Prólogo O CADAFALSO

Dijon 1457

Quando os arredores da cidade apareceram no fim da antiga via romana, Francesco Beltrami apressou o passo do seu cavalo, que iniciou um trote alegre, como se adivinhasse que a estrebaria já não estava longe, apesar de o dia ainda ir a meio. O pequeno grupo da sua gente e das mulas carregadas adoptou de imediato o mesmo passo.

O jovem mercador Florentino amava a Borgonha, da qual apreciava os vinhos voluptuosos e em particular Dijon, a capital, transformada numa das mais belas cidades da Europa pelos duques, se bem que eles só residissem nela raramente. O olhar de Francesco, habituado desde a infância a procurar a beleza das coisas, reconheceu o esplendor das igrejas cujo gótico resplandecia, as residências nobres e o magnífico palácio ducal, cinzelado como um estojo sob a dupla torre esguia e a flecha, coroada de ouro, da sua Santa Capela, votada a uma ordem de cavalaria: o Tosão de Ouro, célebre em todos os reinos cristãos e não só.

A verdade obriga a que se acrescente que os monumentos não eram o único pólo de atracção para o florentino, pois que um certo albergue da rue Porte-Guillaume desempenhava um grande papel no entusiasmo com que escolhia sempre Dijon como uma das suas etapas quando ia a França ou à Flandres, em negócios. Nesse albergue apreciava as especialidades culinárias, mas também o conforto, igual, se não superior, ao das melhores casas particulares e o acolhimento cortês, sorridente e amigável que o senhor Huguet e a sua mulher Bertillhe reservavam sempre a um dos mais fiéis clientes estrangeiros da Cruz de Ouro.

O frio era intenso naquela manhã de Dezembro. A água gelava nos regatos e nos beirais dos telhados carregados de neve, mas, envolto na sua espessa capa de montar, o capuz enfiado até às orelhas e as mãos metidas em luvas forradas. Francesco sentia-se extraordinariamente bem na sua pele e feliz por estar vivo. Talvez por ser jovem, forte, rico e despreocupado, percorria o seu caminho como um homem seguro de si, do seu presente e do seu futuro, com um tudo nada da satisfação egoísta que caracteriza os celibatários convictos.

Não que fosse feio, ou que as oportunidades faltassem ao herdeiro de Nicolo Beltrami, um dos mais poderosos entre os mestres da arte di Calimala, que, em Florença, estava no galarim. Várias filhas de confrades, banqueiros e famílias nobres detinham os seus olhares naquele rapaz de 30 anos, de rosto aberto, habituado a todos os exercícios do corpo, ainda por cima letrado e cujos olhos negros, vivos, tinham, por vezes, a doce profundidade do veludo. O que não era frequente, porque Francesco desconfiava das mulheres. Naturalmente, tinha uma amante, como todos os homens novos e bem constituídos. Não era sempre a mesma, mudando de vez em quando, mas escolhia-a sempre bela, para ter o prazer de a embelezar e pouco inteligente, para evitar complicações. E sentia-se bem com esses arranjos, o que fazia suspirar o seu pai. O ancião desejava ver o seu palácio urbano e a sua querida villa de Fiesole cheios de crianças barulhentas. Infelizmente, tivera de deixar este mundo três anos antes, sem ter tido essa satisfação. Para Francesco, a ocasião ainda não tinha chegado e Nicolo temia que nunca chegasse. Â sua morte súbita causara no jovem uma dor tão pungente quanto inesperada. Então, encontrara nos negócios um derivativo bastante satisfatório, para que se lançasse neles impetuosamente. Os seus amigos e amantes viam-no menos frequentemente, porque passou a viajar muito tanto para aumentar o seu negócio, como por um gosto novo pelos grandes caminhos, pela descoberta e por uma certa forma de aventura.

Sentia-se, portanto, plenamente satisfeito com a sua sorte e consigo próprio ao aproximar-se da porta de Ouche, que se abria para uma das principais ruas da cidade, atravessando-a de norte a sul. Mas, mal transpôs os grandes fossos onde se detinha, a despeito do gelo, o mau cheiro das fábricas de curtumes vizinhas e a espessa guarita de pedra ocupada por soldados enregelados, teve subitamente a impressão de que um véu de bruma lhe caía em cima e lhe apagava a alegria. Semque percebesse porquê, o seu coração apertou-se, como se se aproximasse de uma ameaça. Talvez porque a cidade não oferecia o seu aspecto habitual...

Diante dele, a pequena praça de onde saía a rua Porte-d’Ouche estava deserta. As lojas estavam fechadas ou em vias de fechar e os raros passantes corriam de dorso curvado, as mãos metidas debaixo das roupas para as manterem quentes, como se fossem perseguidos. Iam todos na mesma direcção e a acreditar no barulho que parecia vir do centro da cidade, para um ajuntamento qualquer. E então, de repente, ouviu-se o toque de finados... As notas fúnebres caíam lentamente do alto campanário da igreja de Saint-Jean, a mais próxima da porta.

Intrigado, Francesco aproximou-se de um dos arqueiros de guarda e levou a mão ao seu capuz guarnecido de pele de marta:

Posso perguntar o que se passa, meu amigo? Onde vai toda esta gente? Há algum tumulto?

Soerguendo com a manopla o seu chapéu de ferro, o homem olhou por um instante para aquele viajante de uma elegância extravagante.

Se fosse um tumulto, tocava a rebate disse ele sem delicadeza excessiva. Aquilo é o toque de finados!

Eu sei reconhecer o toque de finados e vós não respondestes à minha pergunta. Morreu alguém?

Ainda não, mas não tarda muito. Vai haver uma execução na praça Morimont, perto daqui. É para lá que vão todos e vós faríeis bem se vos despachásseis, se não quereis perder o espectáculo...

Eu não gosto de ver morrer pessoas. Só quero chegar à estalagem da Cruz de Ouro o mais rapidamente possível...

O caminho mais curto passa pela praça Morimont. Caso contrário, é preciso voltar a sair e dar a volta a metade da cidade, para entrar pela porta Guillaume. Se eu fosse a vós, ia a direito. Não é uma execução como as outras, a que está em preparação. Mestre Arny Signart, o carrasco, vai acomodar gente da nobreza: irmão e irmã. Parece que dormiam juntos e que a rapariga é bela como os anjos acrescentou o soldado com um suspiro que traduzia a pena que sentia por não poder assistir ao que ele chamava de espectáculo.

Beltrami tirou da sua bolsa uma moeda, que o homem apanhou no ar com uma careta de satisfação, enquanto o florentino chamava, com um gesto, Marino, o seu chefe almocreve, que o acompanhava sempre nas suas viagens.

Que fazemos?

É melhor ir em frente, ser Francesco. Com os nossos animais conseguiremos passar e, de qualquer Maneira, chegaremos mais depressa do que se formos de volta.

Tens razão. Vamos.

Alguns instantes mais tarde, o pequeno grupo chegava ao ângulo sudoeste do vasto espaço rectangular onde se erguia a bela residência dos abades de Morimont, que era o local ritual das execuções em Dijon.

Francesco já tinha transposto aquela praça, habitualmente vazia, com excepção do sinistro aparelho que ocupava o seu centro: uma longa plataforma de madeira, erguida dois metros acima do solo e que suportava, numa ponta, uma forca, na outra uma roda e, ao centro, dominado por uma cruz de pedra, o cepo destinado aos decapitados. Mas, naquele dia, uma maré humana, dificilmente contida pelas alabardas que os soldados de guarda mantinham na horizontal, esforçava-se por se aproximar o mais possível dos pilares do cadafalso. Havia gente em todas as janelas e nos telhados, se bem que escorregadios, das casas, sobre o moinho dos Carmes e, naturalmente, sobre os apeadeiros de cavalo da residência dos abades de Morimont, cujo titular, ausente, se encontrava então na sua abadia, uma das mais poderosas da diocese de Langres.

