas Sisto não seguiu esse caminho. O Papa olhou para ela por um instante por cima das lunetas que tinha recolocado no nariz:

Aproximai esse tamborete e sentai-vos! Se vos mandei vir aqui foi para que possamos falar sem testemunhas. Vamos, fazei o que vos digo! Sentai-vos!

Ela obedeceu e viu-se muito perto do Papa, abrigada, como ele, sob as abas da grande estante.

Talvez a minha atitude vos surpreenda prosseguiu ele mas, hoje, sinto-me excepcionalmente feliz porque o Senhor abençoou a união do meu querido sobrinho. Talvez seja isso que faz com que me incline para... uma certa indulgência, porque há muito tempo que excitais a minha cólera. Tivemos muita dificuldade em encontrar-vos de novo... mas esse tempo decorrido permitiu-me reflectir.

Renunciastes a cortar-me a cabeça?

Que disparate! Estaríeis onde estais se fosse o caso? Mas devo dizer-vos o seguinte: o vosso casamento com Cario é importante para a minha política. É bom que Fiora Beltrami passe a ser Fiora Pazzi. É por isso que quero que a coisa se faça, não para dar prazer a Dona Hieronyma... que poderá, aliás, sofrer uma decepção, porque as coisas não se irão passar conforme o seu desejo.

Conforme o seu desejo? Posso dizer adiantadamente a Vossa Santidade o que me vai acontecer a partir do momento em que entrar na sua casa: acontecer-me-á uma desgraça.

Eu sei e foi por isso que falei de decepção, porque ela vai saber que não aceitarei nem doenças, nem acidentes, nem seja o que for, ou será entregue imediatamente ao carrasco.

Talvez, mas eu recuso-me a partilhar o mesmo tecto com ela! Nunca pensei odiar um ser humano como a odeio a ela. Jurei que a mataria!

Não partilhareis o tecto dessa dama senão por uma noite: a das vossas núpcias. No dia seguinte ela partirá para uma... viagem na companhia do seu cunhado e quando regressar já estareis a viver num pequeno palácio perto de Santa Maria in Pórtico, que eu vou dar a Cario como presente de casamento. E posso prometer-vos acrescentou ele com um sorriso fino que a vossa cabeça permanecerá no seu lugar se, por acaso, acontecer alguma... coisa deplorável à dama Boscoli! Nós... nós não temos muita simpatia por ela. É uma mulher barulhenta e vulgar.

Eu sou sensível, Santo Padre, a essa certeza que me quereis dar, mas não é menos verdade que devo casar-me com um monstro. Se ele for parecido com o defunto filho de Hieronyma, os meus dias estão tão contados como os dela.

Um monstro? Não exageremos. Cario é feio e é um pobre de espírito, mas não tem qualquer maldade. Podereis fazer dele o que quiserdes. Estou certo de que acabareis por apreciar a vida que ides ter em Roma. Tornar-vos-eis uma das primeiras damas...

Não vejo bem a que título?

O mais simples e menos contestável: porque eu quero assim. Quando vos tornardes minha vizinha, saber-se-á rapidamente que vos protejo... e confesso que me sentirei feliz, então, por podermos entreter-nos com os grandes autores e os belos textos antigos de que tanto gostamos.

Aquela declaração amável deixou Fiora sem voz. Era uma coisa estranha, na verdade. As grandes personagens deste mundo, que o Destino punha no seu caminho, amigos ou inimigos, pareciam não ter outro objectivo na vida senão instalá-la na sua vizinhança. Luís XI dera-lhe a Casa das Pervincas, o Temerário propusera oferecer-lhe, numa noite de euforia, uma posição nos seus domínios e fazê-la entrar na sua corte acabada a guerra e eis que agora o Papa queria alojá-la na colina vaticana, no palácio de Santa Maria in Portico.

Então? continuou Sisto não dizeis nada? Que pensais dos meus projectos?

Que são muito generosos, Santo Padre... e que terão de me servir. No entanto, recordo-vos que tenho um filho em França e que tenciono educá-lo eu mesma e viver com ele.

. E qual é a dificuldade? Mandai-o vir com a vossa gente e ele gozará, também, da Nossa particular protecção. Aliás, concluído o casamento, enviarei uma embaixada ao Rei de França para o tranquilizar, enfim, acerca do vosso futuro e dar-lhe parte da feliz conclusão dos nossos negócios.

Feliz? O Rei teria libertado frei Inácio e aquele cardeal cujo nome esqueci?

O pontífice desatou a rir com a alegria de um rapazinho que acaba de levar a cabo uma grande partida:

Eu hei-de conseguir recuperar, mais tarde ou mais cedo, o cardeal Balue. Meditar um pouco mais nas vicissitudes deste mundo só lhe será salutar. Quanto ao monge castelhano, disseram-me que morreu e que só podemos rezar pelo repouso da

1 Que será, mais tarde, o palácio de Lucrecia Bórgia.

2 Será libertado em 1481 e irá morrer a Roma.


sua alma. Os dois não passaram, de facto, de um... pretexto para vos fazer vir aqui. Mas, peço-vos, punhamos de lado esta política fastidiosa e...

Gostaria, no entanto, de fazer uma pergunta a Vossa Santidade, se Ela me permite?

Fazei!

Essa espantosa mudança de atitude, essa amabilidade que me é hoje oferecida, quando esperava a fúria da cólera... papal, a que a devo? Unicamente ao nascimento da pequena Bianca?

