O fim do dia aproximava-se quando Fiora, irreconhecível num fato masculino, transpôs, por fim, aquela porta del Popolo na qual, desde há tantos dias, se cristalizavam os seus desejos e esperanças. Tudo se passara como num sonho, mas com a precisão de um bailado bem ensaiado: a partida matinal de Pazzi e de Hieronyma, que bateram à porta do quarto do jovem casal para um ”até à vista”, mas aos quais o marido respondera com injúrias e a cólera de um homem arrancado demasiado cedo ao seu sono. Depois, a correria de ambos à janela, para se certificarem de que os Pazzi tinham abandonado o palácio do Borgo, após o que Fiora regressou ao seu leito enquanto Cario ia, enfim, abrir a porta do quarto, reclamando com grandes gritos o seu pequeno-almoço e o seu criado. Em seguida, chegara o emissário da condessa Riario, pedindo a primeira visita da nova Dona Fiora del Pazzi, visita que Cario aceitou com um grunhido e clamando que também iria. Após o que, tendo partido em duas mulas com um pequeno séquito quatro criados e Khatoun para o palácio de Santo Apolinário, Fiora, abrigada sob um véu espesso que era suposto esconder os vestígios das sevícias sofridas durante a noite de núpcias e Cario, com cara de poucos amigos, cavalgavam à cabeça sem cessarem de fazer cem loucuras, que fizeram sorrir alguns passantes e um encolher de ombros a outros.
Chegado a casa de Catarina, que, de facto, estava só, Cario pediu de beber e conduziram-no, com uma reverência, aos aposentos de Girolamo, ao mesmo tempo que Fiora e Khatoun eram levadas ao quarto da jovem condessa.
Um quarto sumptuoso, na verdade, todo decorado de brocado azulado e tecidos prateados, atafulhado com uma infinidade de arcas pintadas, de cadeiras e mesas, no meio das quais se destacava um enorme leito forrado com o mesmo tecido prateado e coroado de tufos de penas azuis e brancas. Catarina, mergulhada em rendas preciosas, recebeu os seus visitantes com a devida cerimónia e despediu, depois, as mulheres ao seu serviço, ficando apenas com Rosário, a sua camarista preferida, em quem tinha toda a confiança. Uma hora mais tarde, Khatoun, mais alta devido a uns sapatos de salto alto venezianos, usando o vestido de Fiora e envolta no famoso véu, abandonava o palácio na companhia de Cario, que esvaziara a maior parte das vezes para dentro de ânforas de laranjas um certo número de frascos. Entretanto, escondida na alcova por trás do leito de Catarina, Fiora vestia o fato de burel castanho e a túnica com as armas dos Sforza, uma víbora, e as dos Riario, uma rosa, que tinham sido preparados para ela juntamente com umas botas altas de couro macio, uma ampla capa de cavalo e um alto gorro emplumado, sob o qual os seus cabelos, apertados numa rede, desapareciam por completo. ”
Quando ficou pronta, Catarina entregou-lhe uma bolsa de ouro cujo conteúdo Fiora distribuiu pelas diversas partes do seu fato e uma carta assinada com um simples C.
É para Lourenço precisou ela. Não quero que os Médícis pensem que sou cúmplice dos Pazzi... e do meu marido. Quando estiverdes para lá de Siena, tirai a túnica e enterrai-a, ou escondei-a num arbusto espesso. Tomai cuidado para não vos encontrardes com quem partiu esta manhã. Encontrareis na bolsa um itinerário que vos deve evitar esse mau encontro. E agora, beijai-me e que Deus vos guarde! Enviar-vos-ei Khatoun, que deve regressar esta noite, assim que for possível.
Com uma emoção profunda, Fiora pousara os lábios no belo rosto daquela jovem que, mal-grado um casamento detestado, conseguia permanecer fiel a si própria e ao nome que tencionava usar durante toda a sua vida. Fizera-o sem segundas intenções e sem inquietação: a despeito da idade, Catarina Sforza era capaz de se livrar das piores situações, porque possuía a inteligência
1 O que provaria superabundantemente ao longo dos quarenta e seis anos da sua existência
viva que faltava tanto ao seu marido e, sobretudo, uma enorme coragem. No último instante, ela fez um aviso a Fiora, ao mesmo tempo que Rosário colocava à cintura do falso rapaz uma espada e uma adaga:
Se a desgraça quiser, porque, a partir de amanhã, sereis perseguida, que sejais apanhada, matai-vos sem hesitar, porque não tereis outro meio de evitar uma morte que só virá depois de um sofrimento terrível.
Ficai tranquila: não me esquecerei. Não me apanharão viva. Em seguida, tudo se passou com rapidez. Por corredores secundários, Rosário conduziu Fiora às cavalariças, onde a jovem escolheu e selou ela mesma um cavalo e abriu, depois, uma pequena porta. Com uma alegria imensa, Fiora montou o cavalo que dava pelo nome de Titano, espetou-lhe os calcanhares no ventre e cavalgou na direcção do Corso.
Tendo transposto a porta onde os soldados de guarda saudaram a sua túnica com um gesto familiar, a jovem meteu o cavalo a galope só pelo prazer, durante muito tempo esquecido, de sentir o vento e a chuva, porque aquela semana Santa começara tristonha e com nuvens ameaçadoras açoitar-lhe o rosto. Por fim, era a liberdade! Os campos abriam-se na sua frente, cortados pelo traçado incerto da antiga via Flamínia, a velha estrada romana que ia de Roma à Etrúria e cujas lajes desunidas indicavam o caminho, mas que eram perigosas para as pernas dos cavalos. Por isso, Fiora preferiu utilizar o talude cheio de erva que corria ao longo de antigas sepulturas arruinadas. Após alguns minutos desse percurso infernal, cavalo e amazona passaram o Tibre caudaloso na ponte Milvio, Fiora deu rédea curta à montada para a acalmar e chegou mesmo a parar a fim de se virar para trás por um instante. A despeito do mau tempo, queria dar a si própria o prazer de observar Roma uma última vez, aquela cidade dos Césares, sacralizada pelo sangue dos mártires e que a presença do Sumo Pontífice devia ter feito nobre, pura e generosa. Mas não passava de uma imensa cloaca atafulhada de armadilhas e a fugitiva pensou que nunca agradeceria suficientemente a Deus por lhe ter permitido escapar. Ao mesmo tempo, enviou um último pensamento caloroso, mesmo uma mágoa, porque nunca mais os veria, sem dúvida, a Stefano Infessura, cuja liberdade ela sabia que ele recuperara, a Anna, a judia, que a tratara, a Dona Catarina que se fizera sua amiga contra ventos e marés e, enfim, a Antónia Colonna, a pequena irmã Serafina que deixara a prosseguir, no convento de Santo Sisto, uma espera que duraria, talvez, toda a sua vida. Porque respiravam, sem morrerem por isso, o ar daquela cidade corrompida, talvez esta fosse ainda susceptível de ser salva, mas a que preço?
A chuva lembrou a Fiora que não tinha tempo para filosofias e que, no fim de contas, era a Deus que competia decidir se Roma devia viver ou desaparecer num dilúvio de fogo como Sodoma e Gomorra... Pelas explicações precisas que lhe tinham sido dadas por Catarina por um lado, e por Carlo pelo outro, sabia que não havia razão para ter medo de cair em cima de Francesco e de Hieronyma. Primeiro, porque eles tinham, pelo menos, doze horas de avanço e, depois, porque iam em bom andamento, já que Montesecco dispusera para eles de mudas ao longo da estrada, para que tivessem sempre cavalos frescos. Enfim, porque, depois de Siena, não iriam directamente para Florença, passando antes por Poggibonsi para se juntarem, na direcção de San Miniato, ao novo núncio vindo de Pisa. Entrariam, assim, sem perigo, na cidade do Lis vermelho, misturados com o cortejo verdadeiramente principesco que escoltaria o jovem cardeal Riario.
As diligências postas à sua disposição podiam, até, ser úteis a Fiora que, beneficiando das armas de Catarina, conseguiria, certamente, fazer-se passar por um servidor retardado e obter, por sua vez, cavalos frescos. Quanto ao tempo de que dispunha, era muito curto: Rafaele Riario devia fazer a sua entrada em Florença na Sexta-feira santa e estava-se na noite de terça-feira. Teria de percorrer umas setenta léguas em dois dias: uma distância ao alcance de um cavaleiro treinado e com boas montadas, mas muito mais rude para uma jovem que, durante mais de seis meses, vivera uma existência enclausurada. Seria obrigada a parar para ter um mínimo de repouso. Hieronyma, essa, viajava numa confortável liteira, que só pararia para mudar de cavalos. Trocá-la-ia por uma mula antes de San Miniato e abandonaria o cortejo às portas de Florença para ir directamente para Montughi, a cidade do velho Jacopo Pazzi.
Esse pensamento enraiveceu Fiora e fê-la pensar com desdém no sofrimento que ia suportar. Lembrando-se da sua querida Léonarde e dos inumeráveis cataplasmas de cera de vela que usara durante as campanhas do Temerário, chegou a rir sozinha com a alegria própria da idade que a liberdade reconquistada lhe devolvia...
Em Viterbo, cidade papal onde chegou na manhã de quarta-feira, já tinha vinte léguas nos rins e todo o seu corpo reclamava, desesperadamente, um pouco de repouso. O seu cavalo também, que a jovem trocou por outro no albergue dell’Angelo, lamentando não poder alugar um quarto. Era uma das mudas dos Pazzi e mais valia não se demorar. Fiel ao seu papel de retardatário apressado, ela contentou-se em comprar um queijo, um bocado de pão, um pichel de vinho clarete e algumas velas, retomando heroicamente o caminho.
Uma vez fora da cidade, avistou um edifício em ruínas onde crescia a hera, as ortigas e a erva-cidreira, entrou nele com a sua montada que prendeu a uma viga e instalou-se para comer, beber e repousar um pouco durante três horas. Não temia ultrapassar esse tempo que fixara a si própria porque possuía a faculdade precisa de acordar quando queria. Três horas mais tarde, de facto, acordou do seu sono, comeu e bebeu mais um pouco e decidiu retomar a viagem. A chuva cessara depois do nascer do dia e, se bem que o tempo continuasse cinzento e frio, era, de qualquer modo, mais suportável. Infelizmente a estrada, essa, era mais acidentada, menos direita e em breve o galope deixou de ser menos possível. No entanto, a viagem de Fiora continuou mais ou menos sem grandes dificuldades graças à brilhante organização de Francesco Pazzi e de Montesecco. A sua túnica brasonada fazia maravilhas.
Depois de San Quirico dOrcia, o caminho era traçado ao longo das doces ondulações da Ombria, desenhando uma paisagem calma, semeada dos ciprestes que o velho mestre Giotto tanto amara e dos quais também Fiora tanto gostava: os campos começavam a parecer-se com a sua querida Toscânia.
No fundo de uma encosta a estrada desenhou, subitamente, um cotovelo com um pequeno e espesso bosque de ambos os lados e a amazona deu de caras com uma carroça carregada de lenha que ocupava toda a largura do caminho. O cavalo travou tão brutalmente que Fiora, a despeito da sua habilidade, quase passou por cima da cabeça do animal. Com grande dificuldade, conseguiu manter-se na sela, mas a montada, assustada, empinou-se com a boca cheia de espuma: do abrigo do bosque surgiram uns homens andrajosos mas armados até aos dentes. Um deles lançou um pano preto sobre a cabeça do animal, ao mesmo tempo que os outros o rodeavam empunhando arcabuzes.
Bandidos! praguejou Fiora entredentes. -”- Só me faltava mais esta!
Cego, o cavalo acalmou-se. Um dos bandidos segurara-lhe nas rédeas e segurava-o firmemente. Entretanto, um homem, que devia ser o chefe o único que não tinha arcabuz destacou-se do círculo com uma mão na anca e o nariz emproado. Um nariz impressionante. A personagem era do género atarracado. O seu tamanho era pequeno, mas de mãos e ombros enormes. Uma barba sal e pimenta, que se combinava com os cabelos, comia a maior parte do seu rosto e naquela soberba exuberância peluda os seus olhos brilhavam, trocistas. O seu fato compunha-se de um gibão de pele de búfalo recheado de pregos, sobre o qual dois ou três pedaços de armadura faziam o possível por lhe dar um ar nobre, que seria ridículo sem a interminável espada que lhe tocava nos jarretes e que aparecia, elegantemente, por detrás de um manto vermelho em farrapos. Um gorro de feltro sujo, embelezado por uma pena escarlate, completava o seu equipamento.
Mais aborrecida do que receosa, Fiora olhou para a personagem que, depois de a ter saudado cortesmente, se apoderou da sua bolsa:
Fizestes mal em me deter, senhor bandido suspirou Fiora. Eu estou cheio de pressa!
Uns dentes brancos apareceram por trás dos pêlos emaranhados da barba, ao mesmo tempo que o homem sopesava alegremente a bolsa que emitia, era verdade, um som encorajador:
Como estais zangado, jovem senhor disse ele rindo porque eu também estou com pressa de ter esse belo cavalo que substituirá tão bem aquele que perdi há dois dias. Vós pareceis-me um homem bem-educado a julgar pelo brasão que trazeis ao peito e compreendereis, sem dificuldade, que a minha dignidade de chefe me impede de continuar apeado por muito mais tempo. Perco prestígio.
Lamento muito, mas como a vossa vida não está em perigo e como, pelo contrário, a existência de muita gente depende das pernas deste animal, fica para outra ocasião.
E, dizendo aquelas palavras sem que uma entoação diferente pudesse pôr o seu adversário de sobreaviso, Fiora desembainhou a espada e com a rapidez de um raio golpeou furiosamente o peito do seu adversário, que rolou por terra; no mesmo movimento, ela fez empinar de novo o seu cavalo, cujas patas anteriores feriram o bandido que o segurava. Mas se contava com o efeito de surpresa para se livrar do resto do bando, enganou-se, porque três deles, mal viram o seu chefe no chão, abandonaram as suas armas e atiraram-se sobre Fiora, que se viu desmontada e por terra, meio cega pela sua manta. Enquanto isso, o chefe levantara-se e sacudia o seu gibão sujo com a graça de um pequeno senhor:
Uma cota de malha é sempre uma boa precaução quando frequentamos viajantes honestos troçou ele mas fizeste-me um novo buraco no gibão e isso vai custar-te caro, meu amigo!
Num piscar de olhos, Fiora, persuadida de que a sua hora acabava de soar, viu-se atada como uma peça de caça e atravessada em cima do seu cavalo, para o qual o chefe se içou com satisfação.
Tu és um pouco impulsivo, amigo disse ele, assentando uma palmada jovial nas nádegas do pretenso mensageiro mas és boa pessoa. A tua bolsa merece consideração. Pelo contrário... vai ser preciso que me leias isto acrescentou ele virando o bilhete de Catarina nos dedos. Eu nunca tive tempo para aprender a ler!
Se dás valor à tua cabeça, capitão, aconselho-te a deixares essa carta em paz grunhiu Fiora cujo nariz, a cada passo do cavalo, roçava no couro dos arreios. Aliás, só o facto de me impedires de prosseguir o meu caminho já faz com que ela abane um pouco.