O toque a finados continuava as suas notas fúnebres e quando o florentino, pouco interessado no espectáculo, tentou fazer passar a sua mula através da multidão para continuar o seu caminho, encontrou uma resistência rabugenta, traduzida por meio de algumas injúrias escolhidas por parte de uma comadre, ordenando-lhe ao mesmo tempo que se mantivesse quieto até que tudo estivesse terminado...

Mas eu não quero saber da vossa execução! exclamou Beltrami com impaciência. Eu só quero seguir o meu caminho. Deixai-me passar!

Mesmo que quiséssemos, não podíamos. Os condenados estão a chegar. Tem calma, meu querido e deixa-nos ver!

Uma espécie de enorme suspiro escapou-se de todos os peitos quando a carroça apareceu, em redor da qual as lanças dos soldados formavam como que uma grade. Todos os pescoços se estenderam e, em vez da gritaria que acompanhava habitualmente a aparição dos condenados, fez-se um grande silêncio. Só se ouvia o sino e o ranger das rodas da sinistra atrelagem. A mulher que tinha injuriado Francesco persignou-se lentamente e murmurou com uma voz estrangulada pela emoção:

Pobre Virgem Santa! Como eles são novos!... Como eles são belos!...

Petrificado, de olhos arregalados e a garganta subitamente seca, Francesco viu os dois jovens avançar para a morte. Com efeito, eram muito jovens: o rapaz não teria mais de 20 anos e a sua companheira devia ter 17, ou 18. Pareciam-se de Maneira impressionante, tão impressionante como a sua extraordinária beleza. Os mesmos rostos de traços puros, os mesmos olhos cinzentos, a mesma distinção e a mesma coragem, porque ambos olhavam firmemente para o grande cadafalso coberto com um pano negro, onde os esperava o carrasco e os seus ajudantes. Apenas os seus cabelos os diferenciavam, porque ele era tão moreno quanto ela era loura. Até as roupas eram semelhantes: ambos estavam vestidos de veludo cinzento-claro bordado a ouro. Ele ia de cabeça descoberta, mas ela levava na cabeça um pequeno chapéu com um véu de renda, o que lhe dava o ar de uma noiva a caminho do altar. Não os tinham acorrentado e eles iam de mãos dadas. Ninguém diria que eram condenados, de tal Maneira pareciam ir a caminho do triunfo. Atrás deles, um velho padre chorava para as mãos coladas ao rosto.

Francesco recordou-se, então, do que o soldado dissera na sua Maneira grosseira: aquelas duas crianças eram irmão e irmã... e amavam-se. Era pelo incesto, sem dúvida, que iam pagar com as suas vidas... Como era estranho! E mais estranha ainda a atitude daquela multidão, que não gritava, não dizia nada, mas onde várias mulheres e homens choravam... De repente, ouviu-se um lamento:

Misericórdia! Misericórdia pela juventude deles!...

Outras vozes se ergueram, numerosas e entre elas ouviu-se a do viajante. Francesco viu-se parte integrante daquela multidão desolada, com a impressão assustadora, ainda por cima, de que a sua vida estava ligada à daquela mulher adorável e que nada, naquele instante, era mais importante do que arrancá-la ao que a esperava... Uma trombeta soou e o preboste, que acompanhava os condenados, gritou do alto do seu cavalo:

Não haverá misericórdia! O senhor duque ordenou a morte!

A multidão rugiu e Francesco sentiu uma esperança. A de ver toda aquela gente lançando-se ao assalto do cadafalso para lhe arrancar as suas vítimas, mas já o rugido esmorecia, se tornava num murmúrio e depois num silêncio consternado. O velho duque Filipe, cognominado o Bom e que tanto amava as mulheres, tinha uma mão pesada. Ninguém, ali, o ignorava...

Já a jovem subia sozinha, corajosamente, na direcção do carrasco mascarado que a esperava, erguendo um pouco o seu longo vestido num belo gesto e recusando cortesmente a ajuda do executor, cuja mão tremia um pouco. Chegada ao alto, respirou profundamente, persignou-se e olhou por um instante para o céu, onde um tímido raio de sol se esforçava por atravessar as nuvens. Em seguida, sorriu para a multidão e tirou o chapéu, que deixou cair. Por fim, ajoelhou-se, afastou ela própria os seus caracóis brilhantes e pousou o pescoço frágil no bloco grosseiro de madeira. Em baixo, com um gesto paternal, o padre agarrara o jovem pelos braços e escondia-lhe o rosto no ombro. A multidão suspendeu a respiração.

Mal teve tempo de ver luzir o aço da pesada espada brandida a duas mãos. Tudo acabara. Os ajudantes do carrasco já se apressavam a arranjar lugar para a próxima vítima. Desajeitado, sem dúvida, ou demasiado emocionado, um deles, ao afastar o corpo da jovem, ergueu-lhe o vestido até aos joelhos, deixando ver umas meias de seda vermelha. A multidão rugiu, indignada. Arny Signart, o carrasco, saltou de imediato. Com toda a força, esbofeteou o desajeitado, que rolou para cima do pano ensanguentado, agarrando-o depois com uma mão e obrigando-o a ajoelhar-se diante do despojo delicado em sinal de arrependimento. A multidão murmurou, satisfeita.

Era a vez do jovem, que se desprendeu dos braços do padre, se ergueu para a plataforma, levantou do chão a cabeça loura para lhe dar um último beijo e se deixou cair de joelhos.

Despacha-te, carrasco! Tenho pressa de me juntar a ela...

Não receeis! Não falta muito.

A espada ergueu-se. Outro relâmpago, outro choque e a cabeça do jovem rolou para perto da da jovem. Estava visto e o povo começou a afastar-se pelas ruas adjacentes no meio de um profundo e pouco usual silêncio. O toque a finados, por fim, cessou. Mas Francesco não se afastou. Pelo contrário: entregando o seu cavalo a Marino, avançou para o cadafalso onde o padre, de joelhos, rezava após ter lançado uns sudários para cima dos corpos mutilados. O carrasco e os ajudantes olhavam para ele, não ousando interromper a oração, quando subitamente um homem ricamente vestido com um manto negro forrado de cinzento se lhes juntou. A sua voz áspera repercutiu-se no ar frio, sinistra como a voz de um corvo:

Então, senhor Signart, que esperais para pegar no que vos pertence por direito? As roupas dos supliciados já não pertencem aos executores?

O padre cessou a sua oração e ergueu para o homem um olhar pleno de terror e dor. Ao mesmo tempo, estendeu as duas mãos por cima dos corpos, num gesto de protecção irrisório, mas tocante:

Respeito pela morte, messire Regnault! Em nome de Deus, que sofreu na cruz, retirai-vos. A vossa vingança completou-se.

Não estará completa enquanto estes miseráveis não forem atirados para a fossa malcheirosa que os espera! Vamos, carrasco, tira o que te é devido! Despe-os!

Sem responder, este tirou, com um gesto enfadado, a máscara que fazia dele o artífice impessoal dos actos de justiça, mostrando um rosto rude e triste, cercado por uma barba cinzenta.

Não, messire, eu não quero estes despojos, por mais ricos que sejam. Não me dariam sorte... nem a mim, nem aos meus!

O homem do manto não teve tempo de responder. Francesco interpôs-se subitamente entre ele e o executor, ao qual estendeu algumas moedas de ouro.