Não. É evidente que não. Devei-la a duas circunstâncias: a primeira é, naturalmente, o vosso arrependimento e é a principal, mas, por outro lado, Dona Catarina, a nossa sobrinha bem-amada, não cessou de defender a vossa causa e Nós não gostamos de lhe causar dor. Tereis nela a melhor das amigas e ela contribuirá muito para que venhais a amar Roma.

Após as suas palavras consoladoras, o Papa ofereceu aos lábios de Fiora o anel da sua mão e chamou Patrizi para que a reconduzissem ao castelo de Saint-Ange, onde não deveria ficar muito tempo. O dia seguinte, que era Domingo de Ramos, era impróprio, como todos os domingos, para uma cerimónia nupcial. O casamento teria lugar, portanto, na segunda-feira, ao fim da tarde, na capela privada do Papa, que o celebraria ele mesmo.

Aquelas cinquenta horas, Fiora passou-as na companhia de Domingo, encarregado, mais uma vez, da sua guarda. Perante a boa-disposição do pontífice, ela esperara que lhe mandassem Khatoun, mas o nascimento do bebé devia exigir os cuidados de todos no palácio de Santo Apolinário e a jovem condessa não queria, certamente, separar-se dela. No entanto, aqueles últimos momentos de cativeiro escoaram-se com grande rapidez e não apenas porque Domingo se prontificou a distraí-la jogando xadrez com ela e passeando-a pelos terraços do castelo, de onde ela pôde contemplar, à-vontade, a totalidade do panorama de Roma, mas também porque aquelas horas que se escoavam, inexoráveis, eram as últimas antes de uma mudança de existência que a aterrorizava a despeito das garantias dadas pelo Papa. Quer quisesse, quer não, ia passar a ser uma Pazzi e só a ideia de usar esse nome provocava-lhe repulsa. Pensava também em Mortimer, cativo naquele mesmo castelo de Saint-Ange e que, apesar dos seus pedidos, não lhe tinham permitido visitar. Poderia ele regressar livremente a França? Riario prometera, mas que confiança poderia ter na palavra daquele homem? Enfim, uma outra angústia afastou o sono das suas duas últimas noites: a ameaça que pesava sobre os Médicis, Fiora sabia bem o que significava a ”viagem”, no dia seguinte ao do seu casamento, de Francesco e Hieronyma. Iam preparar o seu triunfo, assistir ao último acto do drama que faria da sua família a mais rica e mais poderosa de Florença, sob a autoridade de Riario, sem dúvida, mas que concentraria nas suas garras uma parte dos bens das vítimas e a totalidade dos dos Beltrami, sem que a intransigente lei florentina se lhes pudesse opor. A ideia de que Lourenço e Giuliano iam morrer sem que ela pudesse fazer nada para o impedir era-lhe insuportável.

Assim, era a mais pálida e mais sombria das noivas quando, na segunda-feira à noite, após o pôr do Sol, Domingo lhe preparou um banho na grande tina que trouxera sem grande esforço aparente e lhe disse que chegara o momento de fazer a sua toilette.

Estás branca como uma morta notou ele. Domingo vai ter de te pôr carmim.

Ninguém está à espera que eu vá para o altar com o coração alegre. O meu aspecto não tem importância nenhuma e não quero pôr pintura. Detesto.

O Santo Padre não ficará contente.

Enganas-te. A única coisa que lhe interessa é o meu casamento. Eu! Casada! Quando Philippe...

Fiora desatou a soluçar tão violentamente que o núbio, espantado, foi buscar vinagre para lhe borrifar a fronte e as têmporas.

Por piedade, acalma-te! Domingo será punido se mostrares esse rosto desesperado. Tens de ser corajosa.

Ele tem razão disse uma voz doce que acalmou imediatamente o choro de Fiora. E creio que te sentirás ainda mais forte quando leres a carta que te trago!

Khatoun segurou com as duas mãos a cabeça da jovem para a obrigar a olhar para ela.

Vieste? murmurou Fiora. Deram-te autorização?

Deram, mas lê esta carta, peço-te! E tu, entretanto acrescentou ela para o negro vai buscar a arca que está lá fora numa mula guardada pelos criados da condessa Riario.

A carta, claro, era da condessa Catarina:

”Neste instante que vos deve ser cruel, escrevia a jovem, quero dar-vos todo o conforto de que sou capaz. Não posso acompanhar-vos, mas quero dizer-vos o seguinte: uma mulher inteligente é capaz de se adaptar ao pior dos casamentos desde que tenha amigos para a ajudarem e vós tendes em mim uma amiga. Khatoun, que eu vos ofereço será o meu presente de casamento dir-vos-á o que eu não tenho coragem de escrever. Quanto mais soberba e orgulhosa fordes, mais forte sereis no espírito do meu tio. Ver-nos-emos em breve porque, a partir de amanhã, exigirei a vossa visita, o que é normal pois não devo sair da cama. Sede corajosa e tende confiança! Beijo-vos. Catarina.”

Foi como uma lufada de ar puro e vivificante. Fiora verteu as suas últimas lágrimas nas faces de Khatoun, que a abraçou com profunda emoção.

Ao menos, reencontro-te, a ti! Não imaginava ter, esta noite, uma alegria tão grande.

