Primeira parte POR UMA NOITE DE AMOR

Florença, 1475

CAPÍTULO I A GIOSTRA

Este não! Nem este! E muito menos este: já me viram com ele 20 vezes. Oh! não! Este velho horror, não: fico com cem anos e com este pareço um bebé! Procura outros!...

De pé no meio do seu quarto, em camisa e de pés nus, de mãos nas ancas e a massa negra dos seus cabelos caindo-lhe livremente pelas costas, Fiora, de olhar tempestuoso, passava em revista os vestidos que Khatoun, a sua jovem escrava tártara, tirava um após outro, com gestos descuidados, das grandes arcas de cedro, pintadas e douradas, que serviam de guarda-roupa. Os cetins irisados, os veludos rosa, azuis, brancos, negros ou castanhos, as musselinas bordadas, os tafetás e os cedais sussurrantes, os samitos matizados, enfim, tudo o que a arte da seda florentina e os tecidos orientais podiam oferecer, tanto à garridice, como ao adorno de uma bela mulher, enchiam o quarto. Saíam das cassoni, descreviam no ar uma curva graciosa e vinham, depois, cair aos pés de Fiora para formarem sobre o azul de um grande tapete persa um maciço colorido e cintilante, que aumentava de volume a cada instante sem conseguir alegrar a sua jovem proprietária.

Chegou o momento em que Khatoun, quase desaparecendo nas profundezas da arca, saiu com um último véu e, deixando-se cair numa almofada, disse languidamente com um suspiro magoado:

É tudo, patroa. Já não há mais nada. Fiora abriu uns grandes olhos incrédulos.

Tens a certeza?

- Vê tu mesma, se não me acreditas. Nesse caso, isto é tudo o que eu possuo?

E parece-me que já é muito. Certamente há princesas que não têm tanto... |

Simonetta Vespucci tem mais do que eu. Ela sai sempre com uma toilette nova. É verdade que toda a Florença só tem olhos para ela e que não cessam de lhe oferecer presentes... Sentindo umas lágrimas de cólera subirem-lhe aos olhos, Fiora girou nos calcanhares e foi, com um ar acabrunhado, apoiar-se à graciosa janela de colunas, de onde se podia ver o curso tranquilo do Arno, brilhant^ sob o sol claro de Janeiro. Sem virar a cabeça, ordenou: Arruma esses trastes todos! Não vou sair. -Não queres ir ao torneio? gemeu Khatoun, desiludida porque acompanhava Fiora a toda a parte onde ela ia e queria ver a festa guerreira. |

Nem ao torneio nem a parte nenhuma. Fico aqui. Espero que, pelo menos, vos digneis vestir-vos? Que Maneiras são essas, exibindo-vos em camisa à janela? Procurais apanhar frio, ou quereis que os marinheiros do rio vos vejam? Dame Léonarde acabava de entrar, trazendo num tabuleiro leite quente e fatias de pão com mel. Os 17 anos passados sobre a dramática partida de Dijon não tinham mudado muito a prima de Bertille Huguet. Estava apenas um pouco menos angulosa e graças à existência generosa e confortável que havia no palácio Beltrami, adquirira umas formas mais macias e uns traços do rosto menos pronunciados. No entanto, a sua voz conservava a mesma entoação inflexível de comando, mesmo e sobretudo quando se dirigia a Fiora, a quem adorava, mas a quem não deixava passar nada.

No seguimento de uma viagem por mar, no decurso da qual acreditara ter entregado a alma ao Criador, a borgonhesa descobrira Florença, estendida ao sol no seu quadro de doces colinas, com um espanto que: nunca mais a abandonara. A cidade da Flor-de-lis Vermelha transbordava de cor e vida e Léonarde adoptara-a tão espontaneamente como se pusera ao serviço de Francesco Beltrami, cujo calor e generosidade a tinham conquistado. Amara a elegância severa do palácio que o negociante habitava nas margens do Arno e depois fora de surpresa em surpresa. Assim, aprendera que as escalas de valores usadas na Borgonha e em França não eram as mesmas na grande cidade mercantil, onde o que se chamava Artes maiores: Calimala, ala, a Seda e a Banca estavam na mó de cima. A nobreza, tão preponderante noutros sítios, não o era ali, salvo se conseguisse fazer-se admitir no «privilégio» do comércio. Florença era uma república, ou, pelo menos, pretendia sê-lo, se bem que aceitasse obedecer a uma rainha sem coroa, uma dinastia de banqueiros poderosamente ricos, mas sem a mínima gota de sangue aristocrático: os Médicis. E Léonarde descobrira com prazer que o seu novo patrão pertencia à fina flor da cidade, da qual tinha todas as hipóteses de vir a ser, um dia, um dos priores, ou até o magistrado municipal, quando atingisse os 45 anos.

Na casa Beltrami, a recém-chegada fora adoptada com a mesma facilidade com que aprendera a língua toscana, com uma rapidez incrível. Fizera da façanha de falar duas línguas um ponto de honra - e até três, se se contar com o latim da Igreja - parecendo-lhe um símbolo de dignidade e intelectualidade extremamente lisonjeiro. Mas, com Fiora, de quem unicamente se ocupara nos primeiros tempos, falava apenas em francês, aliás com o acordo de Beltrami, para que a criança conservasse, pelo menos nesse aspecto, as suas raízes. O que lhe permitira nunca a tratar pelo tu habitual florentino, porque, para ela, a pequenita, para todos Fiora Beltrami, filha «natural de Francesco Beltrami e de uma nobre dama que morrera do parto», não deixava de ser filha de Jean e Marie de Brévailles, quer dizer, um puro produto da nobreza borgonhesa. Fiora assimilara as duas línguas com igual facilidade e até lhes acrescentara o latim e o grego.

Cinco anos depois da chegada de Léonarde, a velha governanta de Francesco, Nanina, adormecera no seio do Senhor e a borgonhesa fora chamada a substitui-la. Desde então exercia, sem a partilhar, a sua autoridade sobre as diversas casas do negociante, para plena satisfação de ambos. Apenas Marino Betti, o antigo recoveiro, transformado em intendente de uma propriedade, escapava à sua autoridade para seu alívio, adivinhando nele, senão um inimigo, pelo menos um adversário. Com efeito, juntamente com o seu patrão e a governanta, Marino era o único a conhecer a origem de Fiora, coisa que ele nunca admitira com sinceridade. Assim, Beltrami julgara por bem atar-lhe a língua por meio de um juramento solene prestado diante do primeiro altar da Virgem encontrado na estrada, acrescentando-lhe algumas vantagens financeiras muito convincentes.

Quanto a Jeanette, a jovem ama-de-leite, a sua frescura loura conquistara um fazendeiro de Mugello. Tornara-se alegremente na signora Crespi e passara a dispensar o seu leite apenas às crianças que todos os anos, pontualmente, dava ao marido.

Evidentemente, as pessoas de Florença tinham sabido, não sem surpresa, a súbita paternidade de um dos celibatários mais ricos da cidade, mas, herdeiras do pensamento e filosofia gregos, não se apegavam muito à severa moral cristã e a bastardia não era considerada um defeito redibitório, sobretudo se era acompanhada pela beleza. A criança revelou-se rapidamente encantadora e os numerosos amigos do seu suposto pai acolheram-na unanimemente de braços abertos. As mulheres tinham-se mostrado mais difíceis, sobretudo aquelas que tinham filhas para casar, mas muitas esperavam levar Beltrami ao altar, proclamando que era indispensável que a pequenita tivesse uma mãe.

Francesco fizera orelhas moucas, sem que, por isso, as mais tenazes perdessem a esperança. Mas havia um pequeno clube de opositoras irredutíveis, cuja chefe de fila oculta era a prima direita de Francesco, Hieronyma, que tinha contraído matrimónio com a nobreza ao casar com um Pazzi. As suas razões eram transparentes, porque, enquanto Beltrami não se casasse e não tivesse filhos, ela e o seu filho Pietro eram os seus únicos herdeiros e a herança, na ocorrência, não era daquelas a que se renuncia com facilidade.

Beltrami não se deixava enganar pelos seus encantos aparentes e os seus estados de alma não o deixavam muito preocupado. À medida que os anos iam passando, ela foi-se persuadindo que a pequena Fiora era realmente filha dele. O amor que numa terrível manhã de Inverno ele votara espontaneamente a uma jovem desconhecida cuja beleza o deslumbrara, transferira-o para aquela criança, encontrando uma alegria profunda ao vê-la crescer e desabrochar no ninho que lhe oferecera. Fiora era suficiente para a sua felicidade, enquanto esperava o dia em que Deus, fazendo-o passar para o outro lado do espelho, o faria reencontrar a bela mulher dos seus amores...

Léonarde pousou o tabuleiro sobre o leito, segurou Fiora por um braço e puxou-a para trás, fechando, com a mão livre, a janela composta de pequenos vidros redondos, acoplados uns aos outros por meio de lamelas de chumbo.

Ides, enfim, ser razoável? resmungou ela.

Não me apetece ser razoável protestou a jovem, torcendo-se como um verme para escapar à mão da governanta. Aliás, isso quer dizer exactamente o quê, ser razoável?

Quer dizer que vos deveis comportar como uma jovem dama digna desse nome disse Léonarde, habituada há muito ao character insubordinado daquela que, no seu foro interior, considerava como sua filha. Quer dizer que deveis comer o que vos trouxe.

Não quero. Não tenho fome.

Ora, fazei de conta! E depois, deixai que vos vistam! O vosso pai

mandou chamar-vos. Não tencionais apresentar-vos a ele em camisa?

Como por milagre, a rebelde acalmou-se. Amava Francesco com um amor profundo, alegre e confiante. A ideia de lhe causar qualquer dor mesmo ligeira, provocava-lhe grandes acessos de cólera e Léonarde sabia-o muito bem. Docilmente, Fiora comeu uma fatia de pão e bebeu um pouco de leite, enquanto Khatoun, a um sinal da governanta, apanhava um dos vestidos desdenhados, preparando-se para vestir a sua patroa. Um instante mais tarde Fiora aparecia vestida com uma túnica de cetim branco e com o vestido propriamente dito, feito de um belo veludo cor de folhas de Outono, que apertava por baixo dos seios para deixar ver o cetim da túnica. As pesadas pregas, que rematavam numa curta cauda, eram cingidas bem alto, mesmo sob o peito, por uma fita dourada que rodeava os ombros e apertava as mangas estreitas, tão longas que cobriam a parte de cima da mão.

Enquanto Khatoun dava um laço nas mangas, cujas aberturas deixavam passar no pescoço e nos ombros o tecido de cetim branco ligeiramente tufado, Léonarde, armada com uma escova, esforçava-se por pôr em ordem a abundante cabeleira de um negro profundo, que caía em desordem pelas costas da jovem.

Estou horrível! declarou ela em tom dramático.

É o que eu digo todos os dias quando entro aqui troçou Léonarde. Como é que messer Francesco, que é um homem de bom gosto, pode suportar a presença de uma rapariga tão feia sem ficar cego?... Não digais asneiras!

Fiora era sincera. Educada numa cidade onde as mulheres só sonhavam em ser louras e se davam a trabalhos infinitos para clarear os cabelos por meio de enormes quantidades de unguentos e intermináveis banhos de sol com as cabeleiras metidas em chapéus de cartão sem fundo, era incapaz de dar o devido valor a uma cabeleira flexível e brilhante, sem dúvida, mas demasiado escura.

- O meu pai ama-me murmurou ela com lágrimas nos olhos.

Mas não olha para mim tal qual eu sou. Eu sei que ninguém me amará nunca, com esta trunfa. Sobretudo...

Bruscamente, calou-se e corou por quase ter deixado escapar o segredo do seu coração. Não sabia que Léonarde já há muito sabia desse segredo. Esta, não querendo aumentar o desgosto da criança, fez de conta que não tinha ouvido.

É melhor não fazer esperar messer Francesco disse ela docemente. Acabamos o penteado mais tarde. Em seguida, aflorando com um dedo a face da garota, acrescentou com muita ternura: Se não acreditais no vosso espelho, acreditai na velha Léonarde... e nesses rapazes todos que vos fazem a corte: sois mais bonita do que pensais e eu sei que, mais tarde, sereis muito bela. E agora, toca a andar!

Fiora não respondeu. Não estava convencida. Evidentemente, não se achava horrível: seria preciso ser cega; evidentemente, não faltavam os pretendentes em redor da filha do muito rico e poderoso messer Beltrami, mas justamente porque o seu pai possuía uma das maiores fortunas da cidade, ela não conseguia acreditar na sua sinceridade e teria dado alegremente toda a sua fortuna para possuir os cabelos dourado-avermelhados de Simonetta...

Na soleira da porta a jovem perguntou:

Onde está o meu pai?

No studiolo.1

Fiora saiu e viu-se na grande galeria de colunas que, no primeiro andar do palácio, dava a volta ao cortile o pátio interior ornamentado com duas estátuas antigas e laranjeiras plantadas em grandes vasos de majólica verdes e azuis. Apesar de se estar em pleno Inverno, o tempo estava suave e ensolarado, porque a estação fria, na Toscânia, caracterizava-se mais pela chuva do que por grandes frios e a neve era rara. Fiora, que não gostava de viver fechada e que passava a maior parte do seu tempo livre no jardim, respirou aquele ar leve, que trazia com ele os odores do pão quente e das especiarias finas por cima de um fundo musical longínquo. O dia era o vigésimo oitavo de Janeiro, dia de festa, porque Lourenço de Médicis queria celebrar com fausto o acordo que acabava de assinar, contra o Turco, com a Sereníssima República de Veneza. Haveria torneios, banquetes e danças...

O caminho que Fiora tinha de percorrer não era longo: os apartamentos de Francesco eram no mesmo andar dos da sua filha, mas

1 Meio biblioteca, meio gabinete de estudo e de curiosidades, o studiolo era a sala predilecta dos italianos ricos


do outro lado do pátio. Com Khatoun, que nunca a abandonava, trotando sempre nos seus calcanhares, Fiora dirigiu-se rapidamente para eles.

Khatoun era tártara e tinha a mesma idade da sua jovem patroa. Era uma criatura pequena, miúda e graciosa, que, com o seu rosto triangular, olhos rasgados e nariz pequeno e achatado, se parecia com um gato. Desses felinos tinha a vivacidade e as naturais brincadeiras e meiguice. Adorava a casa Beltrami, Fiora e a vida doce que levava junto dela. O facto de ter nascido escrava não a atormentava minimamente, pela excelente razão de que ninguém teria a ideia de lho fazer sentir. Fiora não o teria permitido.

Tal como em toda a Itália, em Florença os escravos eram numerosos, sobretudo os do sexo feminino e a opulência de uma casa avaliava-se, não só pelo seu número e qualidades, mas também pelo exotismo da sua aparência. Alguns eram raros e eram disputados, como o casal de dançarinos mouros e a anã negra que a duquesa de Ferrare invejava furiosamente à duquesa de Milão, Bianca-Maria Sforza.

Os burgueses das cidades ricas como Florença, Milão, Veneza ou Génova, podiam oferecer a si próprios esse luxo caro, que fazia com que os escravos fossem muitas vezes tratados como familiares e não como vulgares criados. Os armadores venezianos, ou genoveses, importavam-nos dos mercados do Mar Negro, da Ásia Menor, da península balcânica, de Espanha, onde os Mouros possuíam ainda Granada, da Rússia ou da Tartária e o seu preço variava entre os cem e os 200 ducados de ouro. Naturalmente, se fossem cantores, dançarinos ou bordadeiras hábeis, músicos ou amas-de-leite, o preço subia com facilidade aos 500 ou 600 ducados. Quanto a Khatoun, não passava de um bebé de colo quando foi comprada em Trébizonda pelo capitão do Santa Madalena, emocionado com a beleza da mãe dela e trazida para Florença. Mas Djamal, a mãe, morreu alguns meses após a sua chegada e a pequenita Khatoun foi também, ao mesmo tempo que Fiora, criada por Léonarde e destinada a ser ao mesmo tempo companheira e criada de quarto da jovem, sendo a primeira condição mais importante do que a segunda...

Aquela história dos escravos tinha atormentado Léonarde aquando da sua chegada a Florença. As suas convicções cristãs insurgiram-se perante um tal estado de coisas, mas em breve descobriu que os escravos de Florença eram muitas vezes mais bem tratados, devido ao preço pago, do que certos assalariados, certos criados de quinta, ou certas raparigas de cozinha das casas do outro lado dos Alpes. Possuir escravos não perturbava minimamente os estranhos sentimentos religiosos dos florentinos, que, ao mesmo tempo que professavam uma devoção profunda por Cristo, a Virgem e os santos, enchendo as suas igrejas com frescos, retábulos e obras de arte admiráveis, demonstravam um gosto muito grande pela mitologia e filosofia gregas, com Platão ocupando com vantagem o primeiro lugar. A borgonhesa acabara por desculpar os seus novos concidadãos, em virtude do seu profundo amor pela beleza sob todas as suas formas e isso até nas classes mais baixas e da sua extraordinária alegria de viver...

Chegada diante da porta do seu pai, Fiora mandou Khatoun pôr ordem no seu quarto e depois, batendo levemente, entrou sem esperar autorização; no que teve razão, porque poderia ter tido de esperar muito tempo. Com a mão no queixo e o cotovelo apoiado no braço da sua cadeira, Francesco sonhava diante de um quadro pousado num cavalete de ébano virado para ele... O seu rosto irradiava uma tal felicidade que a jovem ficou espantada.

Pai! chamou ela docemente.

Francesco estremeceu como alguém que é acordado subitamente, mas sorriu de imediato com aquele sorriso que dava tanto encanto ao seu rosto fatigado. Com os anos, adquirira um pouco de peso e algumas rugas, ao mesmo tempo que os seus espessos cabelos negros começavam a ficar grisalhos, mas conservava uma grande vitalidade e uma espantosa capacidade de trabalho.

Anda ver! disse ele estendendo os braços para atrair a jovem: Sandro acaba de mo mandar e é uma maravilha...

Fiora aproximou-se apressadamente. Algumas semanas antes posara para um jovem pintor da vizinhança, que Lourenço de Médicis distinguira e que, até ao momento, quase só trabalhara para ele, mas Francesco Beltrami, cuja paixão pela pintura era conhecida, soubera conquistar a amizade daquele rapaz imaginativo e sonhador, extravagante e até, por vezes, versátil, que alimentava a sua obra com os seus sonhos e os dos poetas florentinos. Era filho de um curtidor do bairro de Ognissantí e chamava-se Sandro Filipepi; começava a ser conhecido sob o nome de Botticelli, que significa pipo e que lhe vinha de um irmão mais velho, de 28 anos, grande bebedor e que sempre se ocupara dele, ao ponto de as pessoas acreditarem que era seu pai, passando este por seu avô. Como o garoto era conhecido como o Sandro do Botticello, ficou Botticelli.

O quadro contemplado por Beltrami era um retrato, que Fiora contenplou com um estupor onde entrava, também, uma grande dose de decepção:

Mas... essa não sou eu!

O painel de madeira pintada representava, com efeito, uma jovem mulher brilhantemente loura, com um vestido de veludo cinzento bordado a ouro que Fiora nunca usara, porque de moda diferente. Diferente, também, o pequeno cone truncado de renda branca que cobria a cabeça da desconhecida como se fosse uma coroa e de onde partia um leve lenço, que lhe tapava o rosto.

É verdade disse Francesco gravemente mas, no entanto,

és mesmo tu, porque os traços são semelhantes. Este retrato, minha querida, é o da tua mãe. As parecenças não eram evidentes quando eras pequena, mas, à medida que foste crescendo, desenvolveram-se, acentuaram-se...

Isso não é verdade! exclamou Fiora, quase a chorar. Enganas-te, pai. Ela é muito bela, ao passo que eu não...

Quem te meteu essa ideia na cabeça? disse Beltrami, estupefacto.

Ninguém, mas nenhuma mulher é bela com cabelos negros!

Palavra de honra, tu és louca? Vou-te demonstrar como estás enganada...

Levantando-se, Francesco foi até um dos armários embutidos em trompe-l’oeil nas paredes do seu studiolo. Fiora sabia, por os ter admirado muitas vezes, que aqueles armários continham verdadeiras maravilhas: livros raros de preciosas encadernações, esmaltes luminosos, objectos de prata, marfim ou ouro, estatuetas criselefantinas, bailarinas de alabastro translúcido e centenas de outras coisas bonitas. Beltrami tirou de um deles, que abriu com uma chave dourada pendurada no seu pescoço por uma corrente, um pequeno cofre de prata parecido com um relicário, pousou-o sobre uma pequena mesa, abriu-o e tirou dele, com os gestos de um padre tocando na hóstia sagrada, o pequeno chapéu de renda Que Marie de Brévailles usara no seu último dia de vida, olhou-o por um instante e pousou nele os lábios. Fiora viu que as suas mãos tremiam e que havia lágrimas nos seus olhos quando ele se virou para ela. Eu ponho-to! murmurou ele.

Afastando para trás da fronte alta e bem desenhada a cabeleira negra da sua filha, Beltrami fixou o chapéu, envolveu o rosto com a renda e depois, tirando da parede um espelho e colocando-o junto do quadro, colocou Fiora diante dele:

- Olha! - disse ele apenas.

A renda estava um pouco amarelada, mas assim, separada do seu quadro habitual, o rosto reflectido no espelho e o do retrato eram estranhamente parecidos. Tinham a mesma tez delicada de marfim rosado, a mesma boca risonha, o mesmo nariz fino e, sobretudo, os mesmos olhos, de um cinzento enevoado.

- Então? - perguntou Francesco - continuas a achar que és feia?

- N...ao. Mas, por que razão não sou loura como ela? Se eu tivesse esses cabelos dourados, tenho a certeza que os poetas me cantariam e talvez pudesse ser, um dia, a rainha da giostra...

- Como madonna Simonetta? - sorriu Beltrami com uma chama picante nos olhos. - Espero que a minha filha não seja tolamente ciumenta? É verdade que toda a Florença admira essa mulher encantadora, mas antes de Lourenço casar com madonna Clarisa...

- Que é ruiva! - precisou Fiora, teimosa.

- Que é ruiva... e não muito bonita. Antes, portanto, desse casamento, todos, em Florença, só tinham olhos para a bela Lucrezia Donati, que Lourenço amava e que era morena, como tu.

Com os mesmos gestos leves e piedosos de poucos minutos antes, Francesco tirou o chapéu à jovem e preparava-se para o guardar quando Fiora o interrompeu:

- Pai! Essas manchas escuras na renda, o que são?

Francesco ficou muito pálido e olhou para a filha com uma espécie de desvario. Subitamente febril, acabou de guardar a relíquia, fechou o cofre, guardou-o, regressou depois para junto do quadro que parecia açambarcar toda a luz daquele belo dia e quando pegou num grande tecido de veludo para o cobrir, Fiora interrompeu-o de novo:

- Deixa-me olhar para ela mais um bocado! - pediu a jovem. Conheço-a tão pouco! Nem tu nem Léonarde me falam nunca dela. Só sei uma coisa: que era uma dama nobre da Borgonha...

- É que, vê tu, a história é muito triste, dolorosa, mesmo. Só falamos dela raramente, Léonarde e eu. Quanto a ti, ainda és muito nova.

- Nunca se é demasiado nova para aprender a conhecer a sua mãe. Só vos tenho a vós para me falarem dela e agora esta imagem, mas, se eu a interrogar, ela não me responderá, porque messer Sandro limitou-se a copiar a minha figura.

Tu és capaz, na tua idade, de captar a mensagem de um retrato?

perguntou Francesco, surpreendido.

£ claro. Eu vi em casa dela o retrato da nossa prima Madonna

Hieronyma Pazzi, pintado por aquele antigo monge morto há seis anos, messire Lippi. É um belo retrato, que faz justiça à sua beleza; mas também diz que ela é vaidosa, ávida, de coração cruel e falso. Nesta imagem não leio nada.

Francesco estava espantado. Que a sua Fiora, que ele considerara sempre uma criança e que em muitos aspectos ainda o era, pudesse dar provas de um tal dom de psicologia, confundia-o... A jovem sentiu-o e quis aproveitar:

E agora acrescentou ela docemente responde-me, peço-te, à pergunta que te fiz... aquelas manchas escuras?... Dir-se-ia que são de sangue!

Beltrami virou-se e foi até à janela de onde se via, por cima dos telhados da via delia Vigna Nuova, o magnífico palácio Rucellai, um dos mais recentes de Florença e um dos mais belos. Fiora seguiu-o:

Responde-me, pai! Quero saber!

Já me tinha esquecido que tu também sabes dizer «quero»... Muito bem, sim, é sangue... dela. A tua mãe morreu, minha filha, em terríveis circunstâncias...

Que circunstâncias?

Não me perguntes mais nada porque não te responderei. Mais tarde, talvez...

Isso é quando, «mais tarde»?

Quando fores mulher. Por agora não passas de uma rapariga e uma rapariga só deve ter pensamentos alegres. Sobretudo num dia de festa!... Diz-me lá, que vais usar para ir ao torneio, como se diz em França?

De regresso às suas preocupações anteriores, Fiora encolheu os ombros, desiludida:

Não sei. Confesso-te que não tenho muita vontade de ir.

Não ir à giostra, quando os nossos lugares estão marcados na melhor tribuna?

Por trás da rainha. Ligo pouca importância a isso. Ninguém reparará em mim!

Excepto Domenico Accaiuoli, Marco Soderini, Tommaso SalVlati, Luca Tornabuoni e mais alguns de menor importância recitou Francesco, que reencontrara o seu sorriso.

Foi isso, precisamente, que eu disse: ninguém!

A jovem não acrescentou que o único que contava para ela, o belo o irresistível Giuliano de Médicis, só olharia para Simonetta Vespucci. Beltrami desatou a rir:

O que para aí vai! Estou a ver que és muito difícil. Vai ser preciso, portanto, arranjar-te, um dia, um marido...

Fiora meteu o braço no do seu pai e, pondo-se em bicos dos pés, beijou-lhe a face bem barbeada:

O único homem que eu amo nunca poderá casar comigo, porque és tu!

Ah! Eis umas palavras que merecem uma recompensa! Tenho uma coisa para ti.

Afastando-se do braço da filha, o negociante foi buscar a um cofre um pequeno pacote envolto em seda e estendeu-o a Fiora:

Toma, contava oferecer-to para a tua festa, mas a ocasião parece-me oportuna...

Os olhos da jovem brilharam. Como todas as suas iguais adorava presentes, surpresas e tudo o que era inesperado. Corada de impaciência, desdobrou a seda branca e descobriu um daqueles aros de ouro de que tanto gostavam as elegantes florentinas. Aquele tinha como modelo folhas de visco, cujas bagas eram outras tantas pérolas. Uma outra, em forma de pêra, caía a meio da fronte...

Oh, pai! Que maravilha! Quem fez isto?

O Engrinaldem/17. Encomendei-lho já há muito tempo e não esperava recebê-lo tão cedo, mas o artista vai para San Gimignano, onde vai decorar a capela de Santa Fina. Sinto-me feliz por poder oferecer-ta hoje, porque já estás em idade de receber e usar jóias. Como vês, não tens razão nenhuma para me deixar ir sozinho à festa. E agora, separemo-nos. Tenho de me preparar para o banquete no palácio Médicis...

Ao qual as damas não vão...

Ao qual as damas não vão, como sempre que monsenhor Lourenço recebe embaixadores e homens políticos. Na giostra e no baile desta noite, as damas terão a sua vingança...

Era verdade que a festa prometia ser bela. Era sempre assim quando o Magnífico quando ele tinha 20 anos já lhe atribuíam aquele cognome

NT Lê Guírlandierno original pintor, miniaturista e joalheiro, Domenico di Tommaso Bigordi recebeu este cognome.


prestigioso, decidia que a sua cidade devia viver algumas horas de folia, porque nunca se esquecia de a fazer participar em todos os acontecimentos familiares, religiosos ou políticos da sua própria vida. Naquela noite, ninguém dormiria em Florença. Haveria bailes no palácio da via Larga em algumas ricas mansões, mas também nas ruas e nas praças, onde o vinho correria das fontes...

Quando, ladeada por Léonarde e Khatoun, que deveriam escoltá-la até à praça Santa Croce onde teria lugar a giostra e onde encontraria o seu pai, Fiora deixou o seu palácio, esquecera a sua manhã rabugenta e o que ela acreditava serem boas razões para estar de mau humor, para se deixar levar pela alegre atmosfera da cidade e pelo seu turbilhão de cores e sons. Através do céu azul, os sinos de todos os campanários tocavam até romper os braços dos tocadores e em cada encruzilhada músicos e cantores proclamavam, ao desafio, a alegria de serem jovens, de amar e de viver em Florença, a mais bela cidade do mundo. As fachadas de todas as casas desapareciam sob as telas pintadas, as sedas e os panos vermelhos e brancos, que eram as cores da cidade, debruados a ouro ou prata. Tinha-se a impressão de caminhar através de um imenso fresco cintilante, um fresco animado por uma multidão em traje de festa, caminhando alegremente para o local do grande espectáculo. Em todas as praças tinham sido espetados grandes mastros de madeira dourada, dos quais pendiam longos estandartes, dos quais alguns ostentavam a flor-de-lis vermelha, emblema de Florença e outros o leão de São Marcos, emblema de Veneza.

Nos dias de festa toda a gente andava a pé, para poder admirar melhor as decorações e para não atravancar as ruas estreitas, entregues à folia popular. Lourenço de Médicis dava o exemplo, arrastando pela cidade os seus hóspedes ilustres, aliás com o segundo pensamento de lhes mostrar a sua popularidade, que era imensa.

Diante do palácio da Senhoria, que com as suas paredes severas e ° seu alto campanário dominava as casas em redor e impunha a imagem intransigente da fé, Fiora encontrou a sua amiga Chiara Albizzi, uma rapariga encantadora da sua idade, que conhecia desde sempre e Para quem não tinha segredos... talvez porque a jovem Chiara era quase tão morena como ela e olhava para as coisas e para as pessoas com o mesmo olhar curioso e agudo. Tal como Fiora, Chiara, filha da nobreza, era escoltada por uma governanta e dois criados armados. Quando o vinho corria, os maus encontros eram sempre possíveis.

De braço dado, as duas jovens afastaram-se ligeiramente das suas escoltas benevolentes. Léonarde gostava imenso da companhia da gorda Colomba, a ama-de-leite de Chiara, que era, sem dúvida, a maior mexeriqueira de Florença e que transportava consigo, geralmente, um saco cheio de novidades, das quais a sua filha de leite era, naturalmente, a grande beneficiária.

Pensava que não querias vir? perguntou Chiara. O que é que te fez mudar de ideia?

O meu pai. Ele gosta que eu apareça ao pé dele na giostra. Até me ofereceu uma jóia para a circunstância.

Parabéns! Mas ele tem razão: estás soberba! declarou a jovem Albizzi, inspeccionando com olhos conhecedores a sinfonia de brocados e veludos cinzentos-claros, da cor exacta dos olhos da sua amiga e o sapiente edifício de tranças acetinadas de ouro e pérolas, que tinha exigido a Léonarde uma boa hora de esforços:

Tu também estás soberba disse Fiora, reconhecida e, aliás, sincera. Pareces uma aurora. Estás toda cor-de-rosa!

Sobretudo, tenho o ar de alguém que se vai divertir, ao passo que tu pareces decidida a sofrer. Não consegues tirar Giuliano de Médices da cabeça?

Chhhh! E não é a minha cabeça que sofre, é o meu coração. Não podemos nada contra os batimentos do coração suspirou Fiora, tão tragicamente que a sua amiga desatou a rir.

Espero bem que venhas a ter outros desses batimentos de coração e que não queiras passar a vida a suspirar por um rapaz que só tem olhos para outra. Abandona Giuliano aos seus amores ideais... ou então, tem paciência!

Que queres dizer?

O que toda a gente sabe: os amores dos irmãos Médicis não duram muito. Além disso, Marco Vespucci começa a segregar uma certa acidez. Um marido ciumento é embaraçoso. Devias saber isso, tu: o vosso palácio é vizinho do dos Vespucci. Em vez de esperares, farias melhor se olhasses em redor: Luca Tornabuoni é mais belo do que Giuliano e está louco por ti. Aliás... fale-se no diabo...

O jovem em questão acabava de sair de uma rua em companhia de vários companheiros. De imediato, as duas jovens foram rodeadas por um bando alegre e tagarela, que as separou das respectivas escoltas e as levou triunfalmente até ao local do torneio. Luca Tornabuoni ousou, a coberto do tumulto, segurar a mão de Fiora na sua, depois de ter pousado nela um beijo furtivo:

- Os vossos olhos terão hoje para mim um olhar mais doce do que habitualmente? - pediu ele em francês. Ela sorriu-lhe e pensou que, com efeito, ele era muito belo e alto, o que a obrigava a levantar um pouco a cabeça, se bem que ela fosse também alta, com um perfil de medalha, com espessos cabelos negros e encaracolados e olhos sombrios, que brilhavam ao olhar para ela.