Falastes bem, mestre! Mas, como se trata de uma lei, tomai isto: eu compro-vos os trajes. Podeis enterrá-los com eles, padre!

Que tendes vós com isso? resmungou o homem a quem o padre chamara Regnault. Eu tenho todos os direitos sobre estes dois, que foram, aliás, condenados às penas do inferno.

Visto de perto, Regnault estava medonho, pelo ódio que lhe torcia diabolicamente o seu longo rosto de pele amarela, de pequenos olhos cruéis e penetrantes. Aquele homem transpirava fel por todos os poros da sua pele vil. Só lhe faltava uma língua bífida saindo-lhe da grande boca de dentes enegrecidos, para se parecer com uma serpente. Uma violenta cólera apoderou-se de Francesco, que agarrou o homem pelo manto:

Condenados às penas do inferno? Sois Deus, por acaso?

Esta... esta mulher... foi-me dada em casamento... arquejou o homem meio estrangulado.

Entre nós, a Igreja diz que o casamento vale até que a morte separe os cônjuges. Foi o que aconteceu. Ide-vos!

O jovem ia atirar o homem do cadafalso abaixo quando o padre se interpôs. Docemente, mas firmemente, obrigou Francesco a largar a presa:

Dissestes o que era preciso dizer. Deixai-o ir, agora! E vós, Regnault du Hamel, abandonai esse ódio e pedi perdão ao Todo-Poderoso!

Massajando a garganta dorida, a personagem desagradável, depois de um olhar mortífero lançado a Francesco, desceu as escadas. Quando chegou lá abaixo, considerando-se suficientemente afastado daquele inimigo inesperado, mostrou-lhe o punho, zombando:

Eu não sei quem tu és, estrangeiro, mas, a despeito do teu ouro, não poderás fazer com que esta fêmea não seja atirada para a fossa dos pestilentos com o seu cúmplice. Os soldados encarregar-se-ão disso!

Com efeito, o sargento que assistira à execução reunia os seus homens em redor da carroça que mandara avançar. Com o olhar, Francesco interrogou o padre. Este abanou a cabeça com ar desolado:

Infelizmente, ele tem razão! Estas pobres crianças não têm direito a uma sepultura decente. A sentença foi cruel a esse ponto. E eu até tive muita dificuldade para obter o direito de as acompanhar. Mas, mesmo que mo tivessem proibido, teria vindo na mesma. Não sabeis... mas eu vi-os nascer, tanto um como o outro.

Então, eu vou convosco. Deixai-me ajudar-vos.

Por que razão? Eram vossos conhecidos?

Vi-os hoje pela primeira vez, mas sinto que tenho de o fazer. Há qualquer coisa que me leva a fazê-lo.

Receio que vos possais arrepender quando souberdes porque foram condenados e qual foi o seu crime.

Francesco encolheu os ombros.

Eram irmão e irmã... e amavam-se... demasiado! Disseram-me. Mas, estamos a perder tempo.

Entre os dois envolveram os corpos supliciados nos seus sudários e levaram-nos para a carroça. De repente, Francesco apercebeu, abandonado sobre o pano negro, o pequeno chapéu de renda; agarrou nele. Ao sentir nas mãos aquele ornamento encantador que ainda há pouco adornava a beleza delicada da jovem morta, sentiu as lágrimas chegarem-lhe aos olhos. Rapidamente, escondeu-o junto do coração, abrigado pelo manto e juntou-se à sua gente que continuava à espera na entrada da praça.

Esperai-me no albergue da Cruz de Ouro disse ele a Marino. Eu já lá vou ter. Nem uma palavra acerca do motivo da minha demora!

Não me conheceis? Ninguém dirá nada. Tendes a certeza que não precisais de ajuda?

Tenho. Tenho uma arma e ouro. É mais do que o necessário para me defender em caso de necessidade.

Levando o seu cavalo pela rédea, Francesco seguiu a pé a carroça, na qual o padre, sentado entre os dois corpos, retomara as suas orações. Transpuseram a porta de Ouche e os fossos e depois obliquaram na direcção de uma construção meio arruinada, que se erguia não longe da estrada de Beaune, entre as antigas fábricas de curtumes e um campo de estrume. O local era deserto e malcheiroso; no entanto estava lá um homem em pé, apoiado a uma enxada, o nariz e a boca escondidos por um lenço atado no pescoço. A seus pés, o buraco que tinha escavado na terra viscosa punha uma mancha negra na paisagem nevada. Foi na direcção dele que se dirigiu o pequeno cortejo que o senhor du Hamel seguia a distância. Ao ver o buraco lamacento, no qual apareciam fragmentos de ossos, Francesco não pôde reter o seu desgosto: aproximou-se do sargento.

Será mesmo impossível encontrar outra sepultura, em vez deste buraco infecto? perguntou ele levando a mão à bolsa. O soldado reteve o gesto esboçado:

Não, messire. O que pedis é impossível, porque isto foi ordenado pela justiça. É necessário que ela seja cumprida, mas acrescentou ele em voz baixa senti-vos feliz por os enterrarmos. Se tivéssemos escutado o marido, estes infelizes teriam sido pregados pelos sovacos ao patíbulo que vedes além, à beira da estrada, para apodrecerem lentamente ao vento, à chuva e sob as pedradas que os miúdos atiram sempre sobre os corpos que têm este triste fim.

Francesco fez sinal de que tinha compreendido e recuou. Alguns instantes mais tarde, aquela fossa terrível fechava-se sobre os despojos daqueles dois seres jovens e belos que teriam podido viver longos anos felizes e despreocupados, se o amor não lhes tivesse estendido uma das suas mais terríveis armadilhas: a paixão contranatura.

Subitamente, o céu pareceu mais cinzento a Francesco, como se acabasse de perder uma parte da sua luz e o frio tornou-se mais áspero. O jovem virou-se para o velho padre, que apertava friorentamente o seu manto negro em redor dos ombros magros:

Gostava de falar convosco, padre. A minha gente espera-me na Cruz de Ouro. Vinde comigo, temos os dois uma grande necessidade de recuperar as nossas forças.

O velho homem quis recusar, mas não tinha forças para contrariar o florentino, uma vez decidido a qualquer coisa. A despeito dos protestos, viu-se sentado em cima do cavalo daquele amigo caído do céu, que segurou nas rédeas e se dirigiu a passo para a cidade, para onde já regressavam, também, os soldados e a carroça. Mas, ao passarem por Regnault du Hamel, que parecia esperar a sua partida, o jovem escarrou-lhe violentamente aos pés. Nunca sentira tanta vontade de matar... nem semelhante asco por um ser humano. No entanto, uma hora antes, nunca tinha visto aquele homem. Fora preciso aquele encontro, na volta do caminho, com um rosto de anjo caminhando para o martírio, para que o seu próprio universo se tornasse num pesadelo, onde, de Maneira inexplicável, se viu perfeitamente à-vontade. Aquela gente tinha invadido, com o seu amor e sofrimento, a sua existência agradável de epicurista e diletante um pouco egoísta. E nem sequer sabia os seus nomes...

Eles chamavam-se Jean e Marie de Brévailles e eu chamo-me Antoine Charruet, sou abade da aldeia e capelão da família. Como vos disse ainda há pouco, vi-os nascer e eram-me tão queridos como se fossem meus próprios filhos. A infância deles desenrolou-se no castelo paternal, uma bela e rica mansão que domina as águas perigosas do Doubs. Os pais deles, Pierre de Brévailles e Madeleine de la Vigne vivem nele como proprietários rurais e como fiéis súbditos do nosso duque Filipe que Deus guarde, se bem que não ouça sempre os apelos de misericórdia...