Com a impressão de que os bons tempos regressavam, ela deixou que a jovem tártara lhe enfiasse o soberbo vestido dourado que Domingo acabava de trazer, mas o contacto com o tecido metálico e frio fê-la estremecer e Khatoun pensou que era de angústia:

Não penses! suplicou ela. Não penses no passado! Esta noite vives um pesadelo, mas, depois, acordarás.

Achas?

Tenho a certeza. Amanhã vais ver a condessa Catarina acrescentou ela num murmúrio. Ela tem coisas para te dizer.

Quando, uma hora mais tarde, Fiora, seguida de Khatoun tão compassada como uma dama-de-honor, fez a sua entrada na capela papal, pareceu-lhe penetrar no interior de um missal. Uma braçada de velas amarelas fazia cantar o ouro e viver as personagens dos frescos pintados por Melozzo da Forli. No seu esplendor de mau gosto e nas suas cores vivas, pareceram-lhe mais verdadeiras do que as personagens vivas colocadas em redor do altar, talvez porque o seu espírito e o seu coração recusavam a realidade com todas as suas forças.

Para retardar o instante temido, Fiora preferiu olhar primeiro para o Papa, uma mancha branca engastada nos braços de uma poltrona alta de veludo vermelho. Parecia-se, mais do que nunca, com um grande batráquio irritante. Na sua frente estava uma dupla mancha negra e prateada, que Fiora reconheceu, odiosamente, antes de lhe distinguir as feições: Hieronyma e Francesco Pazzi, que ela aflorou apenas com um olhar pesado de desprezo. E depois, diante do altar, uma forma estranha, uma espécie de insecto dourado de longas patas esguias, um corpo ovóide encimado por uma grande cabeça sem pescoço que se inclinava para um lado, demasiado pesada, talvez, para que a conseguisse manter direita. Uns cabelos longos e sedosos, de uma cor quente de castanha a única beleza daquele rapaz sem idade enquadravam um rosto de lábios moles, de nariz pendente e de pesadas pálpebras, mal deixando ver umas pupilas de cor quase impossível de ver.

Depois de transposta a soleira, Fiora deteve-se por um instante, prestes a fugir se aqueles cuja presença ela pedira não estivessem ali, Mas, na sombra do trono papal, descobriu a samarra púrpura do cardeal carmelengo e a alta silhueta de Mortimer sobriamente vestido de castanho que, de braços cruzados no peito, roía um punho. Riario cumprira a sua promessa e Fiora já podia tranquilizar-se quanto à sorte do seu amigo... Mas quando o seu olhar encontrou o do escocês, ensombrado por uma cólera impotente, sentiu diminuir a sua coragem. Era de tal modo a imagem de um passado recente, de um passado perdido e por isso, singularmente querido, que ela teve vontade de correr para ele e de se refugiar naquela força que conhecia tão bem. Evidentemente, Mortimer livrar-se-ia sem dificuldade de alguns dos homens presentes, idosos na sua maior parte, mas no exterior havia guardas, assim como carcereiros e carrascos e Fiora não podia voltar atrás.

Ia pôr-se em marcha para o altar quando a porta se abriu diante de Girolamo Riario. O conde juntou-se a Fiora e, com um sorriso pleno de arrogância, ofereceu-lhe o braço para que ela nele pousasse a sua mão, afirmando assim a sua vontade de aparecer como o único artesão do casamento, obra diabólica onde estavam reunidos a sua insaciável cupidez e o ódio de Hieronyma. A mão de Fiora hesitou em tocar a do homem, mas recusar causaria um escândalo que alienaria a frágil boa vontade de Sisto. Ela deixou-se, portanto, conduzir até junto daquele que se ia tornar seu marido, mas, depois de lhe ter concedido um olhar, fechou os olhos para melhor reter as lágrimas, porque não podia deixar de evocar, no lugar daquele ser profundamente desgracioso e que ela ouvia cantarolar a meia voz como se estivesse só, a alta silhueta do seu bem-amado Philippe, os seus largos ombros, o seu sorriso um pouco trocista e a paixão que ela vira brilhar, então, nos seus olhos cor de avelã.

Nunca ninguém tomará o teu lugar jurou ela silenciosamente para a sombra do seu amor. Quanto àquele, nem que tenha de me matar, não tocará em mim esta noite, nem nunca!

A voz do cardeal d’Estouteville fê-la reabrir os olhos e viu que o Papa, com a ajuda de dois diáconos, estava a vestir as vestes sacerdotais para celebrar o casamento.

Muito Santo Padre disse firmemente o francês peço-vos solenemente e pela última vez que reconsidereis quanto a este casamento. Nenhuma mulher consentiria numa tal união e custa-me a crer que Dona Fiora seja consentânea.

Vós não tendes a palavra! cortou brutalmente Riario. Ela deu o seu acordo e acabou!

Não acabou, não, porque é meu dever. Ela é súbdita do Rei de França e nem quero pensar no que ele dirá quando souber deste... deste acto insensato.

Onde é que fostes buscar essa de ela ser súbdita do Rei de França? disse Hironyma asperamente. Ela sempre foi conhecida por ser florentina e é viúva de um borgonhês. Este casamento vem, no fim de contas, no seguimento da natureza das coisas, porque, em tempos, ela foi noiva do meu pobre Pietro, o meu querido filho.

Eu nunca fui noiva do teu filho! exclamou Fiora. Eu sei que tu não conheces os limites da mentira, mas há, de qualquer maneira, limites...