- Porquê hoje? - perguntou ela, traquinas.

- Porque hoje é dia de festa, porque está um dia bonito, porque vós estais mais bela do que nunca e porque...

Quem quer ser feliz apressa-se

Porque ninguém sabe o dia de amanhã...

O jovem terminou a sua frase trauteando aquela canção composta por Lourenço de Médicis, sua favorita e que se tornara o evangelho de toda a juventude de Florença. Mais baixo, ele acrescentou ardentemente:

- Deixai-me falar com o vosso pai, Fiora! Aceitai tornar-vos minha mulher!

- Mesmo que eu aceitasse, o meu pai não diria que sim. Acha que ainda sou muito nova...

- Nesse caso, dai-me, ao menos, uma esperança, um penhor. Eu vou combater por vós...

Luca era um dos que iam medir-se com Gíuliano de Médicis na justa dessa tarde. Tocada, apesar de tudo, por aquela súplica apaixonada, ela estendeu-lhe o seu lenço, que ele meteu de imediato no interior do seu gibão:

- Obrigado, minha doce dama - exclamou ele alegremente. Agora, é preciso que eu saia vitorioso, para vos honrar...

- De qualquer maneira - observou Chiara - não é Fiora que te vai coroar, admitindo que ganhes. Ela não é a rainha da justa.

- Por que esse... admitindo? Duvidas da minha coragem?

- Nem da tua coragem nem do teu valor, belo cavaleiro, mas não seria nada conveniente que Giuliano perdesse, porque a sua dama é a rainha.

Logo a seguir o jovem deixou-as. Estavam a chegar à praça Santa Croce, à entrada da qual se erguiam tendas de seda multícoloridas para os combatentes. Pajens vestidos de vermelho e dourado e palafreneiros cuidavam dos cavalos soberbamente ajaezados segundo as cores dos seus donos... Eram todos cavalos de grande valor, provenientes das célebres cavalariças do marquês de Mântua, ou árabes, fornecidos por Veneza. Apenas Giuliano de Médícis montaria um admirável corcel alazão, recentemente oferecido com uma égua da mesma cor pelo rei de França ao seu irmão Lourenço. Luís XI, do qual se dizia que a sua core era a menos faustosa da Europa, era um conhecedor da matéria e sabia mostrar-se magnânimo quando se tratava dos seus aliados, ou amigos. Aquele cavalo era a prova viva.

Diante da fachada de tijolos cor-de-rosa, muito simples, da igreja da Santa Croce, uma grande tribuna, coberta por panos púrpura e ouro fora erguida para o senhor de Florença e seus convidados. O trono da rainha do torneio ocupava o centro. De cada lado, face a face, altos balcões de madeira haviam sido erguidos ao longo das casas. As damas e as meninas da cidade tomavam lugar neles com os seus mais belos adornos, acompanhadas dos seus maridos, pais ou amantes. Compunham, assim, uma dupla grinalda colorida e cintilante, digna de uma corte real e o povo, que se amontoava por trás das barreiras cobertas de seda, com as suas roupas de cores alegres, não destoava do quadro. As fitas e os estandartes esvoaçavam por toda a parte, agitados por um vento ligeiro. Tudo aquilo ressoava, estremecia e Florença, naquele belo dia, era só seda, ouro e prata, como uma imensa tapeçaria animada pela vontade de um qualquer mágico todo-poderoso.

Justamente, o dito mágico ia fazer a sua aparição. Anunciado pelo som triunfal de longas trombetas de prata, das quais pendia, num quadrado de tecido branco, a flor-de-lis vermelha de Florença e precedido pelos porta-estandartes que faziam voltear e lançavam ao ar as suas bandeiras variegadas, um brilhante cortejo acabava de aparecer. À cabeça, vestido de veludo verde-escuro orlado de zibelina, um largo colar de ouro cinzelado no pescoço e uma fortuna em pérolas e rubis no chapéu, caminhava Lourenço de Médícis, o rei sem coroa daquela estranha república, o senhor de 27 anos, ao qual a cidade dera o seu coração, se bem que fosse tão feio quanto o seu irmão era belo. Mas que fealdade formidável. O Magnífico tinha, sobre o seu corpo magro e vigoroso,! um rosto quase simiesco, no qual o reflexo de um génio triunfal e uma

1 Foi o primeiro aspecto da igreja A fachada foi refeita mais tarde


inteligência excepcional substituíam a beleza. Os cabelos negros e espessos, o nariz longo e pontiagudo, os traços fortemente desenhados e uma grande boca de lábios finos nada podiam contra o fascínio que se apoderava de todos aqueles que o conheciam e a atracção que exercia, com aquele aspecto enigmático e sombrio, nas mulheres.

O poder político fora entregue aos dois irmãos por morte do pai de ambos, Piero o Gotoso, mas essa igualdade era apenas aparente. O único chefe era aquele homem excepcional, nos largos ombros do qual repousava uma das maiores fortunas da Europa, a responsabilidade do poder e as ramificações complicadas de uma política que não se limitava apenas às relações com os outros Estados italianos, mas também com as grandes potências, como a França, a Inglaterra, a Alemanha, Castela e Aragão. Banqueiro dos reis que contavam com ele, o Magnífico estreitara com a França os laços de amizade tecidos pelo seu pai, ao qual o rei Luís XI concedera a graça insigne de poder gravar a flor-de-lis numa das sete bolas que compunham as suas armas.

Lourenço tinha chegado ao topo do poder, sabedor, no entanto, de todas as suas fraquezas. Estendera as fronteiras de Florença, conquistara Sarzana, sufocara as revoltas de Volteira e de Prato, vencera a facção dos Pitti e exilara-os, casara com uma princesa romena e o povo estava-lhe reconhecido por tudo isso. Despojara o Conselho da República das grandes famílias nobres, como os Guicciardini, os Ridolfi, os Nicolini e os Pazzi, substituindo-os por gente de condição baixa, mas essas famílias, cujas fortunas eram ainda respeitáveis, roíam o freio e conservavam uma clientela que podia sempre fazer barulho e armar assassinos. Assim, Lourenço, sob uma aparência jovial e despreocupada, escondia prudência, desconfiança e estava sempre em guarda, porque, apesar de suceder a seu pai e este ao seu próprio pai, Cosimo o Velho, sabia que o seu poder vinha do povo e não do direito divino. Entretanto, reinava, qual rei sem coroa, ao mesmo tempo que o seu jovem irmão, Giuliano, se contentava alegremente e sem procurar obter vantagens, com o papel amável de Príncipe Encantado, papel esse que interpretava às mil maravilhas. Florença amava-o pela sua beleza, elegância e até pelas suas loucuras, porque dava dela uma imagem sedutora...

Respondendo com um sorriso e um gesto da mão aos vivas frenéticos com que a multidão saudava a sua chegada, o Magnífico avançou para a grande tribuna, levando pela mão aquela que ia ser a rainha do torneio, a tal Simonetta Vespucci, a quem aclamavam quase tanto como ao seu guia e que Fiora detestava com todo o ardor ciumento dos seus 17 anos. Ainda por cima porque era obrigada a admitir, mesmo que isso lhe arrancasse o coração, que aquela rival inconsciente era absolutamente encantadora.

Alta e fina, de corpo tão ágil e encantador como a própria graça pescoço frágil e flexível, nariz pequeno levemente arrebitado e grandes olhos castanhos, doces como os de uma corça, Simonetta levantava altivamente a sua pequena e perfeita cabeça, tornada mais pesada por um cacho de cabelos de ouro-ruivo, composto de tranças brilhantes seguras por alfinetes de pérolas e intercaladas por um fino cordão de ouro entrançado, que terminava sobre a fronte numa brochetta, uma engraçada jóia de ouro e pérolas que se parecia com uma minúscula pluma.

Outras pérolas ainda ela amava as pérolas até à loucura enchiam o seu traje com uma brancura brilhante, bordado com finas folhas de ouro e avivado com pele imaculada de arminho. Estava tão bela quão triste estava o coração de Fiora: nunca poderia conseguir aquela perfeição! Simonetta era única, inolvidável...

Reconheço que ela é bela disse Chiara num tom descontente o que não impede que esse culto fixo que lhe dedicam, não apenas Giuliano, de quem ela é, seguramente, amante, mas também Lourenço, que não cessa de lhe fazer versos, sem contar com todos os imbecis, como Botticelli, ou Pollaiuolo, que se arrastam a seus pés, seja algo chocante. Ela é casada, que diabo! E podes dizer-me onde se encontra a esta hora Marco Vespucci?

Porque Simonetta era casada. Nascida em Porto-Venere, um nome predestinado o porto de Vénus! numa rica família de armadores genoveses, os Cattanei, casara seis anos antes e aos 16 anos com Marco Vespucci, o filho mais velho de uma nobre família florentina, cujo palácio era vizinho do dos Beltrami. Desde a sua primeira aparição em público, por ocasião das festas do casamento de Lourenço de Médícis com a princesa romena Clarissa Orsini, que subjugava, não somente os dois irmãos, mas também toda a cidade, maravilhada com aquela a quem chamavam com fervor a Estrela de Génova...

Já o procurei suspirou Fiora mas não o vejo...

Porque não está aqui. Assim como Madonna Clarissa. Ela permanece dignamente em casa enquanto o marido e o cunhado dão festas para celebrarem a sua Estrela. Não te iludas! O embaixador de Veneza não passa de um pretexto... E, por amor de Deus, pára de fazer essa cara! Devias levantar a cabeça tão alto como Simonetta. Quando compreenderás que tens o direito de estar orgulhosa de ti mesma?

instantaneamente, os olhos de Fiora encheram-se de faíscas:

- Sinto-me orgulhosa pelo que o meu pai fez de mim e pelo meu nome. Não é suficiente?

- Não, é tempo de compreenderes que já não és uma miúda, mas antes uma jovem... muito sedutora!

Fiora desatou a rir:

- O meu pai e Léonarde dizem a mesma coisa. Ainda acabo por acreditar nos três.

- E farias bem. Outros se encarregarão, aliás, de te convencer, desde que admitas que te podem cortejar por ti e não pela fortuna do teu pai. Aliás, pergunto a mim própria onde foste buscar essas ideias?

- Oh! isso vem de longe. Devia ter sete ou oito anos quando um dia donnaHieronyma...

- A tua prima?

- Do meu pai, sim. Ela estava a passear com uma amiga no jardim onde eu estava a brincar e parou. Pegou numa mecha dos meus cabelos e disse: «Esta pequena é realmente muito feia! Uma verdadeira filha do Egipto! Se não fosse o dote que há-de vir a ter, nenhum rapaz a quereria.»

- E tu acreditaste nela? Verdade seja dita que ela morreu pela boca: o filho dela é um monstro.

- Por favor, não falemos mais disso! Não é o local nem o momento.

A grande tribuna enchia-se. A rainha tomou lugar no seu trono, ao seu lado sentou-se o Magnífico e no outro o embaixador de Veneza, Bernardo Bembo. Francesco juntou-se às duas jovens, em companhia do tio de Chiara, no balcão lateral mais próximo da tribuna.

- Então, jovens damas? - perguntou ele com bom humor espero que estejais satisfeitas com os vossos lugares? Daqui, nada vos escapa do que se passa na justa nem na tribuna da rainha.

Era, com efeito, interessante e as duas amigas divertiram-se por um momento a enumerar todos aqueles que nela tomavam lugar. Os priores da Senhoria primeiro, com os seus gorros forrados e dalmáticas de veludo púrpura, acompanhados pelo magistrado municipal Peirucci.

1 Oficial de Justiça, na Idade Média, das cidades republicanas italianas.


Depois, alguns dos homens mais nobres ou mais ricos da cidade. Estava ali o séquito habitual do senhor: o filósofo-médico Marsile Ficino, que lhe ensinara a doutrina platoniana, o poeta helenista Angelo Poliziano que era o companheiro mais chegado do Magnífico, encarregado por ele de educar o seu filho, as três irmãs Médicis, Bianca, Maria e Nannina, o velho sábio Paolo Toscanelli, o astrónomo que tinha imaginado uma nova técnica para os gnomons e até tinha instalado um na igreja de Santa Maria del Fiore, a catedral de mármore branco, vermelho e verde, o admirável Duomo, pelo qual os florentinos se sentiam tão orgulhosos e com razão. Toscanelli era, além disso, conservador da Biblioteca médica e Fiora conhecia-o bem por ter recebido dele lições de astronomia, assim como tinha recebido de outros mestres cursos de grego, latim, matemática, canto, dança, metrificação e todas as outras coisas pouco habituais noutros lugares, que faziam das filhas das grandes casas, em Itália, verdadeiras eruditas. Junto do velho mestre, o seu aluno favorito, Amerigo Vespucci, o jovem cunhado de Simonetta, roía as unhas com um ar vago e não olhava para nada nem para ninguém, mas o seu gosto pelas viagens pelas estrelas era demasiado conhecido para que alguém se preocupasse.

Uma vigorosa cotovelada pôs fim à exploração de Fiora.

Olha! sussurrou Chiara sobreexcitada: Quem é aquele ali?...

Quem?

Não estás a ver aquele homem que se está a sentar ao lado de Monsenhor Lourenço? Um estrangeiro, certamente, porque nunca o vi.

Com um amável gesto de convite, o Magnífico fez sentar à sua esquerda um desconhecido de alta estatura, que podia ter entre 25 e 30 anos e cuja atitude anunciava ao mesmo tempo o senhor e o guerreiro. Sobre uns largos ombros exibia uma cabeça arrogante, na qual os curtos cabelos castanhos deviam estar mais habituados ao elmo do que ao chapéu de veludo negro, ornamentado com uma grande medalha de ouro. O rosto de maxilares poderosos, de grande nariz desdenhoso e lábios finos, que uma ruga trocista erguia de um lado, era demasiado assimétrico para pretender ser puramente grego, mas, quando sorria, aquela boca dura mostrava uns dentes brilhantes, e ao abrigo das pestanas direitas os olhos cor de avelã cintilavam de inteligência e ironia. O grande manto que o desconhecido usava negligentemente atirado

Precursores do quadrante solar


para cima dos ombros punha a descoberto um gibão de veludo negro, sobre o qual sobressaía um grande colar de ouro, do qual pendia uma curiosa jóia representando um carneiro dobrado em dois.

- Pai - pediu Fiora - sabes dizer-nos...

- ... quem é aquele interessante estrangeiro? - completou Beltrami, dirigindo um sorriso trocista às duas curiosas. - Chama-se Philippe de Selongey, cavaleiro da ordem do Tosão de Ouro e enviado extraordinário do muito poderoso duque Carlos de Borgonha, a quem chamam frequentemente o Grande Duque do Ocidente e mais frequentemente ainda, mas em voz mais baixa, o Temerário, por causa da sua coragem indomável e do seu orgulho desmedido, que o empurram, por vezes, para caminhos bem perigosos! Chegou apenas esta manhã e daí as armas do seu senhor não aparecerem ao lado das nossas e das de Veneza. E agora esquecei-o porque vai começar o torneio...

De novo se ouviram as trombetas, de novo os estandartes voltearam nas mãos hábeis dos seus portadores e o fabuloso cortejo dos cavaleiros que iam defrontar-se desfilou sob as aclamações da multidão. Não traziam os habituais arreios de guerra, antes armas douradas, escudos redondos e elmos fantásticos, ornamentados com quimeras, dragões, elmos à maneira grega, como se imagina que usaria Alexandre o Grande, ornamentados com folhas de louro, ou cinzelagens complicadas. Cascatas de plumas de cores diferentes caíam das cimeiras... As meias couraças eram à moda antiga.

Sob a sua, que era de prata e ouro, Giuliano trazia uma túnica de veludo vermelha e branca constelada de pérolas e sobre o seu escudo de ouro a Gorgona cinzelada arvorava na fronte o Libro, o maior dos diamantes dos Médícis. O jovem brilhava de juventude e alegria. Trazia, apoiado na coxa, um grande estandarte, de significado tão obscuro que escapava à maioria dos espectadores, mas que custara muito trabalho a Sandro Botticelli.

Era um pendão em tafetá de Alexandria, franjado a ouro a toda a volta, que no topo tinha um sol e no meio a figura de Palias, de borzeguins azuis e túnica dourada sobre um vestido branco, que se parecia bastante com Simonetta. Aquela figura pousava os pés em cima de umas chamas que queimavam os ramos de uma oliveira, enquanto que no alto outros ramos estavam intactos. Tinha na cabeça um elmo polido, à moda antiga e os cabelos entrançados voavam ao vento. Na sua mão direita tinha uma lança e na esquerda o escudo de Medusa. Junto dela havia uma pradaria cheia de flores e um tronco de oliveira, ao qual o deus do amor estava atado com cornos de ouro. A seus pés, Eros tinha um arco, uma aljava e flechas quebradas. Por fim, num dos ramos da oliveira, algumas palavras estavam escritas em francês, em letras douradas: -La sanspar (eille)». A dita Palas olhava fixamente o Sol.

Aquele monumento provocou um grande efeito, mas, do seu lugar Fiora percebeu que o embaixador veneziano perguntava ao seu vizinho, um certo Augurelli de Rimini, o que significava aquilo. O outro limitou-se a encolher os ombros num gesto de ignorância. A explicação veio quando Poliziano do alto da tribuna, começou a leitura de um longo poema de sua autoria, que era suposto cantar um sonho de Giuliano, isso enquanto os cavaleiros evoluíam graciosamente, «para mostrarem a sua habilidade e a beleza das suas montadas:

Parece-lhe ver a sua dama, cruel,

de rosto severo e arrogante,

atar Cupido à coluneta verde do ditoso arbusto de Minerva,

de armadura sobre o vestido branco e protegendo o casto seio com a Gorgone

e parece-lhe que ela lhe arranca as penas das asas

e quebra o arco e as setas do infeliz.

Mas, no seu sonho, Giuliano promete a Palas transportar as suas cores na liça e assim termina o poema que foi muito aplaudido, talvez com algum alívio. Pela sua parte, Fiora, para se distrair, observava o estrangeiro que tanto a tinha intrigado, mas tinha de desviar o olhar com frequência, porque, a maior parte das vezes, os seus olhos e os do borgonhês encontravam-se, o que lhe provocava uma bizarra impressão de constrangimento, misturada com um prazer secreto.

O espectáculo das justas acabou por atrair a atenção de todos, mas aquilo foi mais um bailado bem ensaiado do que um verdadeiro combate. Os golpes eram corteses e o jovem Médicis venceu sem grande dificuldade quase todos os seus adversários. Apenas dois lhe deram trabalho.

O primeiro foi Luca Tornabuoni, na cimeira do qual estava atado o pequeno lenço branco e dourado de Fiora e que se atirou com vontade ao mais jovem dos Médicis. Mas não conseguiu. Tal como os outros, caiu do cavalo e Fiora sentiu-se um pouco irritada: não tinha dado o seu penhor àquele imbecil para ele o arrastar pela poeira...

O segundo não era esperado. Quando Giuliano ia ser proclamado vencedor, um cavaleiro, cuja armadura normal contrastava com os brilhantes equipamentos dos outros, apresentou-se e foi bater com a lança no escudo de Giuliano. Um homem novo, feio, atarracado, de cabelos negros e pele morena. Ao vê-lo, Lourenço franziu as sobrancelhas.

- Chegas muito tarde, Francesco Pazzi. Por que não deste a conhecer mais cedo o teu desejo de tomar parte na giostra

- Porque não me apetece disfarçar-me. Apresento-me na minha hora, a menos que este torneio não seja aberto a todos?

- Por que não haveria de o ser? E se desejas medir-te com o meu irmão...

- Com ele ou com outro qualquer, não tem importância! O que eu quero é receber a coroa e beijar a mão e os lábios da bela Simonetta. A menos que os favores sejam exclusivamente reservados ao teu irmão?

- Se os queres, vem buscá-los - rugiu Giuliano, furioso. - Mas não os terás com facilidade...

- É o que vamos ver!

O combate travado entre ambos não tinha nada de cortês. Pazzi batia-se com irritação e Giuliano com raiva, provocando uma troca de golpes que atraiu os aplausos do público. Pela sua parte, Fiora ficou satisfeita com aquela luta sem concessões, que apagou, por fim, o meio sorriso irónico de Philippe de Selongey. Até ali, aquele estrangeiro parecera considerar a soberba giostra uma brincadeira de crianças.

Por fim, Pazzi mordeu o pó e retirou-se sob os apupos da multidão, aos quais Fiora se associou de boa vontade. O vencido era o cunhado de Hieronyma, sua prima detestada e ela acabara por detestar, também, os Pazzi em geral. Além disso, estes escondiam com dificuldade a sua animosidade para com os Médícis e dizia-se que Francesco tentara, certo dia, obter à força os favores de Simonetta. Vê-lo vencido era bom e Fiora quase esqueceu alguma pena que sentiu quando chegou o momento que todos esperavam, o clímax do espectáculo, que era a coroação do vencedor pela rainha do torneio.

Giuliano ajoelhou-se diante de Simonetta, que lhe colocou na cabeça uma coroa de violetas, antes de lhe dar um beijo um pouco mais longo, talvez, do que o exigiam as circunstâncias. Ao ver aquilo, a multidão ovacionou-o, os homens gritaram, as mulheres choraram de comoção, os gorros voaram pelo ar e o entusiasmo atingiu o cúmulo quando um jovem saltou da tribuna e se foi colocar junto do trono da rainha. Era um rapaz magro, de rosto ossudo e cabelos louros indisciplinados, que pareciam de palha. Os seus olhos claros, mas severos, poderiam pertencer a um monge, ou a um profeta.

- Minha irmã - disse ele calmamente - não te parece que o teu lugar é em casa, junto do teu marido e não aqui, onde ele não está?

- Meu Deus! - sussurrou Fiora encantada - eis o nosso Amerigo, que desce das suas estrelas...

- para se ocupar da de Génova - acrescentou Chiara, para quem o menor incidente era motivo de encanto. - Será que nem tudo vai bem entre os Vespucci, para que o iluminado da família se intrometa?

Mas já o Magnífico interpelava o perturbador:

- Retira-te, Amerigo Vespucci! Simonetta reina em Florença pela sua beleza e os seus deviam estar orgulhosos. Se Marco, o seu esposo, não a quis acompanhar, lamentamos, mas não podemos fazer nada.

- Ele sabe que não seria bem-vindo! Retiro-me porque mo ordenas, mas quis que soubesses que a família não aprova...

Um homem aproximou-se, puxou-o pela manga e Fiora reconheceu o seu pintor. Sandro Botticelli e o jovem Vespucci eram amigos, sendo a casa de um e o palácio do outro vizinhos no bairro de Ognissanti. Entretanto, Fiora e Chiara preparavam-se para tomar o partido de Amerigo. O pai de uma e o tio de outra fizeram-nas acalmarem-se.

- Devias saber que esta gente perde a cabeça quando se lhes toca no ídolo - disse Albizzi descontente. - Quanto aos Médicis, sabes muito bem que são rancorosos e eu não quero ser exilado como o meu pai.

Francesco, esse, limitou-se a sorrir para a sua filha e a obrigá-la a sentar-se, porque o espectáculo ainda não tinha terminado. A jovem sentou-se e, maquinalmente, olhou para o enviado borgonhês, mas virou a cabeça de imediato, corada até à raiz dos cabelos: não apenas o insolente se permitira sorrir-lhe, como, com a ponta dos dedos, lhe enviara um beijo...

Ao mesmo tempo que os cavaleiros mais ou menos magoados e sujos regressavam às tendas que os esperavam, em boa ordem, o Magnífico mandava comparecer perante o trono de Simonetta, para o felicitar, o homem que montara o faustoso espectáculo, desenhara os fatos e pintara o cenário: Andréa di Cioni, chamado Verrochio. Esse homem era, então, o pintor e escultor mais célebre de Florença e os alunos enchiam o seu atelier, de onde saíra Botticelli.

O artista apareceu sob os aplausos da multidão e, não fora as suas roupas elegantes, poder-se-ia tomá-lo, sem dificuldade, por um camponês, com a sua estatura baixa e entroncada, a grande cabeça redonda coberta de cabelos negros e frisados. Junto dele caminhava o seu aluno preferido, que o ajudara na preparação da festa e esse, grande, delgado e louro, atraía os olhares de todos, porque tinha a beleza impassível de uma estátua grega. Era Hermes, de regresso à terra. E enquanto Verrochio agradecia, confundido, o deus grego recebia as felicitações do senhor com uma saudação, um sorriso e nenhuma palavra.

- Meu tio - declarou Chiara - se aquele jovem é pintor, devias pedir-lhe para me pintar o retrato. Gostava de posar para ele...

- Menina tola! Pede isso ao teu marido, quando tiveres um. Aliás, nem sequer sei o nome dele...

- Se o problema é esse - disse Beltrami - posso informar-te. É o filho de um notário das redondezas, com o qual tive, recentemente, um assunto a tratar. Chama-se Leonardo... Leonardo da Vinci e Verrochio estima-o muito. É um rapaz estranho, mas de muito talento...

- Leonardo? Não gosto muito desse nome. Faz-me lembrar a tua governanta - disse Chiara com um sorriso trocista.

Fiora encolheu os ombros.

- É apenas um nome! Ainda por cima porque aquele jovem é demasiado belo para evocar dame Léonarde...

A noite aproximava-se rapidamente. De repente, como por artes da varinha de um mágico, a praça iluminou-se com a chama de centenas de archotes. As trombetas lançaram para o céu sombrio o seu apelo triunfal e o cortejo da rainha voltou a formar-se. Lourenço ofereceu a sua mão a Simonetta para a ajudar a descer do trono. À luz trémula dos archotes, a jovem brilhava como uma estrela...

- Meus amigos - lançou o Magnífico com a sua voz rouca - as damas reclamam, agora, o nosso serviço. Vamos dançar!

Logo a seguir, os convidados abandonaram os seus lugares. Fiora viu, então, que o estrangeiro continuava a contemplá-la.

CAPÍTULO II O ENVIADO DA BORGONHA

Madonna, tendes de acreditar em mim, eu preferia morrer a ser vencido perante os vossos olhos...

Luca Tornabuoni suplicava de joelhos a Fiora, sentada entre uma tapeçaria de Arras franjada a ouro e uma credencia de cores quentes e joalharia preciosa carregada de vidro de Veneza na mais recuada sala do palácio Médicis, onde a jovem se refugiara para encontrar um pouco de tranquilidade... Havia ali pouca gente, estando a maior parte dos convidados na sala vizinha, onde uma viva romanesca empolgava os dançarinos ao som das violas, das harpas, das flautas e dos tambores.

Como todos os Florentinos, Fiora adorava a música, mas, naquela noite, preferia ouvir a dançar, já que o espectáculo de Giuliano conduzindo o baile e segurando Simonetta pela mão não lhe era muito agradável. Refugiara-se, portanto, naquela sala mais agradável. Infelizmente, aquele grande palerma seguira-a! A jovem recompensou o seu protesto inflamado com um sorriso ácido:

Morrer, talvez... mas não desiludir Monsenhor Lourenço disse ela. Toda a gente sabe que Giuliano tinha de ser o vencedor do dia, porque a Estrela de Génova era a rainha da giostra. Ela não podia ficar desiludida e quem desilude Simonetta, desilude Lourenço...

Estais a querer dizer... que eu me deixei vencer?

É mais ou menos isso. Ora vamos, Luca, vós sois duas vezes mais forte do que Giuliano e uma meia cabeça mais alto! Contra Lourenço, não digo nada. Mas contra o irmão dele, vós devíeis vencer. Esperava que o meu penhor vos conduzisse à glória. Como isso não aconteceu... devolvei-mo!

O jovem apoiou a mão no peito para melhor defender o precioso penhor:

Não sois assim tão cruel?

Eu não gosto de vencidos. Vamos, devolvei-me o meu lenço! Não foi feito para enxugar lágrimas de arrependimento.

Uma risada fez a jovem virar-se. Apoiado à tapeçaria e de braços cruzados no peito sempre ornamentado com o colar do cordeiro dobrado em dois, Philippe de Selongey olhava para o casal com um sorriso trocista, que a jovem achou perfeitamente detestável. Quando viu que Fiora olhava para ele, o enviado da Borgonha bateu palmas num aplauso zombeteiro:

Bravo, menina! Parece que, a despeito da vossa tenra idade, dais provas de um singular espírito de perspicácia...

Que quereis dizer? perguntou Fiora com altivez.

Que não vos deixastes enganar assim como eu pela comédia marcial que nos impingiram há pouco. O cenário foi óptimo, mas os papéis foram mal interpretados.

Isso significa o quê? grunhiu Luca avançando para o perturbador, o que permitiu à jovem constatar que, se Tornabuoni era mais alto do que Giuliano, o borgonhês ainda era mais alto do que Tornabuoni.

O sentido é claro, parece-me disse Selongey com um desdém que fez corar as faces de Fiora vimos um belo espectáculo... que não se pareceu nada com um torneio digno desse nome.

Que sabeis vós disso? Nós combatemos, se bem que com armas corteses...

Chamais àquilo armas corteses? Eu diria antes armas simbólicas... ou mesmo armas inexistentes. Se quereis saber o que é um verdadeiro torneio, ide a Bruxelas, a Bruges, a Gand ou a Dijon e podereis constatar que as nossas armas corteses podem servir em tempo de guerra... a gente como vós!

A cólera purpurou subitamente o belo rosto de Luca e, desembainhando o punhal que tinha à cintura, metido numa rica bainha de couro de Cordova, atirou-se, de arma em riste, ao homem que o desafiava de Maneira tão insolente.

Ides arrepender-vos dessas palavras!

O outro nem sequer descruzou os braços e olhou para o agressor com o sorriso indulgente reservado às crianças e aos irresponsáveis:

Que pretendeis fazer? Provar o vosso valor num local como este quer dizer, fora de propósito... ou quereis assassinar-me?

Pretendo que lutemos agora mesmo no jardim deste palácio,

por exemplo, para vos mostrar se sou uma criança ou um louco! Vindes, ou tenho de vos forçar?

Falais a sério?

Falo a sério!

Meu Deus, como sois chato! Tendes mesmo vontade de acabar a noite na vossa cama com um ou dois furos na pele? Parece-me que numa noite destas há coisas melhores a fazer.

O quê, por exemplo?

Mas... embriagar-vos, por exemplo. Os vinhos de monsenhor Lourenço, se bem que não sejam da Borgonha, são dignos de estima. Ou, então, pedir a uma bela dama para dançar. Eu, tudo o que desejo, é que saiais daqui. É que tenho muita vontade de tomar o vosso lugar aos pés dessa jovem donzela, que ninguém ainda consentiu em me apresentar...

Era, aparentemente, a noite dos propósitos interrompidos, porque ouviu-se uma voz baixa e rouca e a alta silhueta do Magnífico apareceu subitamente entre os dois homens, que sublinhe-se recuaram um passo em sinal de respeito, ao mesmo tempo que esboçavam uma saudação:

Eis uma lacuna que eu posso preencher facilmente disse Lourenço num francês perfeito. Permiti, Madonna Fiora, que vos apresente o conde Philippe de Selongey, cavaleiro do Tosão de Ouro como podeis ver e embaixador do senhor duque Carlos da Borgonha. Quanto a vós, messire Philippe, espero que aprecieis devidamente a honra que vos é concedida por poderdes saudar donna Fiora Beltrami, um dos mais belos ornamentos desta cidade e filha de um homem que eu tenho em grande conta. Estais satisfeito?

Inteiramente, monsenhor!

E a saudação que Philippe ofereceu a Fiora teria satisfeito uma imperatriz.

E agora, concedei-me a graça de vos mandar conduzir ao meu gabinete das medalhas. Temos de falar. Eis aqui Savaglio, que vos vai levar lá. Quanto a vós, adorável Fiora, concedei-me a alegria de danÇar convosco esta pivd

A atmosfera, tão ameaçadora instantes antes desanuviou-se como que por encanto. Os dois adversários separaram-se: Philippe de Selongey para acompanhar o capitão da guarda do palácio e Luca Tornabuoni para oferecer a sua mão a uma jovem ruiva que acabava de aparecer precisamente naquele instante. E Fiora viu-se a caminho da sala de baile, a sua fina mão alojada na do senhor, que a segurava bem alto para que todos admirassem bem a sua dançarina. Juntos, tomaram lugar à cabeça da dupla fila de dançarinos, ao mesmo tempo que os músicos começavam.