O padre benzeu-se e depois, pegando na sua taça, bebeu algumas gotas de vinho. Ele e Francesco tinham acabado a refeição que o florentino mandara servir no seu quarto, onde um bom fogo fazia com que ali reinasse um calor agradável. O rosto do ancião, tão pálido ainda há pouco, ganhara cor, mas a sua mão tremia e era visível que as lágrimas não estavam longe.

Preferis repousar um pouco, padre? perguntou docemente Francesco. Receio que este relato vos seja ainda mais penoso.

Não. Não, pelo contrário, faz-me bem falar deles... tentar... explicálos a alguém que tenha compaixão... Os Brévailles tinham ao todo quatro filhos, dois rapazes e duas raparigas. Jean, o mais velho, era três anos mais velho do que Marie, mas desde tenra infância que era possível ver que uma profunda afeição, exclusiva e tenaz os unia. Os pais, assim como eu, não se preocupavam, limitando-se a sorrir. Chamavam-nos «gémeos», porque se pareciam de Maneira espantosa e porque, entre todos os irmãos, eram de uma beleza extraordinária, como pudestes ver, messire. Foi um capricho da natureza e nós víamos nisso a razão para a preferência de Jean por Marie e de Marie por Jean. Os Brévailles sentiam-se orgulhosos da sua beleza e citavam como exemplo a ternura mútua, sem que por um instante pensassem que esse amor se tornasse, com os anos, menos puro. Aliás, que pais teriam semelhante ideia?

É difícil de imaginar, sem dúvida, mas há exemplos. Falou-se de um conde de Armagnac e da irmã...

Quando se pertence a uma grande família, talvez se pense que se está acima das regras da moral e da opinião pública! Entre os Brévailles, que vêm de uma boa nobreza, não seria possível permitir um tal escândalo. Quando Jean fez 13 anos, o chanceler da Borgonha, mestre Nicolas Rollin, que é amigo da família, conseguiu que ele entrasse como pajem para o serviço do senhor conde de Charolais, filho do duque Filipe, a fim de ali aprender ao mesmo tempo o Manejo das armas e as Maneiras da Corte. Messire de Brévailles, que tinha renunciado às armas depois do cerco de Compiègne, onde foi gravemente ferido, ficou muito feliz com aquela circunstância, que ia permitir ao seu filho aprender a nobre arte da cavalaria sob as ordens de um príncipe fervoroso discípulo de tal arte. E Jean partiu para Lille.

«Não é possível descrever o que foi o desespero de Marie. O seu desgosto pela partida do irmão foi tão violento que a sua mãe temeu, por um instante, pela sua razão e a criança adoeceu por um período de vários meses antes de recuperar a saúde.

»A ausência de Jean durou quatro anos. De pajem passou a escudeiro de monsenhor Carlos e quando em 1455 regressou a casa para passar o Natal com os seus, todos puderam ver que trazia uma expressão extremamente altiva. Quanto a Marie, que aprendera o canto, a dança, a música e a economia doméstica, a sua beleza florescera com um tal brilho, que os pedidos de casamento começaram a afluir. Ela recusava-os todos, dizendo que não pretendia abandonar a casa dos seus pais, onde se sentia plenamente feliz.

”Quando Jean regressou, as coisas começaram a tornar-se graves. Pela minha parte, tive um pressentimento, face à atitude daquelas duas crianças. A partir do momento em que se reencontraram, nunca mais se separaram um do outro. Sentavam-se sempre um ao pé do outro de mãos dadas. Multiplicavam as ocasiões para se isolarem e davam juntos, grandes passeios a cavalo. Uma noite... aconteceu o drama... e lamento dizer que fui eu o culpado.

Antoine Charruet afastou-se da mesa e foi sentar-se perto do fogo, para o qual estendeu as mãos magras que tinham recomeçado a tremer.

Nessa noite, Jean tinha ensinado a Marie uma dança da corte muito graciosa, sem dúvida, mas na qual as figuras, plenas de languidez, não eram para ser dançadas entre um irmão e uma irmã. Além disso, eu tinha reparado nalguma perturbação, um certo frémito, quando os olhos de ambos se encontravam, ou quando as suas mãos se tocavam. Tudo aquilo fez com que me mantivesse acordado durante toda a noite. Sentia crescer o meu nervosismo e acabei por compreender que não conseguia conciliar o sono enquanto não falasse com Jean. Era preciso convencê-lo a regressar para junto de monsenhor Charolais logo na manhã seguinte. Peguei, portanto, na minha vela e dirigi-me ao seu quarto, que se situava numa das torres, quer dizer, afastado dos da família.

Ao chegar, vi que um pouco de luz se filtrava por baixo da porta e fiquei contente, porque evitava ter de o acordar. Muito suavemente, abri a porta, pensando surpreendê-lo a ler, ou a escrever. Infelizmente, o que vi era ao mesmo tempo terrível e de uma beleza fascinante: no grande leito de cortinas vermelhas, à luz doce de uma vela, Jean e Marie amavam-se...

«Não sei o que teríeis feito no meu lugar. Eu devia, sem dúvida, ter entrado pelo quarto dentro e arrancado Marie àquele leito e àqueles braços, nos quais ela parecia gozar uma felicidade indizível. Mas não pude. Por um instante, contemplei-os, perdidos naquele amor que os enaltecia... e depois fechei a porta docemente, muito docemente e voltei para o meu quarto, onde rezei durante toda a noite. Aliás, o mal estava feito e umas horas a mais ou a menos não teriam mudado nada.

»De madrugada, fui ter com Jean, que, desta vez, estava só. Disse-lhe o que tinha visto e ordenei-lhe, em nome do Senhor, que abandonasse imediatamente aquela casa, que ele não tivera pejo em macular. Ele não protestou. Disse apenas: «Nós amamo-nos e nada nem ninguém no-lo impedirá». No entanto, aceitou partir. Se tivesse recusado, eu teria sido obrigado a prevenir o seu pai e ele sabia-o.

»A Marie, mergulhada em lágrimas por aquela partida tão brutal, não disse nada, mas fui ter com os pais dela e dei-lhes a entender que era tempo de casar a sua filha. Para minha surpresa, encontrei-os decididos a isso. Eles também não tinham gostado da dança de corte... E, dessa vez Marie não teria o direito de recusar o marido que lhe iriam oferecer.

»A infelicidade quis que, entretanto, eu fosse obrigado a ausentar-me por algumas semanas, mas parti tranquilo, persuadido de que no meu regresso as coisas já teriam reencontrado o seu curso normal. Na minha ideia, pensava que um marido jovem, belo e apaixonado faria esquecer a recordação de Jean. Acabara por me persuadir que a cena de que fora testemunha não passara de uma loucura passageira, uma criancice grave. Eles eram tão jovens, os dois!

«Quando regressei, Marie estava noiva e, contrariamente ao que esperava, fiquei consternado. Por não sei que aberração, Pierre de Brévailles, a despeito dos pedidos da sua mulher, decidira escolher Regnault du Hamel. Vós viste-lo, não preciso, portanto, de vo-lo descrever. Limito-me a dizer-vos que, como conselheiro e tenente da chancelaria com assento em Autun, bastante rico e com grandes e poderosas relações, era um genro desejável. Além disso, tomava Marie sem dote, o que contara na decisão de Brévailles. As suas finanças, soube-o então, não iam muito bem... Face a tudo isto, o amor não tinha grande peso.

«Nunca celebrei um casamento tão dramático. Foi preciso, literalmente, arrastar para o altar uma Marie desfigurada pelas lágrimas, ao ponto de eu quase me recusar a celebrar. Mas du Hamel tinha um primo, cónego em Saint-Benigne de Dijon, que se prontificou a substituir-me. Abençoei, pois, aquele casamento e transportarei essa culpa comigo até à minha última hora.