Era preciso audácia. Extraordinariamente, aquele bandido parecia mais ávido do que cruel. Talvez fosse possível entender-se com ele? Restava saber para que lado penderiam as suas simpatias políticas...
Raramente encontrei cadáveres palradores, sabes? disse o outro. Mas fica tranquilo! Não vamos longe e vais poder repousar um pouco. Simplesmente, se te armas em mau, pode ser que esse repouso seja eterno...
Por uma vereda que serpenteava através de um bosque de sobreiros, o bando atingiu em breve a entrada de uma caverna que se abria no flanco de uma colina, com uma entrada estreita e disfarçada por uma espessa vegetação.
A noite caía. Em fila indiana, percorreram um corredor escuro, invadido por um odor de fumo que irritou os olhos de Fiora e a fez tossir, mas que alargou e se iluminou logo a seguir, ao mesmo tempo que um agradável odor a carne grelhada chegava às suas narinas. Pousaram-na no chão e ela viu-se, um pouco entorpecida, junto de uma fogueira, por cima da qual assava um cordeiro inteiro. Junto dela, o chefe aquecia as mãos ao calor do fogo.
Recordo-te o que te disse disse ela calmamente. Quanto mais tempo passa, mais a tua cabeça fica em perigo.
Chega! grunhiu o homem, lançando-lhe um olhar assassino. Há coisas que eu não gosto de ouvir, nem que seja só uma vez. Se forem duas, então...! Estou com vontade de te calar para sempre.
Não te incomodes! exclamou Fiora cuja cólera aumentava na proporção do tempo que perdia. Mas pensa que o meu cadáver pode ser ainda mais perigoso do que a minha pessoa. Tu não sabes ler, mas se és, como penso, um antigo soldado, devias conhecer este brasão?
Hum!... A víbora milanesa, sim... conheço! Mas essa rosa, o que é?
Há muito tempo que não deves sair do teu buraco. Se queres saber mais, afastemo-nos um pouco. Talvez não tenhas segredos para os teus homens, mas eu tenho coisas que não posso dizer a toda a gente.
Vagamente lisonjeado, o chefe debruçou-se, desatou as pernas de Fiora e depois, segurando na ponta da corda que lhe atava as mãos, levou-a para o fundo da gruta. Ali, um monte de palha e alguns cobertores formavam uma enxerga, na qual ele se deixou cair.
Anda lá! Fala!... Quem é o teu patrão?
Não é um patrão, é uma patroa: a sobrinha do Papa, Dona Catarina Sforza, condessa Riario. Enviou-me a Florença em missão... especial, daí essa carta. Se não chegar lá, arrisco a minha cabeça, mas quem me impedir, ainda arrisca mais. Dona Catarina não é muito indulgente, apesar da idade.
O bandido tirou o gorro para coçar a cabeça, visivelmente preocupado com um problema difícil:
Já ouvi falar! Dizem que ela é tão brava quanto bonita e tem a quem sair! Eu, que estou aqui a falar contigo, servi sob as ordens do avô dela, o grande Francesco Sforza, um rude homem de guerra, esse! Ainda era miúdo, mas posso dizer-te que vivi bons tempos com ele. Aí está um que sabia como agradar aos seus soldados...
Subitamente, os olhos do bandido brilharam com um fogo mais vivo, ao mesmo tempo que a sua voz se enchia de uma espécie de nostalgia:
Pilhámos Piacenza juntos e tu nunca hás-de ver semelhante saque, meu rapaz, nem nada que se pareça! Estripámos os homens, violámos as mulheres todas dos dez aos sessenta, escaqueirámos tudo e, para acabar, deitámos fogo a tudo. A cidade parecia um inferno a arder, enquanto atirávamos com as raparigas para os ribeiros que iam cheios de vinho, de sangue e de tripas. Fazia um calor de rachar, mas bebemos tudo o que nos apeteceu. E depois, no fim, ficámos ricos: prata, belos tecidos, víveres e ouro, foi o que Sforza deu aos seus homens! Também tivemos freiras... e até fradecos, para aqueles que gostam. Ah!... seria preciso ir até bem longe para encontrar um chefe como ele! Os de agora só pensam em vestir-se de seda e evitar os golpes. Têm a pele tenra... Sforza, esse, usava couro, o bom e velho couro esmaltado, como a minha couraça, mas, no entanto, a Rainha de Nápoles não se importou de o ter na cama dela e Milão deu-lhe a mais bela das princesas...
Fiora escutara, sem impaciência e sem se comover, o bandido a desfiar as suas recordações: já vira a guerra bem de perto para lhe conhecer os horrores.
Eu sou tão fiel a Dona Catarina como tu eras ao seu avô e posso assegurar-te que ela é digna dele. Escuta! Fica com a minha bolsa, mas deixa-me partir com o meu cavalo! Juro-te que, uma vez a missão cumprida, trago-to com mais dois, se quiseres...
Por que não vinte? Os que estarão debaixo dos rabos dos soldados que te acompanharão? Tomas-me por imbecil, miúdo? Eu já não acredito na palavra das pessoas e tão certo como eu chamar-me Rocco da Magione, ainda não nasceu aquele que me há-de ficar seja com o que for... Especialmente um maricas que nem sequer barba tem. Uma verdadeira rapariga palavra de honra acrescentou ele passando um dedo pela face de Fiora, que quase lho mordeu, mas a jovem decidiu jogar a sua cartada!
Mas, eu sou uma rapariga disse ela docemente. E Rocco retirou o dedo como se o tivesse queimado. O que é que estás a dizer? É fácil de verificar. Tira-me o gorro! O bandido tirou o gorro de feltro, revelando a rede que mantinha apertados os cabelos da jovem. Esta agitou a cabeça e um rio de seda negra caiu-lhe sobre os ombros sob o olhar estupefacto de Rocco. É verdade! Mas, quem és tu? Eu digo-te, mas, primeiro, responde-me. Já que vigias esta estrada, não viste passar a noite passada uns cavaleiros escoltando uma liteira?
A noite passada, não: esta madrugada. Uma caravana bem esquisita, acredita-me, e vontade não me faltou de pôr os meus homens todos a cavalo, mas eles vinham bem armados demais para os modestos bandidos que nós somos.
É pena! gemeu Fiora. Se os tivesses atacado, terias, sem dúvida, evitado uma grande infelicidade...
Mais devagar! A infelicidade teria sido minha e destes bravos rapazes que se puseram sob a minha bandeira. Mas, regressemos ao princípio: quem és tu?
O meu nome é Fiora Beltrami e sou amiga de Dona Catarina. Para completar o quadro, acrescento que sou, também, a inimiga jurada do rústico marido dela... Oh, chega! Estou aqui a fazer de imbecil, a discutir com um ladrão de estrada enquanto que, se calhar, amanhã, os Médicis vão morrer!
A jovem quis levantar-se, mas Rocco impediu-a e atirou com ela para a palha. Ao mesmo tempo, o homem lançara um verdadeiro rugido:
O que é que tu disseste? Que história é essa de mortes?
Demora um certo tempo a explicar. Basta que saibas que, se estou com pressa, é porque a condessa e eu queremos salvá-los. Os que viste passar ontem são os assassinos!
Seguiu-se um silêncio durante o qual Rocco tirou do cinto uma longa faca muito pouco tranquilizadora, mas o homem limitou-se a cortar a corda que ligava os punhos da prisioneira. Em seguida, reflectindo, deu uns passos de um lado para o outro.
Se eu te ajudar, achas que posso esperar uma boa recompensa? disse ele cofiando a barba.
Pela memória do meu pai, assassinado por aqueles Pazzi que viste passar, juro-te. Mas, por que razão farias algo pelos Médicis?
O Magnífico salvou-me a vida em Volteira. Eu tinha morto uma rapariga que Vitelli reservava para si e ele quis enforcar-me. Lourenço cortou a corda e devolveu-me a liberdade. São coisas que um homem honrado não esquece. Mas, chega de conversa: teremos muito tempo para isso durante a viagem. Eu vou contigo! Será a melhor maneira de vigiar o meu cavalo.
Os dois em cima dele? Será, certamente, a melhor maneira de fazer com que ele morra e então iremos os dois a pé. Já te disse que devemos apressar-nos!
Ele, ao menos, não nos leva durante uma meia légua? Eu sei onde podemos arranjar um se tivermos ouro acrescentou ele acariciando a bolsa que atara à cintura com uns cordões. Mas, agora, vem comer um bocado de carneiro, que ainda se queima... mas penteia-te. Prefiro que continues a ser um rapaz.
Como Rocco dissera, Fiora devorou um pedaço de carneiro que estava assado no ponto, fazendo-o descer com uma taça de vinho carrascão, ao mesmo tempo que o chefe, sempre a comer, arengava aos seus homens mais ou menos uma dezena:
Eu vou acompanhar este rapaz, porque ele me propôs um negócio interessante, mas regresso em breve. Orlando acrescentou ele apontando para uma espécie de gigante cabeludo que devia possuir a força de dois ursos tu vais comandar na minha ausência, que não deve durar mais de uma semana, mas, entretanto, mantende-vos quietos e não chameis as atenções sobre vós. Deixo-vos uma parte do ouro deste rapaz, mas vou trazer-vos roupas decentes.
Porquê? grunhiu Orlando. Vamos deixar de ser bandidos?
Seremos o que sempre fomos: soldados. Quando eu regressar, iremos a Urbino. Dizem que o duque Frederico de Montefeltro, está a recrutar uma condotta para uma nova guerra e há muito que as nossas espadas enferrujam. De acordo?
Todos estavam de acordo menos Fiora, que se inclinou para Rocco:
Tens a certeza que estás a ser lógico? Montefeltro é um dos condottieri ao serviço do Papa e esse exército pode estar a dirigir-se para Florença.
Eu sei, mas digamos que é... o último recurso! Veremos o que acontece. Se os Médícis ganharem, colocar-nos-emos ao serviço deles. Senão... é preciso viver, que queres?
Não havia mais nada a acrescentar. Fiora acabou tranquilamente a sua refeição enquanto Rocco procedia à repartição equitativa das moedas de ouro. Graças à precaução que tivera de distribuir algumas pelas botas e pelos diversos locais da sua roupa, o facto de ter perdido a bolsa não atormentava Fiora, mas reclamou a escarcela que as contivera. Restavam poucas coisas: um lenço e o pequeno frasco que Anna lhe dera. Rocco olhou para ele por um instante.
O que é que há aí dentro?
A possibilidade de escapar a uma morte penosa no caso de ser... apanhada.
Rocco abanou a cabeça, meteu de novo o objecto na bolsa e estendeu-a a Fiora, que começava a bater os pés de impaciência. Tanto tempo perdido! Além disso, sentia-se um pouco inquieta com o efeito que produziria na estrada de Florença na companhia daquele homem andrajoso que dava a entender demasiado aquilo que era...
Mas quando Rocco, que se afastara por um momento, regressou, ela ficou mais tranquila. O homem trocara o seu gibão sujíssimo por um outro de espesso pano cinzento, não muito limpo, sem dúvida, mas mais apresentável. Umas botas, um cinturão de couro castanho e uma capa da mesma cor rematavam a transformação que a longa espada e a adaga, felizmente, completaram.
Tiveste medo que te envergonhasse, hem? disse ele aplicando uma cotovelada em Fiora. E agora, a caminho.
Saíram da gruta e ele montou o cavalo. Fiora montou na garupa e, saudados pelos votos do bando, dirigiram-se para a estrada no passo medido que a dupla carga exigia para não esgotar o animal.
A noite estava negra, fria e era preciso conhecer o caminho, mas Rocco sabia para onde ia e, um momento depois, Fiora viu-se dotada com uma nova montada comprada da maneira mais regular do mundo a um fazendeiro que parecia conhecer bem o bandido e, até, ter relações mais do que cordiais com ele.
Nós roubamos os viajantes explicou Rocco não os vizinhos! Se assim fosse, a vida não seria possível. Este nunca teve queixa de mim, antes pelo contrário.
O companheiro da jovem não forçara a camaradagem ao ponto de lhe devolver o cavalo. Ficara com ele e Fiora teve de dar-se por satisfeita. A sua nova montada era mais um animal de trabalho do que um cavalo de sela. Além disso, dava provas de uma independência de espírito e de uma originalidade que o levava a contornar o menor montículo de terra ou até a recuar se o obstáculo lhe parecia demasiado fatigante de ultrapassar. Rocco, que se divertia desavergonhadamente com o furor crescente de Fiora, acabou por levar o animal pela brida para poder seguir em frente. Fiora consolou-se ao pensar que em Siena o seu companheiro e ela poderiam arranjar cavalos frescos. Mas estava escrito no grande livro do destino que ainda não chegara ao fim das suas penas.
Na piazza del Campo, o albergue da Fontana acolheu os viajantes com a consideração devida a tão nobres visitantes, mas o seu proprietário, mestre Guido Matteotti, ofereceu-lhes uma imagem de desolação quando lhe pediram cavalos frescos.
Onde quereis que eu os vá arranjar, meus Senhores? Não tenho nenhum! Nem sequer um pequenino. Tudo o que vos poderia oferecer é um burro, mas é muito teimoso. E a minha filha gosta muito dele!
Que queres tu que façamos com um burro? barafustou Rocco. Sabes quem somos? O meu jovem senhor, que pertence à nobre casa do conde Riario, é um mensageiro enviado por Sua Santidade e, acredita-me, a sua mensagem é urgente.
Que eu caia morto aos teus pés, Senhor, se não digo a verdade. Restavam-me quatro cavalos, quatro cavalos soberbos: animais altos, fortes, sólidos como uma rocha, de olhares vivos e crinas maiores do que os cabelos de uma mulher, mas levaram-mos ontem à noite! Levaram-me os quatro...
E quem é que se atreveu a isso? Não estavam reservados para o serviço do Papa e dos seus?
É evidente, mas eu já tinha visto passar uma tropa grande e não imaginava que aparecesse outra. Além disso, tinham argumentos contra os quais eu não podia fazer grande coisa!
Rocco agarrou no homenzinho pelo colarinho da camisa e começou a abaná-lo:
E quem era essa gente? Dizes, ou não?
Uma tropa de homens que vinha de Pisa. Soldados! Beberam, comeram, pilharam-me o celeiro e a cave e maltrataram-me as criadas e os moços-de-cozinha. Um verdadeiro desastre!
Estou a perder a paciência! disse Rocco. Decides-te a dizer quem eram?
E eu sei? Eram soldados, já vos disse! Iam ter com um grupo que se está a formar perto daqui sob as ordens do condottiereSanseveríno. Viram os meus cavalos e levaram-nos, muito simplesmente. Ah! Pobre de mim!
De sobrolho franzido, Fiora reflectia. A situação agravava-se. Rocco falara de um recrutamento em Urbino sob as ordens do duque Frederico e eis que uma outra condotta se formava sob as ordens de Sanseverino. Um a leste, o outro a sudoeste, parecia-se diabolicamente com uma tenaz a fechar-se sobre Florença. Decididamente, Riario preparara tudo muito bem porque, com os Médícis assassinados, poderia largar aquela matilha esfaimada na cidade e estrangulá-la antes mesmo de ela ter tempo de se mexer. Por outro lado, para além do Papa, havia também Ferrante de Nápoles, enquanto os aliados de Florença, Milão e Veneza, nem sequer imaginavam o que se preparava. Sem falar, claro, no Rei de França, cuja distância apresentava pouco perigo para os conjurados.