As figuras de uma dança que exigia perfeição de gestos manteve-os silenciosos por uns curtos momentos. Fiora abandonou-se ao prazer de evoluir ao som da música com o ardor da sua juventude, mas também com uma ponta de orgulho. Era muito excitante dançar com aquele a quem muitos chamavam em voz baixa «o príncipe» e ser, assim, o centro de todas as atenções. A firmeza da mão que segurava a sua comunicava-lhe uma estranha segurança. Pela primeira vez na sua vida a jovem gozava a alegria de se sentir bela e admirada, que lhe vinha da expressão nova que podia ver nos olhos sombrios de Lourenço. Ele olhava-a como se nunca a tivesse visto antes e, sob aquele olhar insistente, ela sentiu-se corar.

Que idade tens? perguntou subitamente Lourenço.

Dezassete anos, monsenhor.

A sério? Ter-te-ia dado mais. Talvez devido à Maneira como ergues altivamente a cabeça e olhas de frente. A maior parte das raparigas da tua idade baixa os olhos à mais pequena palavra e eu sempre pensei que nessa atitude havia uma boa dose de hipocrisia. Isso não acontece contigo! Permaneces serena em todas as circunstâncias... pelo menos, dás essa impressão.

Porque não desmaiei de emoção quando me convidaste? (A jovem desatou a rir com um riso musical, ao qual o timbre quente da sua voz dava um encanto inesperado.) Quanto à minha serenidade, não acredites nela. Encolerizo-me com muita facilidade. E também sei corar...

Eu vi... e ficas bem bonita. O teu pai já pensou em casar-te? Creio que, para já, ainda não. E eu também não o desejo, senhor Lourenço, se queres saber a verdade... Aliás, as raparigas daqui raramente se casam antes dos 20 anos. |

Que estranha criatura que tu és! Desde os dez anos que as tuas iguais sonham com um marido e, pelo que pude ver, a ti não te faltam apaixonados. A prova é que dois homens estavam prontos a lutar por ti, parece-me? Nenhum deles te tocaria o coração?

- Nenhum. Aliás, não era por mim que Luca Tornabuoni e o estrangeiro iam lutar, mas sim pela maneira como se concebem os torneios aqui e na Borgonha...

- Que coisa tão grosseira! Se eu tivesse sabido, tê-los-ia feito parar. A uma mulher bela só se deve falar dela. Na verdade, estou desiludido.

- Eu não - disse Fiora tranquilamente. - Vê tu, monsenhor, que eu não estou certa de ser cortejada por mim mesma... Ouço falar muito da fortuna do meu pai e sou filha única.

O braço que Lourenço acabava de passar pela cintura de Fiora, apertou um pouco o seu amplexo e a sua voz carregou-se de severidade:

- Essas ideias não são para a tua idade! Nem sequer deviam afluir ao teu espírito. Devias sonhar apenas com a alegria de ser jovem e encantadora, com a felicidade que um dia te atingirá e com as festas que te trarão o amor. Na verdade, começo a acreditar que não há um único espelho digno desse nome no palácio Beltrami...

O par separou-se para a saudação final e Fiora recebeu em pleno rosto o sorriso trocista do Magnífico.

- Vou-te enviar um. E agora devolvo-te a liberdade, belo passarinho, porque tenho de ir para onde me chama a política...

Os dois dançarinos tinham parado face às cadeiras de cerimónia onde estavam sentadas Lucrezia Tornabuoni, a mãe de Lourenço e Giuliano, uma dama imponente, com os seus veludos negros cobertos de prata e Clarissa, a ruiva Clarissa Orsini, esposa de Lourenço, vestida de brocado escuro e linho dourado. Fiora ofereceu-lhes uma reverência plena de respeito, que lhe valeu um sorriso duplo e depois afastou-se procurando Giuliano com os olhos, para ver se ele fora testemunha daquilo que ela considerava um triunfo, mas o jovem, sentado num banquinho de veludo aos pés de Simonetta, rodeada por uma grinalda de poetas, não prestava qualquer atenção à dança. Olhava para a bela genovesa, que se inclinava muitas vezes para ele, sorrindo.

Ambos davam uma imagem tão perfeita daquele amor cortês tão caro aos romances de cavalaria, que Fiora esqueceu o seu ciúme para admirar, como um artista, o grupo formado, uma sinfonia de brancura, sobre a qual sobressaía o cintilar das jóias e o doce brilho das pérolas. Mas na perfeição da jovem havia qualquer coisa de frágil, que subitamente atingiu quem a observava. A pele tão branca de Simonetta parecia mais fina, quase transparente e se o grande decote permitia admirar os seus seios encantadores, o desenho frágil das clavículas parecia mais acentuado. Quanto às mãos, uma das quais estava pousada no ombro de Giuliano, eram de uma brancura diáfana... Estaria Simonetta doente?

Longe de se alegrar com uma coisa que libertaria Giuliano, Fiora sentiu uma piedade brusca e profunda. Permitiria o Criador que uma doença qualquer arruinasse, na flor da idade, uma das suas obras mais bem acabadas? Simonetta era demasiado jovem e demasiado alegre para que, olhando para ela, se evocassem as trevas da tumba.

A sensação de uma presença por trás de si fez virar a jovem tão bruscamente que ela embateu numa personagem que nunca tinha visto antes.

Oh! Desculpai-me! disse ela em francês. O homem não pareceu ter-se apercebido fosse do que fosse. Os olhos que ele tinha pousados no casal Giuliano-Simonetta nem sequer pestanejaram.

No entanto disse ele é fatal. Achais, jovem, que monna Simonetta é demasiado jovem para morrer? É que seria uma pena...

Como podeis saber uma coisa dessas? sussurrou Fiora, estupefacta.

Não sei: sinto-o, ouço-o. Acontece-me, por vezes, ouvir os pensamentos das pessoas. Quanto àquela jovem, lembrai-vos do que vos digo esta noite: ela não vive mais de 15 meses. Nessa altura Florença viverá uma aflição, mas vós não a vereis.

Uma súbita angústia secou, de repente, a garganta de Fiora.

Porquê? Estarei... também morta, eu?

Os olhos escuros do desconhecido mergulharam nos da jovem e esta teve a impressão bizarra de que ele conseguia ler tudo o que lhe ia na alma.

Não... mas lamentá-lo-eis, talvez, porque estareis longe e não me parece que estareis feliz.

Estarei... longe? Mas, onde...

Ele interrompeu-a com um gesto da sua mão ossuda e afastou-se de imediato. Fiora viu o seu traje negro, semelhante aos usados pelos médicos, afastar-se por entre os alegres vestidos de festa, mas conseguiu seguilo através das salas iluminadas, porque era um homem muito grande e a sua cabeça, na qual havia um gorro alto com um gancho dourado dominava

1 Contracção de Madonna.


quase todas as outras. Fiora teve vontade de se lançar atrás dele, mas não foi capaz, porque as palavras que ele acabava de pronunciar tinham-na gelado por completo. Havia nelas uma ameaça imprecisa que a assustara, porque escapava ao entendimento humano.

A voz familiar de Chiara tirou-a daquela espécie de abatimento e fê-la estremecer.

- Trago-te um infeliz que nem sequer ousa apresentar-se, porque está persuadido de que tu o desprezas. Assegurei-lhe que o teu coração não é assim tão duro.

Fiora olhou, sem na realidade os ver, para a sua amiga e para o jovem Tornabuoni, que, de imediato, perante a palidez do seu rosto, se inquietaram. Chiara meteu o braço no da amiga para a amparar.

- Que te aconteceu? Estás doente? Estás a tremer... Vai-lhe buscar um copo de vinho, Luca! Ela vai desmaiar.

O jovem correu na direcção de um dos grandes bufetes, dispostos em cada extremidade dos salões, não sem se virar várias vezes e sem se preocupar com os encontrões que ia dando pelo caminho. Entretanto, Chiara conduzia a sua amiga até ao vão de uma janela para a fazer sentar num banco guarnecido de almofadas. Fiora passou uma mão ainda trémula pela fronte e depois sorriu para o rosto inquieto e inclinado para si.

-Já estou melhor, tranquiliza-te. Não sei o que me deu, creio que tive medo.

- Medo, tu, que nunca te assustas? De quê, meu Deus?

- De um homem que nunca tinha visto, mas em quem tu, talvez, tenhas reparado. É muito grande, um pouco curvado. Tem um rosto moreno bem enquadrado por uma barba curta e por uns cabelos grisalhos e olhos da mesma cor do rosto. Tem um traje negro e um gorro alto... Ainda há uns instantes estava aqui.

- Com efeito, vi alguém que corresponde a essa descrição, mas ignoro o seu nome. Por que tens medo dele?

- Porque me disse coisas terríveis. Segundo ele, Simonetta morrerá no ano que vem. Quanto a mim, estarei longe daqui e não estarei feliz.

Uma pequena chama acendeu-se no olhar trigueiro de Chiara.

- Um adivinho? Isso é maravilhoso! Tenho de lhe falar, absolutamente, para que me diga...

A jovem já se preparava para ir no encalço do homem. Fiora reteve-a com uma mão firme.

Fica aqui! Ele não é um homem a quem se pergunte pelo futuro. Quando ele olha para ti, gela-te o sangue. E, peço-te: nem uma palavra acerca do que te disse. Chiara condescendeu, mas, pela sua expressão, Fiora viu bem que não ficara convencida. Felizmente, Luca estava de regresso com um copo de vinho Malvasia, pelo qual Fiora não tinha, aliás, qualquer desejo, mas do qual bebeu algumas gotas para dar prazer ao seu apaixonado, que olhava para ela com olhos de cão fiel, feliz por constatar que um pouco de cor já regressava aos olhos da jovem.

Isso vai melhor, não é verdade? E agora, quais são as ordens...

Tenta saber quem é uma determinada pessoa que nos interessa muito! disse Chiara, que continuava com a ideia fixa.

Qual pessoa? A jovem lançou-se numa descrição tão fiel quanto possível, porque já em segunda mão. Fiora deteve-a:

Não te canses. Estou a vê-lo a falar, além, com raesserPetrucci... Luca virou-se, olhou na direcção indicada e franziu o sobrolho.

O magistrado municipal é a última pessoa com quem o feiticeiro devia conversar. É ele que abre o caminho que vai dar à fogueira...

Um feiticeiro? E tu conhece-lo?

Eu não o conheço, mas sei que é precisou Luca altivamente! O que não é a mesma coisa...

Pouco importa! Fala, já que sabes, em vez de nos deixares em brasa.

Bela palavra quando se trata de um adorador do diabo! troçou o jovem. Bem, ficais a saber, belas curiosas, que aquele homem chama-se Demétrios Lascaris. É um médico grego e o meu primo Lourenço tem-no em grande estima por causa do seu saber. Espera que este Lascaris, que pretende descender dos imperadores de Bizâncio, lhe devolva o olfacto de que foi privado e presenteou-o com uma casa perto de Fiesole. Mas dizem que se passam lá coisas estranhas... que evocam lá o diabo!

A voz de Luca baixava de tom à medida que falava e acabou num sussurro dramático. O que teve o dom de irritar Fiora:;

Nós temos uma villa em Fiesole e nunca ouvimos falar nesse médico grego. Quando um homem sai da mediania, é espantoso o que se diz dele...

1 Com efeito, o Magnífico não tinha olfacto.

2 No sentido antigo do termo.


Para mal dos seus pecados, a jovem foi incapaz de dizer a razão que a levara a tomar, de repente, a defesa de um homem que a assustara tanto uns instantes antes. Talvez porque, educada pelo seu pai na escola da filosofia grega, achava chocantes aqueles comentários supersticiosos. O homem era extraordinário, sem dúvida e parecia ter o dom estranho da adivinhação. Mas daí a associá-lo a um dos feiticeiros delirantes que floresciam em certas aldeias à volta de Florença, era de mais!

- Talvez seja melhor não espalhar esse género de boatos - acrescentou ela. - Espantar-me-ia muito que monsenhor Lourenço, inteligente e de espírito profundo como é, protegesse uma criatura demoníaca qualquer!

- Que mosca te mordeu? - protestou Chiara. - Olha para este infeliz, que tu não cessas de maltratar. Até tem lágrimas nos olhos...

- Nesse caso, que me perdoe. Estou nervosa, esta noite, um pouco irritada, talvez. - disse Fiora levantando-se. - Há dias e este é um deles, em que parece que nada me agrada.

- Infelizmente - disse Chiara - eu apanho sempre com esses dias!

Fiora desatou a rir e para consolar um pouco o seu adorador malfadado acariciou-lhe a face com a ponta do dedo:

- Platão diz que ninguém escapa ao seu destino! Boa noite para vós! Ide dançar juntos esta calata que os músicos começaram a tocar! Eu vou ter com o meu pai, para lhe pedir que me leve a casa... Estou cansada!

A ligeireza com que Fiora girou nos calcanhares desmentia as suas últimas palavras, mas Chiara, tão bem como Luca, sabia que era inútil tentar demovê-la do que quer que fosse quando ela não queria. Com o mesmo suspiro, mas com sentimentos diferentes, viram ambos o seu vestido de brocado nacarado deslizar por entre os grupos e abandonar o salão de festas.

- Bem - suspirou o jovem Tornabuoni - vamos dançar, já que ela assim o deseja!

- É o que se pode chamar um convite galantemente formulado disse Chiara com uma careta trocista. - No fim de contas, por que não? Isso ou pentear um licórnio, é uma maneira de passar o tempo!

Fiora encontrou Francesco Beltrami na sala de música. De pé, perto da chaminé onde uns escravos negros não cessavam de acrescentar cavacos odoríferos, conversava com Bernardo Bembo, o embaixador de Veneza, que já encontrara várias vezes por ocasião de estadias nas margens do Adriático. Quando Fiora se aproximou, era este último que falava e ela não ousou interrompê-lo.

Desde que o papa Pio II morreu, logo depois de tentar lançar uma cruzada contra os Turcos, Veneza luta só contra o infiel, que a desapossou de quase todas as colónias da Grécia, ou da Ásia Menor. Ninguém parece dar o devido valor ao perigo que o Ocidente corre com um sultão da têmpera de Maomé II. Nem o papa Sisto IV, unicamente ocupado com a construção em Roma e a enriquecer os seus sobrinhos, nem Feirante de Nápoles, nem o Sforza de Milão, nem os Genoveses, claro, que esfregam as mãos enquanto contam as nossas perdas em terras, homens e navios. Toda a gente parece esquecer que Maomé conquistou Bizâncio e que o estandarte do Profeta flutua também sobre o Parténon e que apenas a largura do Adriático protege os Estados do Papa da ameaça dos Turcos, cujos exércitos, há dois anos, chegaram a Frioul.

Nessa época, porém, Veneza dava provas brilhantes de coragem e força, expulsando o inimigo das muralhas de Scutari, que estão mesmo por baixo do seu nariz.

Sem dúvida! Loredano, com apenas 2500 dos nossos, repeliu dez mil turcos para o mar. Mas não passou de um caso em mil e quem sabe se, neste momento, Scutari ainda nos pertence? Os corsários turcos atacam os nossos navios quase em frente dos canais do Lido. E infelizmente o nosso doge, Pietro Mocenigo, apesar de só ter 68 anos, está enfraquecido pelos numerosos ferimentos recebidos nas batalhas contra os corsários e janízaros de Maomé. Não durará muito e nós precisamos de um chefe jovem e cheio de vida.

Seja, mas os vossos marinheiros não têm rival e tendes em Bartolomeo Colleoni o maior condottiere de Itália...

Uma nuvem passou pelo rosto de Bembo:

Colleoni acaba de morrer no seu castelo de Malpaga. A sua fama era tal que ninguém se lembrava da sua idade. - Era assim tão velho? Ia fazer 75 anos. Acrescento que legou à República uma soma de cem mil ducados de ouro, para que, apesar de morto, possa continuar a participar na guerra contra os Turcos. Mas pôs uma condição para a sua generosidade: Veneza erigir-lhe-á uma estátua na praça São Marcos...

Peste! disse Beltrami rindo em pleno coração de Veneza! Nós torneámos a dificuldade: a estátua erigir-se-á na praça Scuola

di San Marco. E se eu estou aqui é, sem dúvida, para pedir a aliança de monsenhor Lourenço, para nos ajudar a proteger as nossas possessões em terra firme, caso o Turco se aproxime, mas também para encomendar esta estátua equestre ao vosso maior escultor, Verrochio. Se Florença o autorizar!

Tanto um, como o outro, ficarão, certamente, encantados.

O tom de Beltrami mudou subitamente, ao mesmo tempo que atraía para si Fiora, que se mantinha a dois passos, esperando que a conversa acabasse.

Quanto a esta jovem que, como certamente reparastes, nos escutava, ilustríssimo senhor, permiti que vo-la apresente: a minha única filha, Fiora.

O rosto do veneziano iluminou-se, ao mesmo tempo que a jovem lhe fazia uma graciosa vénia.

Já tinha reparado, com efeito, que nos escutava, mas a curiosa é tão bela que me senti perturbado. Espero não ter dito nenhuma asneira.

Ficai seguro do contrário. Que queres, filhinha? Por que não estás a dançar depois da honra que monsenhor Lourenço te concedeu?

Justamente porque, depois dele, nenhum dançarino é suficientemente bom... Depois, em voz mais baixa, a jovem pediu: Pai, eu queria voltar para casa...

A nota urgente que vibrava na voz da jovem fez compreender a Francesco que ela não estava a obedecer a um simples capricho.

Como queiras, mas concede-me mais alguns instantes. Partiremos assim que monsenhor Lourenço acabar de falar com o borgonhês. A seguir, falará com o senhor Bembo, aqui presente.

Mal ele terminou a frase, apareceu o Magnífico na companhia de Philippe de Selongey. Lourenço vinha sorridente e afável como habitualmente, mas o borgonhês vinha corado e os seus olhos brilhavam, como que dominados por uma cólera dificilmente controlável. Foi possível ouvir-se o que eles diziam.

O que vos disse não retira nada ao facto de que sois meu hósPede, senhor conde! Sois jovem e a hora pertence ao prazer das damas.

A voz de Philippe de Selongey soou como algumas horas antes as trombetas no recinto do torneio:

Agradeço-vos, monsenhor, mas não seria capaz. Comovo-lo disse o duque Carlos, meu nobre senhor, está em guerra e com ele toda a Borgonha. Eu sou um soldado, não um maricas e como não temos mais nada a dizer um ao outro, permiti que me retire... Como vos aprouver. Voltaremos a ver-nos. Achais necessário? perguntou Selongey com arrogância. Sem dúvida. Não será conveniente que eu vos entregue uma carta para o Grande Duque do Ocidente, já que ele me deu a honra de vos enviar à minha presença? Uma carta... é uma prova de admiração De admiração? Isso pouco importa ao meu senhor, já que não obteve o que desejava. O milanês mostrou-se mais sensato ao ouvir as propostas da duquesa Yolanda de Sabóia, aliada de Borgonha... Contra o seu próprio irmão, o rei de França? A voz de Médicis tornou-se, subitamente, cortante. Uma princesa pode, sem dúvida renegar os laços de sangue sob os aplausos de todos. Mas eu permaneço fiel às minhas alianças familiares. Lembrai-vos que a flor-de-lis está nas minhas armas! É verdade acrescentou ele com um leve sorriso de desdém é verdade que nas da Borgonha também está, mas parece que o vosso duque não se preocupa muito com isso... Desejo-vos uma boa noite, messire de Selongey! Ah! senhor Bembo, andava à vossa procura! Acompanhais-me, por favor?

Os dois homens dirigiram-se para o salão de festas. Fiora e o pai não se mexeram, para não embaraçar a saída do embaixador borgonhês. Como todas as escadarias dos palácios florentinos, a da soberba mansão dos Médicis era estreita e íngreme. Mas Philippe de Selongey continuava imóvel. De punhos cerrados, lutava visivelmente contra a vontade de seguir Lourenço e, talvez, vingar-se brutal e imediatamente das palavras desdenhosas que acabavam de ser pronunciadas.; Mas conteve-se, encolheu os ombros e contentou-se em dizer em voz bastante alta para poder ser ainda ouvido pelo Magnífico.!

Nem tudo será como vós dizeis, senhor Lourenço! Quando monsenhor Carlos tiver vencido os suíços e fizer da Borgonha o reino que em tempos foi, aperceber-vos-eis do peso da cólera!

Com um gesto, o borgonhês chamou os dois homens que esperavam a um canto da sala e que faziam, sem dúvida, parte da sua escolta. Ia afastar-se quando se apercebeu da presença dos Beltrami e aproximou-se deles. Um sorriso iluminou-lhe o rosto tão duro instantes antes:

Donzela Fiora, sois aquela que eu desejava ver antes de abandonar este palácio. Pensava, se não dançar, o que não sei fazer, pelo menos conversar convosco por um momento. Creio que vou protelar a minha partida por uns instantes.

Philippe ofereceu o seu punho fechado, para que Fiora depositasse nele a sua mão. Beltrami repeliu-o suavemente.

Não vos demoreis, messire! Acabais de pronunciar palavras que tornam a vossa presença nesta casa pouco desejável. Quanto à minha filha, não vejo que assunto de conversação possais ter com ela!

Mas... todas aquelas coisas encantadoras que podem interessar a uma jovem e, talvez, saber por que razão o seu rosto me é tão familiar. Tenho a impressão de que já a encontrei, sem poder dizer onde nem quando... O que me envergonha. Devia ser impossível esquecer uma tal beleza.

Fiora já abria a boca para dizer que o cavaleiro teria, sem dúvida, conhecido outrora a sua mãe, mas Beltrami não lhe deu tempo.

Sois vítima de uma ilusão, messire. A minha filha só tem 17 anos e nunca saiu deste país. A menos que se trate de um estratagema... utilizado muitas vezes para meter conversa com uma desconhecida! Boa noite, messire! Nós vamo-nos embora!

A voz era cortês, mas o tom não admitia réplica. Selongey não insistiu e afastou-se, saudando e dando passagem ao pai e à filha. Disfarçadamente, Fiora apanhou-lhe o olhar, ao mesmo tempo sonhador e interrogativo. Já não sentiu a irritação que sentira nos encontros anteriores, antes, pelo contrário, uma curiosa impressão de pena, como a que se sente quando se deixa qualquer coisa interessante por acabar. No entanto, respeitava demasiado as vontades paternais para as discutir... senão na intimidade.

No fundo da escadaria reencontraram os seus servidores, que os esperavam para os escoltar até casa com archotes. Nessa noite não seria preciso iluminação, porque as ruas da cidade estavam cheias de luzes, música e alegria. Festejava-se até nas praças, onde, por ordem de Lourenço, se regalava o popolo minuto, o povinho e, por toda a parte, cantores e saltimbancos arrasavam corações ou mostravam as suas habilidades. A noite de Florença, em festa, estava bela e estrelada...

Diante das portas de bronze do Baptistério, cujas personagens douradas pareciam animar-se à luz dançante dos archotes, um bando alegre de estudantes, aprendizes e raparigas envolveu subitamente o negociante e a sua filha numa roda que os isolou, por instantes, dos seus servidores: Há carícias no ar, messer Francesco exclamou, de imediato imitado pelos outros, um dos rapazes. Ainda não são horas de voltar para casa, são horas de dançar...

Eu já não tenho idade para dançar, meus amigos lançou Beltrami com bom humor e a minha filha sente-se cansada... Cansada? Com esses olhos? Um dos rapazes, que trazia um alaúde às costas, saiu da roda. Pôs um joelho em terra diante de uma Fiora divertida e cantou:

Oh rosa colhida do verde ramo. Foste plantada num jardim de amor...

A canção era célebre. Todos a entoaram em coro e Fiora, sorridente, estendeu a mão ao jovem cantor, que a beijou. Ao mesmo tempo, Beltrami abriu a sua bolsa e tirou dela um punhado de moedas, que atirou para o círculo:

A noite ainda é uma menina, meus amigos! Tirai dela o maior divertimento possível à nossa saúde!

As moedas foram apanhadas rapidamente, após o que o bando, ao som dos alaúdes, das flautas e dos tamborins escoltou o pai e a filha até ao seu palácio, onde, com a permissão do dono da casa, os criados portadores de archotes ofereceram de beber a todos, antes de partirem, também, para dançar até ao nascer do dia. Fiora e o seu pai entraram em casa e Beltrami, tendo exprimido a sua vontade de ir trabalhar para o seu studiolo num manuscrito grego recentemente adquirido, foi seguido por Fiora. Sonhadora, ela aproximou-se do retrato, do qual retirou o véu.

Não são horas para isso! reprovou docemente Francesco. Devias ir dormir...

Por favor, pai, deixa-me contemplá-la mais um pouco! Não vês que acabo de a descobrir? Tu nem sequer me disseste o nome dela.

Disse-te que se chamava Marie.

Há tantas mulheres chamadas Marie! Isso não chega.

Para já, chega. Mais tarde, dir-te-ei...

1 Expressão florentina que significa que se está feliz


Isso, na tua boca, significa imensos anos, não é verdade? E eu, que queria tanto saber... Aquele estrangeiro, aquele... Philippe de Selonggy acrescentou ela corando subitamente tê-la-ia conhecido?

Admitindo que isso seja possível, devia ser bastante jovem.

E a semelhança de que ele falou? Beltrami fechou nas suas as mãos de Fiora.

Não insistas, minha filha! Não me farás dizer o que eu quero guardar para mim e acabarás por ficar zangada! Vai dormir! Aliás, eis donna Léonarde, que te vem buscar...

Com efeito, a porta acabava de ranger, como habitualmente, dando passagem à governanta.

Não vos esperava antes da madrugada. Que se passou?

Nada, fui eu que quis voltar para casa. Não me estava a divertir tanto quanto esperava disse Fiora.

Monsenhor Lourenço dançou com ela e ainda se queixa!

Mas Léonarde já não os escutava. Tinha visto o quadro que Fiora tinha deslocado para ficar mais iluminado, perto da chaminé. Ao cabo de um instante, os seus olhos arregalados viraram-se para Beltrami:

Onde arranjastes esta imagem? perguntou ela em voz neutra.

Pintaram-mo segundo as parecenças de Fiora. É espantoso, não é verdade?

Ele deu uma pequena risada falsamente desenvolta, mas Léonarde continuou a não o ouvir.

Porquê?

Simplesmente porque me apeteceu. Não é suficiente?

Um enorme suspiro, que evocava o silvo de uma forja, escapou-se do peito da governanta:

Vós sois o vosso único juiz, messer Francesco, mas permiti que vos diga que não gosto nada. Isto é tentar o destino... e até o diabo, dar a um rosto morto as parecenças de um rosto vivo. Se acontece alguma coisa à criança...

Bagatelas, tudo isso! Não metais tais ideias na cabeça da rapariga, que já tem demasiada imaginação... e curiosidade! Ela disse que estava cansada, ide deitá-la!

Fiora, que seguira o curto diálogo com a atenção que se compreende, ofereceu a fronte ao beijo do seu pai e deixou-se levar sem protestar, mas a perturbação de Léonarde não lhe escapara e, uma vez no quarto, enquanto Khatoun, estremunhada, e a governanta a despiam para a meterem na cama, ela perguntou bruscamente em francês, para ser compreendida apenas por Léonarde:

Vós também não me ides dizer nada?

Acerca de quê?

Acerca da minha mãe. Por que razão não tenho o direito de saber o apelido dela?

Já chega que rezeis por ela. Se o vosso pai não vos diz nada é porque tem as suas razões. Tentai dormir, agora!

Não tenho sono e acho que a história da minha mãe é uma história terrível.

Quem é que vos meteu essa ideia na cabeça? ”

O meu pai, com o que fez esta manhã...

E ela contou o que se passara no studiolo, quando Francesco quis demonstrar-lhe que ela era tão bela como aquela que ele quisera perpetuar numa recordação.

Reparei numa mancha escura na renda e o meu pai acabou por me dizer que era sangue. O sangue da minha mãe! Não me podeis dizer como ela morreu?

Léonarde, que durante o relato dera sinais de agitação, persignou-se várias vezes:

Não!... Não, não conteis comigo para isso! Dir-vos-ei apenas isto: a vossa mãe era uma criatura doce e adorável, que a infelicidade perseguiu durante toda a sua existência. O amor que o vosso pai lhe devotou foi a única dádiva que o destino lhe deu. É por isso que rezaremos sempre por ela. E agora, dormi!

Empunhando as cortinas brancas de damasco do leito, a governanta ia fechá-las quando Fiora a impediu:

Sabeis muito bem que não gosto de dormir fechada. E tenho mais uma coisa para dizer: esta noite, no palácio Médícis, um homem estranho fez-me uma profecia.

Isso já é outra coisa! Que profecia? E a jovem repetiu-lha, acrescentando:

A vossa amiga Colomba, que sabe sempre tudo, deve ter ouvido falar de Demétrios Lascaris! Gostaria de saber o que pensa ela dele.

Certamente nada de bom! rabujou Léonarde. Não deve passar de um charlatão e de um mau homem! Meter semelhantes ideias na cabeça de uma criança como vós! Espero bem que não tenhais acreditado

nem numa palavra! Quanto a monna Simonetta, toda a Florença sabe que ela não passa bem de saúde. Que um médico seja capaz de ver mais longe, é possível, mas não tinha nada que vos dizer essas coisas. Onde havíeis de estar no ano que vem, meu Deus, senão aqui, ou em Fiesole?... A menos que o vosso pai tenha decidido levar-vos numa das suas viagens e nesse caso vós possais enjoar? Não é preciso ir mais longe, porque monsenhor não vos quer casar já.

Achais que sim? disse, aliviada, Fiora, que não tinha pensado naquela eventualidade.

Com certeza, meu passarinho azul. Esquecei tudo isso! Amanhã direi a messer Francesco que vigie um pouco mais as pessoas que se aproximam de vós quando eu não estou convosco...

Mandando Khatoun, que não parava de bocejar, para o leito de almofadas e peles que ela ocupava a um canto do grande quarto, Léonarde apagou as velas, deixando apenas uma de azeite, perfumada, à cabeceira da cama. A pedido de Fiora, deixara a janela meio aberta para deixar entrar o ar fresco da noite.

Estendida no seu grande leito, Fiora, que não era de uma piedade extrema, murmurou uma curta oração e depois, sentindo que o sono lhe tornava as pálpebras pesadas, fechou os olhos.

Reabriu-as quase de imediato. Um ruído seco de vidros partidos, seguido de um choque surdo, fê-la sentar-se na cama e depois deslizar para fora dela. Qualquer coisa batera no batente da sua janela entreaberta, quebrando um dos pequenos quadrados e essa coisa caíra no tapete.

Com a ajuda da vela, Fiora descobriu uma pedra, à volta da qual estava atado um papel, bem apertado. Com o coração a bater com toda a força, a jovem apanhou-a e lançou, depois, um olhar na direcção de Khatoun, mas a pequena escrava não ouvira nada e dormia de punhos cerrados, enroscada no seu ninho de almofadas.

Fiora foi sentar-se no seu leito, recolocou a vela no seu lugar, rasgou com os dentes a guita que fixava a estranha mensagem, desdobrou-a e leu-a. Continha apenas algumas palavras:

«Amanhã espero-vos, durante toda a manhã, na igreja da Santa Trinita. Não poderíeis ir lá rezar? Preciso absolutamente de vos falar!» E estava assinada: Ph. de S.

Corada e confusa, como se o enviado borgonhês tivesse entrado no seu quarto, Fiora virou e revirou o bocado de papel entre os dedos, sem perceber bem se estava furiosa ou perturbada. Que aquele desconhecido tivesse a audácia de lhe marcar um encontro escandalizava-a, mas sem bem se dar conta sentiu um certo de orgulho misturado com uma certa excitação perante aquela espécie de aventura que se lhe apresentava. Uma aventura como as que ela soubera-o ao ouvir Leonard e Colomba conversarem aconteciam a certas jovens senhoras e raparigas da cidade. A questão era saber se iria ou não a Santa Trinita. A igreja era próxima e ela sabia que podia ir lá apenas na companhia de Khatoun. Léonarde ia lá regularmente, todas as manhãs, para a pequena missa da manhã e, logicamente, não acharia útil regressar só porque, extraordinariamente, Fiora se sentia piedosa e disposta a ouvir o santo ofício num outro dia que não ao domingo e nos dias de festa. A jovem não sabia, na sua candura, que, posta a pergunta naqueles termos era já conhecer a resposta e quando, por fim, adormeceu depois de ter queimado o papel e depositado a pedra onde ela caíra, já decidira ir ao encontro de Philippe de Selongey.