”Porque, mal Marie entrou na casa de Autun, onde residia o seu marido, a sua vida transformou-se num inferno. Du Hamel mostrava-se de uma avareza sórdida e de um ciúme maníaco. Marie, submetida a uma incessante espionagem, vivia fechada, mal alimentada e privada de tudo ° que pode tornar agradável a vida de uma jovem. O nascimento de uma rapariga, nove meses mais tarde, não melhorou as coisas. O marido queria um filho e responsabilizou a mulher por aquilo que ele considerava uma ofensa. Além disso, mais grave ainda, deu ouvidos a certos mexericos acerca da natureza real dos sentimentos que Marie alimentava pelo seu irmão.

Onde tinha ele ouvido isso?

Vá-se lá saber. Uma criada despedida, um criado subornado ou talvez uma testemunha daqueles longos passeios que as duas infelizes crianças davam juntas, muitas vezes. Mas, a partir daí, Regnault du Hamel não poupou a sua mulher a injúrias e a maus tratos. Espancada, desprezada, desonrada, Marie resistiu o melhor que pôde, mas, quando du Hamel atingiu o cúmulo da maldade ao levar-lhe a filha, a coragem abandonou-a. A algumas léguas da sua prisão estava a casa da sua infância e o tecto que abrigara a sua demasiado curta felicidade. Uma noite, aproveitando uma breve ausência do seu carrasco, Marie conseguiu fugir com a ajuda de uma jovem criada, que tivera piedade dela. Correu sem parar até casa dos seus pais, ávida por um refúgio, no qual o seu corpo, martirizado e coberto de vis nódoas negras, pudesse encontrar aconchego. Ignorava que Jean, inquieto há meses pela falta de notícias da sua irmã, acabava de chegar. E o drama desencadeou-se. Ao reencontrarem-se, os dois jovens reencontraram também, intacto e até, talvez, reforçado, aquele sentimento monstruoso que os empurrava um para o outro e os Brévailles tiveram medo. Com súplicas e depois com ameaças, tentaram persuadir Marie a regressar a casa do seu marido. Madeleine de Brévailles estava com o coração despedaçado perante os sofrimentos da sua filha, mas du Hamel era seu marido: tinha sobre ela todos os direitos e ninguém podia fazer nada.

Jean, esse, lutou pela irmã. Foi preciso retê-lo à força, para não correr a Autun e matar o odioso marido. De qualquer Maneira, opôs-se fortemente a que Marie regressasse à casa conjugal e os pais deixaram de saber o que fazer: Marie ameaçava matar-se se a enviassem de volta. Foi nesse momento que chegou uma carta de Regnault. Uma carta extremamente violenta e agressiva. A terrível personagem acusava formalmente Marie de relações incestuosas com o seu irmão e anunciava que ia apresentar queixa na justiça ducal. Jean e Marie amedrontaram-se. Desejando colocar a maior distância possível entre eles e o seu inimigo e temendo atrair graves problemas aos seus pais, fugiram. A sabedoria teria exigido que eles fossem cada um para seu lado: ele para junto do conde de Charolais, que abandonara sem autorização e ela para se fechar num qualquer convento afastado. Mas não tiveram coragem de se separar, nem de resistir à sua paixão. Foram para Paris, onde, confiantes no tamanho daquela cidade, se instalaram num albergue vizinho do Louvre. Ali viveram sob nome falso como marido e mulher. Lamento dizer que conheceram ali, na sua inconsciência, seis meses de uma felicidade indizível...

Nunca se deve lamentar a felicidade disse Francesco com gravidade. É uma coisa muito rara!

Mesmo quando o preço é assim tão caro?

Se vos referis à morte deles, creio que vos enganais. Eu vi-os.

Pareciam ir para o Paraíso. Sabiam que mais nada os poderia separar. Iam para a eternidade...

Sem dúvida suspirou o padre Charruet mas o que ignorais

é que essa felicidade não tardou a dar fruto. Essa notícia fê-los medir o abismo que se abria entre ambos e o seu universo habitual. Com a coragem de tal tipo de almas, não recuaram perante as consequências e sentiram-se, pelo contrário, mais unidos no seu crime como nunca. Pensaram então em fugir para Inglaterra para poderem viver livremente, mas o dinheiro começava a faltar-lhes... e depois, sem que se apercebessem, o destino apertava as suas malhas. Acreditavam-se bem escondidos na grande Paris e ignoravam que, com ouro, tudo se consegue. Regnault du Hamel, depois da queixa depositada na justiça ducal, gastara muito dinheiro a despeito da sua avareza. Pagos por ele, alguns espiões descobriram a pista dos fugitivos e arranjaram cumplicidades. Não se podia, com efeito, prendê-los em pleno dia, porque não estavam na Borgonha. Du Hamel pagou o que foi preciso e uma noite um bando de homens mascarados invadiu o albergue, pegou nos dois jovens e atirou-os para uma barca, que subiu o Sena até um ponto onde esperavam uns cavalos. Depois de uma viagem terrível, no decurso da qual Marie, grávida, pensou morrer cem vezes, as infelizes crianças foram trazidas para aqui, onde as esperava, não apenas du Hamel triunfante, mas também a prisão... Com efeito, aquele homem não queria apenas a morte dos culpados, queria também o aviltamento público, queria vê-los acorrentados juntos numa fogueira, no meio de uma multidão brutalmente alegre e insultuosa... E, de facto, eles foram condenados. O marido arranjou mais testemunhas do que as necessárias, um punhado de miseráveis que, contra um pouco de ouro, juraram que tinham visto cem vezes Jean e Marie entregarem-se um ao outro... Aliás, Marie estava à espera de um bebé. Corajosamente, na esperança de salvar o seu irmão, ela afirmou que se tinha entregado a um amor de passagem, mas isso não serviu de nada. A sentença foi apenas adiada até ao nascimento da criança.

«Então, eu supliquei a Pierre de Brévailles que fosse ter com o senhor duque, pedindo que, pelo menos, lhes poupassem a vida e que os encerrassem em conventos. Mas ele recusou brutalmente. O seu orgulho fora ferido, julgava-se aviltado, desonrado e creio bem que passara a odiá-los. Dame Madeleine, a sua mulher, juntou as suas súplicas às minhas, mas também sem resultado. Então, partimos os dois para Bruxelas. A diligência recusada pelo pai era aproveitada pela mãe com todo o seu amor intacto. Em Lille, ao sair da capela, atirou-se aos pés do senhor duque, que lhe virou as costas sem sequer a ouvir. Aquele velho bode, que sempre ofendeu Deus com a sua luxúria desenfreada, talvez tivesse tido piedade de Marie se ela tivesse sido sua amante. Mas só mostrou desprezo por aquela mãe desesperada - lançou o padre numa súbita explosão de cólera que fez sobressaltar o seu ouvinte.

- Que dissestes, padre?... Subitamente corado até à coroa de cabelos brancos, o padre Charruet teve um tímido sorriso:

- Nada! Perdoai-me, meu filho! Deixei-me levar por um resto da cólera que senti perante as lágrimas de dame Madeleine, abandonada de joelhos no meio de uma galeria sumptuosa e sob os olhares trocistas dos cortesãos. Levantei-a do chão e saímos juntos, mas ela quis ainda tentar outra coisa.- Jean tinha servido, durante muito tempo, o jovem conde de Charolais, que o tratara amigavelmente. Talvez aquele jovem príncipe, que diziam de costumes puros, se deixasse tocar pela piedade? Jean dizia, muitas vezes, que o seu senhor lhe queria bem...