A jovem não dissera nada, mas Rocco devia ter seguido o seu raciocínio, porque lhe pousou no braço uma mão que pretendia ser tranquilizadora e ela agradeceu-lhe com o olhar.
Bem disse ele Juntamo-nos aos outros em Florença e esperemos que os nossos animais aguentem até lá. Pelo menos, no teu celeiro pilhado e na tua cave arrasada não ficou nada com que possas alimentar dois honestos soldados?
Mestre Guido, que esperava o pior, pareceu renascer como uma flor deixada demasiado tempo ao sol que um jardineiro rega com uma chuva fina e fresca.
Mas é claro, Vossas Senhorias, mas é claro! Vinde! Eu mesmo vos vou preparar uma boa omelete e arranjar-vos umas provisões que guardava para mim e para a minha família... Nestes tempos terríveis é preciso ser previdente...
Tens a certeza que não puseste de parte um ou dois cavalos? perguntou-lhe Rocco, meio zangado. Entretanto, trata dos nossos! Que lhes banhem as pernas em vinho e que lhes dêem ração dupla! E que nos tragam um pichel enquanto esperamos pela refeição!
Fiora e ele entraram na sala do albergue que, de facto, parecia ter estado sob a acção de um furacão e puseram de pé dois tamboretes para neles se instalarem:
Nada está perdido! murmurou o bandido para Fiora, que, com a cabeça entre as mãos, parecia a ponto de desmaiar. Só nos restam umas vinte léguas para percorrer. Estou certo de que conseguiremos chegar a tempo.
Com cavalos que nos vão deixar a meio do caminho? Teremos de continuar a pé... e eu estou morta de fadiga!
Nesse caso, repousemos! Apenas algumas horas, mas isso permitirá que os nossos animais continuem. Comamos e depois tu irás dormir um pouco num dos quartos. Enquanto isso, eu vou à cidade ver o que posso encontrar...
Nem penses! Se eu descansar, tu também descansas e, se for preciso, ato-me a ti.
A confiança reina, ao que parece? No fundo, não te posso levar a mal. Ainda há pouco não nos conhecíamos. Faremos como queres, mas, primeiro, comamos! Morro de fome!
Já? No entanto, o carneiro não foi há muito tempo?
Talvez, mas vê tu, as contrariedades abrem-me o apetite! Aliás... tens a certeza que não te restaram nenhumas moedas para pagar ao nosso estalajadeiro?
Tu ficaste-me com a bolsa, sim, ou não?
Sim... siim, claro, mas eu tenho uma espécie de sexto sentido que me faz farejar o ouro como um porco fareja a turfa. E não me disseste que o teu nome era Beltrami?
Disse, mas esse nome significa alguma coisa para ti?
A segunda fortuna de Florença? Significa qualquer coisa para qualquer filho da aventura, em Itália.
Significava! O meu pai morreu e...
Eu sei, mas estou convencido de que te resta qualquer coisa, já que uma filha de banqueiro não deve pôr os ovos todos no mesmo cesto.
A despeito da fadiga, Fiora desatou a rir.
É preciso ir a Florença para o sabermos, Rocco. Não tenhas medo: terás a recompensa que te prometi, mesmo que não seja Lourenço de Médícis a dar-ta...
Os dois companheiros abandonaram Siena ao cair do dia, mesmo antes do fecho das portas. As ruas estavam cheias de sombras silenciosas que, vestidas de luto, regressavam do ofício das Trevas. Outras velariam durante toda a noite nas igrejas vestidas de negro e despojadas de qualquer aparato para deplorar a morte de Cristo no Calvário. Os sinos, que se tinham calado durante a Sexta-feira santa, deixavam, pela ausência das suas vozes familiares, a cidade desorientada e entregue à penitência. O próprio céu participara no ambiente sinistro ao deixar cair, depois do meio-dia, uma chuva fina e desesperante. Naquela noite, a imensa catedral branca e negra, estendida como um tigre sobre a cidade, faria cair sobre ela o pesado fardo da morte de um deus...
No momento em que abandonavam a sua casa, mestre Guido fizera aos viajantes uma última recomendação:
Uma palavra ainda, Vossas Senhorias! Se quiserdes chegar a bom porto com os vossos cavalos, evitai San Casciano in Val di Pesa!
Porquê? perguntou Rocco, trocista. Há lá bandidos?
Foi o que disseram uns viajantes que vinham de lá. Parece, até, que há oito dias degolaram dois irmãos pregadores... Portanto, tende cuidado!
Obrigado pelo conselho! Assassinos e maus cristãos merecem que nos acautelemos. Felizmente, estamos mais bem armados do que dois monges errantes...
Todavia, ao mesmo tempo que, seguindo Rocco que voltara a levar a sua extravagante montada pela brida, descia as colinas argilosas onde se situava a cidade, Fiora tinha dificuldade em lutar contra o mau pressentimento que se apoderara dela após ter sabido da impossibilidade de mudar de cavalos. Os contratempos pareciam acumular-se naquela estrada por onde enveredara com tanta esperança e determinação. No entanto, ainda nada estava perdido e, se tudo corresse bem, chegaria a Florença no sábado de manhã, pouco tempo depois do cortejo do jovem núncio. Mas não conseguia afastar a angústia que lhe apertava o coração. A imunda Hieronyma e os seus comparsas iriam ganhar mais uma vez e iriam, depois de Francesco Beltrami, os dois irmãos Médicis ser imolados para apaziguar o seu frenesim de morte e a rapacidade de Riario? Deus não podia dar razão ao Papa a partir do momento em que ele ousava lançar assassinos sobre uma cidade cristã, mesmo que Florença parecesse preferir Platão aos quatro Evangelhos? Era preciso, a qualquer preço, chegar a tempo! Infelizmente, a noite estava bem negra e ela não conhecia a estrada...
Rocco também não conhecia e esta reservou-lhes todas as armadilhas possíveis. Só na madrugada de domingo é que os dois viajantes, esgotados e reduzidos a um único cavalo, viram erguer-se num céu cor-de-rosa e, enfim, desprovido de nuvens, as paredes e as torres do convento dos Cartuxos de Galluzzo, às portas de Florença. Uma ribeira que ia cheia barrara-lhes a passagem e foram obrigados a um longo desvio. Além disso, para evitar o perigo assinalado pelo estalajadeiro de Siena, tinham acrescentado maior distância à sua jornada e tinham-se perdido. Enfim, o cavalo de Rocco, ao bater num rochedo, fizera cair o seu cavaleiro e partira uma perna. Fora necessário abatê-lo. Quanto ao de Fiora, pouco habituado a longas jornadas, mostrara sinais de fadiga que o tornaram incapaz de suportar dois cavaleiros. Rocco, galantemente, resignara-se a caminhar deixando a jovem na sela, por mais incómodo que fosse. De tempos a tempos, ela caminhava junto dele sem dizer grande coisa, porque a esperança de salvar os Médicis diminuía à medida que o tempo passava. Finalmente, ela aceitou parar no convento como propunha Rocco. Àquela hora matinal, as portas da cidade ainda não estavam abertas. Por outro lado, teriam, certamente, notícias. Se os Pazzi já tivessem desencadeado o golpe, seria preciso decidir o que fazer, porque, então, entrar na cidade seria uma loucura. Por fim, os dois viajantes tinham grande necessidade de restaurar as forças.
O sorriso do irmão porteiro devolveu a coragem a Fiora. Se Florença tivesse sido, na véspera, teatro de uma catástrofe, o monge não arvoraria, certamente, aquela expressão tranquila. Enquanto os recém-chegados se sentavam na sala de hóspedes em frente de um queijo e de um bocado de pão, ele respondeu de boa vontade às suas perguntas: a cidade estivera em festa na véspera e até altas horas da noite. O irmão encarregue das compras regressara maravilhado com o cortejo do jovem núncio e pelo grande acolhimento que lhe tinham feito as senhorias dos Médicis. Naquele Domingo de Páscoa, o grande acontecimento seria a missa a que monsenhor Riario presidiria no Duomo na presença dos nobres da cidade e de todo o povo que conseguisse entrar na catedral...
Enquanto o monge ia buscar um novo pichel de água fresca, Rocco interrogou Fiora:
As portas já devem estar abertas. Sentes-te com forças para continuar?
É preciso. É verdade que não há nada a temer durante a missa, mas quanto mais cedo Lourenço for prevenido, melhor.
Estou de acordo, ainda por cima porque a missa não me inspira grande confiança...
És louco?
Não, mas tenho recordações. Na minha vida, forcei as portas de demasiados conventos e violei suficientes freiras para saber o que vale o temor a Deus quando o poder está em jogo. Mas ainda temos uma meia légua para percorrer antes de chegarmos às portas de Florença... e vai ser preciso fazê-la a pé.
Apesar dos esforços de Fiora para obter uma montada qualquer, tiveram de se resignar, mal-grado a fadiga, a continuar pelos seus próprios meios. Mas, ao ver a multidão que, vinda de todos os lados, começava a caminhar na direcção da cidade, Fiora achou que teria sido impossível ir mais depressa, a menos que esmagassem pessoas. De todos os lados, os camponeses caminhavam na direcção de Florença, como para uma nova Jerusalém, para tentarem ver o enviado do Santo Papa. Aquela afluência tinha muito a ver com o mau tempo, que cessara bruscamente. O Sol, um verdadeiro sol pascal, dourava toda a região, na qual os campanários, um após outro, acordavam as suas vozes de bronze para proclamar a toda a face daquela terra de traições, de guerras, de assassínios, de trevas e medo, que o Filho do Homem acabava de ressuscitar, trazendo com ele a esperança da vida eterna...
No decurso da noite anterior, Fiora abandonara definitivamente a túnica brasonada, que atirara para um ribeiro após tê-la atado solidamente a uma grande pedra, mas o gibão de pele de gamo, entretanto desapertado para melhor respirar, parecia-lhe pesado e trocara com alegria as botas altas por um par de tamancos. O fluxo entusiasta que esvaziara as aldeias levou os dois viajantes até às muralhas de Florença que Fiora, esquecendo a fadiga e a angústia, viu subir para si com uma alegria impossível de conter. Há tanto tempo que esperava por aquele momento, bendito entre todos, que lhe permitia rever a cidade bem-amada da sua doce infância! E Florença acolhia-a com o carrilhão de todos os seus sinos e com a alegria tumultuosa das suas ruas engalanadas.
À medida que avançavam pelas ruas, o fluxo tornava-se mais denso, mais violento, até.
Não conseguimos sair daqui murmurou Rocco, que não gostava de se sentir apertado. Vamos na direcção do palácio dos Médicis? perguntou ele enquanto a vaga se contraía para transpor a Ponte Vecchio por entre a dupla fila de lojas com as portas fechadas.
Sim e não. Primeiro vamos ao Duomo. O palácio fica um pouco mais longe...
Usando os cotovelos e os punhos das suas espadas, conseguiram ganhar terreno e desembocaram na praça que Fiora conhecia por ali ter visto desmoronar-se o seu universo no dia terrível do funeral do seu pai. Mas aperceberam-se, então, de que era impossível ir mais longe. Cordões de soldados guardavam as entradas de todas as ruas.
Eu venho de Roma e trago uma mensagem para monsenhor Lourenço disse Fiora a um dos sargentos. Deixai-me passar! Tenho de ir ao palácio...
Mais tarde, meu rapaz! Ainda não ouviste os sinos? A missa começou e monsenhor Lourenço está a assistir a ela com o irmão e os amigos... Espera! acrescentou ele, apiedado pelo rosto
Ver Fiora e Lourenço, o Magnífico
magro, cheio de poeira e visivelmente fatigado. Vou fazer com que entres na igreja. Se te esgueirares, talvez consigas chegar até ele.
Levada pelo punho sólido do soldado, Fiora viu-se, em breve, sob o portal do Duomo, cujas portas monumentais, totalmente abertas, deixavam sair sons harmoniosos. Rocco seguia-a, colado aos seus calcanhares:
Como vês, filho, a igreja está cheia. Arranja-te como puderes! disse o sargento. Eu regresso ao meu posto antes que a multidão me impeça de o fazer.
Aproximar-se do altar, junto do qual deviam estar os irmãos Médícis, a sua família e os seus amigos, parecia difícil, porque havia gente, até, na nave central habitualmente vazia para marcar a fronteira entre os homens e as mulheres. Mas Fiora conhecia aquela igreja desde a sua infância e começou a deslizar pela nave lateral, murmurando aos que a impediam de passar e agitando a carta de Catarina:
Mensagem para monsenhor Lourenço! Mensagem para monsenhor Lourenço!
Fazia um calor de rachar. A multidão que se amontoava entre as paredes de Santa Maria del Fiore era tão densa que reproduzia naquela imensa nave de mármore o calor que começava a encher a cidade, secando, enfim, os ribeiros e as poças lamacentas que as chuvas incessantes da Semana Santa tinham engrossado. O odor do incenso, tão generosamente queimado que as suas espessas volutas subiam até ao alto da imensa cúpula, misturava-se com o mais insípido das centenas de velas que ardiam em redor do altar e com o aroma das flores que compunham um tapete e que morriam lentamente. Na nave amontoava-se uma assistência brilhante, toda de cetim e veludo, dourada, constelada de pedrarias e mais próxima da corte frívola de um príncipe terrestre do que de uma assembleia de cristãos devotos reunida para celebrar o Santo Sacrifício. As pessoas cumprimentavam-se, falavam, passavam umas às outras, em voz baixa, o último mexerico ou mais recente poema. Examinavam-se umas às outras. Criticavam toilettes e penteados. Por detrás daquela multidão enfeitada, o povo fazia os possíveis para conseguir ver, no coro, os dois senhores da cidade. Lourenço, todo vestido de negro, mas usando no barrete um diamante que valia um reino e Giuliano, todo de púrpura e ouro, belo e radiante como uma estátua de Apoio e alegre como um pajem em férias.
Quando, por fim, os viu, Fiora sentiu o seu coração cantar de alegria. Estavam vivos, bem vivos e quando o ofício terminasse poderia entregar-lhes a mensagem. Deus permitira que, a despeito da sua jornada impossível, não chegasse demasiado tarde! E era tão bom rever, enfim, aqueles rostos que lhe tinham sido tão queridos... e que ainda eram.
No coro, uma outra personagem disputava com eles, naquele dia, a curiosidade do povo. Essa personagem mostrava-se delgada e pálida, muito jovem sob as rendas e a pesada púrpura cardinalícia, um jovem príncipe da Igreja de dezoito anos que parecia ter crescido demasiado depressa. O menor dos seus gestos acendia centelhas na sua mitra dourada coberta de pedras preciosas e nos sóis bordados a ouro das suas luvas escarlates. A bem dizer, Rafaele Riario não parecia muito à-vontade, mas todos atribuíam essa atitude à timidez, conveniente e até comovedora num jovem carregado com uma tal grandeza. As mulheres achavam-no encantador por causa dos seus olhos lânguidos e do frequente rubor que subia às maçãs-do-rosto, mas os homens, perante a sua evidente fragilidade, enchiam o peito e sentiam-se confirmados na sua superioridade de machos; contentes consigo próprios, etíquetavam-no com uma satisfação desdenhosa: um badameco.