Começada assim, a cerimónia nupcial prometia transformar-se num ajuste de contas e o Papa decidiu que era tempo de intervir. A sua voz de bronze soou, repercutindo-se nas abóbadas da capela.

Paz! Estamos num lugar santo, não no mercado. Nosso irmão d’Estouteville, tende calma! Amanhã escreveremos ao Rei Mui Cristão para lhe dar parte desta união que tanto alegra o Nosso coração paternal. Quanto a ti, Fiora Beltrami, consentiste, ou não, em casar com Cario aqui presente?

Consenti, mas com uma condição.

Qual?

Penso que Vossa Santidade não a ignora. Quero que o jovem que acompanha esta noite monsenhor d’Estouteville seja enviado imediatamente para Plessis-lès-Tours e com toda a segurança.

Riario desatou num grande riso que lhe fez tremer o duplo queixo e o ventre:

Tanto barulho por causa de um camponês! Palavra de honra, minha querida, dormíeis com ele?

Era mais do que aquilo que o visado era capaz de suportar.

Tu é que és camponês! grunhiu ele. Eu sou oficial da Guarda Escocesa do mui grande e poderoso Rei Luís, décimo primeiro do nome, pela graça de Deus Rei de França e de Navarra. E fui enviado aqui pelo meu senhor, cansado de ver partir duas embaixadas sem as ver regressar. Matai-me, se quiserdes, como matastes tantos outros, sem dúvida, mas recuso-me a que a minha liberdade tenha um tal preço! Acrescento, no entanto, que, se não regressar, o Rei considerará que se trata de um acto de hostilidade e não será uma embaixada que ele enviará, mas sim um exército.

Um exército? indignou-se Sisto IV. Ele ousaria declarar-Nos guerra?

Não, na verdade, mas sei que sonha em fazer valer os seus direitos hereditários sobre o reino de Nápoles, usurpado indevidamente pelos Aragoneses. Ora, acontece que Roma fica no caminho de Nápoles...

Foi a vez de Francesco Pazzi se lançar na batalha. Ele não mudara desde que Fiora o vira pela última vez quando, no dia da giostra, combatera contra Giuliano de Médicis pelos belos olhos de Simonetta. Continuava feio, atarracado, de cabelos negros e pele castanha. A sua voz continuava rude e a expressão do seu rosto continuava irritante:

A palavra de honra é a palavra de honra e Fiora deu a dela. Exijo que seja mantida.

E eu, Douglas Mortimer, dos Mortimer de Glen Livet, sustenho que essa palavra de honra lhe foi arrancada pela violência e que tu não passas de um mentiroso. E agora, se queres que discutamos de armas na mão, estou pronto a defender a causa de Dona Fiora até que a morte chegue para um de nós.

Um duelo! exclamou Estouteville. Lembrai-vos, Mortimer, que estamos numa capela!

Eminência, não sei se isso conta muito aqui. Não ouvi dizer que o duque de Milão foi, no ano passado, assassinado ao sair de uma igreja? Parece que, aparentemente, são esses os costumes neste país!

Chega! uivou o Papa cujo rosto se tornou cor de tijolo. Acabemos com isto. Dona Fiora, daqui a uma hora, este... oficial deixará Roma com a carta que Nós vamos escrever para o Rei de França e com um salvo-conduto assinado pela Nossa mão. Estais pronta a cumprir, nestas condições, a vossa parte do contrato?

Sem responder, Fiora aproximou-se do escocês, ergueu-se na ponta dos pés e pousou-lhe um beijo na face.

Obrigada, amigo Mortimer, obrigada pelo que quisestes fazer. Não vos preocupeis mais comigo, peço-vos.

Pedis-me o impossível.

- Não. Peço-vos que veleis pelo meu filho até que eu possa voltar a vê-lo, coisa que vai ser, doravante, o meu único objectivo.

E ides casar com aquele...

Shhh! Dei a minha palavra e cumpri-la-ei. Que Deus vos guarde!

Não digo nada ao Rei Luís?

Dir-lhe-eis que lhe agradeço do fundo do meu coração tudo o que fez por mim, quando eu acabava de rejeitar a sua protecção por causa da execução do meu marido. Não... não posso impedir-me de ter por ele uma grande amizade...

Sem acrescentar mais nada, ela dirigiu-se para o altar e tomou o seu lugar ao lado de Cario Pazzi, que cessara de cantarolar. O homem virara a cabeça para ela e, por entre as pálpebras que mantinha meio fechadas, ela pensou ver um brilho azul.

Soprando e resmungando, Sisto IV colocou-se em frente de ambos, segurou nas suas mãos e começou a resmonear as palavras sacramentais, das quais ninguém compreendia patavina. Visivelmente, o Papa tinha pressa de terminar e estava a despachar a cerimónia. Fiora não o escutava. Respondeu um ”sim” quase inaudível quando ele lhe perguntou se era da sua vontade, mas quando ele meteu a sua mão na de Cario, ela sentiu nitidamente que os dedos do rapaz apertavam docemente os seus. Ela ergueu o olhar, mas ele já tinha retomado o seu ar ausente e parecia contemplar atentamente um dos anjos gordos e de cabelos encaracolados que tocavam alaúde por trás do altar.