A dita pedra e a janela quebrada intrigaram dame Léonarde quando esta as descobriu na manhã seguinte. O ar inocente das duas raparigas bem desempenhado por parte de Fiora, mas autêntico por parte de Khatoun, que não vira nem ouvira nada convenceram-na a atribuir o incidente a um bêbedo qualquer das muitas centenas que floresciam durante as noites de festa. Evidentemente, não era tão ingénua que ignorasse que uma pedra lançada através de uma janela era um meio conhecido de fazer chegar uma mensagem, mas pensou que nesse caso Fiora teria feito desaparecer, tanto a pedra, como o bilhete. E tranquilizou-se ao pensar que o expedidor, a ser um galanteador, não podia ser senão Luca Tornabuoni, ou um dos outros admiradores da jovem. Em qualquer dos casos, o mal não era grande.

Vou mandar reparar a janela enquanto estiverdes a tomar banho.

Por favor, dame Léonarde, mandai prepará-lo o mais rapidamente possível. Queria ir ouvir missa a Santa Trinita.

Estais doente?

Se estivesse doente, dame Léonarde, ficava na cama disse Fiora com grande dignidade. Mas, depois de tudo o que me aconteceu ontem, acho que preciso de rezar.

Léonarde não insistiu, mas, suspeitando daquela súbita crise de piedade por parte de uma rapariga que parecia estimar mais Platão, Hesíodo, ou Sófocles do que os evangelistas, prometeu a si própria rindo à socapa, porque se a pequena começasse a interessar-se por outro rapaz que não Giuliano de Médicis era uma boa coisa vigiá-la sem que ela se apercebesse. E mandou Khatoun preparar o banho.

Uma hora mais tarde, envolta num grande manto escuro com um capuz forrado de pele de esquilo porque o tempo refrescara bruscamente, Fiora trotava na direcção de Santa Trinita com Khatoun nos seus calcanhares transportando uma almofada e um missal. Aquando da morte da sua mãe, a jovem tártara fora baptizada com o nome de Doctrovée, que era a santa desse dia, mas nunca ninguém a tinha chamado como tal. Khatoun sempre fora o seu nome e Khatoun continuara, mas graças a esse baptismo podia acompanhar Fiora nas suas devoções à igreja.

Santa Trinita, defronte da qual todos os anos as damas e as donzelas de Florença celebravam o regresso da Primavera, era uma severa e nobre igreja gótica, que seria sombria se não fossem os numerosos círios que ardiam nas diferentes capelas. Sob as abóbadas decoradas com frescos de Baldovinetti, estes formavam grandes ramos de luz, que reflectiam o ouro dos altares.

Estava a começar uma missa na nave e Fiora decidiu segui-la antes de ouvir o que o cavaleiro borgonhês tinha para lhe dizer de tão importante. Aliás, tinha reparado imediatamente, ao entrar, na sua alta silhueta escura, plantada na segunda capela à esquerda da nave, diante dos frescos de Giovanni da Ponte. Com o nariz levantado para o magnífico túmulo de Federighi, esculpido por Luca delia Robbia, Selongey parecia estudar cada pormenor com a atenção de um conhecedor, mas Fiora, hipocritamente abrigada sob o seu capuz, viu que ele lançava rápidas olhadelas a cada pessoa que entrava na igreja. Então, a jovem descobriu o rosto o suficiente para que ele a reconhecesse, mas não deu a entender que o tinha reconhecido e foi ajoelhar-se no meio da nave, um pouco atrás das poucas pessoas que ali se encontravam...

Nunca uma missa foi seguida de modo tão distraído. Fiora não rezava e mal escutava, consciente da presença que sentia atrás de si. Ela sabia, sem precisar de virar a cabeça, que o homem, ainda ignorado vinte e quatro horas antes, estava ali muito perto dela e experimentava uma perturbação que não conseguia explicar, mas que sentia com algum prazer... Khatoun, que não tinha qualquer razão para não se virar, cochichou:

Está um belo senhor mesmo atrás de nós que não pára de olhar para ti, patroa!

Eu sei sussurrou Fiora. Ele vai falar connosco daqui a pouco, mas não podes dizer a ninguém. Prometes?

Sem se preocupar com a santidade do local, Khatoun escarrou para o chão enquanto estendia a mão, que era a sua maneira de prestar juramento desde que vira dois marinheiros do Arno agirem desse modo. Fiora não conseguiu evitar um sorriso, mas distinguiu um riso abafado mesmo nas suas costas.

Um riso que, aliás, se extinguiu, terminando num ataque de tosse.

O ofício chegava ao fim. Manejado vigorosamente por um jovem diácono de cabelos em desordem, o incensório lançou alguns clarões e umas espessas volutas de fumo odorante, que encheram a nave com um nevoeiro que encobriu a casula matizada do padre e os preciosos objectos de culto, ao mesmo tempo que, de joelhos, Fiora prosseguia numa oração mais aparente do que real. Uma voz em surdina chegou-lhe aos ouvidos:

Espero-vos junto da pia de água benta...

Ela inclinou ligeiramente a testa, mas não se mexeu, oferecendo a si própria o prazer bem feminino de fazer esperar um pouco mais o homem que a convidara, tão cavalheirescamente, a vir ter consigo, o que lhe permitiu esperar que a igreja se esvaziasse quase por completo. Restava apenas o sacristão, que estava ocupado a apagar os círios dos grandes candelabros com um apagador de cabo comprido, quando, com um último sinal da cruz, Fiora se levantou. Com passos contados regressou lentamente, muito lentamente, para a porta e depois, subitamente, obliquou, para se juntar àquele que a esperava na sombra de um pilar.

Quando chegou perto dele, Selongey segurou-a pela mão e levou-a para a capela mais próxima, que era também aquela onde havia menos luz.

Aquela rapariga que nos segue? perguntou secamente o borgonhês sem se preocupar com qualquer fórmula de delicadeza. Sufocada por tanta impertinência, Fiora começou por libertar a mão:

É Khatoun, a minha escrava. E não penseis que a mando embora: ela nunca se afasta de mim!

Uma escrava? Estais numa igreja e dizeis-me isso tranquilamente? Que espécie de cristã sois vós?

Não creio que tenhais lições a dar-nos nesse capítulo. Os nossos escravos são, parece, mais bem tratados do que os vossos domésticos, ou os vossos camponeses. Como os pagamos bem, tratamo-los bem.

Na verdade, sois uma gente incrível e...

Mudemos de conversa, messire! Não me fizestes vir aqui esta manhã para discutir os nossos usos e costumes! É um assunto acerca do qual não aceito críticas.

Perdoai-me! Não queria melindrar-vos. O que quero é fazer-vos uma pergunta, se me permitis.

Tudo depende da pergunta disse Fiora, sempre na defensiva. Estava muito direita em frente do seu interlocutor, o olhar altivo fixo no de Philippe, que subitamente sorriu e murmurou com a voz mudada:

Tendes uns olhos transparentes. Deve ser possível ler neles o menor movimento da vossa alma...

Isso também não merecia o incómodo... Então, essa pergunta? Se, na realidade, tendes uma...

Tenho uma. Disseram-me que a vossa mãe não era daqui, que era uma nobre dama estrangeira.

Eu sabia que as línguas trabalhavam depressa por aqui protestou Fiora mas ignorava até que ponto! Vós acabais de chegar.

E vou partir muito brevemente, mas é preciso tão pouco tempo para que uma pessoa se interesse por outra!... Ao ponto de tentar saber tudo o que lhe diz respeito. Se vos pergunto pelo nome da vossa mãe é por causa dessa vossa parecença com uma das recordações da minha juventude. Quando eu tinha 12 anos, fui pajem do senhor conde de Charolais, depois duque da Borgonha.

Peço-vos, continuai!

Monsenhor Carlos tinha então como escudeiro um jovem muito belo... e muito triste. Raramente sorria, o que era uma pena, porque O seu sorriso era encantador... exactamente como o vosso. Nunca esqueci aquele rapaz, que, aliás, desapareceu bruscamente. Chamava-se Jean de Brévailles, da boa nobreza borgonhesa, mas de pouca fortuna. Vós pareceis-vos estranhamente com ele, tanto quanto uma rapariga pode parecer-se com um rapaz.

E vós pensastes que talvez esse jovem fosse da minha família?

Com efeito. Foi por isso que vos perguntei o nome da vossa mãe, arriscando-me a parecer-vos indiscreto.

Dir-vo-lo-ia voluntariamente se o soubesse, mas o meu pai, preocupado, sem dúvida, em proteger as suas recordações... e talvez a honra de uma família, já que eu nasci fora do casamento, nunca mo quis dizer. Só sei uma coisa: ela chamava-se Marie.

O silêncio tão particular das igrejas vazias, cujas paredes opõem fronteiras intransponíveis aos ruídos do exterior, silêncio feito da majestade divina e do vazio enorme que as abóbadas abrigam e onde o menor som ecoa e se amplifica, estabeleceu-se entre os dois jovens. Sentindo de novo a emoção da véspera, Fiora reviu o rosto doce da jovem loura, enquanto Philippe, esse, olhava para Fiora. Do outro lado do pilar, onde se mantinha por discrição, Khatoun tossiu e a igreja pareceu tossir com ela. Fiora, arrancada ao seu sonho, estremeceu e, apertando contra si própria as pregas do seu manto, levantou os olhos para o cavaleiro e viu que ele continuava a olhar para ela sem que fosse possível adivinhar-lhe o pensamento. O seu rosto trigueiro parecia hirto e na ruga sarcástica da sua boca a jovem pensou ver desdém.

Não vos disseram que o meu pai não era o marido da minha mãe? Ora aí está. Eu sou bastarda, para falar com franqueza. Acrescento que, entre nós, isso não tem muita importância. É verdade acrescentou ela com um meio sorriso que nós, os Florentinos, somos uma gente estranha, meio selvagem...

A sua ironia irritou Selongey.

Não digais asneiras! Nunca disse semelhante coisa. Aliás, nas nossas grandes famílias, a bastardia também não é uma marca infame. Apenas conta o sangue do pai. Assim, o melhor capitão de monsenhor Carlos é seu meio-irmão, bastante mais idoso do que ele, aliás: o Grande Bastardo Antoine...

Desta vez Fiora sorriu alegremente, mostrando umas covinhas nas faces e mostrando a húmida brancura dos seus dentes.

Não vale a pena ficar furioso por dizer isso, messire. E, como estamos de acordo, permiti que me retire. A minha governanta talvez ache a missa um pouco longa demais...

Sois assim tão vigiada?

Sou-o tanto quanto deve ser uma rapariga da minha idade e da minha condição disse Fiora severamente. Não deveríeis criticar semelhante coisa.

Nem é meu propósito fazê-lo. Mas, suplico-vos, não partais ainda. Eu...

Ele parecia hesitar e Fiora impacientou-se.

Tendes mais perguntas para me fazer? Nesse caso, peço-vos que as façais rapidamente. Estou com pressa.

O que tenho a dizer merecia um grande desenvolvimento, mas como estais com pressa...

Antes que Fiora pudesse esboçar um gesto, ele tomou-a nos braços e beijou-a apaixonadamente. Sufocada, a jovem sentiu-se levada por uma força irresistível, ao mesmo tempo brutal e infinitamente doce, que a tornou incapaz da menor reacção. Enquanto o menor esboço de carícia, vindo de um dos seus apaixonados, desencadeava nela uma cólera orgulhosa, aquele homem, cujo coração ela sentia bater pesadamente contra o seu peito, provocava-lhe uma espécie de embriaguez. O jovem cheirava a couro, a ar livre, a erva molhada e até a cavalo e esse odor tinha qualquer coisa de enebriante, como enebriante era aquele beijo, o primeiro da sua vida. Ele acendeu-lhe um fogo no sangue e um deslumbramento divino na cabeça. Um universo abria-se, subitamente, diante de si, o universo flamejante do amor dos homens, que não se parecia nada com os sonhos azuis de uma jovem e que não se alimentava de lindos versos, nem de suspiros...

Demasiado inocente para retribuir a carícia, Fiora, vazia de forças mas com o coração a bater com toda a força, deixou-se ir nos braços de Philippe e quando ele a largou tão bruscamente como a tinha agarrado, a jovem quase caiu. Ele segurou-a e, mais docemente, apertou-a contra o peito. Erguendo-lhe o queixo com um dedo, beijou-a levemente na ponta do nariz e em cada um dos olhos:

Amo-te! murmurou ele com um ardor que a fez corar. Amo-te e quero-te...

Desta vez ele separou-se dela e depois, sem se virar, saiu da igreja a correr. Fiora, ainda sob os efeitos do sonho em que acabava de mergulhar, deixou-se cair de joelhos. Por cima dela, a estátua de uma santa, que ela, na sua perturbação, teria tido dificuldade em identificar, sorria-lhe à luz fraca e difusa de duas velas. E porque era preciso a qualquer Preço recuperar o sangue-frio e dar tempo ao seu coração para se acalmar, Fiora pôs-se maquinalmente a rezar...

Então, Khatoun veio ajoelhar-se junto dela e pegou-lhe numa mão, na qual encostou a face:

É tarde, patroa sussurrou ela. Temos de voltar. Fiora olhou para ela com um olhar ligeiramente distante:

Achas que sim? Eu... eu não me apetece voltar. Agora não! Ainda não!

A jovem tártara deu uma pequenina risada doce, como o arrulhar de uma pomba.

Eu sei porquê. É porque tens medo que se veja na tua cara.

O quê?

Que agora já sabes o que é o amor...

És parva! Achas que amo aquele homem? Não sabes que eu amo Giuliano?

A jovem ficou estupefacta ao pronunciar o nome, por já não lhe encontrar cor ou ressonância. O que sentia antes pelo jovem Médícis acabava de se apagar como um sonho que, de manhã, se tem dificuldade em recordar.

Não disse Khatoun tu apenas sonhaste que o amavas. Mas este que acaba de te deixar, levou-te com ele... e tu sabe-lo bem.

Fiora não respondeu e escondeu o rosto nas mãos, como que para melhor se absorver na sua oração, mas foi apenas para não encontrar, naquele instante, o olhar daquela rapariga vinda do fim do mundo da Ásia, que lhe falava de certezas das quais ela ainda só tinha um vislumbre.

CAPÍTULO III AS SURPRESAS DO AMOR

No dia seguinte de manhã, Francesco Beltrami, acompanhado da sua filha, dirigiu-se à loja do livreiro Vespasiano Bisticci. De braço dado, ambos seguiam num passo vivo, porque a temperatura tinha baixado e estava quase frio. O que não tirava nada ao prazer que Fiora sentia por ir com o pai não seria conveniente ir sozinha ao livreiro onde se encontrava a elite intelectual da cidade. A jovem considerava aquilo uma honra e o seu gosto pelos livros encontrava ampla matéria com que se enriquecer.

Àquela hora da manhã, a via Larga, onde Bisticci tinha a loja, estava bem animada. Donas de casa dirigiam-se ao mercado com um cesto debaixo de cada braço, damas de cabeças cobertas por véus ou capuzes saíam de uma missa em San Lorenzo, a igreja vizinha do palácio Médicis, separada da Biblioteca Laurentina por um claustro, um pastor conduzia o seu rebanho, uns pedreiros carregavam pedras para cima de uma carroça cujo espaço de carga era feito de grandes paus entrelaçados, alguns burgueses passavam em grandes trajes de seda negra e gorros de fita e, à esquina de uma casa, uns rapazitos jogavam ao peão lançando gritos agudos.

As saudações, apressadas, respeitosas, ou amigáveis assinalavam o caminho de Francesco Beltrami. Ele respondia-lhes com amabilidade e cortesia, feliz por poder, assim, medir a amplitude da sua reputação. Quando o pai e a filha iam a chegar à casa de Bisticci, uma vara de porcos desembocou na rua e quase os atirou, a ambos, por terra. Um rapazito corria atrás deles. Ficou muito corado ao reconhecer o rico negociante e caiu de joelhos no meio da rua:

Oh, perdão, messer Beltrami, mil vezes perdão!

Parecia aterrorizado e, por pouco, quase se prostrou:

Mas, infeliz disse Francesco rindo se ficas assim de joelhos no meio da rua os porcos perdem-se. Corre atrás deles, pequeno imbecil, em vez de me pedires desculpa! E toma! Pega lá isto, no caso de não os encontrares a todos. Não vale a pena o teu patrão bater-te...

O negociante estendeu ao rapazito assombrado um florim de ouro e afastou-se com Fiora, ao mesmo tempo que o pequeno, feliz, dava às de vila-diogo.

Era a ti que deviam dar o cognome de Magníficodisse Fiora, comovida. És o homem mais generoso do mundo.

Porque dei um florim? O verdadeiro Magnífico teria dado dez. As coisas são como são. Um instante depois chegaram à loja do livreiro.

Vespasiano Bisticci era, em Florença, o grande especialista de obras antigas e os seus correspondentes vasculhavam sem descanso as cidades da Grécia e do Oriente em busca de manuscritos raros. Era um homem de 60 anos, grande e majestoso, muito amável e erudito. Os seus traços eram nítidos, bem marcados por uma rede de rugas, mas os seus olhos escuros faiscavam de juventude e a sua voz era de uma grande doçura.

O livreiro deixou a personagem com a qual conversava quando os Beltrami entraram e aproximou-se destes apressadamente.

Sê bem-vindo, ser Francesco e tu também, Fiora. Confesso que, se bem que esperasse a visita do teu pai, não pensei que a tua presença a tornasse ainda mais agradável. Tu és a própria imagem da Primavera...

Ainda ma tornas vaidosa protestou Francesco. Venho ver se já terminaste aquela cópia dos Commentaires que te pedi.

Quase. Pus nesse trabalho os meus melhores copistas e penso dar-te em breve o livro terminado, mas recebi uma coisa que, penso, te vai interessar.

De imediato, os olhos de Beltrami começaram a brilhar.

Diz lá o que é, depressa!

Quis seguir Bisticci, que se dirigia na direcção das profundezas da sua loja e, ao fazê-lo, deu um encontrão na personagem a quem o livreiro falava anteriormente. De imediato se desculpou, mas o homem virou-se e Fiora reconheceu o médico grego de quem tivera tanto medo no baile dos Médícis.

Não me deveis qualquer desculpa disse ele com a sua voz grave, ao mesmo tempo que esboçava uma saudação cortês, eu encontrava-me na vossa passagem. É que, quando estou aqui, não presto atenção senão às obras que me rodeiam...

De qualquer modo, creio que vos devo uma. A nossa chegada interrompeu a vossa conversa com messer Bisticci...

Não tem importância; eu já estava de saída. Na verdade, vim aqui para obter a cópia de um precioso tratado de medicina de Ibn Sina, a quem chamam no Ocidente Avicena, cujo original messer Bisticci recusa vender-me.

Eu disse-vos que era impossível, messer Lascaris, porque monsenhor Lourenço é que o tem, mas ele consente que se façam dele cópias disse Bisticci que estava de regresso trazendo um volumoso pacote envolto num pano negro. Infelizmente, o meu copista de língua árabe está de cama com uma forte febre e eu tive de pedir um adiamento para a entrega do tratado.

O importante é que ele chegue um dia disse o grego docemente. E agora retiro-me e deixo-vos conversar...

Perturbada pela sua presença, Fiora tinha-se afastado e fazia de conta que se interessava por um evangeliário grego, pousado em cima de uma estante. Demétrios tinha de passar por ela para sair, mas, depois de se ter certificado com uma olhadela que o livreiro e o seu cliente se instalavam junto de um balcão de carvalho encerado, em cima do qual Bisticci colocara uma grande lâmpada de azeite, aproximou-se da jovem.

Esse texto é bem austero para uns olhos tão jovens! disse ele num excelente francês. Ledes grego, mademoiselle?

Fiora virou-se bruscamente e fez-lhe face. Aquele homem metia-lhe sempre medo, mas isso era mais uma razão para não recuar.

É verdade. E também leio latim. E vós, messire, continuais a ler os pensamentos dos outros, tal como fizestes com os meus na outra noite?

Um pensamento apanha-se facilmente quando nasce de uma emoção, ou ainda quando a alma daquele, ou daquela que pensa, é pura. Vós seríeis para mim, sem dúvida, uma aluna notável, se não fôsseis de alta condição... No entanto, peço-vos que vos lembreis do seguinte: no caso de a infelicidade bater à vossa porta, estarei sempre Pronto a ajudar-vos. O meu nome é...

Eu sei. Disseram-mo. Mas, messire, é a segunda vez que me anunciais horas sombrias. Não me podeis dizer mais nada?

De momento não, porque o vosso pensamento está demasiado ocupado com o amor e porque, enquanto isso, não podeis submeter-vos ao vosso destino, mas lembrai-vos de mim quando chegar a hora. Monsenhor Lourenço deu-me uma casa em Fiesole...

- Nós também temos lá uma.

Eu sei. Portanto, será fácil encontrar-me.

Após uma saudação que o curvou ligeiramente, o médico grego, de mãos no peito, afastou-se, enquanto Fiora, sonhadora, se juntava ao seu pai e a Bisticci, demasiado ocupados para se terem apercebido da sua rápida conversa com Demétrios. Com extrema precaução, o livreiro tinha desembrulhado um grande livro de pergaminho, enriquecido com ferragens de prata e uma cruz do mesmo metal, onde estavam engastados topázios e turquesas. Fiora ouviu-o dizer:

Um dos meus agentes conseguiu arranjar este discurso de Lysias e eu achei que tu gostarias, pelo menos, de o ver...

Com gestos de infinita doçura, Francesco pegou no livro, pousou-o em cima de uma grande estante e olhou com espanto para a cruz da encadernação:

Magnífico! De onde vem? Vejo aqui uma cruz e umas armas que, se não me engano, são abaciais?

Tu és sempre muito curioso disse Bisticci, sorrindo. Este livro veio da abadia de Einsiedeln, mas mais não digo...

Pleno de veneração, Beltrami virou as espessas folhas rangentes, sobre as quais uma mão hábil tinha acrescentado iluminuras delicadas ao texto grego.

Seja qual for o preço que me pedes, Vespasiano, fico com ele! Repara, Fiora: é admirável!

Bisticci pôs-se a rir:

Tinha a certeza que o quererias. Quanto ao preço, vou ver, mas podes levá-lo já, se quiseres.

Não queres fazer uma cópia?

Já está feita. Queres vir agora ver como está o teu César?

Com pesar, Beltrami arrancou-se à contemplação do livro, sobre o qual Fiora passava uma mão acariciadora. Ambos seguiram Bisticci até uma divisão nas traseiras da casa, que dava para o jardim. Era uma grande sala bem iluminada por grandes vidraças, diante das quais estava instalada uma fila de estantes. Por trás dessas estantes uma dezena de homens aplicava-se na transcrição fiel de alguns manuscritos. Uns reproduziam o texto, outros as grandes letras pintadas com iluminuras, outros ainda as miniaturas. Alguns desses homens eram jovens, outros mais idosos e muitos deles eram de raças diferentes. Havia um alemão de pele branca e cabelos ruivos, um grego de barba negra, um siciliano tão escuro como uma castanha e até um negro vindo do Sudão. Apenas faltava o turbante branco de Ali Aslam, o copista árabe e o seu lugar estava vago...

Geralmente, Fiora gostava muito de observar os copistas de Bisticci a trabalhar, mas aquele segundo encontro com Lascaris reforçara a impressão deixada pelo primeiro e provocara-lhe uma vaga angústia. Assim, olhou sem ver os dedos hábeis desenhando os arabescos, estendendo as cores finas e colocando no lugar os frágeis realces dourados. Felizmente o seu pai, debruçado sobre os ombros dos artistas e dominado por completo pelo seu amor pelos livros, louvava o seu trabalho em termos tão calorosos, que a maior parte dos rostos iluminou-se com um sorriso. Sobretudo, claro, o velho copista, que acabava de transcrever os Commentaries de César para o rico negociante e que recebeu, a título de encorajamento, uma bela moeda de ouro.

De regresso à loja, Beltrami baixou a voz:

Já conseguiste encontrar aquele famoso Psautier de Mayence, pelo qual Johannes Fust roubou os caracteres móveis de Gutenberg?

Não. O Psautier deve estar escondido algures e é impossível consegui-lo. Nem sequer estou certo de que exista uma cópia. Essa obra parece ainda melhor defendida do que a famosa Bíblia de 42 Unhas, que é a primeira obra de Gutenberg. E também não sei porquê...

Mas, enfim, devem poder ser encontradas cópias, porque esse processo foi feito precisamente para isso? Evidentemente, nada iguala a mão de um artista, mas podemos considerá-lo como uma curiosidade e é a esse título que me interesso...

Também eu. Todavia, penso que será possível, em breve, satisfazer a nossa curiosidade. Há três anos, mais ou menos, chegaram a Veneza dois homens: o francês Nicolas Jenson e o alemão Jean de Spire e tenho a certeza que levavam com eles o processo de Gutenberg...

Nesse caso, como se explica que ainda não tenham publicado nada?

A Igreja, sem dúvida... e talvez, também, o Conselho dos Dez.

Não gostam muito de novidades, em Veneza. Mas eu conto lá ir proximamente, para ver o que se passa.

Nesse caso, sê prudente! Nunca é bom, mesmo para um estrangeiro, ter contas com o Conselho dos Dez...

Dois novos clientes acabavam de entrar na loja e Bisticci apressou-se a ir ter com eles, porque se tratava de Lourenço de Médícis e do seu amigo Poliziano, entrados ao mesmo tempo. Trocaram-se saudações e cortesias de todas as espécies, mas Beltrami escondeu bem, dentro do seu manto, o manuscrito de Einsiedeln...

Viemos mesmo a tempo segredou ele a Fiora. Mais uns minutos e talvez o Lysiasme tivesse escapado...

Messer Bisticci não disse que o tinha reservado para ti?

Palavras de comerciante. Quando se trata de clientes tão importantes como Lourenço e eu, é sempre quem chega primeiro que leva as novidades...

Isso quer dizer que vais pagá-lo muito caro?

Evidentemente, mas isso não tem importância. O dinheiro não é, senão, um meio de enriquecer a vida por meio das coisas mais belas e mais raras. Quando eu morrer, terás uma herança soberba.

Por mais soberba que seja, não me será tão cara como a tua presença disse Fiora, apertando com mais força o braço do seu pai. Em todo o caso, também vou contribuir para as nossas riquezas com este soneto de Petrarca que messer Bisticci me ofereceu quando vínhamos a sair.

Mostra!

A jovem desenrolou a fina folha de pergaminho decorada com folhas de louro como era hábito nas obras do grande poeta e leu o que estava escrito:

Se isto não é o amor, que é isto, então, que eu sinto? Mas, se é o amor, por Deus, que pode o amor fazer? Se é bom, por que razão o seu efeito é tão amargo e mortal? Se é mau, por que razão os seus tormentos são tão doces?

Ao lê-lo, Fiora sentiu-se corar. O poeta respondia demasiado bem às perguntas que lhe atormentavam o espírito desde a véspera e que, durante uma grande parte da noite, a tinham impedido de conciliar o sono. Os instantes passados nos braços de Philippe tinham sido divinos, mas, devolvida à solidão, a razão e a lógica, tão caras aos seus amigos, os filósofos, esforçavam-se por combater e apaziguar o desvario do seu coração, apanhado pela surpresa. A despeito do que dissera Khatoun, que vira no gesto apaixonado do cavaleiro borgonhês uma espécie de revelação vinda do alto, Fiora acabara por se persuadir de que selongey obedecera apenas a um impulso passageiro, ao desejo de levar consigo uma recordação agradável de uma cidade que não lhe dera aquilo que ele viera buscar...

No entanto insistira Khatoun ele disse que te queria.

Disse, mas isso não significa que vá pedir a minha mão ao meu pai. Estou quase certa de que partirá sem o voltarmos a ver...

Fiora sabia muito bem que não acreditava numa única palavra e que mentia a si própria, mas era uma maneira como outra qualquer de tentar preservar a sua dor, caso, efectivamente, Philippe partisse sem que ela o pudesse ver de novo.

Entretanto, desejava saber sobre ele o maior número de coisas possível e, de tarde, conseguiu convencer Léonarde a conduzi-la ao palácio Albizzi, para ali passar uns momentos com Chiara. Na verdade, teve poucas dificuldades, porque a perspectiva de passar uma ou duas horas na companhia da inesgotável Colomba não desagradava à governanta. Sem contar com o prazer de saborear a compota de ameixa que a grande Colomba fazia como ninguém.

Infelizmente, Fiora não soube grande coisa. O enviado do Temerário alojara-se com a sua escolta no melhor albergue da cidade, o Croce di Malta, junto do Velho Mercado. Levava ali uma vida de príncipe, bebendo os melhores vinhos que nunca eram suficientemente bons para ele, e comendo bem, mas só saíra do seu apartamento uma ou duas vezes e, mesmo isso, por um pequeno lapso de tempo.

Pareces muito interessada nesse estrangeiro observou Chiara.

Talvez porque o ache interessante. Tu não?

Sim, claro, mas só por curiosidade. É verdade que é bem elegante e o seu rosto não é daqueles que se esquecem com facilidade, mas acho que me mete um pouco de medo...

Medo porquê? Ele não tem nada de terrível.

Cheira a guerra. Tive a mesma impressão quando conheci, no ano passado, o condottiere Guidobaldo da Montefeltro. Homens que só vivem dela e para ela. E depois, essa gente do Norte não é como nós, não gosta do que nós gostamos...

No entanto, diz-se que a corte do duque da Borgonha é a mais brilhante da Europa e que ele é o homem mais rico...

Nesse caso, por que mandou messire Selongey pedir dinheiro aos Médicis? O meu tio, que falou disso ontem, disse que o duque Carlos quer tornar-se rei, que não cessa de guerrear com esse desígnio e que cerca, desde há três meses, a poderosa cidade de Neuss, em terras da Alemanha. A guerra custa mais dinheiro do que as festas...

Nós nunca a fazemos? Já te esqueceste do cerco de Volterra, há poucos anos e como o nosso Lourenço tratou a cidade rendida?

Chiara desatou a rir.

Nós aqui a discutir as duas como se tivéssemos a nosso cargo a cidade. Decididamente, interessas-te muito por messire de Selongey. É verdade que ele olhou muito para ti, no outro dia... Voltaste a vê-lo?

Não disse Fiora, sem hesitar perante uma tão grande mentira, mas não queria partilhar com ninguém o momento de Santa Trinita. Aqueles breves momentos eram só dela. Eram como um tesouro escondido que não se podia esbanjar, mesmo com uma amiga tão querida como Chiara. Khatoun chegaria para falar de Philippe quando ele regressasse para junto do seu senhor, o Grande Duque do Ocidente...

Então, tenta não pensar mais nele, porque vai-se embora em breve e, segundo parece, nunca mais o voltarás a ver. Pelo menos, serviu para tirares Giuliano da cabeça e talvez acabes por te interessar pelo pobre Luca Tornabuoni, que definha por ti. Não dava um excelente marido?

Por que não casas tu com ele, já que o achas tão bom?

Primeiro, porque ele não me ama, segundo, porque somos velhos amigos e terceiro, porque eu estou por assim dizer, sabe-lo bem, noiva do meu primo Bernardo Davanzati. Dentro de dois anos casar-nos-ão, porque assim decidiram as nossas famílias. É claro que não o vejo muitas vezes, porque ele representa, em Roma, os interesses da sua casa, mas eu sei que ele me ama.

E tu? Tu ama-lo?

Não me desagrada. Além de que não há qualquer razão para alterar seja o que for nos projectos que elaboraram para nós. Penso que formaremos um casal muito conveniente acrescentou Chiara sorrindo.

Era, sem dúvida, uma boa coisa, ver assim diante de si a vida traçada numa bela linha direita. Entretanto, Fiora, à luz da sua recente experiência, não via a sua existência da mesma maneira.

Estás certa perguntou ela subitamente de que nunca encontrarás um homem que faça mais por ti do que agradar-te? Que te faça bater o coração com mais força... e que tenhas vontade de seguir até ao fim do mundo?

Chiara não respondeu de imediato. Os seus olhos escuros estavam fixos em Fiora com afeição, mas também com inquietação. Para deixar morrer o eco das palavras reveladoras da sua amiga, foi buscar um copo de vidro azul que estava sobre um aparador, contendo ameixas de compota e depositou-o em frente de Fiora, que tirou uma. Ela própria olhou por um instante para o fruto açucarado que tinha na ponta dos dedos finos e suspirou:

Se queres a minha opinião, chegou a hora de um certo senhor da Borgonha regressar às brumas do Norte!