- E então?

- Dessa vez, fomos recebidos, mas a esperança só durou um instante. O conde Carlos tem horror ao deboche que reina na corte do seu pai e esforça-se por fazer reinar no seu séquito a dignidade e a decência. Além disso, é um príncipe orgulhoso e Jean abandonou o seu serviço sem lhe pedir autorização. Encontrámo-lo demasiado severo: «Os culpados de semelhante crime não merecem perdão nem misericórdia, porque pecaram ao mesmo tempo contra o Senhor Nosso Deus e contra a natureza. A justiça deve seguir o seu curso...» As lágrimas de uma mãe desesperada não encontraram o caminho daquele coração couraçado e tudo o que obtivemos foi que a sentença fosse mudada: a abominável fogueira daria lugar à decapitação pela espada, única morte digna de um fidalgo. E agora, já sabeis tanto como eu...

- Ainda falta qualquer coisa, padre. A jovem estava grávida, disseste-lo. Ela conseguiu trazer a criança ao mundo?

- Conseguiu. Na prisão, há cinco dias, Marie deu à luz uma menina, que foi levada logo no dia seguinte para o hospital da Caridade, para onde vão todas as crianças abandonadas.

- Abandonadas? - insurgiu-se Francesco - mas, essa pobre pequena não tem avós? Os Brévailles não podem tomar conta dela? Parece-me a mim que ela tem duplamente o sangue deles?

- Por nada deste mundo messire Pierre quer essa prova sob o seu tecto e dame Madeleine, que foi duramente repreendida aquando do seu regresso da Flandres, não ousou afrontar a cólera do seu marido. O que ela tenta conseguir, de momento, é que lhe confiem a criança que Marie deu a Regnault du Hamel.

- Então e a outra pequena? Que vai ser dela?

O velho padre afastou as duas mãos, no meio das quais o vazio traduzia a sua impotência:

- Não sei. No entanto, antes de morrer, Marie suplicou-me que tomasse conta da sua filha. Não sei qual vai ser o seu destino. As senhoras do asilo acolheram-na com alguma repugnância.

- Como assim?

- Um filho do incesto é objecto de horror, produto de uma coisa diabólica. Nenhuma ama-de-leite quis encarregar-se dela. Dão-lhe leite de cabra; morrerá dentro em breve, se já não morreu. Eu podia encarregar-me dela, mas onde arranjar uma mulher que me ajude? Moro em Brévailles e não tenho outra casa...

Francesco deixou explodir a sua indignação:

- As pessoas daqui parecem-me muito pouco cristãs. A criança foi baptizada?

O padre Charruet fez sinal que não:

- Eu queria fazê-lo; mas não me deixaram aproximar e...

- Isso é o que vamos ver! Conduzi-me a esse asilo onde as crianças inspiram repugnância!

- Que quereis fazer?

- Ides ver! Eh lá, Marino! Manda atrelar dois cavalos, ou antes três, e prepara-te para nos acompanhares.

- É uma loucura! Em breve será noite, as portas vão fechar-se e o hospital está à entrada da estrada de Beaune - disse o padre.

- É precisamente por isso que devemos apressar-nos!

Um instante mais tarde, os três homens retomavam a direcção da porta de Ouche. Com efeito, o Hospital da Caridade, dedicado ao Espírito Santo, erguia a sua construção mesmo ao lado do rio Ouche, perto do antigo hospício dos empestados. Era um velho edifício, fundado em 1204 pelo duque Eudes III para os peregrinos, os pobres doentes e as crianças abandonadas. Umas religiosas do Espírito Santo partilhavam a obra com algumas religiosas agostinhas, que se ocupavam em particular das crianças.

A noite caía quando Francesco e os seus dois companheiros chegaram à vista do antigo portão. Subitamente, Antoine Charraet segurou no braço de Francesco e reteve-o. Um homem vinha a sair, acompanhado até à soleira da porta por um religioso.

Olhai disse o padre. É Regnault du Hamel! Reconhecê-lo-ia fosse onde fosse, apesar daquele grande manto em que se abriga...

... e sob o qual esconde qualquer coisa! Sigamo-lo!

Achais que é... a criança?

Sou capaz de jurar! Escutai! O vento da noite permitiu-lhes ouvir, com efeito, um leve vagido, que tirou as últimas dúvidas ao padre. Era mesmo a criança que du Hamel escondia sob o seu manto e era urgente tentar saber o que iria ele fazer dela. Deixando os animais à guarda de Marino, Francesco e o seu companheiro lançaram-se no seu encalço. Não era difícil de seguir. O local era deserto e o homem não se sabia espiado. Caminhava rapidamente na direcção do velho hospício e do seu cemitério aterrador. Francesco viu-o parar perto da fossa recentemente coberta, que a neve afastada distinguia do resto do terreno. De repente, o florentino compreendeu o que ele fora fazer ali e, empunhando o seu punhal, arrancou como uma flecha e chegou ao pé do homem num instante. Era tempo. Du Hamel tinha tirado das pregas do seu manto um bebé, que se pôs a chorar quando o miserável o ergueu acima da cabeça para o esmagar contra uma pedra. Mas já o punhal de Francesco se encostava aos seus rins...

Devagar, messire assassino! Devagarinho, se não quereis que vos mate. Eu já sabia que éreis um miserável, mas a este ponto...

A dor devia ser grande, porque Regnault obedeceu e baixou os braços.

Que... quereis?

Essa criança. Dai-ma... e sem lhe fazer mal! Vamos! Depressa! Eu sou pouco paciente!

O punhal enterrou-se um pouco mais. O homem deixou sair um grito e largou a sua presa, que Francesco agarrou com a mão livre, para a entregar de imediato ao velho capelão, que tinha as suas unidas e chorava de emoção:

Deus permitiu que chegásseis a tempo, messire! Na verdade, creio que sois Seu mensageiro.

Começo a pensar o mesmo! E agora, que fazemos? Acabo com ele?

Mas, para escapar à dor que lhe verrumava os rins, du Hamel lançou-se para a frente, rolando na lama. O miserável espumava de raiva:

Miserável estrangeiro! Hás-de arrepender-te a vida inteira pelo que fizeste hoje! Eu sou um homem poderoso e tenho os meios para te castigar como mereces.

Sobretudo, sois um criminoso que nós acabamos de surpreender quando íeis matar uma criança rugiu o padre Charruet. Testemunharei perante a justiça de monsenhor Filipe e veremos quem tem razão!

Francesco pôs-se a rir e bateu as palmas para chamar Marino, que acorreu com as montadas. De uma das sacolas que os cavalos transportavam tirou uma corda:

Vamos fazer de Maneira, mestre cobarde, que não possas prejudicar ninguém durante algum tempo. Ajuda-me aqui, Marino!

Antes que du Hamel pudesse fazer o menor gesto para se defender, viu-se solidamente amarrado e reduzido à impotência. Como continuava a gritar, Francesco tapou-lhe a boca com dois lenços. Em seguida, os dois homens transportaram-no para o velho hospício meio arruinado e abandonaram-no encostado a uma parede daquilo que fora, em tempos, o vestíbulo.

Não temeis que ele morra de frio? inquietou-se o padre, que embalava maquinalmente o bebé abrigado sob o seu manto e que, aliás, já nem sequer chorava.

Isso é com ele e com Deus! Não me peçais piedade para este assassino. Está bem-vestido e está ao abrigo das correntes de ar. Eu desconfio deste género de homem e quero abandonar Dijon antes que dê início às suas ameaças. No fim de contas, tem razão, quando diz que eu sou aqui um estrangeiro... Mas, agora, temos de tratar deste pobre pequeno ser que ele ia massacrar de Maneira tão selvagem. Mostrai-mo, padre!