Para dar um ar solene ao acontecimento, Fiora e o seu novo marido foram conduzidos em cortejo e à luz de inúmeros archotes, através do Borgo, até à casa de Francesco Pazzi, onde iam morar enquanto esperavam que o Papa cumprisse a promessa feita à jovem. Não era verdadeiramente um palácio: era mais uma casa grande, que se parecia mais com o cofre de um banqueiro do que com uma habitação, mas o interior era suficientemente luxuoso para contentar o insaciável apetite de glória e de fausto de Hieronyma, que desempenhava dentro dela o papel de dona-de-casa.

No entanto, foi Francesco Pazzi que fez as honras da casa à sua nova sobrinha. Parecia extraordinariamente alegre, de repente, o que era pouco usual numa natureza tão sombria e vingativa como a sua. Afastando Cario, que nem pareceu aperceber-se, ofereceu a mão a Fiora para que ela transpusesse a soleira da sua casa e conduziu-a até uma grande sala onde estava preparada uma rica refeição. Junto dos vinhos mais doces encontrava-se todo o tipo de pastelaria e doçaria susceptível de tentar o apetite de uma jovem.

Hieronyma, que, segundo parecia, não estava ao corrente, olhou para a grande mesa com uma estupefacção que rapidamente se transformou em cólera:

O que é isto? Eu não ordenei nada disto!

Não. Fui eu e tu conceder-me-ás, espero, o direito de dar ordens na minha própria casa!

Mas porquê? Porquê?

Esta noite recebo aquela que é, certamente, a mulher mais bonita de Florença, aquela que será, amanhã, a Rainha... e que é minha sobrinha. Devemos festejar condignamente um acontecimento tão alegre.

Ele próprio encheu uma taça de malvasia e, mergulhando o seu olhar no de Fiora, molhou os lábios no vinho antes de lho oferecer, para mostrar que não tinha que temer qualquer veneno. Em seguida encheu uma para si próprio e ergueu-a:

Bebo à tua beleza, Fiora, e à tua chegada à minha casa que será, doravante, a tua e na qual eu próprio serei teu amigo e... teu protector acrescentou ele com um olhar na direcção de Hieronyma, que franzia o sobrolho perante aquela situação que não previra:

O que é que te deu? Eu pensava que a odiavas?

Eu odiava o pai dela, mas, pode-se odiar uma flor? Esta não passava de uma promessa quando abandonei Florença, onde a beleza de Simonetta brilhava sobre todas as coisas, Ora, eu não pude ter Simonetta.

E pensas ter esta? Ela não acaba de casar contigo! Francesco virou-se para o seu sobrinho que, como se não tivesse nada com isso, petiscava dos pratos enquanto provava, com visível satisfação, vinho de Espanha.

Achas que ele, na verdade, acaba de casar com alguém? Recordando-se do estranho brilho azul e da pressão ligeira de uma mão, Fiora pensou que era tempo de se meter na conversa. Até então, contentara-se em dar o seu justo valor à semidisputa que opunha os seus inimigos. Explorar a cobiça que Pazzi nem sequer se dava ao cuidado de disfarçar talvez fosse uma boa estratégia e depois de ter bebido a taça que ele lhe oferecera, a jovem sorriu-lhe com uma graça que fez brilhar os olhos do homem.

Obrigada por me acolheres assim, meu tio. Sinto-me feliz por constatar que conto, pelo menos, com um amigo nesta casa e estou certa que o futuro nos reserva momentos felizes, mas não devo negligenciar aquele que se tornou, esta noite, meu marido. É com ele, se me permites, que vou partilhar este vinho de Chipre e este bolo de amêndoa.

Evidentemente! Não podemos esquecer-nos da tradição! Ouviste, Cario? Vem aqui para o pé de nós!

O marido obedeceu docilmente, aceitou a parte do bolo que Fiora lhe oferecia e esvaziou a grande taça de casamento em prata cinzelada de onde ela acabava de beber.

Obrigada disse ele com uma voz de rapazinho bem-educado Estava muito bom. Posso ir deitar-me, agora?

É claro que podes, meu pequeno! disse Hieronyma com voz untuosa. Nós vamos conduzir-te a ele com a tua esposa. Olha para ela! Espero que te agrade? Ela não é virgem, claro, mas não te podes mostrar difícil...

Eu vou-me deitar com ela?

Vais e terás prazer com ela tantas vezes quantas quiseres... Ela é tua, sabes, só aia...

Chega! grunhiu Francesco. Ele nunca se aproximou de uma rapariga e eu não vejo a utilidade dessa comédia. Só a bênção nupcial é que é importante.

Sem dúvida, mas Cario merece uma recompensa e não há razão nenhuma para o punir. Tu quere-la, não queres, Carlitto, esta bela rapariga? Vai preparar-te! Eu própria a levo ao vosso quarto e a dispo.

Sim...sim, Carlo quer! disse o rapaz, batendo palmas com um riso idiota que fez empalidecer Fiora. Teria, na verdade de suportar aquele aborto, que passava a língua pela boca espessa como um gato em frente de um bolo de creme?

Recebi a noite passada, como presente da condessa Riario, esta jovem que esteve, em tempos, ao meu serviço disse ela designando Khatoun, que ficara à entrada da sala onde continuava imóvel como uma estátua. Ela sabe muito bem despir-me.

A noite de núpcias pertence às damas da família protestou Hieronyma.