Fiora não teve tempo de protestar. A entrada de Léonarde e Colomba, que se tinham demorado na cozinha onde a governanta de Chiara apurara uma nova receita para rechear os pombos, pôs fim à conversa. Colomba vinha propor às duas jovens que acompanhassem Fiora de volta a casa, passando pela loja do boticário Landucci, onde ela queria comprar um determinado unguento de erva-cidreira, miraculoso para a brancura das mãos.

É uma boa ideia disse Léonarde porque nós também já não temos nenhum em casa.

Partiram pelas ruas, as duas amigas caminhando à frente. Como boas florentinas, gostavam de passear assim, pelo meio dos sons e da agitação da cidade, cujos habitantes gostavam mais de viver no exterior do que no interior das suas casas. As mulheres conversavam de uma janela para a outra ou à entrada da porta. Os homens, quando o dia chegava ao fim, saíam, reunindo-se entre eles para discutir os negócios da cidade, contar histórias ou trocar gracejos. Os comerciantes e os artesãos agrupavam-se no Velho Mercado, os jovens elegantes da cidade na ponte Santa Trinita, de onde viam o dia extinguir-se nas águas do rio; quanto aos homens importantes, encontravam-se sob as arcadas da Loggia del Priori, mesmo a sombra da Senhoria e não era raro o Magnífico juntar-se a eles. Também não era raro, quando o tempo estava bom, aparecerem umas mesas vindas das casas, onde se instalavam para jogar xadrez. Entretanto, as mulheres tratavam da refeição da noite, ou conversavam entre elas quando o trabalho chegava ao fim. Quanto às crianças unicamente os rapazes, claro os seus gritos e o barulho dos seus jogos enchia as ruas e as praças... Depois, ao apelo do Ângelus, cada um regressava a casa, Porque não parecia bem errar, noite fechada, fora de casa.

A Florença respeitável adormeceria dentro das suas muralhas de 68 voltas de ronda ou defesa, guardada por soldados, ao passo que a outra a do prazer e do crime, a das raparigas públicas e das facadas, começava a viver, sairia dos seus esconderijos e infiltrar-se-ia, como uma maré, pelas ruas mal iluminadas, de longe em longe, por uma candeia de ferro pendurada do portão de um palácio.

Fora das muralhas, seria a paz das doces colinas, o vento ligeiro da noite nos ramos dos ciprestes, a oração nocturna de uma ave nos olivais ou nas vinhas de San Miniato ou Fiesole, respondendo ao som rachado da sineta de um mosteiro campestre, mas, na cidade, o deboche, o terror e a morte rondariam, até que o canto dos galos expulsasse as aves da noite e as atirasse, amedrontadas e pestanejando, para os seus buracos equívocos. E se, durante as horas nocturnas, um grito rasgasse a sombra entre as rondas da milícia, os burgueses de Florença não dormiriam um sono menos tranquilo, confiantes na força da sua cidade e na protecção de Santa Reparata, a sua padroeira: o sangue da valeta não seria mais vermelho do que a flor-de-lis de Florença.

Aquela Florença era totalmente desconhecida de Fiora e Chiara, abrigadas como estavam pelas paredes espessas dos seus palácios, guardadas por numerosos criados. Só conheciam dela a amável imagem diurna e as horas de sol, que aqueciam os mármores polícronos do Duomo, a admirável catedral de Santa Maria del Fiore, cujo cognome era devido à soberba cúpula de Brunelleschi.

As passeantes demoraram-se um pouco diante das jaulas de leões instaladas por trás da Senhoria. Os animais reais eram os fetiches da cidade, que velava por eles com um cuidado ciumento e bastava que um deles ficasse sem apetite para que as pessoas bem informadas se pusessem a profetizar uma catástrofe próxima; e se um deles morria, a Vacca, o grande sino da Senhoria, que só tocava a rebate, balia como se tivesse rebentado uma revolução.

Vagueando, conversando e respondendo às numerosas saudações das pessoas que encontravam pelo caminho, acabaram por chegar ao Canto del Tornaquinci, onde se situava a loja do boticário. Era uma encruzilhada continuamente animada graças à casa funerária ali instalada, cujos empregados jogavam à malha diante da porta, enquanto esperavam pelos clientes.

Com um gesto seguro, Colomba empurrou uma porta baixa no rés-do-chão de uma casa de bela aparência, com loggia e colunas de mármore, onde um grande letreiro, pintado com cores vivas, anunciava: «Casa das Estrelas... SerLuca Landucci, boticário.» E as quatro mulheres penetraram numa grande sala no nível inferior, sob um belo tecto esculpido e com iluminuras, porque Landucci era um homem rico e considerado, que desempenhava o seu papel na administração da cidade. Era também amigo de Francesco Beltrami e Fiora gostava de ir a casa dele mais ainda do que à de Bisticci, porque aquele era amável e alegre e porque em sua casa se respiravam maravilhosos odores de plantas secas e especiarias.

A sua loja, com as prateleiras cheias de potes de majólica azul e verde, frascos estreitos de longos gargalos de vidro translúcido, almofarizes de pedra e bronze, caixas de prata ou madeira exótica e as grandes balanças de cobre dispostas em cima do balcão de bela madeira escura de carvalho admiravelmente encerada, respirava a ordem e, em geral, a tranquilidade que convém aos homens de saber. Ora, quando o pequeno bando ali penetrou, a casa ressoava com o tumulto de uma violenta disputa: duas mulheres, que pelas suas vestes elegantes se poderiam classificar como pertencendo à boa sociedade, discutiam com o ardor e a impetuosidade verbal das peixeiras do Mercato Nuovo.

Burra velha clamava uma eu já te digo quem sou!

Há muito tempo que sei! A tua boca está cheia de fel, é por isso que tens a cara tão amarela!

Menos do que a tua! O teu defunto mijava nela todas as manhãs! A que acabava de receber a última injúria não era outra senão Hieronyma Pazzi. Louca de raiva, procurou qualquer coisa para atirar à cabeça da sua adversária e encontrou um frasco de malvaísco que a outra evitou à justa, mas que se foi quebrar nas lajes do chão. Ao ver aquilo, o boticário lançou-se corajosamente na batalha e procurou apaziguar as duas mulheres que, então, se atacavam com as mãos.

Vinde ajudar-me, vós! gritou ele aos dois rapazes da loja que, escondidos por baixo de um balcão, gozavam a cena como conhecedores. Fizeram descuidadamente o que o patrão lhes ordenava, pouco desejosos, no fundo, de ver cessar aquele combate entre a dame Pazzi e a nobre Cornelia Donati, sobretudo um combate que começara tão bem. As duas mulheres odiavam-se há muito por uma questão de rivalidade amorosa, na qual Cornelia tirara vantagem ao roubar a Hieronyma O homem com quem ela desejava casar. Depois, Hieronyma conseguira uma certa vantagem, porque Augusto Donati enganava a mulher comtudo o que vestisse saias e passasse ao alcance das suas mãos, mas a animosidade não abrandara e cada vez que as duas mulheres se encontravam estalava uma querela ao menor pretexto. Naquele dia, o archote da guerra era um inocente pote de pomada de cor encarnada para os lábios, obra-prima da oficina de Landucci e que cada uma das duas adversárias queria para si, mas que, infelizmente, era único

Conseguiram, por fim, separar as duas combatentes, que, tanto uma, como a outra, tinham deixado algumas plumas na contenda e enquanto elas retomavam o fôlego, o boticário acabava com o debate declarando severamente:

Não venderei esta cor encarnada a nenhuma de vós! Madonna Catarina Sforza, a ilustríssima sobrinha de Sua Santidade o papa Sisto IV acaba justamente de ma encomendar, porque a reputação deste unguento chegou até ela. É, portanto, para Roma que o vou enviar!

E com um gesto pleno de majestade, tirou o pote de cima do balcão e fechou-o num dos armários de dobradiças de ferro. Em seguida, declarou:

O que não quer dizer, Madonna Hieronyma, que não me devais o preço daquele frasco que haveis quebrado e do malvaísco que ele continha, que, agora, já não serve para nada. Vou dizer ao meu escriba que faça a conta...

Eu não teria quebrado esse objecto se esta malvada não me tivesse posto fora de mim exclamou a dama Pazzi. Ela deve pagar tanto como eu!

A despeito de um olho negro, Hieronyma recobrara toda a sua segurança. Era uma bela mulher de 35 anos, que conservava muita da sua frescura. O seu corpo, arredondado, permanecia apetitoso e dizia-se que encontrara na viuvez algumas compensações, com homens discretos ou homens que ainda tinham mais interesse em esconder os seus amores secretos, quer dizer, dos criados da casa. O velho Jacopo Pazzi, o patriarca que reinava sobre a tribo, passava, com efeito, por ter a mão singularmente pesada para aqueles da sua casa que se portavam mal. Falava-se por portas travessas, claro de um criado indelicado, tão cruelmente mordido pelos molossos de caça que morrera, de uma criada demasiado faladora enterrada num bosque com a boca cheia de terra depois de ter sido estrangulada e de uma jovem prima engravidada desgraçadamente e morta de uma estranha doença de languidez devida ao facto de lhe terem cuidadosamente tirado todo o sangue. E se o quese dizia de Hieronyma era verdade, esta arriscava-se muito, mas a mulher era manhosa e sabia levar o sogro, sobre o qual tomara um grande ascendente, porque tinham ambos a mesma paixão: o dinheiro.

Colérica, Hieronyma atirou com uma moeda para cima do balcão e dispunha-se a sair quando Fiora a deteve:

Tu não podes sair assim, prima! Pede ao menos a messer Lan-

ducci um unguento para dissimular esse olho. Ele tem alguns miraculosos... disse ela inocentemente.

Hieronyma não o tomou assim. Medindo a jovem, disse com tanta fúria que mais parecia uma víbora a silvar-.

O meu véu deve chegar. Quanto a ti, vil bastarda que te permites tratar-me como tua igual, sai do meu caminho!

Fiora não era menina para se deixar insultar sem responder:

Não ousarias repetir isso diante do meu pai! Com ele és toda açúcar e mel e aqui estás em casa de um amigo dele.

Escutai-a a pairar! troçou a outra. Esta rapariga é uma princesa, palavra de honra...

Não sou nenhuma princesa, visto que sou filha de Francesco Beltrami...

Tens a certeza?

Se a pérfida pergunta perturbou Fiora, não o deixou transparecer. Endireitando altivamente a cabeça, lançou:

O meu pai, esse, tem! É mais do que poderão dizer certos homens...

Cornelia Donati, que se recompusera do choque do frasco, veio colocar-se ao lado da jovem.

Não te rales a discutir com essa víbora, pequena! O teu pai é um homem de bem, todos o sabem. Todos o estimam. O mesmo não se Pode dizer dos Pazzi. Desaparece, Hieronyma! Já te vimos que chegue.

Eu vou, mas voltaremos a encontrar-nos, Cornelia Donati! Quanto a essa, há-de vir o dia em que a terei à minha mercê em minha casa e saberá, então, o que custa desafiar-me publicamente.

E saiu com um grande voo de véus e tecidos violetas, a sua cor favorita, porque achava que dava excelentemente bem com a sua opulenta cor loura. Sós, os ocupantes da loja olharam uns para os outros, estupefactos com a última saída de Hieronyma:

- Que quis ela dizer com aquilo? perguntou Chiara. Não é bem como poderá ela ter Fiora à mercê em sua casa?

A menos que a case com o filho? sussurrou Cornelia...

Aquele gnomo horroroso, marreco e cambado? indignou-se Chiara. Seria preciso que messer Francesco enlouquecesse., o que nunca acontecerá.

No entanto, é o que ela deseja disse a gorda Colomba. Uma das criadas disse-me duas palavras no outro dia no mercador de velas. Donna Hieronyma diz que é a melhor maneira de a fortuna dos Beltrami ficar na família. Todos sabem, com efeito, que donna Fiora é herdeira do seu pai...

O que só é justo! afirmou Cornelia Donati. Mas compreendo que Hieronyma cobice essa fortuna, que, sem Fiora, vai para ela. Uma pessoa não se resigna facilmente a uma tal perda. Ainda por cima, como o seu defunto marido não era o filho mais velho, não deverá esperar grande coisa do velho Jacopo. A parte que ele lhe deixar irá para o infeliz Pietro, o que não será grande coisa para ele e para a mãe...

Fiora não dizia nada. Estava hirta de horror, só de pensar que poderia ir parar às mãos daquela mulher. Daquela mulher, que falara como se estivesse muito segura de si. Felizmente, Léonarde apercebeu-se e envolveu-lhe os ombros com um braço protector:

Não ponhais macaquinhos no sótão, meu coração! Acontece a toda a gente ter sonhos impossíveis. O de donna Hieronyma não passará do que é: um sonho...

Mas ela própria não estava muito tranquila, porque não gostara da pequena frase, que deixava supor que Beltrami podia não ser o pai de Fiora. No entanto, tranquilizou-se: para saber a verdade, seria preciso que Hieronyma fosse o diabo, ou, pelo menos, sua filha. E prometeu a si mesma dar uma palavra a Beltrami.

Desejoso de aliviar uma atmosfera que julgava nefasta para o seu comércio, o bom Landucci ofereceu às suas damas um dedo de vinho de Chipre, para as fazer esquecer o momento desagradável que acabavam de viver em sua casa.

Eu achei isto divertido disse Chiara.

Eu não! disse o boticário. Donna Hieronyma bem pode procurar outro fornecedor. Não a receberei mais.

Nesse caso, não há qualquer razão para que eu não compre essa cor encarnada? perguntou Cornelia, que não perdia de vista a causa da batalha. Conquistei-a com luta, parece-me.

Também me parece disse Landucci, rindo. E ordenou a um dos seus rapazes que embrulhasse o pequeno frasco.

Depois das compras feitas, Fiora e Léonarde, Chiara e Colomba separaram-se. Já era tarde e se o palácio Beltrami era próximo, o caminho ainda era longo para as habitantes do palácio Albizzi. A noite estava a chegar. Cornelia Donati partiu com Chiara e Colomba, ao mesmo tempo que o boticário dava ordem aos seus criados para fecharem a loja. Ele tinha que ir à Senhoria, a fim de se encontrar com o prior do seu bairro para uma questão delicada: o seu vizinho da casa funerária tinha-se arrogado o direito de vender certas drogas destinadas ao embalsamento dos seus clientes, drogas essas que faziam parte da exclusiva actividade do boticário. Landucci tinha de se despachar, porque aquele prior era seu amigo e talvez não estivesse apto a socorrê-lo dentro de

15 dias. Com efeito, os priores só eram eleitos por dois meses, circunstância que fazia Florença viver numa perpétua agitação eleitoral...

Também tenho que ver messer Francesco confiou ele a Fiora à guisa de adeus mas vou amanhã aos entrepostos dele na via Calimala... Certamente que ele me apoiará.

O Ângelus soou, acompanhado pelo estalido de centenas de taipais de madeira que, um pouco por toda a parte, os comerciantes ou os seus rapazes aplicavam sobre as portas das lojas. Os elegantes passeantes da ponte Santa Trinita começaram a abandonar o local para se dirigirem a outros locais de divertimento. Um grupo barulhento rodeou um homem jovem, pequeno e magro, mas vestido rebuscadamente com uma casaca de cetim branco sobre uns calções de veludo branco com renda prateada. Uma capa, botinas e um gorro de veludo rosa, este último enfeitado com uma grande pluma de garça-real, compunham um fato diante do qual todos os outros estavam extasiados. Com uma corrente de ouro da qual pendia uma pesada medalha e dedos em todos os anéis, o jovem elegante avançava com passos contados, virando a cabeça para todos os lados, para ver se recolhia suficiente tributo de admiração.

Fiora também o vira. Puxando bruscamente Léonarde pela manga, fê-la passar consigo sob o arco de uma casa, abrigada por uma estreita ruela.

Que vos deu? protestou a velha dama.

Não vedes o que está a acontecer além? Aquele vaidoso do Domenico Accaiuoli com o seu bando de cortesãos?

Que vos fez ele? Pensava que era um dos vossos amigos? Ele não vos fez a corte?

Achais que aquela espécie de rapaz sabe fazer a corte a uma rapariga? Far-me-ia melhor a corte se eu fosse um rapaz como ele. Ele quer uma esposa afortunada, sem dúvida, mas não tenho a certeza de que conseguisse fazer-lhe filhos. Em todo o caso, a pobre não o veria muitas vezes transpor a porta do seu quarto...

Atordoada, Léonarde olhou para Fiora com a expressão de uma galinha que se apercebe, subitamente, que chocou um pato:

Onde fostes buscar isso? Não fui eu que vos ensinei essas coisas! Fiora pôs-se a rir e apertou com mais força contra si o braço da governanta. ”

Vós sois demasiado decente! Foi Chiara que me disse. O seu primo Tommaso faz parte do bando de Domenico. E, entre raparigas, diz-se...

Com efeito, vejo que sabeis mais coisas do que eu imaginava disse Léonarde vagamente escandalizada.

Não façais essa cara! Não gostais mais de Domenico do que eu o detesto. Podeis ficar certa de que, quando me casar, será com um homem digno desse nome.

Instantaneamente, o seu espírito evocou a poderosa silhueta de Philippe de Selongey e, ao recordar o beijo que recebera, sentiu um pequeno arrepio já familiar. Experimentava-o sempre que evocava aqueles momentos inolvidáveis que a tinham perturbado, aqueles momentos que nunca mais, sem dúvida, voltaria a sentir...

Se não vedes inconveniente, talvez seja melhor voltarmos para casa rabujou Léonarde o caminho parece livre. E está tanto frio nesta ruela; sem contar com os odores das latrinas. Pelo menos, messer Domenico cheira bem...

Ambas saíram do seu esconderijo e retomaram o caminho:

Demasiado bem disse Fiora. A mãe dele e as irmãs não andam tão perfumadas. Um homem deve cheirar a sabão, sem dúvida, mas também a couro, a erva fresca... e até um pouco a cavalo acrescentou ela sonhadoramente, dando livre curso às suas recordações e esquecendo que não estava só.

Também foi donna Chiara que vos ensinou isso? perguntou Léonarde cada vez mais siderada.

Não disse Fiora sorrindo ingenuamente à sua doce recordação. É apenas o que eu penso.

Enquanto isso, numa grande casa ocupando o ângulo da via Calimala e do Mercato Nuovo, desenrolava-se uma cena estranha no primeiro andar, na grande sala severamente apainelada de carvalho escuro, de onde Francesco Beltrami dirigia os seus numerosos e importantes negócios: uma dessas cenas em que o freio da cortesia retém a violência dos sentimentos e não lhe permite, senão, que se traduza em palavras. Sentado numa cadeira de couro de espaldar por trás da grande mesa iluminada por um candelabro de bronze de seis braços, o negociante afrontava Philippe de Selongey, que, de braços cruzados no peito, se mantinha simplesmente encostado a um armário.

Os dois homens observavam-se como dois duelistas, os olhos de um, dourados pelo reflexo das chamas, mergulhados nos do outro, sombrios e preocupados. E o silêncio reinava, cortado de longe a longe pelo rolamento de uma carroça, pelo passo de um cavalo ou pelos gritos das crianças que brincavam na praça... Beltrami parecia ouvir morrer nele mesmo o eco das últimas palavras do cavaleiro borgonhês. Por fim, com um sorriso, levantou-se e dirigiu-se para a chaminé de pedra cinzenta e ali aqueceu as mãos, esfregando-as suavemente, como se as lavasse nas chamas...

Curiosa história, a que acabais de me contar, senhor conde disse ele docemente e nós, os de Florença, gostamos de ouvir boas histórias... mas não vejo em que é que ela me diz respeito.

Diz-vos respeito inteiramente: está escrito claramente nas feições do rosto da vossa filha.

Deixai a minha filha de fora desta conversa! Ela começou, se bem me lembro, pelo... embaraço em que vos encontrais, sem poderdes voltar para junto de monsenhor da Borgonha sem o dinheiro que ele solicitou...

Monsenhor Carlos nunca solicita! rugiu Selongey.

Perdoai-me essa palavra, que falta, com efeito, nas leis elementares da diplomacia! Digamos: que ele desejava obter do banco Médico, para recrutar em Itália tropas mercenárias. Dinheiro que monsenhor Lourenço teve de recusar por lealdade para com o rei Luís de França, com quem, há muito, a sua família fez aliança. E vós desejais estabelecer comigo um acordo análogo. E eu tive que vos lembrar que ° dirijo, eu, uma grande casa bancária e...

A mim não me enganais, Beltrami! Vós também sois banqueiro, assim como sois, também, armador. Para ser mais claro, a vossa fortuna é, talvez, tão grande como a dos Médicis. Mas nós já regulámos essa questão e não percebo por que razão voltais a ela. Dediquemo-nos antes a esta história antiga que eu tive a honra de vos contar...

E que eu apreciei, mas que...

Basta de astúcias, messire Francesco! Cheiram de mais a loja para me agradarem. Respondei apenas a esta pergunta: Estáveis em Dijon, há pouco mais de 17 anos, no dia em que na praça do Morimont caíram as cabeças de Jean e Marie de Brévailles? E olhai que faço apelo à vossa honra, no sentido de que uma mentira... é uma mentira inútil.

O rosto de Beltrami ficou hirto, até não parecer mais do que uma máscara, por trás da qual o seu espírito enlouquecia. Quando aquele jovem entrara naquela casa, adivinhara, pressentira, que ele trazia consigo a infelicidade. Mas era preciso responder...

Estava, com efeito disse ele firmemente. Fiz muitas vezes escala em Dijon no decurso das minhas viagens a Paris e às cidades flamengas. Acontece que gosto dessa cidade, se bem que nunca lá fique durante muito tempo. Parto sempre no dia seguinte.

Mas dessa vez não partistes só. Levastes convosco uma criança recém-nascida, uma rapariguinha abandonada. Aquela a quem chamais agora filha. Negai-lo?

Uma brusca cólera apoderou-se de Beltrami, varrendo toda a reserva que impusera a si próprio longos minutos antes:

E depois? Não creio que isso vos diga respeito! Que quereis dizer, no fundo, com esses subentendidos, essas perguntas, que cheiram a polícia? Que tendes vós a ver com aqueles dois infelizes que um pouco de piedade não permitiu que vivessem e com aquela criança que, com um pouco de humanidade, teria conservado, ao menos, uma mãe e que eu salvei do ódio de um homem infame que ia esborrachála sobre uma tumba ignóbil, para onde a pretensa justiça dos vossos duques tinha atirado os pais? Pensais que sou assim tão simples que não seja capaz de ver o vosso jogo com clareza? Quando entrastes aqui, falastes-me de dinheiro e depois, subitamente, contastes-me essa terrível história, que desenterrastes sabe o diabo aonde...

Que quer isso dizer?

Que a despeito das vossas esporas douradas de cavaleiro, a despeito dessa ordem ilustre cuja insígnia está suspensa do vosso peito, não sois mais do que um vigarista, messire de Selongey!

Philippe ficou lívido e, maquinalmente, levou a mão aos copos da espada que trazia à cintura:

Insultais-me!

Não. Trato-vos segundo o que mereceis! E agora, saí! Não tereis de mim um único florim!

De pé face a face, estavam tão próximos, que um podia sentir o hálito um pouco ofegante do outro, mas o objectivo de Selongey não era encostar aquele homem à parede. Virou-se, afastou-se na direcção da janela que dava para a praça agora quase na escuridão e, por um instante, observou o vaivém dos habitantes daquela cidade estranha, onde a nobreza de nascimento não significava nada e não tinha, obrigatoriamente, direito ao respeito. Apenas o dinheiro contava e o homem que estava na sua frente era um dos mais ricos.

Disse-vos que saísseis! repetiu Beltrami com uma voz onde havia algum cansaço...

Não. Eu exprimi-me mal e peço-vos perdão. Esperava, com efeito, interessar o homem de negócios que sois nos do meu senhor, que é o mais nobre príncipe do Ocidente. Ele ter-vos-ia reconhecido regiamente... à altura da coroa que cingirá um dia. Mas não foi unicamente isso que vos vim pedir esta noite...

Que quereis, então?

Que me concedais a mão da vossa filha. Quero desposá-la...

O espanto deixou o negociante sem voz e com a impressão desagradável de que as paredes começavam a girar à sua volta. Foi até um armário dissimulado na parede e tirou dele um frasco de vinho de Chiantt e uma taça de prata, que encheu e esvaziou quase com um único movimento. Sentiu-se, então, melhor para afrontar a nova batalha que se aproximava.

Meu Deus! observou Philippe com um meio sorriso. Não esperava causar-vos uma tal emoção!

Deixai a minha emoção em paz. Quereis casar com Fiora? Vós?

Sim, eu.

Quando acabais de me dizer que ignorais tudo sobre as suas origens, nobres sem dúvida, mas manchadas infamemente pela mão do carrasco?... Pelo menos segundo as leis do vosso país e da vossa casta.

Segundo as leis de todos os países e de todas as castas. Acreditais que a vossa fortuna seria capaz de a salvar do desprezo se se soubesse aqui, nesta república incrível, que ela é fruto de um incesto e de um adultério que terminou no cadafalso, condenado ao mesmo tempo pela Igreja e pelo príncipe?

Francesco Beltrami sentiu um arrepio gelado ao longo da espinha e voltou para o fogo como para um amigo seguro. Aquele demónio tinha razão e sabia-o.

E vós disse ele amargamente investido da confiança de um grande príncipe, vós, conde de Selongey, cavaleiro do Tosão de Ouro vós, que sois sem dúvida um dos primeiros no vosso país, quereis por mulher esta criança, cuja nascença, vós mesmo dizeis, está marcada pela infâmia. Porquê?

Não procurarei esconder-vos a verdade disse Selongey rudemente. Primeiro, porque a amo... Ora vamos! Vós só a vistes duas vezes: na giostra e no palácio Médicis...

Encontrei-a uma terceira vez na igreja da Santa Trindade. Mas um só encontro era suficiente. A sua beleza... apertou-me o coração. Foi como se tivesse ficado encantado...

E pensais que isso é amor? Que basta um instante para...

Mudar a vida de um homem? Devíeis ser o último a duvidar disso. Ou então, explicai-me por que razão vós, jovem, rico, livre de qualquer laço, carregastes a vossa vida com a filha de uma gente que não conhecíeis, que apenas entrevistes na hora da morte? Marie de Brévailles era muito bela, não é verdade? E vós viste-la morrer...

Beltrami fechou os olhos, tentando reter as lágrimas que lhe vinham aos olhos ao recordar aquela hora terrível, em que o amor da sua vida tinha sido fulminado. Enxugou-os com as costas de uma mão raivosa...

Falastes de duas razões... Qual é a segunda?

Quero o seu dote para as armas de monsenhor Carlos! Seguiu-se um silêncio, rompido ao cabo de um instante pelo riso sem alegria de Beltrami:

Eis finalmente a grande palavra. O dinheiro! Mas não vos darei Fiora. Não vos deixarei levá-la para o vosso bárbaro país, que só a esmagaria. Ela é uma flor delicada, criada sob o sol, com cuidados infinitos. Até aqui só conheceu a alegria, a beleza, as artes, as letras e até as ciências. Ela tem a sabedoria e o coração de uma rainha. Enquanto eu for vivo, esta obra feita com as minhas mãos e com a minha ternura não será destruída. Recuso separar-me dela.

Mas eu não vos separarei dela. Tal nunca foi minha intenção disse Philippe docemente.

Não compreendo. Que quereis dizer?

Nós estamos em guerra e esta guerra é sem quartel. Borgonha vencerá ou desaparecerá. Em tais condições, é impossível levar uma mulher comigo. Onde estaria ela melhor, senão junto do seu pai? Se ma concederdes, casar-nos-emos secretamente, mas sem que seja possível contestar o casamento. No dia seguinte, partirei... e nunca mais me vereis.

Cada vez compreendo menos! Ainda há um instante faláveis do vosso amor...

Que é profundo... e ardente, mas, sem dúvida, eu vou morrer. Quereis que vos diga mais claramente os termos do contrato que quero assinar convosco? Fiora terá o meu nome, o que a porá ao abrigo de um outro reconhecimento sempre possível. Será condessa de Selongey, mas viverá convosco e usará luto por mim quando chegar a hora...

E vós, que tereis vós, já que quereis entregar o seu dote ao vosso duque?

Uma noite de amor! Uma única noite, da qual levarei a recordação como um tesouro, ou que talvez me exorcize de uma paixão que me queima. Declarareis o casamento quando muito bem vos parecer. Bastante tarde, sem dúvida, se quereis evitar o ressentimento dos Médicis, cuja atitude é uma declaração de inimizade para com Borgonha. Foi por isso que falei num casamento secreto. Depois da minha morte, Fiora poderá, se quiser, voltar a casar...

A vossa morte, a vossa morte! Ela ainda não está escrita. Por que quereis tanto morrer?

Porque quero apagar do meu sangue a nódoa com que vou manchar as minhas armas ao casar com a filha de Jean e Marie de Brévailles. Serei o único a saber dessa nódoa, porque não tenho família. Ela desaparecerá comigo e em poucas horas darei tanto amor àquela que será minha mulher, que ela nunca saberá nada. A sua vida permanecerá a mesma junto de vós e eu terei tudo o que podia esperar deste mundo...

Esqueceis uma coisa: dessa única noite pode nascer um filho!

Nesse caso, educá-lo-eis até que tenha idade para pegar em armas e servir os seus príncipes. Então, enviá-lo-eis ao castelo de Selongey com todos os meios para se fazer reconhecer e eu ficarei em paz, porque será o sinal de que os meus antepassados me perdoaram o que vou fazer...

Que rapaz estranho! Francesco sentia-se confuso com aquela mistura de cinismo e inocência, com aquela alma feudal plena de paixão e certeza, capaz de tudo sacrificar ao seu senhor e aos seus próprios desejos, mas decidida a pagar o preço, mesmo que esse preço signifique a vida...

Que ides fazer? Eu ainda não aceitei o vosso pacto.

Mas ides aceitar. Sabei que estou pronto a tudo, entendeis, para conseguir Fiora, para que seja minha. Enquanto eu for vivo, ela não será de mais ninguém.

Até onde sois capaz de ir? Até dardes a conhecer a todos a verdade do seu nascimento? Far-vos-íeis retalhar imediatamente...

Talvez, mas vós não vos ergueríeis do escândalo. Seríeis obrigado a fechá-la num convento. Mais vale aceitar, messire Beltrami e vós sabei-lo bem. Ficais seguro, assim, de que ela nunca vos deixará. Isso deve ter um preço aos vossos olhos...

Francesco sentiu-se corar. Aquele homem tocara com o dedo no ponto sensível, aquela repugnância que ele tinha de ver, um dia, a sua filha bem-amada ir para longe, nos braços de um marido que nunca saberia amá-la como o seu pai... Sabia que o cavaleiro borgonhês ganhara, mas não queria ainda chegar a acordo:

O vosso amor é terrível, senhor conde! Não tenho razão nenhuma para supor que a minha filha se queira acomodar. E eu não a forçarei nunca...

Por que não lhe perguntais? Se ela aceitar...

Nesse caso, também aceitarei disse Beltrami gravemente mas sabei que ficareis ligado a um compromisso que vos será impossível quebrar... no caso de, mais tarde, mudardes de opinião.

Eis o comerciante que reaparece! disse Selongey com um sorriso de desdém. Eu só tenho uma palavra, messire Beltrami. Uma vez dada, não recuo.

Nesse caso, vamos a minha casa!

Lado a lado, caminharam pelas ruas, Philippe levando o seu cavalo pela rédea, que deixara à porta da casa de comércio. Nunca caminhara tanto desde que chegara a Florença. As pessoas daquela cidade pareciam preferir caminhar a qualquer outro meio de locomoção. Era verdade que as ruas, com uma valeta de cada lado, estavam limpas a maior parte do tempo, mas era curioso ver os grandes homens da cidade deslocarem-se

sem qualquer decência, como as pessoas do povo. Aquilo devia vir, sobretudo, do gosto extremo que todos tinham pela conversação. Nunca deviam estar certos do tempo que demoravam para ir de um local para outro, porque nunca sabiam que pessoas encontrariam e quantos minutos lhes consagrariam.

Entre o Mercato Nuovo e o palácio das margens do Arno, o borgonhês ouviu, mais de 20 vezes, os passantes saudarem o seu companheiro.

Uma boa noite para ti, messer Francesco! Deus te guarde e te mantenha próspero! Saúde para messer Francesco e todos aqueles que ama!... As fórmulas eram diversas, mas todas reflectiam respeito e até afeição.

Não vos sabia tão popular observou Selongey mas, por que é que aqui todos se tratam por tu?