O ancião entreabriu o manto, descobrindo uma pequena figura redonda coroada com um caracol castanho e dois punhos minúsculos, que se agitavam docemente. Os olhos estavam fechados e a pequena boca abria-se e fechava-se, procurando mamar.

Ela tem fome disse Francesco. Regressemos depressa à Cruz de Ouro, Dame Huguet saberá cuidar dela. Dir-lhe-ei que a encontrei na rua, para evitar chocar as sensibilidades das gentes locais.

Mas, que ides fazer dela?

Francesco inclinou-se e segurou numa das mãozitas, que se agarrou imediatamente ao seu dedo. O florentino pousou nela um beijo ligeiro, mas a sua voz era grave quando respondeu:

Vou fazer dela minha filha. Não tenho mulher e a minha família é pequena, mas a dela também. Juntos, seremos, talvez, felizes. Pela minha parte, farei tudo por isso.

Vós sois jovem, meu filho. Um dia, haveis de vos casar.

Não... não, nunca! Tomai-me por louco, se quiserdes, padre, mas eu hoje vi morrer a única mulher que poderia ter amado. E espero que lá, onde ela se encontra, Marie... Marie, que me parece conhecer desde sempre, me olhe, sorrindo.

Um sino tocou, ao longe. As portas da cidade fecharam-se para os três cavaleiros e o seu frágil fardo. Dijon, confiante na solidez das suas muralhas, dispunha-se a passar uma noite tranquila.

O regresso ao Cruz de Ouro com um bebé de apenas alguns dias teve foros de acontecimento. Dame Berúlle Huguet era muito dedicada a um cliente do qual conhecia, há muito, a extrema generosidade e se a chegada repentina de uma criança caída do céu lhe pareceu um pouco bizarra., absteve-se de fazer qualquer pergunta. Pelo contrário, comoveu-se com a triste sorte a que tinha sido votada a pequenita, declarou que já era bela como um anjo e colocou-a nas mãos experientes de uma parente de idade madura, Léonarde, que a ajudava no albergue e que, como todas as solteironas, adorava tratar de crianças. Encontrou nas suas malas fraldas e roupa de criança que tinham pertencido à sua filha, descobriu mesmo um berço e instalou tudo no quarto de Léonarde. Em compensação, mostrou um pouco de hesitação quando Beltrami lhe declarou que era preciso encontrar com urgência uma ama-de-leite que aceitasse partir para lá dos Alpes e pediu ao marido que descobrisse, fosse a que preço fosse, uma liteira para transportar o bebé e a ama-de-leite.

Ides partir já amanhã? espantou-se o padre Charruet.

É claro. Pretendo pôr a criança em segurança em minha casa o mais rapidamente possível, sem dar tempo a vós sabeis quem de nos fazer mal.

Mas... e os vossos negócios? Não me dissestes que estáveis a caminho de Paris para visitar a sucursal que lá tendes?

A viagem não tinha nada de urgente. Fi-la para não estar em Florença para as festividades do Natal. Foi nessa ocasião do ano que o meu pai morreu e essa recordação ainda me é penosa. Um dos meus servidores, a quem vou dar uma carta, conduzirá sem dificuldade o carregamento de tecidos finos até à nossa casa da rua dês Lombards. Só Marino ficará comigo. Será suficiente para chegar a Marselha, onde me espera a minha carraca, a Santa Maria delFiore, que nos levará até Livorno, um pequeno porto de pesca que pertence a Florença desde há 30 anos...

Um navio? Também sois armador? Pensava que éreis apenas um fabricante de tecidos finos?

Com efeito, é isso que nós somos, os que praticamos aquilo que chamamos, entre nós, a arte di Calimala. Importamos do estrangeiro, principalmente da Flandres e de Inglaterra tecidos em bruto, que são, depois, no tear, transformados em tecidos finos, tão maleáveis e suaves como a seda e que são muito apreciados em toda a Europa. Mas o meu pai tinha a paixão do mar. Assim, temos dois navios, o Santa Maria e o Santa Madalena, dos quais um é para o comércio, enquanto o outro visita as costas de África ou as escalas do Levante, para de lá trazer produtos raros ou preciosos... Mais para satisfazer o seu gosto pela beleza du que para realizar grandes negócios. Pelo menos era o que ele dizia acrescentou Francesco com um sorriso porque o Santa Madalena, por vezes, trouxe-lhe alguns tesouros... Mas, onde ides, padre?

O ancião tinha-se levantado e dispunha-se a partir.

Se me demoro muito disse ele a porta do convento do Petit-Clairvaux, onde me dão hospitalidade, fecha-se e eu...

Francesco colocou-se rapidamente entre ele e a saída e, estendendo as mãos, fechou as do padre no sólido abraço das suas:

Por esta noite, suplico-vos que aceiteis a minha hospitalidade. Partilharemos este quarto...

Mas...

Por misericórdia, aceitai! Não gostaria nada de vos perder já. Amanhã deixarei esta cidade, talvez para nunca mais voltar. Pode ser que nunca mais nos encontremos neste mundo... e eu queria que me falásseis ainda... dela!

De... Marie?

Mal ouso pronunciar o seu nome, mas bastou um breve momento para ela se apoderar do meu coração, da minha vida... Ficai! Aliás, vem aí o nosso jantar.

Com efeito, batiam à porta e quem entrou foi uma grande mulher, seca, cujo nariz pontiagudo estava adornado com um par de lunetas, que lhe conferiam uma irresistível parecença com uma cegonha. Por trás dos vidros rodeados de aço, os seus olhos azuis brilhavam, cheios de vivacidade. Sobre o seu austero vestido negro, onde estava pregado um avental imaculado, o seu rosto, marcado por grandes rugas verticais, não tinha mais idade do que o seu corpo magro e liso. Era a tal Léonarde a quem dame Bertille tinha confiado o bebé. Ao entrar executou uma espécie de meia reverência bastante desenvolta, mas que acompanhou com uma abertura dos lábios que podia, com bastante boa vontade, passar por um sorriso.

Venho dizer-vos que a pequenina adormeceu, messire e que parece estar de boa saúde, a despeito daquilo por que passou.

Agradeço-vos por terdes tomado conta dela respondeu Francesco que, crendo que a mulher procurava uma recompensa, levou a mão à bolsa.

Ela deteve-o com um gesto e com um breve:

Obrigada, mas não se trata disso!

De que se trata, então?

Do que se vai passar amanhã. Dame Bertille disse-me que contáveis partir para o vosso país levando esta pobre pequena. De facto, como se chama ela?

Francesco e o padre Charruet olharam um para o outro, perplexos. Nem um, nem outro, tinham pensado naquilo... Umas lágrimas de vergonha subiram aos olhos do ancião.

Nós não... sabemos. Nem sequer sabemos se foi baptizada... Uma criança... encontrada...

Léonarde atirou-lhe um sorriso trocista, desta vez um verdadeiro sorriso, cheio de graça e até de malícia, o que nela era inesperado.

Um santo homem como vós não devia mentir, padre. Algo me diz que o encontrastes no Asilo da Caridade, este pequeno anjo... e que, em boa justiça, se deveria chamar Marie... ou Jeanne! Vamos, não façais essa cara! Eu sou curiosa, mas também me sei calar. E o que se passou esta manhã na praça Morimont foi uma coisa bem triste. Aquelas infelizes crianças...

Como é que adivinhastes? perguntou Francesco.