Então, façam isso as duas! suspirou Pazzi, que beijou a mão de Fiora com um olhar que dizia muito. Teria gostado, sem dúvida, de se encarregar ele mesmo daquela tarefa agradável.

Recusando o braço que Hieronyma lhe oferecia com um sorriso mau, Fiora ia abandonar a sala seguida de Khatoun quando Pazzi, agarrando num archote, se lhe juntou:

Eu próprio te escolto para ficar contigo um pouco mais. Amanhã partimos para tratarmos de um assunto importante, Hieronyma e eu, mas ver-nos-emos em breve, quer eu regresse, quer, mais provavelmente, eu te mande buscar com Cario. Até lá, estarás aqui como em tua casa.

Chegado à porta da câmara nupcial, ele desejou-lhe de novo boas-noites com fortes suspiros que a teriam divertido se a sua situação não fosse tão penosa. Quando Hieronyma quis entrar com ela, Fiora repeliu-a.

Não, tu não vais mais longe! Trouxeste-me até onde querias, deve chegar-te. Vai-te embora!

Mas...

Eu disse: Vai-te embora! Não abuses, Hieronyma e, sobretudo, não penses que o meu ódio por ti desapareceu.

Como a mulher, furiosa, quisesse entrar à força, Francesco postou-se diante dela:

Faz o que ela diz! Desçamos juntos, Hieronyma, temos de falar!

Esta teve de ceder. Quando Khatoun fechou a porta do grande quarto iluminado por archotes, Fiora não pôde reter um suspiro de alívio, mas não disse nada. Com efeito, duas servas acabavam, uma de ajeitar o grande leito de colunas guarnecidas de pesadas cortinas de tapeçaria, a outra de colocar num vaso um enorme ramo de peónias e lilases que exalavam um belo perfume. Fiora fez-lhes sinal para saírem e elas assim fizeram após uma reverência.

Mal a porta se fechou, Fiora correu para a janela, que abriu para se debruçar para o exterior. A abertura dava para um pátio estreito, um poço, no qual o luar, reflectido nas lajes do chão, dava ideia da profundidade.

Que estás a ver? inquietou-se Khatoun.

Queria ver se havia uma saída.

Queres fugir? Isso parece-me difícil.

Tudo depende do género de saída que procuramos. Achas que vou partilhar o leito com aquela... aquela coisa? Permitir-lhe que me toque? Eu tive de aceitar este casamento grotesco: mas não me peçam mais nada.

E que queres fazer? Atirar-te da janela abaixo?

Sem hesitar, se ele tentar aproximar-se.

Sem responder, Khatoun levantou a barra do seu vestido e tirou um punhal longo e delgado que trazia fixo à perna pela jarreteira e ofereceu-o à jovem.

Por que sacrificar-te? A confessa pensa que serás viúva em breve e ainda bem. A partida dos dois, amanhã de manhã, facilita as coisas. Com Cario morto, metemo-lo neste leito e, amanhã, diremos para o deixarem dormir. Enquanto isso, iremos ao palácio Riario, de onde, disfarçada de rapaz, poderás fugir para Florença.

Por que eu e não nós? Pensava que não me querias deixar?

É verdade, mas não sei montar a cavalo e atrasar-te-ia. Só tu podes prevenir monsenhor Lourenço do que se trama contra ele. Aliás, se conseguires, Francesco Pazzi e a dama Hieronyma terão todas as hipóteses de nunca mais regressar a Roma. Em seguida, irei ter contigo e iremos as duas para junto do bebé Philippe! concluiu ela alegremente, como se acabasse de traçar o plano de uma partida agradável para o campo e não de um assassínio seguido de fuga.

Fiora abanou a cabeça, pouco convencida:

Acreditas, realmente, que seria prudente regressar ao palácio Riario? Que faremos do conde Girolamo?

Ele não vai estar lá.

Já ouvi essa frase antes e tu viste como tudo terminou!

Desta vez, não haverá nenhuma armadilha. Amanhã, ele vai conduzir a filha recém-nascida, com grande cerimónia, ao palácio Latrão para ali receber o baptismo das mãos do Papa. Eu sei a hora... E agora, deixa-me meter-te na cama! O teu marido não tarda aí e eu vou dormir diante da porta. Só tens que me chamar quando a coisa estiver feita.

Vivamente, ela foi meter o punhal sob as almofadas de seda branca franjadas a ouro e depois começou a despir Fiora antes de a ajudar a enfiar uma camisa de fina seda. Era tempo, porque se ouviram passos na galeria. Fiora correu a meter-se debaixo dos lençóis, que puxou para si a tempo de ver a porta abrir-se para dar passagem a Francesco Pazzi, que segurava um archote e rebocava Cario pela mão, como uma criança.

O recém-casado estava embalado num roupão de brocado com grandes flores púrpuras e douradas, que acentuava ainda mais a sua tez amarela. O frufru de seda branca por baixo mostrava que também vestia uma camisa. O rapaz apertava as duas coisas contra o peito, Pazzi conduziu-o até ao leito e ficou ali um instante sem dizer uma palavra, contemplando Fiora com olhos que brilhavam como velas. Também devia ter bebido, porque estava muito vermelho e a força da sua respiração chegava ao fundo do leito. A jovem viu aqueles mesmos olhos virarem-se para Cario, ao mesmo tempo que, com a mão livre, Francesco procurava o punho da adaga presa ao seu cinto. Ela sentiu a vontade de matar que ardia naquele homem devido ao poder do vinho e pensou que ele ia, talvez, evitar-lhe um gesto que lhe fazia horror, mas que a entregaria a ele sem grandes possibilidades de se defender. Matar Pazzi na sua própria casa equivaleria a desencadear sobre ela própria, não apenas a fúria de Hieronyma, mas também a de todos os servidores da casa.