Dir-se-ia que estais em Roma? O latim ignora o tratamento por vós e o latim permanece aqui a língua dos poetas e dos sábios. A nossa língua vulgar não passa de um derivado do latim, tal como o francês, aliás e monsenhor Lourenço, que começou a fazer versos em toscano, esforça-se por lhe dar a devida nobreza. E não há dúvida de que o conseguirá, porque é um grande artista em todas as coisas...

Também na política? Duvido. É um erro grave opor-se ao todo-poderoso duque da Borgonha...

Não vos quero contrariar, messire de Selongey, mas maior erro seria romper a aliança com o rei Luís de França, que é, talvez, o político mais fino do seu tempo!

Aquele miserável figurão? disse desdenhosamente o conde. Aquilo não é um cavaleiro.

Quando se tem a seu cargo um reino que durante cem anos conheceu a ocupação inglesa, mais vale ser um grande diplomata do que um cavaleiro sem mácula. O rei Luís tem coragem. Demonstrou-o em variadíssimas ocasiões.

Vejo que o admirais muito. Posso aconselhar-vos... como futuro genro, a que mudeis de amizades enquanto ainda é tempo? Em Julho último, o rei Eduardo IV de Inglaterra assinou com o duque Carlos um tratado, pelo qual o inglês se obriga a vir a França com um exército, ao mesmo tempo que a Borgonha se juntará a ele com dez mil homens antes do próximo 1 de Julho. Messire Luís será varrido e Eduardo será coroado rei de França em Reims como o exige a justiça.

Mas não a História! O vosso senhor deixará que o inglês cinja a coroa de São Luís, de quem ele próprio descende? A meu ver, seria um erro grave. Ter reconhecido em tempos o jovem Henrique, em detrimento de Carlos VII, não trouxe sorte ao duque Filipe, o Bom... O céu pode muito bem enviar uma outra Joana d’Arc... e, de qualquer maneira, nunca é bom uma pessoa enganar-se no rei. Enfim, Luís XI ainda não disse a sua última palavra. Podeis ter a certeza que monsenhor Lourenço não ignora nada disso... e ele recusou ajudar o vosso senhor!

E então, está enganado! Não vos esqueçais que a própria irmã de Luís XI, a duquesa Yolanda de Sabóia é aliada da Borgonha, em proveito de quem concluiu uma aliança com o duque«de Milão... que é vosso aliado.

Mas não nosso amigo. Que belo aliado arranjastes! Galeazzo Maria é um cabeça de vento que de Sforza só tem o nome, sem nenhuma parecença com o seu pai, o grande Francesco, que era amigo de Luís XI. Todos os seus pensamentos giram em redor da sua favorita, a bela Lúcia Marliani e nas cartas que escreve a monsenhor Lourenço só fala de certos rubis, que pertencem aos Médicis e que o milanês quer para a sua amante. O vosso duque vai ter uma surpresa...

Quem não as tem quando se trata de uma mulher? Consciente, de repente, do que dissera, Selongey corou e calou-se.

Os dois homens chegavam à vista do portão do palácio Beltrami, iluminado por duas lanternas metidas em jaulas de ferro e cujas chamas se curvavam e separavam sob o vento frio que soprava pelas ruas. Francesco ergueu o pesado batente de bronze representando uma cabeça de leão. Ao cair, este ressoou com um som amplo e profundo. E depois, quando a porta se abriu pela mão de um criado, Beltrami afastou-se para dar passagem àquele hóspede inesperado:

Resta saber para qual de nós será a surpresa disse o negociante gravemente.

A hora do jantar aproximava-se e Fiora esperava o seu pai na grande sala onde, diante do fogo flamejante da chaminé, a mesa estava posta. Sentada junto de um tabuleiro de ébano, marfim e ouro, jogava com Khatoun no silêncio religioso que se impunha para o mais sábio dos jogos e nem sequer ouviu o ligeiro rangido da porta a abrir-se para os dois homens. Apenas Léonarde, que bordava junto das duas jovens levantou a cabeça, mas, com um gesto, Beltrami impôs-lhe silêncio para poder contemplar por um instante o quadro encantador composto pelas duas jogadoras...

O fogo agarrava-se, com os seus reflexos vivos, às tranças lustrosas de Fiora, à jóia de ouro que lhe pendia da fronte e às pregas do seu vestido de cendal, de um vermelho-profundo. As suas pestanas negras, docemente curvas, punham uma sombra doce no veludo das suas faces e os seus dentes brancos, que mordiscavam um dos seus dedos afilados, brilharam por instantes por entre os lábios frescos. Na sua frente, Khatoun, vestida com uma túnica e um véu de um alegre azul-canário, parecia um pequeno génio de um conto oriental.

Beltrami, o coração apertado por uma súbita angústia, teria querido reter indefinidamente aquele minuto de paz, aquele instante de luz, que protegiam ainda a quietude da sua vida de pai satisfeito. Não precisava de se virar para adivinhar com que olhos ardentes o estrangeiro olhava para a sua filha. Como era possível que, ainda há pouco uma criança, já suscitasse a paixão de um homem?... Pela primeira vez olhou para Fiora com olhos diferentes, demorando-se na finura da sua cintura, na harmonia delicada do pescoço moldado pelo tecido cintilante, na sua pele sedosa de um marfim rosado tão suave, na delicadeza de uma mão fina pegando numa peça preciosa... O pensamento de que um homem podia pretender possuir aquele milagre de graça e beleza, tornou-se-lhe subitamente intolerável. Sentiu uma vontade brutal de chamar os seus criados para que pusessem na rua o insolente pretendente... mas Khatoun tinha visto os dois homens e, com um gesto ligeiro, apontou para eles. Fiora levantou os olhos e empurrou a cadeira para trás...

Pai repreendeu-o ela alegremente parece-me que vens tarde e que...

Subitamente, ela reconheceu Philippe, cuja estatura dominava a de Beltrami e uma vaga de sangue purpurou-lhe as faces. Para esconder a sua perturbação, esboçou uma reverência.

Ignorava que teríamos um hóspede murmurou ela. Devias ter-nos prevenido.

A minha visita é absolutamente imprevista disse suavemente Philippe e suplico-vos, demoiselle, que me perdoeis por vos encontrar desprevenida. De qualquer maneira, não serei vosso... hóspede durante muito tempo.

Deixai-nos, dame Léonarde disse Beltrami brevemente. Tu também, Khatoun...

Com os olhos plenos de interrogações mudas, as duas mulheres saíram sem uma palavra, deixando Fiora só face aos dois homens. Quando a porta se fechou, Beltrami aproximou-se, pegou na filha pela mão e conduziu-a até à cadeira que ela acabava de abandonar.

Senta-te, minha filha disse ele docemente. O que temos para te dizer é grave... de uma extrema importância para o futuro...

O que... vós... tendes para me dizer? Sois, portanto, dois a falar?

Com efeito...

Beltrami sentiu um nó na garganta e engoliu em seco nervosamente. Chegara o instante terrível, aquele instante que deixara que lhe impusessem, porque aquele homem conhecia o seu segredo... E de repente, teve pressa de acabar. Tudo era preferível à incerteza. Aliás, Fiora mal conhecia Selongey, nunca aceitaria casar com ele... Ia, com um sorriso, recusar, como recusava as homenagens de Luca Tornabuoni. Não pensara que estava apaixonada por Giuliano de Médicis? Então, com uma voz clara, disse:

Messire Philippe de Selongey, que vês aqui, veio esta noite pedir-me a tua mão...

Mal pronunciou aquelas palavras, Beltrami teve vontade de as retirar. Fiora acolheu-as com uma imensa surpresa nos olhos, mas já uma luz se acendia, uma luz que o magoava muito...

Vós quereis... casar comigo? perguntou a jovem. Vivamente, Selongey pôs um joelho em terra:

Não há nada que eu mais deseje disse ele com voz vibrante. O que o vosso pai não disse, Fiora, é que vos amo e que nunca amarei mais ninguém.

Nunca?... Senão eu?

Enquanto viver! Dou a minha palavra de cavaleiro perante Deus, que receberá os nossos votos se aceitardes ser minha!

Fiora olhou para o rosto arrogante virado para si, para aqueles olhos cuja chama a queimava, para aqueles lábios cujo beijo a atormentava, para aquela grande mão que se estendia para a sua. A jovem procurou o olhar do seu pai, mas Beltrami desviou-o. Philippe acrescentou, mais baixo, mas mais ardentemente:

Respondei, Fiora! Quereis ser minha mulher?

Uma alegria imensa invadiu a jovem. Era como uma daquelas grandes vagas azuis, deliciosas e tépidas, nas quais, em Livorno, se banhara num dia de Verão. O sonho começado sob as abóbadas severas de Santa Trinita continuava e, desta vez, não teria fim. Com um gesto encantador e espontâneo, ela colocou as suas duas mãos nas que se lhe ofereciam:

Quero disse ela firmemente... sim, quero!

Francesco Beltrami fechou os olhos por um instante, para não ver Philippe beijar ternamente os pequenos dedos daquela que passava a ser a sua noiva. Estava tudo dito e era preciso ir até ao fim. A surpresa fora para ele... Batendo subitamente com as mãos, o negociante chamou com voz forte:

Vinho! Tragam vinho!

Não se devia celebrar com uma libação o próximo casamento de Fiora? Mas, pela primeira vez desde há muito tempo, Francesco Beltrami tinha vontade de chorar...

CAPÍTULO IV A NOITE DE FIESOLE

Dois dias depois, à mesma hora, Fiora, de coração apertado, esperava o momento em que, para sempre, seria unida ao homem que amava e que entrara na sua vida como um furacão. Tudo fora tão rápido que a cabeça ainda lhe andava um pouco à roda...

Quando dera a sua mão a Philippe, pensava que iriam celebrar o noivado e que depois o seu futuro marido voltaria a partir para combater ao lado do seu duque. Terminada a guerra, regressaria para consagrar o casamento e, finalmente, levá-la para o seu país a fim de a apresentar na corte do Grande Duque do Ocidente. Imaginava já as bodas faustosas, que seriam as da filha única do rico Francesco Beltrami...

E eis que nada se parecia com os seus sonhos de infância, que nada seria conforme a tradição. Nem sequer haveria um grande jantar para a imposição do anel, símbolo da união, nem troca de presentes. Os jovens não estenderiam pela sua rua a fita ou a grinalda de flores, ao mesmo tempo que um deles, o mais belo, lhe ofereceria um ramo, após o que o noivo poderia romper o frágil obstáculo. Não haveria um cortejo de damas para escoltar a noiva até ao Duomo, enquanto na loggia do Bigallo, perto do Baptistério, as trombetas soariam o triunfo do amor. Não haveria um grande banquete ao som da música, não haveria baile, não haveria nozes atiradas para as lajes do chão perto da câmara nupcial para impedir que se ouvisse o que se passaria lá dentro, não haveria brincadeiras, risos, fábulas para alegrar as pessoas, romances...

Tudo se ia passar na grande villa que Beltrami possuía em Fiesole, de noite, quase em segredo, para que os Médicis ignorassem aquele casamento que poderia ofender as suas amizades e escolhas políticas. E Philippe tinha pressa. Amava demasiado Fiora para aceitar afastar-se dela sem se assegurar que nenhum outro homem, nunca, lha tiraria...

Teria sido a mesma coisa depois do noivado observara a jovem e mesmo sem outro compromisso que não a minha palavra. Teria bastado que me pedísseis para esperar. Eu teria esperado... a vida inteira.

Talvez tenhais que o fazer durante a vida inteira. Eu posso morrer, Fiora e nunca mais voltar. Foi por isso que quis este casamento, cuja rapidez vos assusta tanto, talvez. Eu quero, depois de partir, ficar certo de que sois minha. Sentis assim tanta falta dos faustos de um casamento em pleno dia?

Sentiria, sobretudo, se não tivésseis essa pressa. Sentiria se não me amásseis...

Estava tudo dito. Há uma hora que Beltrami e o seu futuro genro estavam fechados no gabinete do negociante com um notário que era amigo seguro. Discutiam o severo contrato que Beltrami entendia assegurar à sua filha. No seu quarto, Fiora entregava-se aos cuidados das mulheres. Léonarde, de rosto hermético e Khatoun, cujos dedos tremiam de excitação, tinham-na vestido com um belo vestido de seda branca, todo bordado a ouro. Na massa dos seus cabelos, penteados ao alto, tinham penteado estrelas de esmeraldas e entrançado uma fina grinalda dourada e na orla do decote, entre os seios juvenis, Léonarde tinha pregado um dragão com olhos de esmeralda, cujas asas abertas estavam matizadas com as mesmas pedras. Dentro em pouco colocar-lhe-iam na cabeça o grande véu que tinham mandado abençoar nessa mesma manhã no mosteiro vizinho, segundo as regras...

Desde que lhe haviam anunciado o casamento de Fiora, a velha governanta não deixara de cerrar os dentes, mas passara longas horas na igreja. A Fiora, que a repreendera por não mostrar alegria ao vê-la unir-se a um grande senhor da Borgonha que também era o seu país, Léonarde tinha respondido: |

Eu sei que é um grande senhor e eu conheço bem o castelo de Selongey, uma poderosa fortaleza e uma nobre casa. Eu sei que casais com um homem valente e que junto dele ficareis altamente colocada. Eu sei...

Sabeis que o amo... e que ele me ama?

- Tinha que ser, para atabalhoar assim um casamento em dois dias e confesso-vos, compreendo mal como o vosso pai, um homem tão sensato, tão cuidadoso, deu o seu acordo a semelhante...

Loucura? Eu creio que o meu pai sabe que de uma loucura pode nascer uma grande felicidade.

Léonarde não respondera mais nada, mas corara um pouco. Melhor do que ninguém, ela sabia que Francesco Beltrami era capaz de actos aparentemente insensatos e tentara falar-lhe, mas, escusando-se a qualquer explicação, o negociante fora impossível de encontrar, como se tivesse fugido. Assim, a velha dama escolhera o silêncio... mas Khatoun falava pelas duas.

A pequena tártara não se cansava de gabar a magnificência do noivo e predizer à sua jovem patroa um universo de amor, ao mesmo tempo que cantava, acompanhada por um alaúde, todas as canções do seu repertório. Tinha prometido, sem hesitar, não revelar a ninguém o que se ia passar e Fiora sabia que ela preferiria deixar-se matar a trair um segredo confiado ao seu coração.

O mais penoso, para Fiora, era não poder dizer nada à sua amiga Chiara. Teria gostado, pelo menos, de ter aquela rapariga encantadora junto de si quando o seu casamento fosse abençoado. Teria gostado de poder partilhar com Chiara toda aquela alegria, toda aquela felicidade que transbordava do seu coração, mas Beltrami mostrara-se intratável:

Não te esqueças que a Colomba dela é a língua mais ágil da cidade! Confiar-lhe um segredo é partilhá-lo com as correntes de ar. Além disso, lembra-te que os Albizzi foram durante muito tempo mais ricos e poderosos do que os Médicis, que estiveram exilados e que não seria nada bom metê-los neste casamento. Alguns poderiam achar isso estranho.

Não terei, portanto, nunca, o direito de usar diante de todos o nome do meu marido? Gostava tanto...

Que saibam que és condessa? perguntou Beltrami, sorrindo.

Não. Que saibam que sou «sua» mulher...

Isso há-de vir, descansa! E talvez mais depressa do que julgas. Quero apenas um certo tempo, para o anunciar eu próprio ao Magnífico. Será mais fácil se ele acreditar que te casaste... sem eu saber!

Dessa vez, Fiora compreendera. Conhecia suficientemente bem os Médícis para saber a que ponto eles eram ciosos da sua autoridade, ainda por cima porque não lhes fora legalmente concedida. E deixou-se ir na alegria de, em breve, ser de Philippe. Mas, à medida que a hora se aproximava, o seu coração batia cada vez mais depressa...

A jovem sonhava, de pé junto de uma janela de onde se via o jardim em terraços e, mais abaixo, Florença, estendida como um tapete cinzento e rosa aos pés da antiga acrópole etrusca e romana, que fora Fiesole. Do esplendor de outrora só restava uma cerca de muralhas ciclópicas meio arruinada e muitas pedras, provenientes do que fora um teatro. Havia vestígios em quase todos os jardins que eram muitos, porque, se Fiesole deixara de ser uma cidadela guerreira, continuava a ser um lugar de prazer e certamente o lugar mais encantador dos arredores de Florença. Mesmo quando os jardins, como naquele começo de Fevereiro, não tinham flores, restava a doçura das colinas que sublinhavam os fusos negros dos ciprestes e dos teixos, as cores esbatidas da terra e das oliveiras prateadas, cujos muretes de pedras ruivas retinham as raízes torcidas, a elegância de algumas casas patrícias e, na pequena praça daquilo que mais não era do que uma aldeia grande, o contraste encantador de uma velha catedral romana de campanário ameado junto de um gracioso palácio novo.

O Sol pusera-se numa glória púrpura anunciadora de vento, deixando um reflexo nos telhados do pequeno convento franciscano que coroava a colina e onde estava conservado o corpo do grande Santo António, que toda a Florença venerava. Era na sua capela que, chegada a noite, Fiora e Philippe seriam casados pelo venerável abade...

Selongey, o seu escudeiro Mathieu de Frames, que lhe serviria de testemunha e os homens que compunham a sua escolta tinham transposto as portas de Florença de manhã sem espírito de regresso. Por um caminho desviado tinham atingido a villa de Beltrami e entrado nela pela porta de serviço, onde iam esperar a sua verdadeira partida, prevista para o dia seguinte de madrugada. Sós, os dois nobres tinham entrado na casa, mas o que Fiora ignorava era que no cofre do seu pai repousava já uma carta de crédito de cem mil florins de ouro, pagáveis no banco Fugger de Augsburgo e que representava o seu dote quase real...

Durante muito tempo, Fiora permaneceu ali, vendo morrer o dia e a noite invadir pouco a pouco o maravilhoso quadro, deixando apenas visíveis alguns pontos luminosos, fogueiras nas muralhas, ou luzes diversas. Compunham um prolongamento do céu, onde se acendiam as primeiras estrelas. Aquela noite que caía fazia cair, também, uma cortina sobre os dias despreocupados de uma infância feliz e o dia seguinte, quando voltasse, iluminaria um ser novo, nascido da misteriosa magia do amor.

Tal como a maioria das raparigas do seu tempo, Fiora sabia que não era a bênção do casamento que fazia desabrochar a mulher, mas sim a união de dois corpos e que essa união, pelo menos no princípio, podia ser dolorosa, insuportável por vezes, quando o acto do amor se transformava em violação, como tantas vezes ouvira contar nos relatos dos desacatos provocados pouco tempo antes em Volterra e Prato pelos mercenários de Florença. A jovem não receava nada de semelhante da parte de um homem que a amava e ao qual ela se sentia feliz por se oferecer, porque lhe bastara um beijo para a conquistar.

A entrada silenciosa de Léonarde veio, no entanto, pôr fim ao seu sonho. A governanta trazia com ela o véu com que envolveu a jovem e uma grande capa negra com capuz, sob a qual desapareceu o vestido brilhante.

Chegou a hora! disse ela. Vinde! Esperam-vos... Depois, bruscamente, a governanta agarrou Fiora pelos ombros e abraçou-a com uma enorme ternura.

Espero que sejais feliz, meu cordeirinho e, sobretudo, que o sejais durante muito tempo.

Nunca me senti tão feliz! murmurou Fiora, sincera. Messire Philippe não tem tudo o que é preciso para assegurar essa felicidade?

Tem, mas é um soldado e isso não simplifica as coisas. Tereis de suportar longas ausências...

Os regressos serão, assim, maravilhosos! E agora vamos, visto que nos esperam.

Léonarde não respondeu, contentando-se em abrir a porta diante daquela criança que ela acreditava conhecer tão bem e que parecia mudar a cada instante. Aquele casamento, decididamente, agradava-lhe cada vez menos, mas sabia-se impotente para travar a roda do destino posta em marcha tão bruscamente.

Quatro silhuetas negras, as de Beltrami, de Philippe, do seu amigo Prames e do notário Buenaventura esperavam no pórtico de entrada. Quando as duas mulheres se lhes juntaram, o negociante pegou na mão da filha e dirigiu-se para a entrada dos jardins, mergulhados na obscuridade. Nenhuma luz iluminava o caminho, mas a noite não estava demasiado escura e permitia que se deslocassem sem acidentes.

Transpostos os limites da propriedade, encontraram rapidamente a vereda que ia dar ao mosteiro. Não se ouvia qualquer barulho. Todo o campo estava silencioso, como se retivesse a respiração. Não se ouvia, nem o voo de uma ave, nem o ladrar de um cão, nem a passagem pela erva de um dos numerosos habitantes dos campos. Sob os amplos mantos que os cobriam, os seis passeantes pareciam um grupo de fantasmas... Fiora, essa, deslocava-se como num sonho...

Como num sonho, viu abrir-se a porta da pequena capela mal iluminada por uma grossa vela pousada no chão num candelabro de prata e por duas lâmpadas em cada lado da velha pedra do altar, coberta com uma toalha imaculada. Estava escuro e frio. Nenhuma solenidade para aquela missa nocturna, apenas os vasos sagrados, que eram preciosas peças de joalharia e a casula do monge que ia oficiar, mais dourada ainda do que o vestido da noiva.

Como num sonho, ouviu desenrolar-se o ritual e ofereceu a mão ao pesado anel de ouro que Philippe lhe enfiou no dedo. As palavras do padre e as fungadelas de Léonarde, que acabara por chorar, eram as únicas coisas que perturbavam o silêncio em que estava envolvido o convento. A realidade regressou com a saída da igreja, o regresso a casa pelo braço de Philippe e o rosto crispado de Francesco Beltrami, quando, no instante de subir com Léonarde e Khatone para o quarto preparado para a noite de núpcias, Fiora ofereceu a fronte ao seu beijo e à sua bênção... No momento em que a sua filha o deixava para ir, não para o seu leito de menina, mas para o de um homem, Beltrami, pálido até aos lábios, parecia um mártir em tormento. Que torturas poderiam ser piores do que aquelas que estava a sofrer? À humilhação de ter sido obrigado a ceder a uma chantagem juntava-se um ciúme devorador. Naquele instante, teve vontade de matar aquele homem demasiado sedutor, que só precisara de um momento para conquistar o coração de Fiora e que, agora, tinha o direito de entrar no seu quarto, como dono e senhor e possuir o seu corpo.

Porque era honesto, perguntou a si próprio se todos os pais experimentariam o mesmo terrível sentimento de frustração, a mesma dolorosa tensão carnal? As recordações que guardava de outros casamentos responderam-lhe pela negativa e teve vergonha dos pensamentos que o tinham invadido, das imagens que a sua imaginação febril lhe mostrara. Se Fiora tivesse sido, realmente, sua filha, tudo aquilo, certamente, lhe teria sido poupado, mas ela não era sua filha segundo a carne e ele reagia como um homem a quem acabavam de tirar a mulher amada. Era Marie, que ele perdia pela segunda vez...

Naquela noite, o sensato Francesco Beltrami bebeu um pouco mais do que devia enquanto esperava pela luz do dia, desse dia triunfal que lhe traria o fim do pesadelo, em que veria partir, sem esperança de regresso, o borgonhês detestado, deixando-lhe Fiora durante todo o tempo que lhe restava de vida. De momento, era-lhe penoso confessar que fora aquela a única circunstância que o incitara a aceitar a exigência insensata de Selongey. O conde só teria uma única noite. Ele teria a vida toda, o que nunca teria sido possível com um marido florentino...

Enquanto isso, no grande quarto docemente aquecido, perfumado e ornamentado com flores e folhagem, Léonarde e Khatoun preparavam Fiora para a noite. Desfizeram o entrançado complicado do seu penteado e depois pentearam, escovaram e lustraram os seus longos cabelos negros até ficarem brilhantes, tão suaves como cetim. Despojaram-na das jóias, do vestido sumptuoso, da roupa branca e massajaram-lhe docemente o corpo e as pernas com um óleo leve e perfumado, que cheirava a floresta e erva recentemente cortada. Depois, segurando cada uma numa das suas mãos, conduziram-na, nua, até ao grande leito de colunas com cortinas de veludo púrpura e franja dourada que, maciço como um altar de sacrifícios, ocupava o centro do quarto.

Estenderam-na entre os lençóis sedosos aquecidos antecipadamente, depois de exporem os seus cabelos na almofada, numa auréola negra e brilhante. Em seguida, Léonarde acendeu a vela de cabeceira, beijou Fiora na fronte e fechou as cortinas do leito antes de se retirar com Khatoun, que cantarolava acompanhada pelo seu alaúde...

O som do instrumento apagou-se pouco a pouco e Fiora, o coração batendo-lhe com toda a força no peito, ficou só à luz avermelhada da vela...

Não esperou muito tempo. Ouviu o ligeiro ranger da porta, um ruído de passos atenuado pelos tapetes e por fim o deslizar das cortinas, afastadas com as duas mãos. Fiora fechou os olhos, mas reabriu-os logo a seguir, não querendo perder nenhuma imagem daquela noite única. E viu Philippe. De pé em frente do leito, as mãos ainda agarradas às cortinas de veludo, olhava para ela e os seus olhos faiscavam no rosto bronzeado. Com excepção de um curto calção branco, estava nu e a chama vacilante da lâmpada de azeite fazia com que os músculos poderosos, mas sem gordura, das coxas e do peito, onde se encaracolavam uns pêlos curtos, e dos braços, parecessem vivos.

Fascinada, Fiora olhava para ele, pensando que era ainda mais belo do que aquela estátua de Hermes pela qual Lourenço de Médicis sentia tanto orgulho, mas já ele agarrava no lençol e na colcha e, com um gesto atirava-os para os pés do leito... Com as faces subitamente a arder, Fiora voltou a fechar os olhos, esperando que ele falasse, que dissesse qualquer coisa, fosse o que fosse, que fizesse um gesto, mas Philippe não tinha pressa. Tinha pegado na vela e erguia-a por cima do corpo nervosamente hirto da jovem. O jovem viu que ela tremia e sorriu:

De que tens medo? O teu espelho nunca te disse como és bela?... Tão bela!... Tão doce!... O borgonhês voltou a pousar a vela e, deixando-se cair de joelhos, pousou os lábios no ventre de Fiora, que se sentiu percorrida por um longo arrepio. Ele sentiu-o e deu uma ligeira risada:

Belo instrumento murmurou ele, envolvendo numa longa carícia os seios palpitantes que maravilhoso canto de amor vou poder tocar em ti...

Sem abandonar a sua pose ajoelhada, cobriu-lhe o corpo todo com beijos leves, lambendo docemente as pontas cor-de-rosa que se erguiam sob os seus lábios, ao mesmo tempo que as suas mãos exploravam as curvas das ancas e a superfície sedosa do ventre tenso. A boca seguiu as mãos, descendo, descendo sempre até ao doce monte-de -vénus, que ela abriu delicadamente. Com os olhos muito abertos e o coração enlouquecido, Fiora sentiu acordar em si uma tempestade, um ardor de que não pensava ser capaz... Todo o seu corpo gritava por aquele homem que tocava nela como num instrumento, lhe arrancava suspiros, queixumes doces e não sabia mais o quê... Por fim, ele deslizou para cima dela, fechou-a nos braços e devorou-a com um beijo, sob o qual ela desfaleceu... O seu corpo distendeu-se e arqueou-se como se quisesse escapar ao peso que lhe era imposto sem brutalidade, Philippe martirizou-lhe a revolta e, subitamente, ela sentiu que ele entrava nela...

Uma breve, ligeira dor, cujo grito ele sufocou com um beijo. Por um momento, Philippe permaneceu imóvel, mas depois, com as mãos mergulhadas na cabeleira cujo perfume o inebriava, começou docemente, muito docemente, a sua dança de amor, à qual, em breve, Fiora se associou apaixonadamente... A onda ardente de prazer arrebatou-os e revolveu-os até ao último paroxismo, que atingiram juntos num estertor duplo... Depois a onda abrandou, deixando-os ofegantes, naufragados na praia de lençóis amarrotados, nos quais havia algumas gotas de sangue... Mas os braços de Philippe não abrandaram o seu abraço... Aquele ser novo que ele acabava de acordar para o amor acabava de lhe oferecer, sem saber, a mais espantosa das revelações: a das profundezas inesperadas do seu coração. Ele pensava amar Fiora como amara outras mulheres antes. Mas, desta vez, o caçador fora apanhado na própria armadilha e não tinha vontade de se afastar dela. No entanto, teria de o fazer quando chegasse a madrugada. Teria de partir, prisioneiro da sua palavra e deixar a sua mulher, aquela que nunca pensara encontrar, prosseguir sem ele uma vida que lhe era totalmente estranha. Não lhe permitiriam alterar fosse o que fosse no pacto que concluíra com Beltrami, sobretudo este. Philippe compreendera-o pelo olhar assassino que o negociante lhe lançara quando ele o deixara para ir ter com Fiora...

Amo-te! murmurou ele com a boca nos cabelos dela. Nunca saberás a que ponto te amo...

Por que nunca hei-de saber? Não mo poderás provar durante estes anos todos que temos para viver juntos?

Saberemos nós se teremos anos pela frente? Eu vou partir, deixar-te, porque não posso levar-te comigo.

No fim de contas, por que razão não podes?

Sabe-lo bem. Não se leva uma mulher para a guerra.

Talvez se comportasse de maneira a espantar-te? Para te seguir, para estar sempre ao pé de ti, creio que seria capaz de aceitar muitos perigos.

Casei, afinal, com uma jovem leoa? perguntou ele, abraçando-a. Só aumentas as minhas penas, meu amor, minha flor... meu doce amor. Mas tu tens de ficar... nem que seja para não pôr o teu pai em perigo. Diz-se que o rancor do magnífico Lourenço pode ser tanto mais terrível quanto menos direito tem de exercer o poder. E tenho poucas dúvidas acerca dos seus sentimentos para com o meu duque. Se ele soubesse que o teu pai te deu a mim sem sequer lhe pedir a opinião, as consequências, se eu julguei bem o homem, poderiam ser... desagradáveis para vós dois.

Nesse caso, esperarei suspirou Fiora mas, mesmo que só dure uma semana, será bem longa, essa espera... Tens mesmo de partir amanhã?...

Não

posso fazer outra coisa...

Nesse caso, não podemos perder um minuto desta noite que o destino nos dá. Ama-me! Philippe, ama-me mais e mais, para que eu possa viver de recordações durante todos os dias e noites que vou passar sem ti.

Philippe só esperava aquele pedido, porque o desejo já tinha acordado de novo nele, mas temia, dando-lhe livre curso, assustar e até ferir aquela criança que se tinha abandonado a ele com tanta confiança. E afastou-se um pouco.

Não é preciso ter tanta pressa, minha doce... Tu és tão jovem, tão nova... Tenho tanto medo de te fazer mal!

Não me poderás fazer mal, porque sou eu que te»chamo. É tão doce ser tua...

Ele olhou para ela deslumbrado, maravilhado... A vela esculpia o seu corpo com sombras ternas, dourava a superfície delicadamente arredondada do seu corpo e fazia deslizar um raio na direcção do vértice das coxas, ao mesmo tempo arredondadas e esbeltas. Com uma mão, ele puxou para si o belo rosto tão puro, cujos lábios se entreabriam e ofereciam, ao mesmo tempo que as grandes pupilas claras desfaleciam. Nunca tal beleza lhe fora dada e o seu coração apertou-se ao pensar que ela iria desabrochar ainda mais, longe dos seus olhos:

Queres? perguntou ele com a voz rouca. Queres mesmo? Então, o riso de Fiora caiu em cascatas alegres, infantis e, no entanto, perturbadoras:

É claro que quero! Platão diz que é bom repetir duas ou três vezes as coisas boas!

A estupefacção deixou-o sem voz. Platão era, de certeza, a última pessoa que ele esperava ver como intruso no seu leito nupcial. Mas como imaginar que aquela adorável rapariga, ainda há pouco uma criança, pudesse ter conhecimentos de filosofia grega? A sua cultura não ia além dos Commentários de César e sentiu-se um pouco vexado...

E que diz Platão do amor? perguntou ele enquanto os seus dedos recomeçavam a deslizar pela pele suave.

Não... não fala muito dele ofegou Fiora, ao mesmo tempo que o seu olhar se perdia... Mas diz:...«Dá e receberás!» E... e eu dou-me a ti para sempre! E eu quero-te em mim, todo...