Uma parte do clero e os padres do seu séquito rodeavam a espécie de trono onde o tinham sentado e onde ele estava meio adormecido a despeito dos clamores do órgão e dos cânticos de um coro cujas gargantas pareciam particularmente vigorosas. De facto, no meio daquela gente toda, só os Médicis e alguns dos amigos agrupados por trás deles Fiora reconheceu o grande nariz de Angelo Poliziano, as lunetas de Marsile Ficino e os olhos sonhadores de Botticelli pareciam seguir a missa de Páscoa.
No altar, o padre e os seus acólitos continuavam a seguir o lento e solene ritual da missa. Primeiro a Consagração, depois a Elevação. Uma campainha foi agitada com uma energia pouco habitual. Os cânticos morreram, as conversações cessaram, apenas o órgão continuou a tocar em surdina. Como um campo de flores dobrado por um vento súbito, homens e mulheres ajoelharam-se. Diante da mesa santa, cintilante de luzes, o oficiante, erguendo muito alto a hóstia que um reflexo de vitral pintou de vermelho, pareceu ficar maior na sua casula de ouro frisado. Os sinos recomeçaram a tocar e desencadeou-se um tumulto terrível. Fiora ficou lívida.
Não é possível? Aqui não...
Vamos! disse Rocco, desembainhando a espada.
Ela seguiu-o, tendo também desembainhado a sua por mimetismo e forçaram ambos um caminho através da multidão uivante, que se desorientava e perdia a cabeça. Os dois chegaram, assim, ao coro.
Lutava-se em frente do altar, nos degraus do qual o padre, espantado, deixara cair o cálice. O vaso sagrado ressaltou até um grande corpo vermelho e dourado estendido sem vida nas lajes de mármore negro, no meio de uma poça de sangue que aumentava cada vez mais: Giuliano de Médícis, o belo, o alegre, o encantador Giuliano estava, sem dúvida, morto, mas, apesar disso, um homem vestido de burel, em cima do seu corpo, continuava a enchê-lo de golpes de punhal. Rocco atirou-se a ele com fúria e golpeou. Tocado na coxa, o assassino ergueu-se e quis saltar sobre o agressor, mas um violento empurrão para a frente da multidão aterrorizada, afastou o assassino e impeliu o cadáver pelos degraus do coro abaixo, para onde Fiora se precipitou. Entretanto, Rocco, subitamente travado por uma mulher aos gritos que se lhe pendurou no pescoço, via, sem poder fazer nada, desaparecer o assassino na barafunda como uma serpente no buraco de uma rocha.
Ao mesmo tempo que Fiora, recusando a evidência, procurava desesperadamente socorrer o jovem que amara, alguém se ajoelhou junto do corpo e ela viu uma longa mão seca tocar no pescoço do cadáver.
Está para lá de qualquer socorro disse Demétrios Lascaris. Os conjurados fizeram um bom trabalho. Eu tinha reparado, nas primeiras filas, numas figuras de que não estava a gostar nada...
Tu? murmurou Fiora, estupefacta. Mas, que fazes tu aqui?
Podia fazer-te a mesma pergunta... Vem! Não podemos ficar aqui.
De facto, o combate continuava à sua volta. Rocco batia-se contra uma espécie de rufião com o rosto coberto de cicatrizes. Fiora e Demétrios procuraram Lourenço e viram-no. Diante do bonito e pequeno cardeal, tão pálido e trémulo nas suas rendas, o senhor de Florença, com o manto negro enrolado em redor do braço esquerdo, defendia-se corajosamente, apenas com a sua espada de cerimónia, dos dois padres armados de adagas que o tinham assaltado simultaneamente, quando a Elevação fizera curvar as cabeças, ao mesmo tempo que Pazzi e um tal Bandini atacavam Giuliano. O sangue corria-lhe de um ferimento no pescoço, mas ele não parecia abatido e enquanto se batia passo-a-passo no meio dos candelabros caídos, da cera esmagada e dos objectos de culto espalhados, com olhar negro ardendo com um fogo furioso no rosto cor de azeitona, superiorizava-se aos inimigos que o rodeavam e aos que procuravam ainda transpor a balaustrada do coro para se aproximarem dele. Atacados também eles, os seus amigos batiam-se no lado de lá desta e não o podiam ajudar. O perigo era extremo.
A mim, Médícis!... Palie!Palie! berrou ele e o velho grito a reunir da sua família soou pelas abóbadas do santuário acima.
Apenas alguns gritos esparsos lhe responderam. Fiora, aterrorizada, compreendeu que ele estava perdido. Fazia frente a quatro adversários e estava a ficar sem fôlego. Ela ia correr para ele para que, pelo menos, tivesse uma espada a sério, enquanto Rocco acabava com o seu adversário, quando, saltando das cadeiras do coro que tinham escalado, os dois irmãos Cavalcanti chegaram como duas balas de canhão e conseguiram resgatar o amigo. Lourenço pôde respirar, já que, perante aquele socorro inesperado, os dois padres António de Volterra e Stefano, preceptor dos Pazzi abandonaram a refrega visto as suas adagas não serem desafio para espadas de combate. Fiora aproveitou para correr na direcção de Lourenço e, pegando na sua espada pela lâmina, entregou-lha:
Toma! Lutas melhor com isto e eu não me sei servir dela!
Fiora! murmurou ele com uma súbita doçura que aqueceu o coração da jovem, mas gritando-lhe logo a seguir que se afastasse, que se pusesse a salvo. Pelo lado direito do coro, um grupo armado, à cabeça do qual Fiora reconheceu Francesco Pazzi, acorria ao morticínio. Desta vez eram, pelo menos, vinte!
Enquanto Demétrios, que gritara ”Eu encarrego-me dela!”, afastava a jovem, Rocco transpôs a balaustrada com um ligeiro salto e aterrou em frente do banqueiro:
Começo a ficar farto de ti! gritou ele enquanto atacava furiosamente. Mas, saído não se sabia de onde, um belo jovem, soberbamente vestido, interpôs-se entre os dois homens em riscos de ser ferido:
Deixai este cão malcheiroso para mim, messer! gritou ele pondo-se em guarda. O sangue na minha espada pertence a Giuliano. Acabo de a ensopar nele, jurando que o seu assassino morrerá às minhas mãos. O meu nome é Francesco Nori!
Para não lhe dificultar os movimentos, Rocco afastou-se e viu-se perante outros dois adversários.
Força, jovem, mas não falheis e não escorregueis no sangue! Isto está cheio dele... e, por Deus! acrescentou ele trespassando o seu primeiro inimigo façamos com que haja ainda mais.
Mal-grado a ajuda recebida, o combate continuava desigual. O Magnífico fraquejava e o seu peito magro arquejava com um som de forja. Tinham-no empurrado para fora do coro e arriscava-se a ser apanhado por trás.
Para a sacristia, Monsenhor! gritou Demétrios que, deixando Fiora ao abrigo de uma coluna, esgrimia, também ele, com a sua adaga. Fechai-vos na sacristia e esperai por socorro!
Lourenço recuou e, colocando-se entre os homens que se batiam por ele, começou a bater em retirada, não sem abater dois inimigos à sua passagem.
Bravo apreciou Rocco, que era entendedor.
Pelo seu lado, acabava de estender um nas lajes negras. O círculo de assaltantes teve, então, um instante de hesitação e o grupo dos Médicis, aproveitando essa fraqueza momentânea, escapou-se e atingiu, a correr, a nova sacristia cuja pesada porta de bronze, obra recente e admirável de Luca della Robia, se fechou sobre eles. Os seus perseguidores assentaram nela os punhos das suas espadas.
Vem sussurrou Demétrios. Temos de nos pôr a salvo. Não havia mais nada a fazer. Rocco, levado pela batalha, seguira Lourenço para a sacristia cercada pelos conjurados. Chegar à saída era impossível porque a luta continuava ao longo da nave. Acompanhando Demétrios, Fiora desapareceu a seguir a ele por trás do altar, no qual, meio deitado, o jovem Riario, mais morto do que vivo, abraçava, soluçando, o grande Cristo de prata maciça. Ninguém lhe prestava atenção. Ali chegados e abrigados por baixo da toalha bordada, os dois companheiros examinaram a situação. O mais grosso da agitação tinha a sacristia como centro e a nave começava a esvaziar-se, já que alguns dos combatentes escolhiam a fuga. O fluxo retirava, abandonando os despojos: corpos sangrando, dispersos no meio de armas inúteis, de véus de mulheres rasgados e espezinhados, de flores esmagadas e de jóias quebradas que mendigos, rastejando como larvas, se apressavam a recolher. Através das portas monumentais, apercebia-se a praça ensolarada, de onde vinha um barulho terrível, prova de que se lutava ali firmemente. Dir-se-ia que toda a cidade estava ali.
Como é possível que os Médicis tenham vindo sem guarda? sussurrou Fiora. Onde estão Savaglio e os seus homens? Onde está o magistrado de justiça? Continua a ser Petrucchi?
Demétrios encolheu os ombros:
Ninguém imaginaria um ataque durante a missa. Savaglio deve estar no palácio. Quanto a Petrucchi, a acreditar na Vacca que já está a tocar, deve estar na Senhoria com as portas bem fechadas... Vem, sei de um esconderijo melhor do que este para esperarmos o fim disto tudo.
Arrastando a jovem, o grego pôs-se a correr, meio curvado, ao longo da nave lateral, até à pequena escadaria escura que ia dar à Cantoria, a tribuna onde os cantores e os músicos se reuniam em redor do órgão. Esta estava vazia, mas a desordem proclamava a partida precipitada dos seus ocupantes. Os instrumentos de música juncavam o solo, misturados com as partituras.
Sino da prisão. Tocava em caso de incêndio ou de outra catástrofe.
Sobre uma grande estante de bronze estava aberta a música de um motete cujas notas deviam ter ficado estranguladas nas gargantas dos cantores: no entanto, uma bela obra, escrita recentemente por messirejean Ockeghem, mestre de capela do Rei de França e enviado por este a Lourenço para a festa da Páscoa. Tudo aquilo abandonado.
Se houve luta aqui comentou Demétrios foi para quem ver quem chegava primeiro à escada! Sentemo-nos, queres? acrescentou ele com uma humildade súbita. Gostaria de saber por que milagre te encontro em Florença... se me quiseres dizer?
Fiora tirou o seu lenço para enxugar o rosto onde o suor se misturava com a poeira. Há muito que o seu chapéu desaparecera na multidão e a rede, com o peso dos seus cabelos, era difícil de transportar. Os seus olhos cinzentos pousaram-se no grego com uma curiosidade onde havia um certo divertimento. Ele envelhecera durante aqueles últimos meses e os seus olhos escuros estavam cheios de melancolia:
Por que não havia de querer? disse ela docemente, pousando os seus dedos no punho nodoso do seu antigo amigo: O sangue que corre aqui mudou?
Por um momento pensei que sim, mas fui punido por isso, porque transporto comigo arrependimentos que são quase remorsos!
Eu sei em que estás a pensar. Estás a pensar naquela cena infeliz em Morat, onde nos dilacerámos mutuamente na tenda vazia do Temerário.
Exactamente!
Tens de esquecer, Demétrios, como eu própria esqueci. Correu tanta água por baixo das pontes, correram tantas nuvens de um lado ao outro do meu horizonte! Ficaste contente, há bocado, por me veres?
Que pergunta!
Eu também fiquei muito feliz. Foi um pouco de Sol depois dos dias negros que acabo de viver. Portanto, como vês, é a única coisa que conta! Tu és tu, eu sou eu e estamos de novo juntos.
Sem responder mas com os olhos marejados de água, ele pôs os seus grandes braços à volta dela e apertou-a contra o peito. Ficaram assim um instante, sem se mexerem, esperando que a emoção comum se apaziguasse. Nunca antes Demétrios tivera para com Fiora aquele gesto do pai que reencontra a filha que pensava perdida. A sua afeição, até então, evitara os gestos e ainda mais as palavras. Fora necessária aquela prova para que o grego compreendesse o lugar que aquela jovem criatura ganhara no seu coração.
E Esteban? perguntou Fiora com o nariz encostado ao fato negro do médico. Sabes o que lhe aconteceu?
Está aqui comigo. Pensei que também o tinha perdido e depois da maldição que a dama Léonarde me lançou aliás justificada! parti sem bem saber para onde ia.
Por que não ficaste com o duque da Lorena? Ou com o Rei Luís?
Nem um, nem outro, tinham necessidade de mim e eu não gosto de impor a minha presença. Esteban, esse, adivinhou a minha tristeza. Juntou-se a mim na estrada e disse-me: ”E se fôssemos ver do nosso jardim de Fiesole e das tabernas nas margens do Arno?” Então, regressámos para aqui...
Não tiveste medo do mal que nos expulsou daqui, a ti e a mim?
Na verdade, não, porque conheço as pessoas. As multidões, geralmente, são versáteis, inconstantes, fáceis de impressionar e as de Florença, são-no, creio, mais do que as outras. Passaram-se dois anos... além disso, morrer longe ou aqui? Não tinha nada a perder.
Que aconteceu, então?
Nada. O senhor Lourenço recebeu-me como um amigo perdido, alojou-me primeiro em La Badia e depois... em tua casa.
Ainda tenho uma casa, aqui?
Continuas a ter a tua villa de Fiesole, que Médicis te guardou. Falámos muitas vezes de ti, sabes? E eu creio que, a despeito do que sofreste, ele sempre esperou que regressasses, um dia.
E a gente lá do alto, acolheu-te bem?
Acolheu, ainda por cima porque uma pequena epidemia de peste, no Verão passado, permitiu-me devotar-me a eles. Os de Fiesole só me querem a mim e também alguns outros, em Florença... mas, peço-te, chega de falar de mim. É a tua história que eu quero ouvir.
Não tiveste nenhuma visão acerca de mim? Tu, que eras capaz de ver através do tempo e do espaço?
Sim, por vezes. Mas era sempre tudo muito vago, porque estavas longe e a minha amizade por ti interpretava mal o que eu via. Fala, por favor!
O silêncio rodeava os refugiados da Cantoria. Os assaltantes da sacristia já só eram alguns, andando em frente da porta fechada e falando em voz baixa, como lobos procurando como atacar. Não havia mais ninguém na nave, senão os raios crus do sol do meio-dia penetrando profundamente. Do alto do seu refúgio e indo encostar-se à balaustrada, Fiora lançou um olhar para o trágico espectáculo dos corpos abandonados sobre o mármore negro em redor de duas grandes manchas púrpuras: o cadáver de Giuliano já hirto pela morte no seu traje de festa e, ao fundo, a forma quase tão rígida do jovem cardeal aterrorizado, junto da cruz cintilante a que continuava agarrado... Fiora suspirou.