Não durou mais do que um instante. A lâmina não saiu da sua bainha bordada. Com um gesto furioso, Pazzi assentou um murro no dorso do seu sobrinho e depois, girando nos calcanhares, foi buscar Khatoun pelo braço e levou-a para fora do quarto, cuja porta fechou com um barulho terrível. Fiora e o seu novo marido estavam sós, face-a-face...

O rapaz não reagiu, como se Pazzi tivesse socado um saco de farinha. Dobrara-se em dois, simplesmente, endireitando-se depois e ficando ali um momento, sem se mexer, ao ponto de Fiora perguntar a si própria se não teria adormecido. Mas ela compreendeu que ele estava a ouvir afastarem-se os passos ligeiramente hesitantes do seu tio: quando tudo ficou em silêncio, Cario abandonou a sua imobilidade. Em passo vivo, foi até à porta, abriu-a, espreitou, murmurou qualquer coisa que Fiora não entendeu, pegou na chave que ficara do lado de fora, meteu-a no lado de dentro e, por fim, deu-lhe duas voltas, o que inquietou Fiora. Lentamente, ela meteu a mão sob a almofada, na direcção do punhal.

Pronto! disse Cario tranquilamente. Mais ninguém nos virá incomodar.

Apoiado a uma coluna do leito, os olhos bem abertos mostrando as pupilas azuis por onde passava uma chama de contentamento, perdera por completo o ar adormecido e olhava para a jovem, gozando a sua surpresa. Endireitara-se um pouco e, se continuava feio, inspirava muito menos aquela piedade misturada com uma certa repugnância discreta reservada, geralmente, para os atrasados mentais.

Como Fiora continuou sem dizer nada, ele emitiu uma espécie de cacarejo e desatou a rir:

Não façais essa cara, minha querida esposa! O facto de vos revelar o meu segredo deveria tranquilizar-vos quanto às minhas intenções. Posso, se isto não vos chega, afirmar-vos que as crianças nascidas do nosso casamento não nos custarão um tostão a alimentar e que ides poder dormir tranquila nesse grande leito que vos mete tanto medo.

Representais? articulou, por fim, a jovem. Mas, para quê?

Para sobreviver. Há anos que estou habituado a isto e a minha desgraça física foi, para mim, uma ajuda: sou tão feio que acharam muito natural que eu fosse, também, idiota.

Para sobreviver, dizeis? Mas, quem é que vos ameaça?

Os Pazzi em geral, com excepção do meu avô Jacopo, que sempre me defendeu. Devo dizer-vos que, depois dele, sou eu, após a morte dos meus pais, o mais rico da família e foi por isso que o meu tio Francesco me trouxe para Roma com ele quando teve de abandonar Florença. Eu era o seu cofre-forte ambulante, ou uma coisa assim. Obteve a minha tutela, o que lhe permitiu estabelecer em Roma um novo banco porque é um homem hábil, mas tem todo o interesse em que eu permaneça vivo, porque, morto, todos os meus bens lhe seriam retirados pelo meu avô. E ninguém se atreve a desagradar ao patriarca.

Como é possível eu nunca ter ouvido falar de vós quando vivia em Florença?

Porque me escondiam, com mais cuidado ainda do que com o meu horrível primo Pietro. Dois monstros na família é de mais! Eu morava em Trespiano, uma villa herdada pela minha mãe, onde me deixavam tranquilo com a minha ama e o velho padre que me ensinou o que podia. Tenho livros, lá, pássaros, árvores.

Éreis obrigado a desempenhar esse papel horrível... e sem dúvida esgotante?

Era, porque, se tivessem suspeitado de que era mais ou menos inteligente e, portanto, capaz de gerir os meus próprios bens, estaria morto há muito a despeito do patriarca. Houve, em tempos, em Roma, um homem chamado Claudius Ahenobarbus. Ele conseguiu escapar aos assassinatos incessantes, perpetrados na sua família, fazendo-se passar por cretino, e chegou mesmo ao trono imperial... ”,

Alimentais ambições assim tão altas? perguntou Fiora, que não pôde impedir um sorriso.

Oh não! Absolutamente! Tudo o que eu desejo é regressar a Trespiano. Aliás, pode ser que esse desejo se realize proximamente, mas em condições que me assustam. Se o meu tio Francesco e a abominável Hieronyma conseguirem levar a cabo o plano que idealizaram, Girolamo Riario não lhes poderá recusar nada e eu serei, muito provavelmente, assassinado. Vós também, aliás, porque só vos casaram para recuperar a vossa fortuna!

Mas... e o vosso avô?

Morrerá no tumulto que suscitará a tomada do poder por parte de Riario.

Estais ao corrente? Mas, como é possível saberdes isso tudo?

Ninguém desconfia de um pobre de espírito. Até falam abertamente diante dele. Eu sei tudo sobre a conspiração contra os Médicis organizada pelos Pazzi, por Riario e Montesecco, esse mata-mouros grande como uma noite de angústia e quase tão feio como eu. Lourenço e Giuliano morrerão no fim-de-semana no decurso da visita que lhes vai fazer o novo cardeal, Rafaele Riario, que deixou Roma ontem.