E então ele apoderou-se dela, brutalmente, como se ela fosse uma rapariga de uma cidade qualquer conquistada. Ela gritou e ele sufocou-lhe os gritos. Ele sentiu as lágrimas correrem-lhe pelo rosto e compreendeu que lhe estava a fazer mal, mas sentia uma alegria maldosa, duplicada pelo pensamento terrível de que aquela rapariga, nascida do incesto e alimentada por uma filosofia herética talvez fosse, no fim de contas, uma enviada do diabo. Teve vontade de a matar, para se libertar das correntes com que ela, insensivelmente, lhe prendia a alma. Já as suas mãos se agarravam ao seu frágil pescoço: começava já a apertá-lo quando ela abriu os seus imensos olhos da cor das nuvens que as lágrimas faziam brilhar e estendeu para que ele os beijasse, os lábios inchados...

Philippe! murmurou ela meu amor, meu senhor...

O demónio é que é o teu senhor! rugiu ele. Uma tal beleza não pode ter sido desejada por Deus...

Bruscamente lúcida, ela quis arrancar-se a ele:

Se há um demónio, foste tu que o fizeste nascer disse ela tão dolorosamente que ele teve vergonha. As lágrimas que agora corriam não eram lágrimas de felicidade. Ele recolheu-as uma a uma, antes de beijar longamente aquela boca trémula, ao mesmo tempo que, de novo, fazia explodir o prazer no corpo da jovem mulher, antes de dar livre curso à sua própria satisfação.

Perdoa-me! sussurrou ele, por fim. Tu pões-me louco...

Então, estamos loucos os dois concluiu Fiora, consolada, aninhando a cabeça na cova do ombro do seu marido...

Sentia-se fatigada, mas ainda não queria dormir. Teria todo o tempo para se abandonar ao sono quando Philippe já ali não estivesse, quando o seu leito estivesse vazio e frio...

Ignorava suspirou ela que o amor pudesse dar tanta satisfação e eu gostaria de poder dar-te tanta quanta tu me dás...

Não sentes a que ponto me fazes feliz?

Talvez... mas, há um momento, pareceu-me que me detestavas...

Não acredites nisso... A verdade é que tu és demasiado bela e a tua beleza mete-me medo.

Porquê, se tudo o que eu sou te pertence inteiramente? Oh! Meu amor, ensina-me a amar-te... Diz-me como te hei-de dar tanto prazer...

Isso são coisas que não se ensinam a uma mulher honesta disse ele com uma falsa severidade...

Para que hei-de eu ser uma mulher honesta esta noite? Vou ter todo o tempo para isso. Esta noite só quero ser a tua mulher...

Enternecido, ele guiou-lhe os primeiros gestos, mas a aluna era digna do mestre e um silêncio, povoado por longos suspiros, instalou-se por baixo das cortinas púrpuras que fechavam os dois amantes, como se estivessem no coração de um fruto maduro. E, por três vezes ainda, Philippe triunfou daquele corpo jovem que parecia insaciável, até que por fim, Fiora, fulminada, adormeceu de repente, com a cabeça fora do leito e os longos cabelos, encharcados em suor, arrastando pelo tapete. Philippe, com o coração a bater desordenadamente no peito, deixou-se cair de borco, o rosto nas almofadas e, por sua vez, adormeceu também.

Mas a madrugada não estava longe. Algures, no campo, um galo cantou, imitado por outros nos quatro cantos do horizonte... A porta da câmara nupcial abriu-se silenciosamente sob a mão de Léonarde, que permaneceu um momento imóvel, na soleira, fascinada pelo espectáculo que se lhe oferecia à luz decadente da vela, da concha avermelhada da alcova aberta com os dois corpos nus, que o amor parecia ter fulminado. O de Fiora, na sua pose impudica, tinha o ar do cadáver de uma bacante e Léonarde, de sobrolho franzido, benzeu-se duas ou três vezes antes de caminhar, sem o menor ruído, na direcção daquele leito onde, um século antes, dormira uma virgem inocente...

Suavemente, tomando cuidado para não a acordar, a governanta endireitou a jovem, que, do fundo do seu sono, murmurou palavras indistintas e sorriu, mas, uma vez em cima da almofada, enroscou-se, como uma gata feliz por encontrar o seu ninho. Léonarde cobriu-a e depois, dando a volta ao leito, aproximou-se de Philippe, pousou-lhe uma mão no ombro e abanou-o docemente, inclinando-se sobre a sua orelha.

Messire sussurrou ela. Tendes de vos levantar! São horas... Habituado desde a infância pelo duro treino cavaleiresco a dormir em qualquer parte e a acordar ao primeiro chamamento, Philippe virou-se de imediato e olhou para a governanta com olhos quase lúcidos...

Que dizeis? grunhiu ele.

Shhhh!... Digo que o dia está a nascer e que a vossa escolta está quase pronta. Messire de Prames está a tomar o pequeno-almoço.

Já?... Por que partir tão cedo?

Vós é que sabeis. Para não chamar a atenção. Não decidistes assim com messire Francesco?

Com efeito... mas isso foi antes...

O jovem inclinou-se para Fiora para a beijar, mas Léonarde deteve-o:

Não a acordeis! Assim é mais fácil...

Quereis que eu parta... sem lhe dizer adeus?

Sim. É melhor para ela... e para vós! A menos que queirais ficar com a recordação de um rosto desfigurado pelas lágrimas?

Não!... Não, tendes razão...

Philippe levantou-se com um movimento ágil que não abanou o leito e bocejou, espreguiçando-se com grandes movimentos, não se preocupando em esconder um corpo onde se viam cicatrizes de antigos ferimentos e ligeiras arranhadelas deixadas pelas unhas de Fiora. Antes de pegar no roupão com que entrara na véspera naquele quarto, virou-se para a jovem que dormia tranquilamente na massa negra dos seus cabelos desordenados com uma mão numa das faces e concedeu a si próprio uns últimos instantes de contemplação... com as grandes olheiras azuladas que marcavam os seus belos olhos de pálpebras fechadas, ela pareceu-lhe mais bela do que nunca e ao pensar que nunca mais a veria algo lhe apertou a garganta... Seria uma coisa muito doce passar uma vida inteira junto dela, mas o pacto, cujas cláusulas fora ele próprio a ditar, só lhe concedia uma noite... Inclinando-se rapidamente, pegou numa mecha de cabelos e pousou nela os lábios...

Adeus!... murmurou ele... adeus, meu doce amor! Endireitando-se, viu que Léonarde, com ar bizarro, lhe estendia um par de tesouras... Ele pegou nele com um sorriso que perturbou a velha dama. Ela não imaginava que aquele homem, do qual não pensava nada de bom, pudesse ter aquele sorriso de criança maravilhada.

Obrigado! disse Philippe.

O borgonhês cortou uma pequena mecha que guardou na concha da mão e depois, entregando a tesoura a Léonarde, pegou no seu vestuário e abandonou o quarto sem se virar. Só com Fiora adormecida, Léonarde puxou suavemente as cortinas do leito para que a luz do dia que começava a nascer não acordasse a jovem e abandonou o quarto na ponta dos pés...

Entretanto, no grande vestíbulo de grandes lajes de mármore branco e negro, Philippe de Selongey dispunha-se a despedir-se de Beltrami, Que o esperava na base da escadaria.

Tendo deitado pela cabeça abaixo uma bacia de água fria, como ° atestavam os cabelos ainda húmidos, Francesco conseguira afastar os vapores da embriaguez, mas os seus olhos continuavam injectados de sangue ao verem o borgonhês, calçado e envolto no seu grande manto de montar, descer os últimos degraus, notando com cólera que ele tinha a expressão de um homem que não dormira praticamente nada e que o seu passo parecia mais pesado... Aparentemente, aquela única noite que Selongey exigira fora em cheio e Beltrami sentiu em si um furor insano. Teve vontade de subir àquele quarto onde a sua bela Fiora jazia talvez ferida, ensanguentada, doente de desgosto, depois de ter servido de brinquedo durante horas à impiedosa luxúria daquele homem, mas avistou Léonarde, que das sombras densas do andar superior descia lentamente e conteve-se à custa de um violento esforço. Apenas uma coisa era urgente: que aquele bruto desaparecesse para sempre no horizonte! À força de ternura, saberia fazer esquecer àquela criança o sofrimento por que tinha passado.

Com uma voz que se esforçava por manter firme, perguntou:

Dissestes-lhe adeus?

Não... ela dorme e eu não quis acordá-la. Dizei-lhe vós adeus por mim... Dizei-lhe...

O quê? ralhou o negociante.

Philippe emitiu aquele seu sorriso engraçado que lhe repuxava a boca só para um lado e encolheu os ombros.

Nada! Não saberíeis o que dizer...

De qualquer modo, não lhe diria nada! E farei tudo o que estiver ao meu alcance para que ela vos esqueça... o mais depressa possível! Vós quisestes uma noite, tiveste-la. Agora, resta-vos cumprir a vossa promessa e deixardes-vos matar!

Eu prometi isso? perguntou Selongey com altivez.

Parece-me que sim! Já esquecestes as vossas palavras? Depois da nódoa que um casamento com a minha filha impõe à vossa honra, não tendes outra solução senão lavar essa nódoa com o vosso sangue. Mudou alguma coisa?

Nada mudou! Como apresentar na corte de monsenhor Carlos uma esposa que é praticamente igual a uma mãe executada por incesto e adultério?... Não, nada mudou, mas não imaginais até que ponto o lamento!

Aparentemente, esta noite não foi suficientemente longa? perguntou Beltrami com um sorriso sarcástico. Talvez imagineis que vos convido a regressar?

Philippe olhou por um momento em silêncio para aquele homem cujo sofrimento compreendia subitamente. Percebeu como aquelas bodas estranhas lhe tinham perturbado o espírito. Sem dúvida, o florentino acabara de descobrir que o seu amor paternal não era tão paternal como isso e Philippe sentiu mais piedade do que irritação:

Não receeis! Não procurarei regressar, porque perderia a minha alma. Ficai a saber que vivi durante algumas horas toda a felicidade que poderia esperar. Nunca esquecerei esta noite... e espero que Fiora também não! E agora, adeus, messer Beltrami! Cuidai bem dela!

Cobrindo as mãos com as grandes luvas que levava à cintura, Philippe dirigiu-se para a porta, mas Beltrami deteve-o e, tirando do seu longo traje de veludo negro um rolo de pergaminho selado, estendeu-o ao jovem.

Um instante, senhor conde! Esqueceis-vos disto. Não é este o preço dessa famosa nódoa que vos suja a honra?

Philippe empalideceu e esboçou um gesto de recusa. Hesitou:

Gostaria de vo-la poder atirar à cara, a vossa letra rugiu ele mas monsenhor Carlos precisa desse ouro. Mas ficai tranquilo! Esta soma ser-vos-á devolvida e com juros, quando a minha mulher, depois da minha morte, herdar os meus bens.

Raivosamente, o jovem arrancou o rolo das mãos de Beltrami, meteu-o dentro do gibão e saiu a correr, perseguido pelo riso irónico do negociante. Atravessando uma pequena parte do jardim que o amanhecer tornava acinzentado, dirigiu-se para as instalações dos criados, onde os seus homens o esperavam e onde Frames já se encontrava.

De pé na zona sombria da escadaria onde a altercação dos dois homens a tinha gelado, Léonarde fez um rápido sinal da cruz ao ouvir diminuir o som dos passos daquele estranho marido que tinham dado a Fiora. O que acabava de ouvir explicava muita coisa e percebeu os termos daquele contrato, pelo qual uma criança fora atirada para os braços de um homem que nunca vira antes. A velha dama desceu lentamente os últimos degraus e juntou-se a Beltrami, que, na soleira da porta, apontava um punho furioso para um jardim vazio.

Ele sabia, nesse caso? perguntou ela docemente. Francesco, que esquecera a sua presença, estremeceu e olhou para ela sem dizer nada. O seu braço caiu, sem força, ao longo do traje. Encolhendo os ombros, suspirou, por fim:

Se não soubesse, achais que lhe teria dado Fiora? Lourenço de Médicis recusou-lhe o empréstimo que ele veio pedir para o duque da Borgonha. A mão da minha filha... e o seu dote foram o preço do seu silêncio! Um belo preço, como vedes!

Um homem com aquele nome e aquela qualidade, baixar-se a um negócio tão vil? Mal consigo acreditar. Os Selongey sempre foram gente de carácter rude, difíceis de conviver, mas de uma lealdade sem falha para com os seus duques e incapazes de uma baixeza. E porquê? Por ouro? Eles nunca foram pobres e os seus privilégios devem permanecer intactos...

É a sua única desculpa: ele não queria este ouro para ele. Não o ouvistes? Mas agora, graças a Deus, foi-se embora e para sempre! Nunca mais o veremos!

Nunca mais? Ele tem intenção, então, de abandonar uma jovem esposa pela qual parece, no entanto, apaixonado...

Não, mas tem intenção de se deixar matar na guerra. Ele ama Fiora, ou, pelo menos, é o que ele diz e talvez seja verdade, mas acha que, ao casar com a filha de uma gente desonrada, feriu a grandeza do seu nome.

Casou com a filha de um dos maiores homens de Florença. Não tem razão para se envergonhar, parece-me, por mais Selongey que seja? Ninguém, aqui, ouviu falar, nunca, dos Brévailles...

Sem dúvida, mas para ele a mancha é insuportável.

Como é que ele soube?

Palavra de honra que não sei. Diz que se sentiu surpreendido com a semelhança. Irmão e irmã, os jovens Brévailles eram muito parecidos. A filha de ambos é o retrato, tanto de um como do outro. E agora, peço-vos, dame Léonarde, não falemos mais desta personagem que eu desejo esquecer o mais depressa possível.

Achais que conseguireis o mesmo por Fiora? Ela entregou-se a ele demasiado espontaneamente para que o seu coração ainda lhe pertença e ela não é daquelas que amam duas vezes, era capaz de o jurar. Ela vai sofrer...

Agora não! Ainda não! Ela sabe que ele teve de partir para se juntar ao seu duque diante de Neuss. Vai esperar por ele. Será então, quando souber da sua morte, que vai sofrer. Só desejo que a espera não seja muito longa: a dor será, talvez, mais violenta, mas mais breve...

Mas talvez venha a ser longa. Um cavaleiro não tem o direito de se entregar à morte, sob pena de perder a alma e, de certa maneira, a honra. É preciso que morra defendendo-se, que encontre quem seja mais forte do que ele. E a acreditar nas histórias do seu escudeiro, um tal adversário não é fácil de encontrar... Concluístes um estranho negócio, ser Francesco! Talvez Deus se divirta a contrariá-lo...

Veremos. Por agora, alegremo-nos por a nossa Fiora não nos ter sido levada. Poderemos continuar a rodeá-la, a protegê-la.

Ela nunca usará o nome do marido?

É evidente que sim. Desde que a conjuntura política o permita e sem ofender os Médicis, declararemos o casamento.

E se o pudermos declarar ao mesmo tempo que a morte do marido, melhor, não é verdade? disse Léonarde com uma amargura que não conseguiu evitar. Acabava de compreender que, se Philippe não tivesse exigido a sua noite de núpcias, Beltrami teria achado o incrível negócio a seu gosto e descobriu que o melhor dos homens podia abandonar-se a um egoísmo impiedoso. Francesco Beltrami devia ter sofrido um martírio naquela noite em que Fiora se entregara ao desejo de um homem, mas, agora, só queria pensar na felicidade que representava poder ficar com a sua filha junto de si para sempre...

Bem, tudo acabou bem! suspirou ela. Mas chegou a hora de ir para o pé dela, para quando acordar. É possível que ela não ache esta manhã tão feliz como vós...

Léonarde sentia grande dificuldade em dissimular a cólera. Com quantas lágrimas iria a sua criança pagar uma felicidade que só durara três dias e uma noite? Beltrami não compreendia que ela nunca mais seria a mesma uma vez passada a soleira do amor físico? E se viesse um filho?

Espero que isso não aconteça respondeu ela para si própria. Se for mãe, Fiora nunca conseguirá esquecer este marido de poucas horas e o esquecimento é o melhor que lhe pode acontecer.

Mas não acreditava. Lentamente, sempre com as mesmas precauções, regressou ao quarto onde a jovem continuava a dormir e puxou uma cadeira para o pé do leito, para ali aguardar o seu despertar. Não queria que ela abrisse os olhos para um quarto vazio. E, com efeito, quando Fiora acordou, foi o rosto familiar de Léonarde que ela viu. Ofereceu-lhe um sorriso radioso:

Estáveis aí? Já é tão tarde?

Quase meio-dia. Dormistes bem?

Mas Fiora já procurava alguém naquele leito subitamente tão grande, mas que guardava ainda sinais de outro corpo:

Philippe!... Onde está ele?

Léonarde saiu da cadeira e sentou-se perto da jovem.

Partiu disse ela tão docemente quanto pôde, subitamente horrorizada ao ver os olhos de Fiora, uns instantes antes enublados, iluminarem-se rapidamente e arregalaram-se:

Partiu?... Mas não para...

Para se juntar a monsenhor o duque da Borgonha. Abandonou esta casa.

E vós deixastes-me dormir?

Nunca Fiora olhara para a sua velha amiga com aqueles olhos, ardendo de cólera.

Ele não quis que vos acordassem. Temia, creio, o momento sempre difícil da partida. Limitou-se a cortar, para levar com ele, uma mecha dos vossos cabelos...

Ele tinha mesmo de ir já? Não podia esperar mais algumas horas? Fomos tão felizes juntos!... Mas talvez ainda não esteja longe...

Fiora saltou transtornada do leito e, sem mesmo pensar em cobrir-se com uma roupa qualquer, correu à janela, que abriu de par em par. O céu estava cinzento e o vento varria a chuva fina que caía desde o meio da manhã, mas Fiora não quis saber:

Philippe! chamou ela em voz alta. Philippe! Regressa!

Beltrami, que dava um passeio pelo jardim para acabar de expulsar os vapores da sua noite maldita, ouviu os seus gritos, levantou a cabeça e ficou confuso com o que viu: uma mulher nua, desgrenhada, gritando desesperada ao vento húmido. Uma mulher que não era, não podia ser a sua filha. A voz quente e doce de Fiora não poderia emitir aquele clamor rouco de leoa chamando o seu macho...

Os gritos não cessavam, a imagem impudica e enlouquecida não se apagava. Então, como um cego e com as duas mãos nos ouvidos para não ouvir mais, o infeliz enfiou-se através dos arbustos despidos pelo Inverno, até ao abrigo precário, mas surdo, de uma pequena gruta, onde, para um tanque, corria água de uma cabeça de leão. Ali, deitado na terra húmida, Francesco Beltrami chorou as suas ilusões perdidas. O estrangeiro só pedira uma noite, mas essa noite fora suficiente para fazer de Fiora uma outra mulher, a mulher «dele». E a criança de outros tempos nunca mais regressaria...

CAPÍTULO V HIERONYMA

Tu mudaste, Fiora... Há dias que te observo e de cada vez isso me parece mais evidente. Tinha que to dizer, hoje.

Fiora sorriu para a sua amiga. O rosto gentil de Chiara tinha, com efeito, uma ruga de preocupação, que lhe era pouco usual e que lhe dava uma certa gravidade.

Em que é que eu mudei assim tanto?

Ris-te menos do que antigamente e vejo que por vezes, quando estamos juntas, pareces pensar noutra coisa. Não respondes às perguntas que te faço, ou então respondes por portas e travessas. Mas há outra coisa mais grave...

Mais grave? O que é, meu Deus?

Antes de ontem, quando, perto do Baptistério, estávamos a ouvir a história do contador de fábulas, Giuliano de Médicis, que estava de passagem com alguns amigos, veio cumprimentar-nos. Habitualmente, quando o vias ficavas vermelha como um tomate. Desta vez, mal olhaste para ele, o que o deixou vexado, creio.

Ora, e eu ralada. Para que precisa ele da atenção e admiração de todas as mulheres se as suas vão exclusivamente para Simonetta? É só presunção, mais nada!

Que linguagem é essa? Já não o amas?

Eu amei-o alguma vez? Creio... que me agradava. Mas agora já não... pelo menos já não tanto.

Deixando a sua amiga especada de espanto, Fiora deu alguns passos na direcção do murete de pedras baixas, de onde se via toda a cidade de Florença e para lá. As duas amigas, escoltadas pelas suas governantas e por Khatoun, tinham saído a cavalo para se dirigirem a San Miniato, como sempre que chegava a Primavera, para colher violetas e espinheiros-alvar, que cresciam em abundância em redor da igreja de San Miniato al Monte e do palácio dos Bispos. As jovens diziam que elas eram ali mais belas, naquele local bendito, do que noutros locais e que, dali do alto, tinham a impressão de que toda a cidade se abria como uma gigantesca flor. À luz nova da Primavera, Florença parecia acumular beleza como um avarento acumula o seu ouro: um pouco mais, se bem que já haja muito...

Fiora teria preferido fazer aquele passeio tradicional com Philippe, contemplar com ele, para além da longa fita loura do Arno cheia de pontes que pareciam prestes a afundar-se sob a acumulação de lojas, a confusão de telhas vermelhas sobre o ocre-quente, o cinzento-suave ou o branco-leitoso das paredes. Era como que um tapete de rosas, de onde emergiam jóias: o Duomo, uma bolha de coral pousada sobre uma manta de retalhos brilhante, uma flor-de-lis de prata jamais desabrochada por completo sobre o palácio dos Senhores, espirais de coralina cujas seteiras tinham o ar de borboletas e campanários que se pareciam com círios de Páscoa na alegria dos seus mármores polícronos. E depois, um pouco por toda a parte, a verdura nova dos jardins, onde desabrochavam as glicínias e os lilás, os loureiros e as camélias, porque em parte nenhuma, no mundo, a Primavera era mais bela do que em Florença... nem mais maravilhosa de admirar do que de mão dada com o seu marido e regressar depois com ele ao cair da tarde e sob um Sol poente glorioso como o de Fiesole, prelúdio de uma noite de amor. Mas Philippe estava longe, a centenas de léguas dos seus braços e Fiora nem sequer tinha a consolação de saber onde ele estava exactamente.

Há já dois meses que ele tinha deixado a villa Beltrami, dois meses que poderiam muito bem ser dois séculos, porque Fiora nunca achara o tempo tão vagaroso. Após os três dias que passara fechada no quarto sem consentir em sair, sem ver outra pessoa que não Khatoun, que lhe levava as refeições e sem permitir que lhe mudassem sequer os lençóis onde Philippe a amara, consentira, por fim, em sair quando Léonarde aparecera para lhe dizer que o seu pai se preparava para partir para Veneza. Não podia deixar que ele se fosse embora sem o abraçar.

Quando o reencontrou e viu virar-se para ela aquele rosto pálido de olhos tristes como nunca tinha visto antes, teve vergonha de si própria e da sua reclusão egoísta. Devia puni-lo só porque a sua felicidade desaparecera? Então, cedendo ao impulso da sua ternura filial, caíra-lhe nos braços e tinham ficado longos momentos abraçados, chorando os dois lágrimas diferentes, mas que, ao fim e ao cabo, os uniam...

Ama-lo assim tanto? perguntara Francesco com a voz sem entoação. Ama-lo ao ponto de já não me amares a mim?

Não te amar? Oh, pai, espero que nunca tenhas acreditado em semelhante coisa? Ninguém, nunca, te poderá substituir no meu coração. Ele é diferente... é meu marido. Não é a mesma coisa. E peço-te perdão por estes três dias, mas eu não queria que me visses chorar...

Mas tu estás a chorar neste momento, Fiora... e eu também. Não achas que o desgosto se suporta melhor quando o partilhamos?

É por isso que partes? Para melhor o partilhar? Ou queres-me punir?

Não. É porque Lourenço de Médicis, tendo descoberto a minha amizade por Bernardo Bembo, me pediu para ir ter com ele por alguns dias. Não me peças que te diga porquê...

Teria sido incapaz. Aquela viagem, com efeito, não passava de um pretexto para se poder afastar por algum tempo de Fiora, para tentar voltar a ser ele próprio longe de um olhar que podia ser demasiado perspicaz. Tinha necessidade de colocar alguma distância entre ambos, para melhor se habituar àquela nova Fiora que entrevira à chuva numa manhã de dor: uma mulher ardente e apaixonada, que se entregara de corpo e alma a outro...

Por seu lado, a jovem acolhia com uma secreta satisfação aquela curta separação. Percebera que aquele casamento não era de todo agradável ao seu pai e que não teria qualquer prazer em ouvi-la, a ela, cantar elogios, ao longo do dia, a um marido perfeito.

Beltrami partiu, portanto e Fiora, tendo regressado como desejava ao palácio nas margens do Arno, pôde dar-se à alegria de cantar o seu amor por Philippe, para benefício, apenas, dos ouvidos de Léonarde e Khatoun. Depois, acalmou-se. Após o desgosto da partida e a alegria retrospectiva, Fiora entrou na espera do regresso que desejava próximo, °u, pelo menos, de uma mensagem. Permaneceu longas horas no seu quarto, ou no jardim, escutando Khatoun que cantava para ela e contemplando o grosso anel de ouro batido com as armas dos Selongey, que Philippe lhe enfiara no dedo ao tomá-la como esposa. Era demasiado largo para o seu dedo delgado e como não era possível mandá-lo estreitar por um joalheiro, ou sequer usá-lo em público, a jovem metera-o num delgado e longo fio de ouro, que lhe permitia escondê-lo sob os vestidos. O anel pendia-lhe entre os seios e ela gostava, quando não lhe era possível tirá-lo, apoiar-lhe a mão em cima, para melhor sentir a sua presença.

Quando Francesco regressara da sua viagem, ela oferecera-lhe, para o seu beijo, uma fronte serena e a vida recomeçara, como no passado, na casa dos Beltrami. Só, Léonarde dera um grande suspiro de alívio ao constatar que depois de mais de um mês, a jovem não apresentava qualquer sinal de maternidade...

Chiara respeitou por um momento a meditação da sua amiga. Aliás, ela própria precisava de pôr os seus pensamentos em ordem. Aproveitou para aumentar ainda mais um grande ramo de violetas que já tinha nas mãos e depois, achando que o silêncio já ia longo, lançou uma olhadela a Léonarde e a Colomba, que, sentadas à sombra de um pinheiro, conversavam sem parar, ao mesmo tempo que mantinham os dedos vagamente ocupados com um bordado. E meteu o braço no da sua amiga:

Já sonhaste o suficiente? perguntou ela alegremente. Contemplas a nossa bela cidade como se a visses pela última vez.

Devias dizer, como se a visse pela primeira vez. Já viemos aqui muitas vezes por esta altura, mas este ano Florença tem um encanto diferente. Até as muralhas e as torres de vigia parecem participar da beleza geral. Gostaria...

De estar aqui com outra pessoa que não uma velha amiga! É exactamente o que eu penso: já não estás apaixonada por Giuliano porque estás apaixonada por outro... por outro que está longe! E aposto que é por messire Philippe de Selongey!

Inesperado, aquele nome, doravante o seu, atingiu Fiora tão repentinamente que ela estremeceu e corou.

Fala mais baixo, por favor! Ou melhor: não fales de todo!

É assim tão grave? murmurou Chiara elucidada. Desculpa-me! Pensava que era uma paixoneta passageira, como tantas outras que temos e que desaparecem com o vento, como a que tiveste por Giuliano. Sabes, ao menos, se voltas a vê-lo?

Creio que sim disse Fiora com um sorriso que se dirigia mais aos seus próprios pensamentos do que à amiga. E agora falemos de outra coisa! Aliás, não são horas de voltarmos? Já temos flores suficientes para duas ou três igrejas!

Elas costumavam, com efeito, oferecer todos os anos a sua recolha a Santa Maria del Fiore, acrescentando à sua oferenda perfumada um generoso donativo para as crianças pobres, das quais se ocupavam os curas da catedral. Iam, portanto, juntar-se a Colomba e a Léonarde, que, por seu lado, já juntavam as suas coisas, quando, subitamente, Fiora deteve a sua amiga.

Espera! disse ela com a voz oprimida...

Que é que se passa? Estás doente?

Não... não, mas tenho uma sensação bizarra... Há pouco, disseste que eu estava a olhar para a cidade como se a visse pela última vez...

Sim... mas foi uma brincadeira. Disse aquilo porque tu tinhas uma expressão de avidez... como se quisesses absorver aquilo tudo com os olhos. E tu respondeste-me...

Eu sei... mas agora pergunto a mim própria se não terás tido razão. Sinto qualquer coisa que me diz... que não regressarei a este local!

Que loucura! Continuas a pensar na profecia do médico grego?

Não. Juro-te que não... nem sequer pensei nele... mas tive como que um pressentimento, como se Florença se me tornasse, subitamente, hostil... me rejeitasse, a mim, que a amo tanto!

Achas que ela te quer mal porque amas um estrangeiro, quando tantos dos seus filhos suspiram por ti? Expulsa essas ideias! Tens vivido demasiado retirada, estes últimos tempos. O que precisas é de uma bela festa, onde brilhes com todo o teu fogo e onde o grande Médicis dance mais uma vez contigo! Ora ai está! É isto, precisamente, o que te falta!

Com efeito, um grupo de jovens, conduzidos por Luca Tornabuoni em alegre cavalgada, desembocava no pequeno adro da igreja.

Tinha a certeza que vos encontraria aqui disse o jovem saltando para terra e tirando o chapéu. Não é neste dia do ano que colheis flores para a Madona?

E vós vindes ajudar-nos? perguntou Chiara, rindo-se.

A levar tudo isso? Certamente. E também para vos escoltar até ao Duomo, para juntarmos as nossas orações às vossas!

Eis-vos bem piedoso, ser Luca! disse Léonarde, que se juntara ao grupo. Cria-vos um discípulo fiel de Platão e eis que falais da Madona como se quisésseis entrar para um convento.

Nunca desejei tal coisa e há um tempo para Platão e um tempo para rezar. Parece-me acrescentou ele olhando ternamente para Fiora que se me ajoelhar aos Seus pés na companhia de certa jovem ela ouvirá melhor as minhas preces...

Esperava uma risada da jovem, mas esta desviou os olhos, incomodada com a imagem que ele evocara e fez como se não tivesse ouvido. Pensando, então, que fora demasiado arrojado, o jovem foi buscar o cavalo de Fiora e ajudou-a a subir para a sela:

Algo me diz que hoje não estou inspirado, Fiora murmurou ele procurando-lhe o olhar mas queria tanto que me autorizásseis a enviar o meu pai para falar com o vosso! Eu sei que ele vos acha ainda muito nova, mas se, pelo menos, nós fôssemos noivos... eu esperaria o tempo que vós desejásseis! O ânimo não nos falta, quando sabemos que podemos ter esperança!

Pela primeira vez ela olhou para ele com uma espécie de ternura. Ela, que só podia viver de esperança, podia compreender o que sentia o jovem, mas não tinha o direito de lhe dar qualquer esperança.

Não me faleis mais disso, Luca! Perdeis o vosso tempo e o vosso coração comigo. Eu não quero deixar o meu pai e...

... e não me amais! Como vedes, completo a vossa frase. Digo o que vós não ousais dizer. Mas, se não me amais no momento, talvez me ameis mais tarde. Vós mesma o dissestes: ainda sois muito nova... Não! Não digais mais nada! Estamos na Primavera e o tempo está lindo. Deixai-me continuar a sonhar!

O jovem regressou para o seu cavalo e o pequeno bando, carregado de grandes ramos e folhas perfumados desceu na direcção da cidade, ao mesmo tempo que um dos rapazes cantava um romance em honra da Primavera. Todos cantaram o refrão em coro e todos riram muito, mas Fiora não conseguiu afinar pelo mesmo diapasão. À medida que avançavam, a tristeza que se apoderara dela em San Miniãto acentuava-se, E juntava-se a ela uma impressão de perigo iminente. Supersticiosa como todas as boas Florentinas, lembrou-se que Philippe estava na guerra, portanto em perpétuo perigo, mas que corria um perigo talvez maior e o seu amor pressentia-o como uma premonição... Em breve, toda aquela alegria que a rodeava se lhe tornou insuportável e quando passaram a Ponte Vecchio, onde àquela hora do dia os talhos estavam fechados, pretextou um súbito mal-estar e, sem mesmo permitir que Chiara a acompanhasse não era preciso que pelo menos uma das apanhadoras fosse levar as flores? tomou o caminho de casa com Léonarde e Khatoun. Tinha pressa de chegar, agora, sem poder dizer de onde lhe vinha a impaciência. Mal respondeu à saudação alegre que lhe dirigiu Gian-Battista di Rinaldo, um barqueiro do rio que Beltrami tinha salvado da ruína e de cujo filho ela era madrinha.

Não lhe queirais mal gritou Léonarde, desejosa de apagar o que o bravo homem pudesse considerar como uma ofensa donna Fiora não está bem e eu vou levá-la para casa!

Que Deus a abençoe e lhe devolva a saúde. Lá em casa rezaremos por ela, esta noite!