Até este dia, em que tudo vai, talvez, desabar no teu universo, tu, ao menos, encontraste a paz. Eu, por outro lado, quase só conheci espinhos, mas também uma grande alegria: o nascimento do meu filho Philippe.
Uma chama, parecida em tudo com a de outros tempos, acendeu-se nos olhos enternecidos do grego e o seu rosto iluminou-se:
Um filho? Tu tens um filho? Oh, Deus... que maravilha!
Sim. Mas talvez não o torne a ver.
Deixando-se cair de encontro à balaustrada, Fiora relatou tão sucintamente quanto possível o que fora a sua vida desde que, em Nancy, tinham desabado o poder e as armas do último grande duque do Ocidente.
Quando acabou, Demétrios não disse nada: parecia transformado em pedra e como estava, sentado muito direito no seu traje negro sujo de pó, as pernas cruzadas, parecia um daqueles velhos sábios que, acocorados na terra vermelha dos mercados do Oriente, cantam a glória do Profeta, os grandes feitos dos califas ou dos seus cavaleiros lendários e deixam, por vezes, sair palavras vindas de uma antiga sabedoria ou de uma visão do futuro. Parecia tão longe, de repente, que Fiora, inquieta, se debruçou e, pousando-lhe uma mão no ombro, abanou-o docemente.
Demétrios! Ouviste o que eu disse?
Ele não se mexeu e os seus olhos permaneceram fixos num ponto qualquer das paredes brilhantes de Santa Maria del Fiore.
Sim... Mas, Fiora... não creio que o teu marido tenha morrido.
O coração da jovem parou, ao mesmo tempo que a sua garganta se apertava e a sua boca secava:
O que é que tu estás a dizer?
Ele teve um longo arrepio que o sacudiu por inteiro e o arrancou à espécie de transe em que estivera mergulhado. Olhou para ela e teve um sorriso débil:
Crês que estou louco?
Não... Eu conheço a tua clarividência, mas, desta vez, estás enganado, Demétrios! Philippe subiu para o cadafalso sob os olhares de uma cidade inteira, o mesmo cadafalso onde morreram o meu pai e a minha mãe. Dali ninguém desce e Mathieu de Frame sabia o que estava a dizer quando me anunciou a sua execução.
Sim, eu vi o gládio erguido... mas não vi o sangue. Com uma profunda tristeza, Fiora pensou que, na verdade,
Demétrios tinha envelhecido e que o seu espírito, tão brilhante noutros tempos, envelhecia ao mesmo tempo que o seu corpo. Os velhos tempos tinham morrido, perigosos, sem dúvida, ofegantes e apaixonados, mas que encanto tinham tido. Mortos com Philippe.
A voz de bronze da Vacca continuava a ouvir-se e, no exterior, ouviram-se gritos, cavalos a galope e a grande nave de Santa Maria del Fiora encheu-se com o barulho característico de um grupo de soldados em marcha. Ouviu-se uma voz que precipitou Fiora e, mais lentamente, Demétrios à balaustrada:
Abre, Monsenhor! Sou eu, Savaglio! Não tens mais nada a temer e a cidade é tua!
Era, efectivamente, o capitão da guarda de Lourenço à cabeça de uma companhia cujas armaduras vinham cobertas com as cotas de armas bordadas com a flor-de-lis vermelha. Atrás deles regressava a multidão, metade tranquilizada, a outra metade, talvez, arrependida.
A porta de bronze abriu-se. Ao ver aparecer a alta silhueta magra e o rosto sombrio daquele senhor que fora sempre seu amigo, o povo lançou um grito de alegria que agitou os lustres de cobre e entoou como uma tempestade, Um empurrão brusco, vindo dos que estavam no adro e que tentavam entrar, fez avançar alguns guardas e Savaglio teve de mandar intervir as lanças para salvar o seu senhor da morte por sufocação:
Recuai! berrou ele. Recuai todos ou carrego sobre vós! Se não obedeceis, é porque ainda há assassinos entre vós. Portanto, cuidado!
A multidão recuou, abrindo uma passagem pela qual Lourenço e os seus amigos avançaram, saudados por vivais frenéticos, aos quais o Magnífico respondeu com um gesto da mão. Mas, subitamente, o senhor de Florença parou:
Giuliano! exclamou ele. Que fizeram do meu irmão?
Está aqui, Monsenhor! disse Savaglio mostrando, com a espada, um grupo de homens que, naquele mesmo instante, erguia sobre os ombros uma padiola coberta por um pano de seda arrancado, sem dúvida, a uma janela da praça. Sob o tecido púrpura desenhava-se a forma do corpo.
Rapidamente, Lourenço aproximou-se deles e, com um gesto brusco, puxou o pano, que deslizou para o chão:
Quero que Florença veja, com os seus olhos, o que fizeram dele! Erguei-o! Erguei-o o mais alto que puderdes, para que a sua morte grite aos céus por vingança! E que seja feita justiça!
O cadáver apareceu, exangue no seu traje de festa, perfurado por trinta golpes de punhal, de tal modo os seus assassinos se tinham encarniçado sobre aquele que fora o feliz amante de Simonetta Vespucci, um pobre despojo sobre a mão pendente do qual Lourenço, de lágrimas nos olhos, pousou os lábios. Mas quando o triste cortejo se ia afastar, ele deteve-o uma vez mais:
Onde está o cardeal Riario? perguntou ele. Savaglio fez um gesto de ignorância, mas um miúdo, que vestia o traje dos cantores da igreja, saiu de detrás de um pilar e avançou:
Os cónegos do Duomo recolheram-no, ilustríssimo Senhor. Encontraram-no meio-morto de medo diante do altar e levaram-no para o reconfortar. Deve estar na sala do capítulo.
Que o vão buscar!
Que vais fazer? perguntou Politien, inclinando-se para o ombro do amigo. Por que não o abandonas ao seu destino? O povo engole-o...
É isso que quero evitar. A multidão é capaz de o retalhar e isso faria dele um mártir, que o Papa se apressaria a canonizar. E esse badameco é um refém demasiado valioso para o abandonar assim ao furor de uma populaça cega.
Mal ele acabou de falar, um grupo lamentável e vagamente grotesco emergiu do lado direito do coro. Era, amparado por dois cónegos gorduchos que rolavam os olhos assustados, o pequeno cardeal, que fazia uma aparição sem glória. O infeliz acreditava, sem dúvida, que chegara a sua última hora. Mas quando reconheceu o Magnífico à cabeça daquele grupo armado, fez um esforço visível para reencontrar um pouco de dignidade.
Sinto-me... sinto-me profundamente magoado... com este drama que ensanguentou o santo dia da Ressurreição e não quero... ficar aqui mais tempo! Quero partir... imediatamente!
Lourenço olhou para ele do alto da sua estatura com um olhar pleno de piedade:
Nem pensar. A presença da Tua Grandeza neste dia terrível mostrou a todos de onde veio o golpe que matou o meu irmão e que quase me matou a mim. Tu vais ficar aqui, na minha própria casa, até me apetecer.
Isso é violar o direito da Igreja! Eu sou núncio do Santo Padre e, como tal, não posso ser retido contra a minha vontade. Não ousarás, penso, erguer a mão para um príncipe da Igreja?
Eu? Nunca... No fim de contas, tu és livre, como dizes. Vai à tua vida! As portas estão abertas...
O jovem prelado olhou alternadamente para o rosto sarcástico de Médicis, para o corpo erguido pelas cariátides humanas, para as máscaras fixas dos guardas vestidos de ferro e, mais longe, para a multidão, a multidão que rugia e que, fora das paredes da igreja, já berrava a sua condenação: À morte os Pazzi! À morte os Riario! E até à morte o Papa!”
Apesar do calor, o badameco estremeceu sob o seu traje púrpura, baixou a cabeça e murmurou, vencido sem ter combatido:
Entrego-me nas tuas mãos, senhor Lourenço!
Sem acrescentar uma palavra, este fez-lhe sinal para o seguir, ao mesmo tempo que tomava o seu lugar à frente do cadáver e caminhava na direcção da saída. A multidão calou-se e abriu-se na sua frente. Sob o portal, quando o corpo de Giuliano apareceu, o Sol fez cintilar o ouro do seu traje e, mais uma vez, fez-se silêncio. Os sinos do campanário começaram a tocar a finados e o batimento fúnebre caiu sobre a cidade, que parecia reter a respiração.
Subitamente, de uma só vez e como se uma palavra de ordem misteriosa a tivesse percorrido, a multidão enfureceu-se: um monstruoso uivo subiu ao assalto do céu. Um clamor imenso, que parecia sair das entranhas da própria terra. O cortejo fúnebre foi erguido, arrastado por uma maré que, na sua fúria, transformou aquela hora de luto numa hora de triunfo, o morto num vencedor loucamente aclamado e o infeliz núncio, sempre apoiado pelos cónegos, num vencido, ao qual apenas faltavam as correntes e os ferros.
Vem! disse Demétrios para Fiora. Chegou a hora de repousares um pouco.
Para onde me levas? Para o palácio dos Médícis?
Não. Nem sequer nos poderíamos aproximar dele no estado em que as coisas estão. Aliás, Esteban está à minha espera com as nossas mulas naquela taberna de marinheiros de que ele tanto gosta, perto da Senhoria.
E o meu companheiro? Não posso abandoná-lo.
Partiu com Lourenço e os amigos dele. Depois de te levar para Fiesole, regressarei ao palácio e perguntarei por ele. Ao mesmo tempo, direi que regressaste.
Lourenço já sabe. Ele viu-me quando lhe dei a minha espada.
Mais uma razão para lhe falar esta noite. E agora, vamos!
Quando saíram da igreja, semicerrando os olhos por causa da luz cegante, a praça estava vazia, mas quando se dirigiram para a Senhoria, viram que nem toda a cidade seguira o cortejo dos Médicis, já que uma multidão numerosa se acotovelava na vizinhança do velho palácio.
Nunca poderemos passar gemeu Demétrios. No entanto, temos de o fazer se quisermos ir ter com Esteban.
Com efeito, um mar humano, um mar em fúria, uivante e excitado, percorria as poderosas paredes da Senhoria. Alguns tentavam, tolamente, escalar as pedras ciclópicas que constituíam a sua base, na esperança insensata de chegar às janelas lá no alto. Outros agarravam-se aos grandes pregos da porta chapeada a ferro, diante da qual os guardas dos priores, vestidos de verde, faziam os possíveis para os repelir. Todas as bocas se abriam em gritos ferozes e, empoleirado no Marzocco, o leão de pedra símbolo da república, um energúmeno desgrenhado lançava clamores selvagens enquanto agitava o seu gorro. Naturalmente, a Vacca tocava sobre toda aquela algazarra do alto da sua torre vertiginosa, no topo da qual flutuava o estandarte da flor-de-lis vermelha.
É extraordinário! disse Demétrios, que olhava sem compreender. Que faz esta gente aqui aos gritos?
O fim da sua pergunta perdeu-se sob um enorme clamor de alegria: a janela principal do palácio, a que dava para um balcão de ferro, acabava de se abrir e dois soldados, vestidos com túnicas verdes, apareceram, arrastando um homem amarrado que uivava de terror. A multidão calou-se, aguardando o que se seguiria. Foi rápido. Um dos homens de armas mergulhou uma adaga no peito da vítima e depois, enquanto retirava a arma, o seu companheiro agarrou no corpo dobrado, ergueu-o acima da cabeça num esforço hercúleo e atirou-o para a praça, onde ele se esmagou. A multidão afastou-se com uma espécie de suspiro de voluptuosidade...
No balcão, a cena renovou-se e um outro corpo apunhalado foi atirado à multidão, ao mesmo tempo que, entre as seteiras, o estandarte de Cesare Petrucci, magistrado da justiça, era desfraldado para indicar que a força estava do lado da Lei e que chegara a hora das represálias...
Demétrios não teve tempo de perguntar de novo o que significava aquilo, ocupado como estava a desembaraçar-se de um garoto que, a pretexto de se içar para uma janela da casa à qual ele estava apoiado com Fiora, a escalava corajosamente. A ajuda veio-lhe na pessoa de Esteban que, tendo-o visto, usara os cotovelos e os pés para se lhe juntar. Pendurando o rapaz, que berrava e esperneava, num dos porta-archotes da dita casa, o castelhano ia puxar o seu senhor para junto de si para o tirar dali quando viu Fiora.
Oh! Não é verdade!... Estou a sonhar!
Não, meu caro Esteban, sou eu mesma!
Por Dios!
Levado pela alegria, Esteban tomou a jovem nos braços e beijou-a nas duas faces. Mas já o movimento da multidão os empurrava contra a parede, tapando a frágil passagem que ele conseguira abrir para se juntar ao seu patrão.
Não conseguimos mexer-nos, meu rapaz! suspirou o grego. Temos de ficar aqui. Se, ao menos, soubéssemos porquê?
Oh, eu sei... É uma verdadeira história de loucos.
O castelhano deu o seu melhor para explicar o que se passava. Enquanto uma parte dos conjurados assaltava os Médícis na catedral, uma outra, com o arcebispo Salviati de Pisa à cabeça, recebera como missão apoderar-se da Senhoria. Quando os sinos tocaram para a Elevação, essa gente pensou que os dois irmãos estavam mortos e correu a fechar-se no palácio dos priores, ignorando que as portas em questão não se podiam abrir senão do exterior para quem não possuía as chaves. Viram-se, portanto, fechados juntamente com todos aqueles que estavam dentro do palácio. Então, Salviati mandou chamar Petrucci, que estava à mesa e que não gostou nada daquela visita. Este recebeu muito mal o prelado guerreiro, que se embrulhou num discurso confuso. Parecendo não conseguir manter-se de pé, tossia frequentemente, como que para dar um sinal qualquer.
No mesmo momento, o velho Jacopo Pazzi, pensando que os seus assuntos decorriam pelo melhor, desembocou na praça com alguns homens gritando ”Liberdade! Liberdade!”. O magistrado, que já olhava para Salviati com olhos desconfiados, compreendeu o que se passava e como um dos conjurados se aproximasse dele tranquilamente para lhe dar a notícia, agarrou-o pelos cabelos e fê-lo dar várias voltas sobre si mesmo sob o olhar pasmado do arcebispo, antes de o atirar para os braços de um guarda, ordenando a este que o prendesse. Em seguida, gritou ”Às armas! Ajuda!” com tanta força, que os oito priores e todo o pessoal da Senhoria acorreu. Depois, como só os guardas tinham armas e Petrucci acreditava estar perante uma revolução, toda a gente se precipitou para as cozinhas em busca de facas, espetos e picadores, antes de regressar à torre para ali se entrincheirar e esperar os acontecimentos.
Entretanto, os poucos conjurados fechados na Senhoria andavam de um lado para o outro à procura de uma saída. Compreenderam que estava tudo perdido quando chegaram os arqueiros e os servidores dos Médicis que escoltavam os prisioneiros feitos na catedral. Os priores, aliviados, desceram da torre para constituírem um tribunal.
E agora, Petrucci acerta as suas contas, ao mesmo tempo que as de monsenhor Lourenço! concluiu Esteban, apontando para o que se passava no balcão.