Segui o processo. Oh! não por curiosidade malvada, mas por compaixão. Desejei tanto que, ao menos, lhes deixassem a vida. E vi muitas vezes messire Charruet junto deles. Daí ao bebé foi um passo.

Bruscamente, Léonarde, cuja voz tinha falhado, tirou um grande lenço da algibeira do avental e assoou-se vigorosamente.

Deixemo-los repousar em paz e vamos ao que interessa! Precisais de uma ama-de-leite, não é verdade, messire?

Com efeito. Senão, terei que arranjar uma cabra.

Creio que tenho o que procurais. Não muito longe daqui, uma pobre rapariga da minha terra foi violada por um soldado. Ela veio esconder a vergonha na cidade e eu tratei dela. O filho dela nasceu antes de ontem, mas morreu mal saiu do ventre da mãe.

Ela aceitaria amamentar a pequena? E partir para tão longe?

Por isso respondo eu. Mas com uma condição: eu vou com ela. A estupefacção fez arregalar os olhos dos dois homens:

Quereis abandonar esta casa onde vos apreciam, creio interpretou Beltrami sem sequer saber para onde ides e quem eu sou? Mas, perche... mas, porquê?

Espero ser apreciada para onde quer que vá disse Léonarde sem se embaraçar. Além disso, sei julgar um homem de bem. Uma outra razão: se levardes Jeanette, quero poder velar por ela, porque a pobre rapariga já sofreu bastante. Estou muito ligada a ela, mas... (e o tom da mulher mudou, fez-se grave, com uma curiosa nota de emoção.. mas talvez menos do que ao bebé que ainda há pouco me puseram nos braços e que dorme no meu quarto. Quando a vi senti-me extasiada, maravilhada. Foi como que um dom do céu, uma resposta à angústia inexplicável que eu senti quando a mãe dela entrou nesta cidade no meio dos arqueiros, acorrentada como uma criminosa.

Francesco olhou para Léonarde com uma curiosidade nova. Na verdade, aquela mulher parecia-lhe cada vez mais espantosa:

O incesto não é um crime aos vossos olhos, donna Léonarde?

Não mais do que aos vossos, aparentemente disse ela com audácia. Quanto a mim, só Deus pode julgar aquilo que não é, no fim de contas, senão um excesso de amor. Só Ele tem a balança para pesar os corações. O único que merecia a morte era Regnault du Hamel: por excesso de ódio! Mas eu não vim aqui para fazer um discurso acrescentou Léonarde, reencontrando a sua brusquidão habitual. Vou buscar Jeannette?

Fico-vos muito reconhecido. Mas, primeiro, ide buscar a criança... Ela está a dormir, já vo-lo disse. Não tem importância. E em caminho pedi a dome Bertille e a mestre Huguet que venham ao meu quarto... O jovem virou-se para o velho padre: De que precisais para celebrar um baptismo?

Quereis?... No fim de contas, por que não? Água pura, sal, uma toalha branca, um padrinho e uma madrinha...

Eu serei o padrinho e donna Léonarde a madrinha... se ela quiser. Mestre Huguet e a sua mulher serão as testemunhas...

Por trás dos vidros, os olhos azuis iluminaram-se.

Vou imediatamente. E depois, vou buscar Jeanette...

Alguns instantes mais tarde, a pequenita votada ainda há pouco à vergonha e à morte recebia o baptismo das mãos de Antoine Charruet

e os nomes de Fiora Maria, filha adoptiva de Francesco Maria Beltrami,

substituindo-se ao pai e mãe desconhecidos, sendo o padrinho o mesmo Beltrami e a madrinha Léonarde Mercet.

A testemunha abriu para a circunstância uma das suas melhores garrafas de vinho de Beaune e se se mostrou surpreendido com a partida próxima daquela parente da sua mulher, não mostrou uma dor excessiva. Dame Bertille, essa, verteu três lágrimas, mas pensou que, se a sua prima estava a enlouquecer, que fosse longe de um albergue cujo nome sempre fora irrepreensível. E se um e outro acharam estranho todo aquele rebuliço em torno de uma criança encontrada ao canto de uma rua, abstiveram-se de qualquer manifestação em virtude da regra intangível de

todo o bom comerciante, que diz que o cliente tem sempre razão. Sobretudo um cliente tão rico como aquele florentino...

No dia seguinte, de madrugada, uma liteira um pouco usada, mas ainda bastante apresentável que o senhor Huguet negociara ferozmente durante a noite com um seu parente cónego em Saint-Bénigne e que dame Bertille encheu de almofadas, transportava o bebé

Fiora, a sua madrinha e Jeanette, sua ama-de-leite, uma jovem Borgonhesa de rosto redondo, corpo redondo, seios redondos e olhos arregalados por passar subitamente de uma vida quase miserável para uma prosperidade inesperada. Duas mulas sólidas iam atreladas aos varais. I Francesco Beltrami e Marino, armados até aos dentes, escoltavam o veículo, cujas cortinas de couro castanho se fecharam mal saiu do pátio do albergue. Dirigiram-se para a porta de Ouche, enquanto os últimos criados do florentino, com o carregamento de tecidos finos, se dirigiam para a porta Guillaume, para lá da qual se estendia a estrada de Paris.

No momento em que a liteira atravessou a praça Morimont, Francesco desviou o olhar do cadafalso despojado do seu pano negro, mas onde se erguia ainda e sempre a cruz, a roda e a forca, evocatórias de suplícios. O aspecto daquela praça permaneceria para sempre gravada na sua memória tal qual a vira na véspera, servindo de pano de fundo fúnebre a um rosto resplandecente, um rosto inscrito no mais secreto do seu coração, traço a traço, pelo implacável cinzel do amor. E foi com uma espécie de serenidade que vislumbrou pela última vez o campo de estrume onde dormiam Marie e o seu irmão.

Efectivamente, antes de o dia despontar, Francesco fora bater à porta do carrasco. Àquele ancião severo entregara algum ouro para que, numa noite bem escura, fosse tirar os amantes malditos da sua ignóbil tumba e lhes concedesse o repouso na terra cristã que o padre Antoine Charruet lhe indicaria...

O Sol de Inverno nasceu, vermelho, grande, banhando a paisagem nevada com uma luz púrpura. De pé, um pouco para lá da ponte levadiça da porta de Ouche, o velho padre viu afastar-se pela estrada de Beaune o pequeno cortejo daquele homem generoso, que acabava de dar a todos uma tão grande lição de humanidade. Levantando subitamente o braço, traçou no ar frio o sinal da cruz e depois regressou à cidade. Quando tivesse cumprido com Arny Signart, o executor, o último desejo do florentino, regressaria a Brévailles para levar, em segredo, algum apaziguamento à profunda dor de uma mãe e, com isso, a sua alma simples rejubilava antecipadamente. Entrou na primeira igreja que encontrou e lançou-se numa acção de graças, para agradecer a Deus misericordioso o ter permitido que Francesco Beltrami entrasse em Dijon à mesma hora em que Marie de Brévailles caminhava para a morte. Pelo menos a criança, nascida em tão terríveis circunstâncias, escapara à crueldade dos homens e poderia ter a sorte de conhecer alguns anos de felicidade.

Nem por um instante o ancião teve vontade de ir ver o que acontecera a messire Regnault du Hamel. Esse estava nas mãos de Deus e a Penitência que lhe fora infligida pelo mercador florentino fora inteiramente merecida.

Com efeito, só no dia seguinte um camponês, que passava perto do velho hospício, ouviu uns gemidos e descobriu o conselheiro do chanceler meio morto de frio. A liteira que transportava a pequena Fiora, aninhada no regaço de uma Léonarde desabrochada pela primeira vez na vida, já tinha percorrido uma boa parte do caminho...

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