Sabeis se eles decidiram uma data?

Não, mas poderá ser no Domingo de Páscoa, durante as festas. O pior é que eles conseguiram reunir a família toda, incluindo o meu avô, que, no entanto, era hostil, ao princípio, ao que ele achava uma loucura. E eu não posso fazer nada. No entanto, gostaria de os salvar.

Salvar quem? Os Médicis? Vós, um Pazzi? Nesse caso, não os odiais?

Giuliano pouco me importa, é uma bela cabeça oca, mas gosto muito de Lourenço. É muito feio...

É por isso que gostais dele?

Por favor, não penseis que sou mesquinho a esse ponto! disse Cario, tristemente. Ele é feio, repito-o, mas que inteligência! E que encanto! Além disso, tentou ajudar-me. Tinha um médico grego do qual se diziam coisas espantosas.

Demétrios Lascaris! murmurou Fiora, perturbada.

Conhecei-lo? Lourenço queria que ele me tratasse, mas a minha querida família opôs-se. Oh sim! Eu gostava de poder impedir este crime, mas sou prisioneiro da minha personagem: não tenho dinheiro nem qualquer meio à minha disposição, não tenho um criado fiel e nem sequer sei montar a cavalo! Só consigo montar uma mula... desde que ela não vá muito depressa!

Mas eu sei!

Saltando da cama, Fiora enfiou um roupão pousado sobre uma cadeira, pegou em Cario pela mão e fê-lo sentar-se junto dela na arca que estava diante do leito. Uma esperança louca fazia-lhe bater o coração com toda a força.

Ajudai-me, amanhã, a sair desta casa. Irei a Florença e farei com que os projectos deles falhem!

Como posso ajudar-vos? Já vo-lo disse: não tenho nada para vos dar. Quando eles partirem, amanhã, levarão os cavalos todos e os mais fortes dos nossos servos.

Alguém me dará o que for necessário. Depois da partida deles, sei que a condessa Riario vai pedir que eu a vá visitar. Conduzi-me a casa dela numa visita de cerimónia... ela fará o resto.

Quereis dizer que... a mulher de Girolamo quer que salvemos os Médicis?

Ela ama Giuliano, mas, claro, terá de tomar grandes precauções...

Bruscamente, Cario pousou uma mão nas de Fiora e levou um dedo à boca. Em seguida, debruçando-se sobre o ouvido da jovem, murmurou:

Chorai! Gemei o mais alto que puderdes!

Carlo apontou para a porta que alguém tentava abrir muito suavemente. Hieronyma, sem dúvida, porque Pazzi devia estar demasiado embriagado para tomar tantas precauções. Fiora desatou a gemer e a soluçar. Parou e depois recomeçou, suplicando que a deixassem em paz, tudo tão natural que arrancou a Cario uma risada silenciosa. Por instantes, ouviu-se um grito débil, como se a tivessem magoado e em seguida recomeçaram os soluços, as queixas e as súplicas. Cario, pelo seu lado, emitia grunhidos de uma ferocidade convincente. Aquilo durou uns bons minutos para grande alegria dos protagonistas, que se divertiram francamente com aquele jogo. Então, após um último grito, Fiora calou-se, como se Cario a tivesse espancado de modo a fazê-la desmaiar. Este resmungou ainda duas ou três palavras indistintas e depois foi o silêncio... um silêncio que lhe permitiu ouvir, nitidamente, o som de passos prudentes afastando-se e o frufru de um vestido de seda.

Uf! suspirou Cario. Escapámos de boa!

Nós estávamos a falar em voz baixa, mas, mesmo assim, ainda bem que tendes bons ouvidos.

Já me prestaram grandes serviços! E agora, creio que devíeis dormir. Deveis ter necessidade.

E vós?

Eu vou-me instalar nesta poltrona com algumas almofadas.

A dita poltrona era dura como a justiça e só havia duas almofadas e, mesmo essas, muito pequenas. Fiora hesitou um momento e depois propôs:

Por que não vos estendeis na cama ao pé de mim? Nós, agora, somos amigos e vós prometestes...

Essa promessa, podeis acreditar, não me custa nada a cumprir. Vós sois extremamente bela, minha querida Fiora, mas eu só gosto de rapazes!

A surpresa colocou nos olhos de Fiora dois pontos de interrogação que provocaram em Cario, no entanto, um sorriso amargo:

Este gosto nunca chocou ninguém, nem sequer os meus parceiros, a quem o meu tio paga generosamente na condição formal de se mostrarem discretos.

Aquela estranha declaração causou tanta alegria a Fiora que, espontaneamente, abraçou Cario fraternalmente:

Decididamente, sois um marido que me agrada muito, Cario e nunca agradecerei o suficiente aos céus por nos ter unido. Doravante, serei vossa irmã, uma irmã que fará tudo para vos ajudar.

Uma lágrima brilhou nos olhos azuis do rapaz que, por sua vez, pousou um beijo prudente na face da jovem. Depois, com um ”boa-noite”, cada um deles se deitou no seu lado da cama.

Um momento mais tarde, os dois esposos, virando as costas um ao outro, dormiam um sono merecido onde entrava uma boa dose de alívio, tanto num, como noutro.

Загрузка...