Dir-se-ia que a sua justiça era expedita e Fiora teve um arrepio ao recordar-se do ódio com que o magistrado a tratara no momento do escândalo causado por Hieronyma. Em seguida, a jovem desviou o rosto para não ver mais nada, enjoada com o espectáculo.
Mal os homens precipitados do balcão tocavam o solo, a multidão desfazia-os e erguia espetados em chuços, em forquilhas, ou até em paus, aqueles despojos terríveis para os passear pela cidade...
Vamo-nos daqui! suplicou Fiora. É insuportável!
Bem gostaria disse Esteban mas temos de ficar aqui. Como vedes, não podemos passar por esta populaça, que está ébria de sangue e que, dentro de pouco tempo, também o vai estar de vinho!
Na verdade, uns picheis a pingar já começavam a passar por cima das cabeças. Passavam-nos de uns para os outros para encorajar aqueles que decepavam os corpos, não sem antes beberem uma golada ou duas.
Preparava-se um novo acto do drama. Três homens, fortemente amarrados, acabavam de aparecer no balcão. Um deles estava vestido com um longo traje violeta.
O arcebispo Salviati! murmurou Demétrios. Também vão matá-lo sem julgamento?
Mas não estava nenhum punhal à vista. Os três condenados os dois outros eram o irmão do arcebispo e um tal Bracciolini foram pendurados pelos pés no balcão de ferro. Era, então, um modo de execução muito em voga em Florença, porque permitia que o povo gozasse uma longa agonia. E a multidão berrou de alegria ao ver o traje do prelado cair, mostrando as suas pernas e envolvendo-lhe o resto do corpo. Mas como, justamente, lhe escondia o rosto, a multidão avançou um pouco para ver melhor, ao mesmo tempo que alguns reclamavam que içassem Salviati para o pendurar pelo pescoço...
Esteban decidiu aproveitar a ocasião. Agarrou em Fiora pelos braços e arrastou-a consigo. Demétrios fechava a marcha. Na pressa de subtrair Fiora àquela perigosa barafunda, Esteban chocou violentamente contra um homem de uns quarenta anos que, com a sua estatura curta e entroncada, a grande cabeça coberta de cabelos negros, curtos e encaracolados, tinha todo o ar de camponês. Mas possuía uma testa alta, inteligente, uns olhos escuros particularmente penetrantes e o seu traje, se bem que cheio de numerosas nódoas, era de bom tecido. De braços cruzados, observava o espectáculo perfeitamente impassível quando Esteban quase o atirou por terra e este recebeu, em troca, um murro desferido com uma rapidez fulgurante. Rufião malcriado! começou ele pronto a prosseguir o combate, mas Demétrios reconheceu-o: Desculpa o meu servidor, ser Andréa! Se ele te empurrou foi porque temos pressa de abandonar este local. Porquê? Achas, por acaso, médico, que o tratamento é demasiado rude para aqueles assassinos? Pela minha parte... O homem não terminou a frase. O seu olhar acabava de se deter em Fiora e encheu-se de uma doçura inesperada. A jovem também o reconhecera. Era Verrochio, o escultor mais célebre de Florença, um pintor de talento, também, e um fervoroso amigo dos Médicis. Não mudara nada desde a famosa giostra de 23 de Janeiro de 1475, obra-prima do seu talento genial... e onde ela, pela primeira vez, vira Philippe de Selongey. Este dia devia alegrar-te, Fiora Beltrami, porque são os inimigos do teu pai que estão a executar. No entanto, vejo-te muito pálida?
Acabo de chegar, ser Andréa, e não esperava cair no meio de um banho de sangue...
Nunca será suficiente para pagar o de Giuliano! Repara! É a vez de Francesco Pazzi. Apanharam-no em camisa na cama de uma mulher...
Era ele, na verdade. Sob as cordas que o amarravam e os vestígios de sangue dos ferimentos, estava nu, mas não perdera nada da sua impertinência. A gritaria da multidão cobria as imprecações com que ele enchia os carrascos. O povo, exasperado, sabendo que fora ele o primeiro a ferir Giuliano, pedia que lhe fosse entregue. Um instante mais tarde, atado pelos tornozelos, balouçava ao lado de Salviati, demasiado alto para ser atingido por outra coisa que não projécteis. Então, as pedras começaram a chover sobre ele...
Desta vez, Fiora não desviou o olhar. O destino daquele homem cuja mão, alguns dias antes, tocara na sua para a levar para a câmara nupcial, era-lhe indiferente. Ao vê-lo suportar o seu suplício, só tinha um pensamento: onde estaria Hieronyma?
A jovem ouviu, atrás de si, Demétrios perguntar ao escultor o que era feito do velho Jacopo, o patriarca dos Pazzi, se também ele fora preso.
Não. Conseguiu fugir com alguns homens, mas Petrucci mandou outros em sua perseguição. Bem, e vão vinte e seis, se contei bem! São horas de regressar ao meu atelier.
O que me espanta disse Demétrios, rindo é que o tenhas abandonado!
Que havia de fazer? Todos os meus alunos fugiram como um bando de pardais aos primeiros acordes da Vacca e eu vi-me só com a minha argila e os meus pincéis. Fiz como eles, mas, agora, tenho de regressar, porque tenho que fazer.
Ainda a estátua de Colleone?
Claro. Creio, no entanto, que já tenho o tema definitivo, mas acrescentou ele virando-se para Fiora sou capaz de arranjar algum tempo para ti, bela Fiora. Tenho na cabeça um bronze representando Artemisa e nenhum dos meus modelos é digno de me inspirar a deusa. Tenho de falar com monsenhor Lourenço acerca deste assunto.
O artista afastou-se, fendendo a multidão como um pequeno barco teimoso que decidiu atravessar uma barra perigosa. Os outros três seguiram-no com os olhos e depois Demétrios meteu o seu braço no de Fiora. Já te tinhas esquecido de como é Florença, não é verdade? perguntou ele, adivinhando o que lhe ia na cabeça. As piores cenas de um massacre não impedem um artista de pensar na sua obra. Quanto a ti, apesar do que se passou, nunca deixaste de lhe pertencer. Para Verrocchio, estes três anos não se passaram.
Acho que tens razão. Ele falou-me como se nos tivéssemos visto ontem. No entanto, no meio deste drama... A população de Florença gosta do drama, sobretudo quando pode desempenhar um papel. Mal o sangue e os corpos desaparecem, regressa, como se nada tivesse acontecido, ao seu comércio, aos seus amores, aos seus livros, às suas colecções
e canta a doçura da vida com o mesmo entusiasmo sincero que pôs ao transformar-se numa alcateia de lobos para uivar à morte...
Desta vez, talvez dure mais tempo disse Esteban. Florença não vai esquecer, tão cedo, Giuliano.
Sem dúvida, mas amará Lourenço ainda mais ardentemente. Um momento mais tarde, cavalgando tranquilamente as mulas que tinham reencontrado na pequena estrebaria da taberna dos marinheiros em direcção a Fiesole, Fiora pensava que Demétrios não estava totalmente certo. Que as gentes de Florença eram versáteis, descuidadas e se entregavam levianamente a excessos de entusiasmo ou de crueldade, já ela sabia há muito, mas naquele dia procurara, em vão, no meio daquele mesmo furor que em tempos quase a vitimizara, o rosto familiar da cidade de que tanto gostava.
Talvez a idealizasse demasiado no decurso dos grandes desgostos que ela lhe causara? Talvez, também, ela tivesse envelhecido durante aqueles três anos que a tinham marcado indelevelmente? Ou seria porque, simplesmente, apesar de ter sempre querido ser florentina, não o fosse verdadeiramente?
No entanto, uma coisa era certa: o sangue dos Pazzi e dos seus aliados, que ela vira derramar-se, não era suficiente, porque lhe faltava um: o de Hieronyma. Enquanto aquele monstro respirasse sob o mesmo sol, Fiora sabia que não teria tréguas nem repouso.
Então? Não era tipicamente florentino aquele gosto pela vingança, um gosto que sempre transportara em si?
De pé por trás da janela do seu antigo quarto de onde admirara, tantas vezes, os seus jardins em terraço e, mais abaixo, o panorama cativante da sua cidade que se parecia com um ramo de rosas atado pela fita de prata do Arno, Fiora procurava reencontrar a sua alma de então. Geralmente, e quando chegava a noite, o ramo transformava-se num tapete cinzento e azul, picado aqui e ali por uma minúscula estrela, uma das raras luzes acesas nas ruas.
Naquela noite, tudo tinha mudado. Naquela noite, Florença, que se recusava a adormecer, enrubescia com uma vida violenta e instintiva, como se fosse um cadinho de fundidor. Em tempos, do alto da torre de Demétrios, Fiora vira-a com o seu rosto mau e inchando de cólera, mas fora pouca coisa em comparação com o que vira naquele dia, porque, na pessoa de Giuliano, Florença acabava de perder, com o seu Príncipe Encantado, uma parte do seu coração: a mais terna. E na espécie de grunhido abafado pela distância que subia até Fiesole, a jovem pensava distinguir os gritos de morte, as maldições e os gemidos de mulheres em pranto. Queimavam-se, pilhavam-se as casas dos Pazzi e dos seus aliados, das quais, de madrugada, provavelmente, não restaria nada. Era um holocausto de amor que a cidade, furiosa e desesperada, oferecia ao seu filho querido.
Naquele dia, Giuliano juntara-se a Simonetta e talvez tivesse sido melhor? Talvez que, de mão na mão, ambos contemplassem do céu o cenário dos seus amores, mas uma coisa era certa e Fiora sentia-a em todas as fibras do seu ser: Florença nunca mais seria o que fora nos tempos em que eles se tinham amado contra a lei dos homens e contra a da Igreja, visto que a Estrela de Génova era casada mas protegidos pela sua beleza, pela sua juventude deslumbrante e por toda a alegria que faziam nascer à sua passagem. O povo adorava-os como símbolos da graça e alegria de viver de uma cidade excepcional.
Nada seria como antes. Fiora sentira-o ao penetrar naquela casa onde conhecera a maior das felicidades nos braços de Philippe. E isso devia-se menos à decoração, que não era a mesma pilhada no momento do drama, a villa fora mobilada de novo ao gosto de Lourenço do que a uma questão de atmosfera e à qualidade do silêncio.
Aquilo que Francesco Beltrami reclamava muitas vezes, quando se retirava para o seu studiolo, estava vivo, feito de palavras sussurradas, de passos em surdina, de gestos medidos por parte das vinte pessoas preocupadas em não perturbar o mestre no seu trabalho ou no seu repouso. Agora, era o vazio do silêncio... Demétrios ocupava, entretanto, aquela casa com Esteban, mas o que faltava, para além do próprio Francesco, era Léonarde, cuja presença chegava para dar alma a uma cabana de carvoeiro, era Khatoun, a gatinha sempre a ronronar e eram, também, todos os servos, que pareciam, tal como a própria casa, ter ganho raízes na terra de Fiesole, mas que a tempestade dispersara. Agora, era a negra e discreta Samia que reinava na cozinha e na casa com a ajuda de duas escravas, a Samia dos passos discretos que, outrora, fora a governanta do castelo do médico e que, muito naturalmente, retomara o seu lugar.
Fiora gostava muito de Samia, que era doce e ordenada e que a tratara bem quando Demétrios a levara para sua casa no fim do pesadelo, mas a negra nunca pertencera ao seu universo de adolescente feliz e plenamente satisfeita. Só aparecera nos tempos difíceis.
Era quase meia-noite. Porém, a despeito do dia estafante que acabava de viver, consecutivo de outros que o tinham sido menos, Fiora não conseguia dormir. Nem conseguia ficar estendida naquele leito vestido de seda branca como o leito de uma virgem, mas que nunca fora o seu. Preferiu ficar ali, de pés nus em cima de um tapete, olhando, esperando não sabia o quê.
Demétrios, depois de a ter levado a Fiesole, regressara, como prometera, para tentar falar a Lourenço. Regressara ao crepúsculo, trazendo com ele um Rocco meio-morto de fadiga que Samia alimentara abundantemente antes de o mandar deitar-se. Agora, dormia num quarto próximo do de Fiora e, no corredor, podiam ouvir-se, ao passar diante da sua porta, os seus roncos poderosos de homem cansado.
À pergunta de Fiora a propósito do Magnífico, o grego respondera:
Vê-lo-ás em breve... Reencontrar-te foi, para ele, o único conforto para a sua dor, que é profunda. A morte de Giuliano amputou-o de uma parte de si mesmo.
Em seguida, o médico falou dos cuidados com que tinham rodeado o corpo do jovem. Lavado, perfumado, vestido de negro sob a sua armadura de cerimónia, Giuliano, de mãos juntas e olhos fechados, repousava àquela hora na capela do palácio familiar num extraordinário leito fúnebre onde os lençóis eram da mesma cor, semeados de enormes ramos de violetas, das violetas que eram as flores preferidas do seu irmão e que este fazia questão de cultivar nos seus jardins. Aos pés do jovem defunto, o seu elmo emplumado de branco, as suas luvas e as suas esporas de ouro jaziam em cima de uma grande almofada de veludo púrpura.
A capela, em si, era uma obra de arte e Fiora só tinha que fechar os olhos para a rever. Ao longo das suas paredes, um grande fresco, representando o cortejo dos Reis Magos seguindo a Estrela, desenrolava-se, num fausto inaudito de cores de um brilho raro, numa deliciosa paisagem toscana semeada de castelos, ciprestes e arbustos floridos. Cavalos ricamente ajaezados, trajes bordados a ouro, coroas de pedrarias, servos adornados e alegres levando à trela leopardos, galgos da Caramânia, ou transportando presentes. O próprio Lourenço aparecia no fresco, mas sob a forma de um belo adolescente louro e de cabelos encaracolados que muito divertira Fiora, porque ninguém acreditaria
Região da Ásia Menor Meridional
que o belo Rei Mago representava, supostamente, o mais velho dos Médícis. Lourenço fora o primeiro a divertir-se e gostava de dizer que Benozzo Gozzoli, o pintor, gostava tanto da sua pessoa que se obstinava em ver nele o anjo que nunca seria...
Uma outra maravilha enriquecia aquela rica capela: uma adorável Natividade, colocada por cima do altar, obra de um monge despadrado cuja vida tumultuosa escandalizara Florença vinte anos antes. Mas Filippo Lippi tinha tanto talento que lhe tinham perdoado... até o facto de ter dado à Madonna o rosto encantador da jovem freira por quem estava apaixonado.
Sim, aquela capela era bem um quadro digno de receber o corpo do jovem príncipe e Fiora lamentou não poder ir lá rezar, porque não tinha a certeza se as mulheres da casa, Lucrécia, a mãe dos Médicis, e Clarissa, a mulher de Lourenço, estariam dispostas a encontrar-se com uma mulher que fora, em tempos, objecto de escândalo. Teria gostado de oferecer o seu tributo de lágrimas àquele que fora o seu primeiro amor, como o havia sido de Catarina Sforza. Como receberia a mulher de Girolamo Riario a notícia daquela morte que tanto desejara evitar? Conseguiria esconder o seu desgosto? No fim de contas, o próprio Riario faria má cara, porque a conspiração fracassara no seu objectivo principal: abater o senhor de Florença. O senhor de Florença continuava vivo, mais poderoso e mais amado do que nunca!
Subitamente, Fiora apurou o ouvido. O galope de um cavalo ressoava na noite, aproximava-se, aproximava-se mais... Ela ouviu um ruído de vozes: a de Esteban e uma outra, mais surda, que não identificou. Quem poderia ser àquela hora?
Rapidamente, Fiora enfiou por cima da camisa uma espécie de dalmática aberta e sem mangas que usara em tempos e que, por uma espécie de milagre, Samia encontrara, com mais algumas roupas, no celeiro, dentro de uma arca. Com a vela que ardia por detrás das cortinas do seu leito, ela acendeu um candelabro, saiu para a galeria e foi até à escadaria. Ali, deteve-se, erguendo por cima da cabeça o ramo de chamas.
Ao fundo dos degraus, um homem, todo vestido de negro, sem gorro e de mãos nuas, olhava para ela sem dizer uma palavra e esse homem era Lourenço...
A jovem nunca lhe vira aquele rosto enraivecido, sulcado pelas lágrimas e pelo sofrimento, nem aquele olhar ardente, que suplicava e exigia tudo ao mesmo tempo. Na sombra do vestíbulo, por trás dele, o traje sombrio de Demétrios deslizou sem ruído nas lajes de mármore e desapareceu.
Num passo lento, como se temesse que um movimento brusco fizesse desaparecer a aparição, ou a assustasse, Lourenço subiu na direcção de Fiora. Ela podia sentir a sua respiração, podia ver, sob o gibão negro e a camisa aberta deixando ver a brancura de uma ligadura, erguer-se o peito magro. Quando ele chegou diante dela, dominando-a com a sua alta estatura, ela não fez um gesto, não disse uma palavra, levantando apenas a cabeça para ele, oferecendo apenas os seus lábios entreabertos sobre os quais, docemente e fechando os olhos como que para melhor saborear um prazer raro há muito esperado, ele pousou os seus sem a tocar. Foi um beijo longo mas leve, delicado, quase tímido, como se ele bebesse uma flor de um cálice...
Depois, Fiora sentiu as mãos de Lourenço nos seus ombros e essas mãos tremiam. Então, ela repeliu-o com doçura, mas sorriu-lhe ternamente ao ver o seu rosto crispar-se de dor. A jovem segurou-lhe numa das mãos, pegou no candelabro e caminhou na direcção da porta do seu quarto.
Vem! disse ela apenas.
Enquanto, com um gesto maquinal, ele fechava a porta, Fiora foi colocar a luz sobre uma arca e, uma após outra, apagou as velas. O quarto ficou apenas iluminado pela luz da vela que mal dourava o interior das cortinas brancas. Imóvel, Lourenço seguia com os olhos cada um dos gestos da jovem. Então, ela deixou cair por terra o manto sem mangas e desatou a fita da sua camisa, que deslizou até aos seus tornozelos. Um instante depois, ela estava nos braços dele e ele levava-a para o leito onde se deixou cair com ela...
Fizeram amor em silêncio, porque não necessitavam de palavras. O vocabulário da paixão não era para ali chamado, sabiam ambos que a sua união tinha raízes num passado de grande admiração mútua, sem dúvida, mas também numa espécie de instinto, que os levara a unir-se. Lourenço fora ter com Fiora como o viajante perdido que descobre, subitamente, uma estrela no céu negro e Fiora acolheu-o porque sentira, ao vê-lo que, entregando-se, era o único meio de apaziguar aquele desespero mesclado de cólera que lhe envenenava a alma. Além disso, vestida com o nome execrável dos Pazzi, sentia um deleite secreto em dar ao Magnífico aquela noite de núpcias que nunca aceitara ter.
Próximos um do outro em tais condições e sem o socorro de um verdadeiro amor, Lourenço e Fiora poderiam ter conhecido o desaire, ou, pelo menos, uma decepção, mas descobriram, maravilhados, que os seus corpos unidos vibravam em uníssono, realizando um acordo perfeito, tão raro entre amantes. Cada um sabia, por instinto, o que podia agradar ao outro e foi em conjunto que atingiram a voluptuosidade suprema, um prazer de uma intensidade tal que, no fim, cada um foi atirado, ofegante, para o seu lado da seda amarrotada dos lençóis. Após o que, simultaneamente, mas nos braços um do outro, caíram no sono de que ambos tinham tanta necessidade e que não tinham conseguido encontrar na sua solidão.
De madrugada, Lourenço levantou-se. Fiora dormia tão bem que ele hesitou em acordá-la, mas antes de mergulhar de novo no inferno que o esperava, ele precisava de encher os olhos e os lábios com uma força nova. Então, tomou-a de novo nos braços e beijou-lhe o rosto até que ela, por fim, abriu as pálpebras lentamente.
Não queria partir como um ladrão murmurou ele contra a sua boca. E depois... permites-me que regresse... logo à noite?
Ela sorriu-lhe, espreguiçando-se com uma deliciosa sensação de bem-estar:
Precisas de autorização?
Preciso... O que tu me deste foi tão belo que mal posso acreditar.
Desta vez, ela riu-se:
Ao pé de ti, frei Tomás era um crente cego. Ora, diz-me lá como é que aparecemos os dois, nus, neste mesmo leito?
Talvez tenha sido um sonho e eu queira continuar a sonhar? Eu preciso de te amar, Fiora, de receber o teu calor e de te dar o meu. Tu és como uma nascente há muito esperada e que um milagre fez brotar do rochedo mais negro e mais árido. Não beber mais dela seria, para mim, um sofrimento cruel. Continuas a desejar-me?
Ela ajoelhou-se no leito para segurar nas suas mãos aquela cabeça rude, aquele rosto tão feio e tão atraente:
Sim, desejo-te! disse ela numa voz baixa e um pouco rouca, que o fez estremecer. Volta. Estarei à tua espera.
A jovem beijou-o longamente e depois, deslizando rapidamente por entre as mãos ávidas que tentavam agarrá-la, meteu-se debaixo dos lençóis e colocou uma almofada entre os braços...
Mas, por agora, preciso que me deixes dormir!
Quando Fiora voltou a acordar, o céu estava cinzento e a chuva, que fizera tréguas durante dois dias, recomeçara a cair copiosamente. O jardim estava afogado num nevoeiro líquido que diluía os carreiros e desfeava as estátuas, mas a jovem concedeu apenas à paisagem enevoada um suspiro de aborrecimento e um encolher de ombros. Depois de tantos sofrimentos, a noite que acabava de viver provocara-lhe o efeito de um banho de juventude. Lourenço era o amante com que todas as mulheres sonhavam e as suas carícias tinham-lhe lavado o corpo de todas as concupiscências e dores que tivera de suportar. E a jovem nem sequer se interrogou acerca dos sentimentos que ele podia inspirar-lhe: sentia-se bem junto dele e, por agora, era tudo o que contava. No entanto, foi com uma espécie de cólera que repeliu o único pensamento que a importunou: apesar de os móveis não serem os mesmos, fora naquele quarto que Philippe fizera dela uma mulher.
A culpa é tua! gritou ela para aquela sombra que voltava inoportunamente para lhe impor a sua recordação. Não devias ter partido para ir brincar aos grandes cavaleiros junto da tua princesa! Foste tu que instalaste entre nós o irreparável. Eu só tenho vinte anos! Tenho direito à vida!
A jovem esquecera por completo que, pouco tempo antes desejara morrer, de tal modo os encantos do amor podem aprisionar um ser jovem. Com todas as suas forças, queria repelir as contrariedades e a austeridade. Vivera cativa durante meses e eis que a sua prisão acabava de abrir-se para qualquer coisa que se parecia com a felicidade, mesmo que não passasse de uma aparência... E foi com um olhar pleno de desafio que, depois da refeição servida no seu quarto por Samia, foi afrontar o olhar de Demétrios quando se lhe juntou no antigo estúdio do seu pai.
Mas ele conhecia-a demasiado bem para não penetrar nos seus pensamentos e aqueles grandes olhos cinzentos carregados de nuvens de tempestade arrancaram-lhe um sorriso. Fiora, pensou ele, procurava um pretexto para se encolerizar, esperando desembaraçar-se, assim, do constrangimento que sentia. E não se enganou:
Por que esse sorriso? perguntou ela nervosamente e por que me olhas assim? Mudei alguma coisa? Sim, entreguei-me a Lourenço! Até me ofereci a ele! E, logo à noite, ele vai regressar e eu vou-me entregar outra vez a ele!
Tirando as lunetas que usava cada vez mais frequentemente, Demétrios afastou-se da estante sobre a qual abrira um manuscrito hebraico, aproximou-se da jovem e pousou as mãos nos ombros que sentiu ficarem hirtos.
Longe de mim fazer-te qualquer censura, Fiora! O que se passou a noite passada entre Lourenço e tu estava escrito há muito. Ele falou-me muitas vezes de ti, depois do meu regresso e compreendi, sem dificuldade, que tu eras a sua maior dor. Era normal que ele viesse ter contigo do fundo da sua confusão.
Nesse caso, achas que ele me ama?
Tu és como todas as mulheres: simplificas demasiadamente os sentimentos. Lourenço estava como um jardineiro que viu fugir um ladrão com a mais bela flor do seu jardim sem, sequer, lhe dar tempo de respirar. Ontem, a sua flor regressou, mas mais bela do que nunca e exalando um perfume demasiado capitoso para que ele renunciasse a embriagar-se. Quanto a ti...
Quanto a mim?
Cessa de te rebelares assim, Fiora! Tu não cometeste nenhum crime. O amor, simplesmente, devolveu-te o gosto pela vida que tinhas perdido.
O amor? Eu nem sequer sei se amo Lourenço. No entanto, seria tão simples!
Sobretudo, mais cómodo, porque tu foste moldada segundo a moral cristã, a despeito da tua educação platónica e isso deve-lo à nossa querida Léonarde.
Não me fales dela, senão fico doente de vergonha!
Tens razão, fiz mal em falar-te dela. Quanto à vergonha, é uma palavra estúpida, mesmo que não ames verdadeiramente Lourenço. O que tu amas nele, é, antes de mais, o amor que ele te dá e eu sei que ele é uma espécie de... virtuoso. Mas é também a lenda e, bem lá no fundo, continua a existir em ti a florentina, a quem o Magnífico enche o horizonte. Sem o saberes, estavas mais ou menos apaixonada por ele...
Não. Eu amava Giuliano.
Pensavas amar! A prova é que o afastaste muito depressa do teu espírito. Mas esqueces que naquele famoso baile onde nos conhecemos pela primeira vez, vi-te dançar com Lourenço e eu nunca vi um rosto tão iluminado de alegria como o teu nessa ocasião.
É verdade, estava muito feliz... e muito orgulhosa, sobretudo!
Assim como estás orgulhosa, hoje, por o teres acorrentado aos teus pés. Ele veio ter contigo como um pobre que pede caridade, de mãos vazias, nuas e suplicantes, ele, que é todo-poderoso e eu compreendi imediatamente que tu ias enchê-las de riquezas. Ao passo que o terias repelido se ele tivesse vindo como príncipe e como senhor. Acertei?
Desaparecida a cólera, Fiora desatou a rir.
Tu tens quase sempre razão, Demétrios! E que faço, agora? Tenho de partir outra vez...
Ainda não. Aliás, ainda não tens vontade. Deixa que te amem! É o melhor dos remédios, não apenas para o corpo, mas também para o coração, que acaba de sofrer muito. Entretanto...
Ele ficou silencioso por um momento e Fiora sentiu uma inquietação no espírito.
Entretanto?
Conversaram muito, os dois? Ele deve ter-te feito algumas perguntas...
A jovem ficou vermelha como um tomate e, virando-se, foi examinar o livro pousado na estante.
Nós... nem sequer falámos!
Felicitações! disse Demétrios, que não conseguiu impedir-se de rir perante o ar confuso daquele rosto jovem. E, se queres saber, sinto-me feliz por isso, mas haveis de conversar. E agora ouve-me bem e, sobretudo, não lhe digas que te casaram com um Pazzi!
Cario fez tudo para me ajudar.
Sem dúvida, mas Lourenço está demasiadamente ferido para suportar a ideia de que tu uses esse nome! Por maior que seja o seu desejo, afastar-se-ia de ti com horror. E as consequências poderiam ser dramáticas. Compreendeste?
Não tenhas medo! Não lhe direi nada.
Com um dedo cauteloso, ela virou algumas das páginas estaladiças do manuscrito que não era capaz de ler, contentando-se em admirar a beleza um pouco misteriosa dos caracteres.
O destino é uma coisa estranha suspirou ela. O meu parece comprazer-se em fazer-me contrair matrimónios que devo esconder a Lourenço. Lembras-te?
Tens razão, mas a situação é diferente. Farias melhor se esquecesses este último. Não conta, porque...
Porque?
Nada. Não penses mais nele. Pensa, apenas, no homem que vem logo à noite procurar, junto de ti, o refúgio de que tanto necessita.
Mas Lourenço não apareceu. Enviou um bilhete por Esteban, que fora dar uma volta pela cidade. O funeral de Giuliano estava marcado para a manhã seguinte e Lourenço velaria o jovem morto durante aquela última noite.
As notícias que o castelhano trouxe revelaram-se dramáticas. A perseguição aos Pazzi, seus familiares e aliados continuava. Tinham apanhado dois na cidade, dos quais um, disfarçado de mulher, estava escondido na igreja de Santa Croce, três outros tinham sido presos nos campos. Quanto ao velho Jacopo, que os cavaleiros da Senhoria tinham apanhado na estrada de Imola, devia estar a caminho de Florença numa liteira fechada. Iria para o balcão de ferro no momento em que Giuliano descesse à terra.
Outros tinham sido precipitados lá do alto, enforcados ou abandonados ao povo e, diante do Velho Palácio, o número de mortos mais ou menos decepados ascendia a setenta. Mas eram só homens, já que Lourenço proibira formalmente que molestassem as mulheres que, de facto, não tinham participado directamente no assassínio.
E Hieronyma? perguntou Fiora com azedume. Ela não fez nada?
Foi a única que o Magnífico ordenou que apanhassem disse Demétrios.
Como é que ele soube que ela estava cá?
Fui eu que lhe disse ontem, quando fui à via Larga depois de te ter trazido para aqui. Podes estar certa de que andam à procura dela.
Nada de mais verdadeiro continuou Esteban. Interroguei Savaglio, o chefe dos guardas, que orienta a perseguição e ele disse que, se encontrar esse demónio fêmea, o abate mesmo ali, mas já vasculhou as casas todas dos Pazzi, depois o palácio deles perto de Santa Croce e a villa de Montughi. Encontrou muitas mulheres em pranto e com as cabeças cobertas de cinza, mas nenhuma delas era Hieronyma.
Quando ela viu o golpe mal parado, deve ter partido logo para Roma suspirou Demétrios.
É preciso que o consiga. Todas as estradas e caminhos estão guardados e ninguém pode sair da cidade.
Mas ela não estava na cidade. Estava, justamente, em Montughi e, se não a encontraram, é porque conseguiu fugir...
No dia seguinte, à noite, depois de ter confiado os despojos do seu irmão mais novo ao túmulo familiar na Velha Sacristia de São Lourenço, onde já repousavam o seu pai, Piero, o Gotoso, e o seu avô, Cosimo, o Ancião, Lourenço confirmou essa ideia pessimista. Alguns Pazzi tinham conseguido fugir por entre os dedos dos soldados. Evidentemente, António e Stefano, os dois clérigos que o tinham atacado, estavam mortos depois de terem, torturados, entregado todos os seus cúmplices; fora assim que tinham apanhado Montesecco que, entretanto, recuara no último momento perante o horror do sacrilégio. Tivera a cabeça decepada. Evidentemente, Francesco Pazzi recebera o castigo que merecia, mas Bandini, o homem que se encarniçara sobre o corpo de Giuliano, conseguira fugir. Perseguido na estrada de Veneza, conseguira, miraculosamente, desaparecer na natureza.
Mas eu hei-de encontrá-lo afirmou Lourenço. Vá para onde for, mesmo que se refugie entre os Turcos, hei-de pôr-lhe a mão em cima.
Isso perfaz muitos mortos disse Fiora. Tens a certeza de que foram todos culpados?
É evidente que não, mas não pude conter a fúria popular. Mal consegui impedir que tomassem de assalto o meu próprio palácio para extirparem o cardeal Riario...
Que vais fazer dele? Lourenço encolheu os ombros:
Nada! Quando a cidade acalmar, mando-o para Roma com uma boa escolta... ou para Perúsia, porque foi para lá que ele foi nomeado como núncio. Se o visses: morre de medo e eu estou certo de que, se ele tivesse suspeitado do que se ia passar em Santa Maria del Fiore, nunca teria lá posto os pés. Mas, peço-te, minha doce, minha bela, minha preciosa, paremos de falar desse horror! Junto de ti só quero falar de desejo e de amor...
Nessa noite, os dois amaram-se longamente, ardentemente, como se não conseguissem saciar-se um do outro. Porém, Lourenço acabou por encontrar o sono, vencido pela fadiga esmagadora provocada pela tragédia do Domingo de Páscoa. Fiora, essa, não conseguia dormir. Sentada no leito, com os cotovelos nos joelhos, contemplou durante muito tempo o grande corpo moreno, ao mesmo tempo magro e musculado, que jazia a seu lado, parecido com aqueles corpos hirtos que vira em certos túmulos. O esgotamento fulminara-o e ele repousava, os braços e as pernas afastados na cama em desordem, um dos punhos enrolados numa das longas mechas negras da jovem.
Ela tentou puxar os cabelos, mas Lourenço segurava-os com firmeza e ela renunciou para não o acordar. Então, acabou por se deitar encostada a ele depois de ter, por um instante, pousado
Com efeito, O Sultão enviá-lo-ia acorrentado a Lourenço como prova de amizade.
os seus lábios no pescoço ferido, cuja ligadura se tinha deslocado.
Uma vez mais, perguntou a si própria se o amava, sem que o seu coração lhe fornecesse uma resposta. Desejava-o e, nos seus braços, sentia-se feliz, mas quando o silêncio caía entre eles, Fiora não se conseguira impedir de ouvir, no fundo de si mesma, uma voz dolorosa, que era a voz das suas mágoas. Por mais maravilhosas que fossem as horas passadas com Lourenço, não conseguiam abafar a recordação do seu amor por Philippe... por Philippe perdido para sempre a despeito dos vaticínios obscuros de Demétrios. E, sem mesmo se dar conta, Fiora deixou cair abundantes lágrimas em cima do ombro do seu amante adormecido.
Quando ele acordou, ela ainda não tinha conseguido adormecer. Várias ideias giravam na sua cabeça. E enquanto Lourenço se vestia na frescura de uma madrugada chuvosa, ela deu-lhe parte do seu desejo de ir rezar no túmulo do seu pai, na igreja corporativa Ouro de São Miguel.
Neste momento é impossível, meu amor. Não vejo que possas ir à cidade enquanto o povo não acalmar. O espectáculo é abominável. O odor também e eu não gostaria de estar na pele de Sandro Botticelli...
Porquê?
A Senhoria encomendou-lhe uma pintura nas suas paredes, uma imagem dos corpos supliciados que penduraram do balcão. O infeliz passa horas, mal abrigado por um toldo, a fazer esboços.
Pobre Sandro! Ele, que só ama a beleza... Bem, contentar-me-ei em passear em redor da casa. Mas, já agora, podes dizer-me o que aconteceu à nossa propriedade?
Aquela que possuíeis perto de Montughi? Creio que continua a ser tua, ninguém se quer lá instalar e a propriedade está ao abandono.
Por que razão?
A morte de Marino Betti, o assassino do teu pai, fez fugir toda a gente. Os nossos camponeses são supersticiosos, como sabes, e têm um medo terrível dos fantasmas. Mas vai ser preciso tentar fazer qualquer coisa. Talvez, se queimarmos a árvore onde ele foi enforcado e se arrasarmos a casa onde ele morava?
Falaremos disso mais tarde. Não há pressa, de facto...
Temos muito tempo pela frente disse ele ternamente, inclinando-se para a boca da jovem.
Quando ele ia a sair, ela chamou-o:
É melhor não vires esta noite disse ela.
Porquê? perguntou ele, subitamente com um olhar sombrio. Já estás cansada de mim?
Como podes dizer uma tolice dessas? Não, Lourenço mio, não estou cansada de ti, mas, na vida de uma mulher, há noites que ela deve passar sozinha. Compreendes?
Ele riu-se e tomou-a nos braços para lhe cobrir o rosto e o pescoço de beijos.
Seja, criatura impura! Pelo menos, poderás dormir. E a minha mãe também. Por causa do que se passou, ela preocupa-se com as minhas saídas nocturnas. Mas não penses que me manténs à distância durante muito tempo!
Uma hora após a sua partida, Fiora foi ter com Demétrios para lhe dar parte da ideia que lhe viera à mente. Ele escutou-a sem dizer uma palavra e quando ela acabou, perguntou:
Sabes que dia é hoje?
28 de Abril, creio... oh meu Deus! É o mesmo dia!
Sim. Há três anos, saímos daqui para punir um assassino. Crês que Hieronyma se foi esconder na velha propriedade?
É claro! Não há melhor esconderijo do que a casa do seu cúmplice. Sobretudo uma casa defendida pelo terror. Esse demónio nunca teve medo de nada e ainda menos de fantasmas.
Pode ser que tenhas razão, Fiora!... Sim, acho que sim. Em todo o caso, não custa muito ir lá ver.
Se o dia era o mesmo, a noite era bem diferente. Não havia estrelas no céu e a terra não cheirava a perfume! Um céu negro, que deixava cair trombas de água, caminhos alagados, perigosos para quem não os conhecia. Mas Fiora teria reconhecido o caminho de olhos fechados e debaixo de um tremor de terra, de tal modo ele lhe era familiar. A passo na sua mula, cavalgava bota com bota com Demétrios, curvando o dorso sob a grande manta negra com capuz que a protegia do dilúvio, mas a jovem não sentia a chuva e teria atravessado um mar de chamas para atingir o seu objectivo, tal era a certeza de que aquele caminho a levaria, enfim, à sua vingança.
A seguir a ela cavalgavam Esteban e Rocco, armados até aos dentes. O antigo salteador de estradas quisera participar na expedição depois de saber de quem se tratava:
Fico a dever-te dissera ele a Fiora. Graças a ti, vou voltar a ser um verdadeiro soldado e vou servir um patrão que me agrada.
No dia seguinte partira para a sua gruta de San Quirico d’Orcia para ali recuperar os seus homens, que Lourenço incluiria no seu serviço e sob as suas ordens. Era mais do que certo, de facto, que a guerra com o Papa estalaria em breve e o Magnífico dava o justo valor a um grupo de homens bem treinado. Além disso, Rocco recebera dele uma bela soma por se ter batido a seu lado na catedral. Assim, o homem sentia o coração pleno de alegria e, de tempos a tempos, Fiora podia ouvi-lo a assobiar uma ária.
Chegada ao seu destino, encontrou sem dificuldade a vereda bordejada de hera, mais longe a massa sombria dos edifícios da propriedade e o grande pinheiro cuja copa imensa cobria os pilares de pedra à entrada do pátio. O grande pinheiro onde o corpo martirizado de Marino Betti fora enforcado...
Tal como então, os cavaleiros puseram pé em terra a alguma distância e prenderam as montadas aos ciprestes plantados como barreira contra o vento e depois, abafando os passos o melhor possível, subiram na direcção da propriedade.
É grande! sussurrou Rocco. Se queremos explorar tudo, talvez fosse melhor separarmo-nos, mas, à primeira vista, não há ninguém.
Os edifícios abandonados mal se viam na noite escura e não se ouvia nada senão o ranger de uma porta mal fechada, que batia sob a borrasca. Sem responder, os outros três continuaram a avançar, perscrutando aquelas sombras densas que, em tempos, tinham tido tanta vida: o gado, os criados, os cães de guarda, e onde agora só reinava o silêncio.
Subitamente, Esteban agarrou o braço de Fiora:
Olha! sussurrou ele. Ali!... na ponta da casa do intendente! Uma chaminé a fumegar!
Como também já estavam habituados à escuridão, os olhos de Fiora distinguiram rapidamente a delgada espiral cinzenta. O coração bateu-lhe com mais força: uma lareira acesa significava uma presença humana...
Talvez seja um pastor que veio em busca de abrigo disse Demétrios. Ou talvez um viajante perdido? As pessoas são capazes de se abrigar em casa do diabo com um tempo destes.
Não disse Fiora. É ela! Tenho a certeza que é ela... Sem esperar pelos outros, a jovem dirigiu-se para aquela parte da casa, tomando cuidado para não fazer barulho. Ao aproximar-se, distinguiu um débil raio de luz por baixo de uma persiana corrida. Ao lado havia uma porta cuja parte de baixo estava escondida sob a hera que disfarçava qualquer vestígio de passagem...
Fiora conhecia aquela casa de cor por nela ter brincado milhares de vezes quando era criança. Conhecia todas as saídas e todos os desvios. Sabia que a porta daquela divisão, que fora a cozinha do intendente, só tinha um trinco, mas que, do interior, podia ser reforçada com uma barra. Se fosse o caso, a única hipótese de entrar seria arrancar a persiana.
Suavemente, muito suavemente, ela fez força na lingueta, que se abriu sem ruído. Retendo a respiração, a jovem empurrou o batente com medo de sentir a resistência da barra, mas a pessoa que se encontrava no interior devia pensar que estava completamente a salvo devido ao terror que a propriedade abandonada inspirava. E a porta abriu-se...
Sentada num escabelo junto de uma pequena fogueira, uma mulher, envolta numa manta negra com bordados prateados, que Fiora reconheceu imediatamente, comia, com os cotovelos apoiados numa mesa, uma espécie de caldo. A mulher estava de costas para a porta e não a viu abrir-se.
Boa noite, Hieronyma! disse simplesmente Fiora.
A mulher sobressaltou-se tão violentamente que a mesa, cambada, virou-se entornando a escudela. Quando ela se virou, Fiora sorriu, saboreando já o prazer violento da vingança. Era o próprio rosto do medo que tinha diante de si. Hieronyma devia ter sofrido bastante durante aqueles três dias. A sua pele estava cinzenta, as pálpebras cor de chumbo e as olheiras eram enormes. Não restava nada da beleza copiosa que ela expunha tão insolentemente não havia muito tempo, e as suas mãos tremiam. Mas o ódio dava-lhe coragem e Fiora viu retraírem-se as suas pupilas quando ela lançou:
Que fazes aqui?... Não estás em Roma?
É evidente, não te parece? Parti algumas horas depois de ti.
Como fizeste isso?
Não imaginas, certamente, que te vou fazer confidências? Chegou a hora de pagares pelos teus crimes! Demasiados homens morreram por tua causa, mas é sobretudo o sangue do meu pai que clama por vingança. Estou aqui para te matar!
Hieronyma riu-se, trocista.
Matar-me? Com quê?... Ah, estou a ver! Não vieste só? Não tiveste coragem de me defrontar sem testemunhas!
Por que razão havia ela de o fazer? grunhiu Demétrios. Tu és mais forte do que ela e, sobretudo, és mais hábil a manejar uma faca. Além disso, não é ela quem te vai matar. O teu sangue sujar-lhe-ia as mãos!
Não, Demétrios! Eu é que a vou matar! Ela sabe que não nos pode escapar. Eu tenho aqui o necessário.
Fiora tirou da sua cintura uma pequena cabaça e uma taça. O frasco tinha um pouco de vinho e o veneno que Ana, a judia, lhe dera. A jovem encheu a taça e estendeu-a à sua inimiga:
Bebe! O veneno sempre foi a tua arma favorita e é justo que morras pelo veneno...
Nunca! Nunca beberei isso!
Os meus companheiros podem forçar-te. Se te resta a recordação de uma oração qualquer, di-la, mas di-la depressa! Já não tenho paciência para ti! Bebe!
Vai para o diabo!
Antes que Demétrios e Esteban pudessem segurá-la, Hieronyma, com as costas da mão, entornara a taça.
Fizeste mal disse Fiora. O veneno não era de acção rápida. Ter-te-ia concedido tempo para te arrependeres.
Mas já Hieronyma, levada pelo seu ódio furioso, se atirara a ela de garras abertas, visando-lhe o pescoço, no qual os seus dedos se fechariam. Fiora caiu para trás, meio sufocada pelo peso da sua inimiga, que começava a estrangulá-la. Muito perto do seu rosto, ela via aquela figura convulsa, demoníaca, que continuava a escarrar o seu ódio:
Tu é que vais rebentar! Estás a ouvir?... Sua putazinha... Vais reb...
Subitamente, o corpo de Hieronyma inteirou-se, tetanizado, ao mesmo tempo que a sua boca se abria num estertor e os seus olhos se arregalavam. As mãos assassinas abrandaram o aperto. Fiora afastou-se a tempo de não receber o sangue que escorria dos lábios distendidos. A jovem ergueu-se com a ajuda de Demétrios e agarrou-se ao seu ombro para não cair. Hieronyma, de rosto virado para o solo, no seu traje de veludo sujo, não se mexia. Por entre os seus ombros saía a lâmina de uma adaga.
Esteban pôs um joelho em terra para a retirar, mas Rocco deteve-o.
Eu sei que o carrasco recupera sempre o seu machado disse ele mas, depois de ter mergulhado num sangue tão podre, a minha adaga nunca mais ficaria limpa!
Eu dou-te a minha! disse Esteban. Foste mais rápido do que eu.
Com uma infinita ternura, Demétrios puxou Fiora para si, envolvendo-a no seu próprio manto:
Vem, minha filha, regressemos ao mundo dos vivos! Ficaste livre para sempre do veneno da vingança...
Esteban apagou o fogo com o tacão da sua bota e foi o último a sair, deixando a porta aberta. Lá fora, a chuva cessara. As nuvens afastaram-se o suficiente para que uma estrela, uma só, virasse para a terra um olhar curioso. Um momento mais tarde, os cavaleiros afastavam-se. A propriedade abandonada regressava ao silêncio...
Saint-Mandé, 10 de Maio de 1989.