De qualquer maneira, umas orações não nos farão mal resmungou Léonarde, devorando Fiora com os seus olhos inquietos. Que se passa, minha querida? Estais mesmo doente? Na verdade, estais muito pálida...

Sim... não... não sei. Mas tenho de voltar para casa. Quero ver o meu pai!

Estais preocupada porque ele vos disse esta manhã que se sentia um pouco fatigado? Creio que exagerais...

Fiora não respondeu. De que serviria? Se dissesse que tinha o pressentimento de que uma infelicidade a esperava no palácio, Léonarde, com o seu sólido bom senso, esforçar-se-ia por lhe demonstrar que estava enganada. Aliás, estavam a chegar...

Dir-se-ia que o vosso pai tem visitantes! observou Léonarde apontando para uma mula elegantemente ajaezada de vermelho e duas outras mais modestas, que esperavam placidamente presas junto do apeadeiro de cavalos. Deus me perdoe! Creio que é a equipagem habitual da vossa prima Hieronyma. Que vem ela cá fazer? As suas visitas nunca trazem nada de bom acrescentou a governanta, que guardava na memória as ameaças formuladas contra Fiora na loja do boticário Landucci.

Com efeito disse Fiora mas não tardaremos a saber. Saltando para terra por baixo da abóbada do palácio, Fiora atirou as rédeas a um criado e atravessou rapidamente o pátio interior, onde, com efeito, esperava a seguidora habitual de Hieronyma e um dos seus criados. A jovem subiu a escadaria a correr e quase deu um encontrão em Rinaldo, que era o criado particular de Francesco Beltrami, depois de o ter sido do seu pai.

Onde está o meu pai? perguntou ela.

Na sala do Órgão, donna Fiora, mas não está só.

Eu sei com quem ele está. Obrigada, Rinaldo!... disse a jovem um pouco surpreendida, porque a sala em questão, tal como o studiolo, era um dos locais privilegiados para onde o negociante gostava de se retirar. Aprendera em criança a tocar órgão e, de tempos a tempos, isolava-se naquela grande sala, que, com as suas paredes pintadas com frescos e o chão de mármore sem tapetes, tinha a ressonância de uma capela. Que recebesse nela uma prima de quem gostava pouco não era habitual, mas talvez tivesse sido surpreendido pela chegada inesperada da dama.

Quando se aproximou da porta, Fiora ouviu vozes e refreou o andamento. Se discutia com Hieronyma, talvez Beltrami não ficasse contente por ver chegar a filha... Então, docemente, muito docemente, a jovem entreabriu a porta e a voz do seu pai, vibrante de cólera, chegou até ela facilmente:

Nunca, ouves, nunca darei a minha filha ao teu filho! Tenho muita pena daquele infeliz rapaz, que não é responsável pelo seu físico, mas não se pode pedir a uma mulher jovem e bela que passe a sua vida com um marido como ele.

Porque é coxo e disforme? Pelo menos, Piero é nobre e de nascimento puro. Não é um bastardo!

Creio que nunca ninguém pensou em reprovar a Fiora a sua bastardia e creio, também, que toda a gente sabe isso!

É verdade... mas nem toda a gente sabe tudo...

Seguiu-se um silêncio, no fundo do qual Fiora pensou ouvir a respiração subitamente mais forte do seu pai. Sentiu vontade de entrar, mas foi incapaz, retida por uma força mais poderosa do que a sua vontade. A curiosidade, sem dúvida, à qual se misturava uma espécie de terror... Por fim, Beltrami suspirou e com a ligeira insolência de um homem a quem importunam, continuou:

Esse tudo quer dizer o quê?

É mesmo necessário que te explique? Empalideceste, Francesco, o que quer dizer que adivinhaste qual é o assunto de que te quero falar! Não acreditas? Encolhes os ombros?... Não te incomodes: eu vou falar claro. A tua preciosa Fiora, que tu educas como uma princesa, não é tua filha. Tu nunca tiveste nenhuma aventura com dama nenhuma fora das fronteiras deste país. Ela é fruto de amores incestuosos e adúlteros, filha de gente condenada à morte pela justiça da Borgonha pelos seus crimes e tu apanhaste-a da lama...

Se a casa tivesse caído sobre Fiora o choque não teria sido maior. A jovem precisou, primeiro, de se agarrar a uma tapeçaria e depois às costas de uma cadeira vizinha, para não cair. A voz maldosa de Hieronyma ainda silvava nos seus ouvidos com toda a carga de ódio que destilava. A de Beltrami, entretanto, continuava fria:

E, naturalmente, tu tens provas do que afirmas?

Tenho melhor: uma testemunha... ocular. Alguém que está pronto a tudo dizer para me agradar.

Beltrami acabava de compreender. O seu espírito rápido já tinha feito a aproximação. Hieronyma vivia a maior parte do tempo em Montughi, na propriedade do seu sogro e, perto dessa mesma Montughi, Marino, em quem investira toda a sua confiança, dirigia a sua propriedade agrícola. Marino, que nunca admitira a adopção da criança e a quem tivera de atar a língua com um juramento prestado num altar e numerosos benefícios. Ao mesmo tempo, lembrava-se de certos rumores, muito discretos para dizer a verdade e que ele repelira com desdém, acerca da conduta daquela viúva polpuda, que, privada do marido, procurava consolação. Ainda era bela e capaz de seduzir um homem como o antigo chefe recoveiro...

Hieronyma tomou o seu silêncio por uma espécie de desalento e ironizou:

Vejo que compreendeste, meu belo primo. Agora já sabes como sou generosa ao propor um casamento entre o meu filho e a tua bastarda, que, assim, poderá gozar a tua fortuna até ao fim dos seus dias. A sorte dela é que, vê lá tu, o meu Piero está apaixonado por ela e quere-a para mulher. E eu não quero que o meu filho se sinta infeliz. Ele esquecerá a sua desgraça nos braços da tua bela feiticeira, que não terá mais nada que fazer senão dar-lhe filhos bonitos...

E se eu recusar?

Não recusarás. Sabes muito bem que posso, já amanhã, depositar uma queixa contra ti por teres mentido e achincalhado a Senhoria, ao fazeres de um dejecto da humanidade, que devia ter sido destruído à nascença, uma florentina.

Incapaz de se conter por mais tempo, Francesco deixou-se levar pela cólera:

E tu és capaz de apresentar a tua testemunha? Não te esqueças de uma coisa, Hieronyma. Correm rumores acerca de ti. Diz-se que não respeitas a tua viuvez, assim como a casa do teu sogro. Basta que Marino Betti confesse que é teu amante e poderás saber quanto pesa a justiça pessoal do velho Jacopo. Ele não brinca no capítulo da honra.

Mas talvez fique feliz por ver entrar para a família Pazzi uma fortuna da importância da tua. Ele já não é assim tão rico e suporta-o mas. Creio que me ajudaria, pelo contrário, com todas as suas forças... mas, claro está, o casamento não se realizaria. Não o admitiria. Simplesmente, depois da tua condenação e privação dos teus bens, que me seriam entregues como tua herdeira natural, a tua Fiora seria entregue a Piero, para que ele se divertisse... após o que nos desembaraçaríamos dela atirando-a para um bordel! Como vês, tens todo o interesse em aceitar a minha proposta. Em seguida, prometo-te que formaremos uma família feliz... e sem história!

Sai daqui!... Fora da minha vista!

Decididamente, não és razoável. Mas eu penso que uma longa noite de reflexão te fará ver onde está o teu interesse. Amanhã, por volta desta hora, virei buscar a resposta. Desejo-te uma boa noite.

Um arrepio de horror galvanizou Fiora e devolveu-lhe as forças. Compreendendo que a mulher ia sair e não querendo ser surpreendida à escuta, escondeu-se por trás de uma tapeçaria, reprimindo ao máximo os batimentos do seu coração. Um suor frio molhava-lhe a fronte e as costas, como se o abismo terrível do inferno acabasse de se abrir na sua frente. Afastando ligeiramente a pesada tapeçaria, viu Hieronyma sair da sala do Órgão, sem pressa. Segura da sua vitória, pavoneava-se com arrogância, pousando sobre os móveis e objectos preciosos, pelos quais passava, um olhar ávido de proprietária.

Pela primeira vez na sua jovem vida, Fiora sentiu vontade de matar, de destruir aquela mulher odiosa, percebendo por que razão a ameaçara em casa de Landucci. Saindo sem ruído do seu esconderijo, pegou num pesado candelabro de bronze e avançou lentamente na direcção de Hieronyma, que parara para admirar as peças de joalharia dispostas em cima de uma credencia, mas, como se tivesse adivinhado que um perigo se aproximava, a dama Pazzi saiu bruscamente da sala sem se virar, no momento exacto em que Beltrami entrava nela.

O negociante viu Fiora armada, prestes a lançar-se atrás de Hieronyma e compreendeu o que ela queria fazer. Exclamou:

Não Fiora! Não faças isso!

É ela ou nós, pai! Deixa-me fazê-lo!

Então, ele correu para ela, arrancou-lhe o candelabro e depositou-o em cima de uma arca. Desesperada, Fiora viu que ele envelhecera dez anos e que havia lágrimas nos seus olhos. Então, atirou-se-lhe ao pescoço e apertou-o contra si, chorando ambos sobre o que a abominável Hieronyma acabava de destruir, de sujar. Foi ali que Léonarde, que procurava Fiora, os encontrou.

Que se passou? perguntou ela. Acabo de me cruzar com donna Hieronyma e ela ordenou-me, chamando-me de velha alcoviteira, que começasse a fazer as malas!

Estamos à beira da catástrofe, minha pobre Léonarde disse Beltrami. Aquela mulher é amante de Marino. Ele disse-lhe tudo e está pronto a testemunhar contra mim... a menos, evidentemente, que eu case Fiora com o filho dela!

Mas ela já é casada, parece-me? É preciso dizer-lho.

Isso é a última coisa a fazer. Resta-me uma ténue esperança de salvação, que é ir contar tudo a monsenhor Lourenço. Tem respeito e amizade por mim, ao passo que detesta os Pazzi. Evidentemente, o casamento torná-lo-ia furioso, mas isso não lhe vou eu dizer...

Fiora, que se mantivera abraçada a Beltrami, afastou-se dele e olhou-o com uns olhos plenos de angústia:

Pai!... É verdade que não sou tua filha? É verdade que nasci...

Ouviste tudo?

Tudo! Eu estava ali, perto da porta, que estava entreaberta. Oh, pai! Foi terrível e eu creio que agora ainda é pior! Eu, que me sentia tão feliz por ser tua filha! E agora não sou nada... menos que nada! O mais pobre dos mendigos tem o direito de me desprezar, o...

Cala-te, Fiora! Por amor de Deus, cala-te! Enquanto não souberes tudo, não podes julgar. Quanto a mim, és minha filha porque te quis e reconheci... e porque te amo! Vem, vem comigo! Vamos para o studiolo! É diante da imagem da tua mãe que te quero dizer a verdade. É uma história triste e dolorosa, que Léonarde conhece bem, mas que eu preciso de te contar. Vem, minha filha!

Rodeando os ombros de Fiora com o braço, Francesco levou-a docemente pela galeria até à pequena sala íntima e acolhedora, na qual reinava o sorriso de Marie de Brévailles. Léonarde seguiu-os e mandou embora Khatoun, que esperava à porta com a ansiedade no rosto, porque havia lágrimas nos olhos de Fiora, e Fiora nunca chorava:

Espera por ela no quarto! Ela já lá vai ter. Eu sigo-te daqui a pouco.

Eu preferia que viésseis connosco, Léonarde disse Beltrami. Duas memórias valem mais do que uma quando procuramos não esquecer nada...

Então, juntos, entraram no studiolo. Francesco retirou o pano de veludo que cobria o retrato de Marie e foi sentar-se por trás da sua mesa, indicando uma cadeira a Léonarde. Fiora preferiu instalar-se numa almofada aos pés do pai.

Vais precisar de coragem, minha querida, porque eu vou-te contar uma história terrível, mas, ao mesmo tempo, uma história maravilhosa e enternecedora, da qual o ódio de Hieronyma apenas reteve os traços mais horríveis... Lembras-te daquele chapeuzinho de renda que te mostrei e que Sandro Botticelli reproduziu neste retrato? Tu reparaste numas manchas de sangue e eu não quis responder às tuas perguntas.

Disseste que me responderias mais tarde, quando eu fosse mulher. Eu agora já sou uma mulher.

Ainda não me habituei disse Francesco, acariciando-lhe os cabelos sedosos. Mas, nesse dia, menti-te. Não tinha intenção de te contar a verdade, fosse quando fosse, porque queria que ela desaparecesse comigo e com Léonarde. Entre os dois, essa verdade estava bem guardada. Foi preciso a traição de um homem que eu pensava ser fiel...

As gentes de Montughi e da região murmuram que essa Hieronyma tem o fogo no rabo grunhiu Léonarde. Nós falámos disso, Jeanette e eu, mas o marido mandou-nos calar com medo do sogro. Talvez fosse bom informá-lo sobre a conduta da nora?

Eu ameacei a minha prima, mas ela não teve medo. Ela sabe que, entre a sua má conduta e a perspectiva de pôr a mão nos meus bens, o velho pirata não hesitará... deixa o castigo para mais tarde. Uma coisa em que ela, de qualquer maneira, devia pensar. Mas, para nós, o mal está feito.

Pai pediu Fiora deixemos essa mulher onde está! Vós fizestes-me vir aqui para me contardes a história da minha mãe e tudo o que sei é que ela morreu tragicamente. Dizeis-me como?

No cadafalso, com o pescoço cortado ao mesmo tempo que o teu verdadeiro pai. Chamavam-se Marie e Jean de Brévailles...

Eu já ouvi falar nesse nome...

Por favor, Fiora, não me interrompas mais. Já é suficientemente penoso reviver essas horas, em que tudo mudou para mim.

Em sinal de arrependimento, Fiora beijou a mão do seu pai e depois guardou-a entre as suas, ao mesmo tempo que este, com os olhos postos no retrato, começava a sua história:

Durante as minhas noites sem sono, revejo muitas vezes os pormenores daquele dia de Dezembro, cinzento e frio, em que entrei na cidade de Dijon, que é a capital dos duques da Borgonha. Uma bela cidade, que eu conhecia bem e onde gostava de ficar...

Pouco a pouco, a voz do contador, a princípio um pouco sufocada, afirmou-se e recuperou a sua cor. Poeta como quase todos os florentinos, Francesco tinha o dom da palavra e o sentido da evocação. Diante dos olhos das duas mulheres que o escutavam traçou, com uma segurança espantosa, o quadro daquela praça coberta por uma multidão silenciosa, enquanto o sino tocava a finados. Com uma dor que lhe fazia vibrar a voz, evocou o casal de jovens condenados, tão belos, tão radiosos na miserável carroça do carrasco que pareciam «marchar para o seu triunfo», a silhueta aflita do velho padre, a do carrasco, sinistra, a emoção dos assistentes e a desordem da sua alma face à morte daquela jovem delicada. Falou de Regnault du Hamel, cujo nome encheu, ao passar, a sua boca de amargura com o seu ódio e crueldade impiedosa. Repetiu o relato de Antoine Charruet com uma emoção que lhe fez tremer a voz, ao evocar o calvário suportado por Marie na casa do seu marido e os esforços desesperados da sua mãe para obter uma graça que lhe foi, por duas vezes, impiedosamente recusada. Por fim, disse como salvara o bebé da morte, como decidira fazer dele sua filha e como Léonarde, espontaneamente, se oferecera para velar pela pequenita privada de mãe.

Quando ele acabou, Léonarde chorava, mas os olhos de Fiora brilhavam de cólera e indignação:

Toda aquela gente merecia mais a morte do que... os meus pobres pais! Esse du Hamel primeiro, que não passava de um miserável e depois esse pai, que não quis defender os seus filhos. Por fim esse duque Filipe e esse conde de Charolais, que não souberam ter piedade, que quiseram que a execução fosse pública e aquela fossa ignóbil, que vergonha!

O duque Filipe morreu, Fiora. Quanto ao conde de Charolais, é agora o duque Carlos, o Temerário, a quem messire de Selongey votou uma fidelidade absoluta...

A recordação do nome do seu marido trouxe Fiora de volta ao presente.

Philippe!... Foi ele que me falou de Jean de Brévailles! Conheceu-o, quando ele próprio era pajem do conde de Charolais e a sua parecença comigo admirou-o... Ele... também sabia?

Sabia... Foi exactamente por ele saber tudo que aceitei que casasses com ele.

Fiora levantou-se tão bruscamente que desequilibrou a mesa, de onde caíram alguns papéis:

Não me digas que ele empregou os mesmos meios que essa horrível Hieronyma para obter a minha mão, essa chantagem indigna?

Beltrami procurou com os olhos a ajuda de Léonarde. Depois de tudo o que acabava de contar a Fiora, poderia ainda vibrar-lhe aquela verdade? Era ainda muito nova para a suportar... Mas Léonarde, que secara os olhos, levantou-se também e colocou-se por trás da jovem, como se temesse vê-la desfalecer com o choque.

É preciso dizer-lhe toda a verdade, ser Francesco. Ela é de boa têmpera. São coisas que ela não deve descobrir por si própria. Seria ainda mais duro.

Tendes razão suspirou Beltrami. Vou-lhe contar tudo; é verdade, Fiora, messire de Selongey empregou esse meio. Ele queria-te a qualquer preço e disse-me que estava pronto a qualquer acção, fosse ela vil, para te conseguir. A parecença admirou-o, é verdade, mas, sobretudo, dá-se com os Brévailles e conseguiu descobrir, não sei como, o que se passou naquele dia infeliz. Sabia que a filha de Marie vivia em Florença com um rico mercador que fizera dela sua filha. Quando te viu, percebeu logo quem tu eras e só te falou no jovem escudeiro para ver o que sabias...

De tudo aquilo, Fiora só reteve uma coisa: Philippe era capaz, por ela, de ir até ao crime! Uma felicidade infinita apoderou-se dela.

Nesse caso, ele ama-me até esse ponto! Oh! Philippe! Outra qualquer reprovar-te-ia por teres empregado um tal meio, mas eu agradeço-te, porque me permitiu ser tua, tua mulher, até que a morte nos separe.

Beltrami, subitamente, não foi capaz de suportar aquele olhar extasiado, aquela paixão que vibrava na voz da sua filha. O ciúme levou-o mais longe do que queria.

Nunca mais o verás, Fiora! Nunca, como tu pensas, ele te virá buscar para te levar para o seu castelo e para a corte do seu senhor! Só queria de ti uma noite, uma só, para saciar o ardor que lhe inspiravas e tu terás de passar a tua vida aqui, junto de mim!

Tal como uma nuvem esconde o Sol, o rosto de Fiora perdeu toda a luz. A jovem vacilou sob o golpe. Pensando que ela ia cair, Léonarde quis segurá-la nos braços, mas Fiora repeliu-a docemente.

Ainda não sei tudo, pois não? O notário, a bênção no convento, tudo isso não passou de uma comédia, de uma astúcia.

Não. Tu és verdadeiramente a condessa de Selongey e nada pode mudar esse estado de coisas... salvo a morte! O teu marido não voltará, porque vai procurá-la sob as armas do duque da Borgonha.

Ele quer morrer? Mas, porquê?

Desta vez, Beltrami hesitou. O que tinha ainda para dizer era terrível... mas Fiora mantinha-o sob o seu olhar, de uma dureza mineral. A jovem repetiu, quase gritando:

Eu quero saber porquê!

Não ousando mais suportar aquele olhar terrível, Beltrami virou a cabeça para o retrato, como que pedindo socorro. A voz nítida de Léonarde chegou-lhe como num sonho:

É preciso ir até ao fim, ser Francesco! É preciso tirar o abcesso. A ferida sarará mais depressa.

Então, sem olhar para Fiora, Beltrami deixou sair a verdade:

Ele quer punir-se a si próprio por ter manchado o seu nome ao casar com a filha de Jean e Marie de Brévailles...

Por que razão o fez, nesse caso? Eu apaixonei-me perdidamente por ele. Creio, Deus me perdoe, que me poderia ter tido sem essa comédia!

Mas não poderia ter tido o teu dote! E ele precisa dele para financiar a guerra do seu senhor, ao qual Lourenço tinha recusado emprestar dinheiro... Evidentemente que serei reembolsado com os seus bens quando fores viúva. Terás, então, direito de usar o seu nome... mas não de ir viver para o seu castelo.

E se eu tivesse um filho?

Devíamos educá-lo até que tivesse idade para servir. Então, deixar-nos-ia para ir para a Borgonha, receber a sua herança e aprender O seu mister de cavaleiro...

Na condição de ser rapaz! E se fosse uma rapariga? Que faríamos? Atirávamo-la ao rio, sem dúvida?

E Fiora, girando nos calcanhares, saiu a correr do studiolo para se ir refugiar no seu quarto. Ouviram a porta deste bater mal ela entrou.

Deixemo-la! suspirou Léonarde. Ela vai, sem dúvida, chorar e, nesse caso, a doçura de Khatoun será melhor bálsamo do que todas as minhas argumentações. Mas é preciso falar de novo de Hieronyma. Que contais fazer, ser Francesco?

Tendes razão. É preciso tentar esquecer o passado e pensar no futuro. Creio que não dormireis muito esta noite, donna Léonarde, porque ides preparar as bagagens de Fiora e as vossas. Isto para que elas possam ser levadas rapidamente... Não me interrompais! Partireis com Fiora e Khatoun sob a guarda de dois criados: Jaíopo, o filho do meu velho Rinaldo e o seu primo Tommaso, anunciando, entretanto, que ides rezar ao convento de Vallombrosa, mas depois de passardes as portas, fareis um ligeiro desvio para Livorno, onde tomareis lugar a bordo do Santa Maria del Fiore. Entregar-vos-ei uma carta para o capitão. E ali esperareis notícias minhas. Levai pouca coisa, como convém a damas que só partem por um dia. Far-vos-ei chegar o resto...

Partimos cedo?

Não. Esperareis o meu regresso até ao meio-dia. Amanhã de manhã vou ao palácio da via Larga, onde vou falar com Lourenço de Médícis e, salvo o casamento de Fiora, vou contar-lhe tudo. Ele é o senhor, no fim de contas e aqui todos lhe obedecem. Além disso, ele gosta de histórias de amor. Talvez a minha o enterneça...

Nesse caso, por que enviar-nos para Livorno?

Porque não estou certo da sua ajuda. Ele é um homem imprevisível. Pode ser a bondade em pessoa, mas também pode ser de uma crueldade extrema. Tem vistas largas porque é um grande político, mas não sabemos como acolherá um pedido... ou uma confissão. Depende, muitas vezes, do lugar que o assunto possa ter no mosaico minucioso da sua política. Talvez não chegueis a partir e talvez preciseis de abandonar a cidade à pressa. Peço-vos apenas que estejais pronta.

Assim faremos, não receeis.

Muito bem. Depois do jantar, pedir-vos-ei para virdes aqui, a fim de regularizar convosco certos assuntos que tenho em mente. Temos de prever o caso de... eu não voltar a ver Fiora. O seu caso é dos que não pode atrair o anátema da Igreja.

Pensava que a Igreja não incomodava muito ao senhor Lourenço? perguntou Léonarde, sarcástica. Apenas os filósofos, os poetas e os deuses gregos têm direito à sua veneração...

... mas acontece-lhe retirar-se muitas vezes para uma das celas

de San Marco. É verdade que sempre suspeitei que ele ia lá para poder contemplar à vontade as pinturas divinas de Angélico, porque pede sempre uma cela diferente. Mas o facto é que ele vai lá, que demonstra um respeito humilde pelo prior e que tem com o bispo as melhores relações. Devemos desconfiar...

Depois do jantar, que comeu na companhia de Léonarde, Francesco Beltrami fechou-se com ela no studiolo, onde a vela ardeu durante uma grande parte da noite. Antes da partida difícil que ia jogar, o homem mais rico de Florença depois dos Médicis punha os seus negócios em ordem com aquela solteirona encontrada um dia por sorte, mas que era a única pessoa do mundo, talvez, em quem ele depositava inteira confiança, para além da sua filha.

Enquanto isso, estendida no seu leito e com os seus grandes olhos abertos, Fiora, que não derramara uma lágrima, reflectia. Sob o golpe das revelações do seu pai vira desenrolar-se a sua infância, as suas convicções, os seus sonhos e as suas esperanças. Acreditava ter nascido de um dos homens mais ricos da Europa e não passava do fruto de amores malditos, acreditara no amor de um homem e esse homem, afinal, só queria o seu corpo e o seu dote, estava casada e, no entanto, não tinha o direito de usar o nome de casada, porque aquele que lho tinha dado a desprezava, ao ponto de preferir a morte à vida a seu lado. Achava-se um cavaleiro sem medo e sem mancha, usava ao pescoço o Tosão de ouro que muitos príncipes invejavam e, no entanto, abusara impiedosamente do seu coração, da sua inocência e da sua confiança. Partira sem sequer um último beijo, sabendo que não regressaria e que aquela esposa de uma noite o esperaria indefinidamente, até já não ter mais lágrimas e os cabelos embranquecerem. Acordara nela a paixão e o gosto pelo amor, mas só lhe consentira uma noite em troca de uma quantidade enorme de ouro, que foi entregar ao seu senhor bem-amado. O mesmo senhor que não tivera piedade do seu jovem escudeiro e o deixara morrer miseravelmente em cima de umas miseráveis pranchas pintadas de negro, maldito à face do céu e na comPanhia daquela irmã demasiado encantadora, que ele amava mais do que tudo no mundo...

À medida que as horas daquela noite de desespero se iam passando, Fiora fazia a lenta e amarga aprendizagem do ódio. Cansada de tentar em vão arrancar-lhe uma palavra, Khatoun acabara por adormecer enroscada aos pés da grande cama com o alaúde inútil entre os braços. Parecia tão pequena, tão frágil e perdida que Fiora, comovida, levantou-se para lhe estender por cima um cobertor. A jovem estava decidida a guardar a ternura do seu coração para os fracos e os que eventualmente precisassem dela.

Era mais ou menos uma hora da manhã quando Léonarde entrou no seu quarto na ponta dos pés, pensando encontrá-la a dormir, esgotada pelas lágrimas derramadas. Ficou sobressaltada ao descobrir, à luz amarela da vela, Fiora de pé, junto da cama, como uma aparição branca...

Não dormis? perguntou ela sem pensar no que dizia.

Parece-me que é evidente...

Nesse caso, ides ajudar-me. E Khatoun...

Deixai-a dormir! Ela chorou muito, esta noite...

Mais do que vós, Fiora? No entanto...

Eu não consigo chorar. Penso, no entanto, que gostaria, que me faria bem, mas não consigo. Parece-me que o meu coração secou de repente disse ela com uma voz queixosa. Talvez porque já não sei por quem ou por que chorar: se pelos meus pais tão vilmente assassinados, se pelo meu pai que está agora em perigo, se por mim mesma, que...

... que estais em tanto perigo como ele! Filosofaremos sobre o valor e o interesse das lágrimas numa outra ocasião qualquer. Por esta noite, temos mais que fazer...

A governanta foi de novo até à porta e regressou, puxando atrás de si uma arca de viagem em couro, com pregos, que colocou no meio do quarto, antes de ir buscar outra, depois uma terceira e por fim uma quarta bastante mais pequena, que se podia levar com facilidade presa no arção de uma sela...

Que pretendeis fazer? perguntou Fiora.

As vossas malas. Amanhã ao meio-día partimos para Livorno, onde esperaremos notícias do vosso pai...

Enquanto dobrava e metia nas arcas os vestidos, os mantos, a roupa branca e os sapatos de Fiora, Léonarde dava parte à jovem das decisões de Beltrami: era preciso que a sua filha estivesse longe de Florença no momento em que Hieronyma fizesse a sua denúncia. Fiora esforçava-se por ajudá-la, mas não estava verdadeiramente em si e Léonarde acabou por lhe arrancar o vestido que ela segurava, dobrando-o ela própria e metendo-o numa das arcas.

Deixai que eu faço! Despacho-me mais depressa sem vós!

Mas se o meu pai não se juntar a nós em Livorno, que fazemos?

O capitão do Santa Maria del Fiore terá as suas ordens. Se ao fim de quarenta e oito horas messer Francesco não estiver ao pé de nós, deverá levantar ferro para nos levar para França. Será uma longa viagem, porque iremos por mar e por rio até Paris, onde nos alojaremos em casa do irmão-de-leite do vosso pai, Agnolo Nardi, que tem lá uma sucursal da casa do vosso pai. E depois, veremos... mas, por agora, despachemo-nos...

É inútil. Eu não quero deixar o meu pai. Ou partimos com ele, ou não partimos de todo.

Léonarde, que acabava de atar as correias de uma arca, endireitou-se e, de mãos nas ancas doridas, perguntou:

Vós amais o vosso pai?

Que pergunta! Naturalmente que sim!

Nesse caso, obedecei-lhe sem procurar armar em heroína! Se ele decidiu assim, é porque pensa que é a melhor coisa a fazer. Não achais que ele já se sente suficientemente infeliz com aquele demónio feminino que lhe pretende morder a carne? Pensais que ele não tem medo?

Eu não quero agravar-lhe as preocupações, mas não faríamos melhor se fugíssemos todos juntos? Podíamos ter partido ontem à noite...

Fugir é confessar que se tem culpa, ou, pelo menos, confessar que se tem medo. Talvez não cheguemos a partir para França. Depende de Médicis! Imaginai que, para evitar o escândalo, ele decide casar-vos com o vosso primo Piero? Se assim for, o vosso pai poderá dizer que vós fugistes e que ignora para onde. Mas se vos sentis tentada pelo vosso primo Piero...

Como ousais falar-me assim? Eu sou casada e vós sabei-lo bem.

Sobretudo, sei que um casamento, ainda por cima secreto, pode ser anulado. É tudo uma questão de dinheiro. E diz-se que o papa Sisto Iv gosta mais de dinheiro do que convém a um soberano pontífice. Compreendestes?

Sim. Acabemos isto e tentemos, depois, descansar um pouco. Vós estais muito pálida, Léonarde!

Se quereis saber a verdade, estou morta de fadiga. E ficarei contente por me deitar durante uma hora ou duas. Sobretudo se amanhã for preciso passar metade do dia a cavalo.

As malas estavam prontas. Só tinham deixado de fora as roupas para o dia seguinte. O que era necessário para a viagem ia na mala pequena. As outras foram arrastadas para uma arrecadação a seguir ao quarto de Fiora. Antes de se retirar, Léonarde segurou na jovem pelos ombros para a beijar, mas não a largou de imediato:

O que é que vos custou mais, Fiora? perguntou ela muito séria. A revelação da vossa origem... ou a conduta do vosso marido?

Não tem comparação. Eu amava a minha mãe sem a conhecer e creio que ainda a amo mais por tudo o que sofreu. Quanto a Philippe de Selongey... oh! só queria vê-lo morto!

No entanto, chorareis no dia em que souberdes que ele morreu. Acreditais em mim se vos disser que ele vos ama mais do que pensava, que foi apanhado na própria armadilha?

Eu sempre acreditei em vós... mas desta vez preciso de uma prova evidente! E, mesmo assim, não sei se lhe perdoarei... Ide dormir!

Léonarde dispunha-se a sair quando Fiora a deteve:

Um instante, por favor!

Com dedos que não tremiam, tirou o fio que trazia ao pescoço, sob a camisa, abriu-o, tirou o anel de ouro que Philippe lhe tinha dado e estendeu-o à velha solteirona:

Tomai! Fazei dele o que quiserdes! Já não o quero usar... Léonarde olhou-a no fundo dos olhos e leu neles, sem dúvida, uma vontade absoluta, porque pegou no anel sem dizer nada e saiu.

Depois de ficar só, Fiora voltou a deitar-se, mas não conseguiu conciliar o sono a despeito do cansaço. A angústia que se apoderara dela em San Miniato regressou depois de Léonarde sair, tão dolorosa, que Fiora precisou de lutar para não correr atrás da velha solteirona para lhe pedir que a deixasse dormir com ela, como quando era criança. O seu orgulho impediu-a. Aliás, para sua própria surpresa: seria possível que ainda tivesse uma onça de amor-próprio depois de tudo o que tinha ouvido naquela noite?

A jovem levantou-se, foi beber um pouco de água com mel, aproximou-se da janela para olhar para a noite que se estendia sobre a cidade, constelada como um manto real, escutou por um momento os sons familiares, os passos da milícia raspando o pavimento, o chapinhar de um remo no rio, o grito de uma gaivota, o sino de um convento tocando as matinas. O pensamento de que a partir do dia seguinte talvez nunca mais os ouvisse foi-lhe penoso: descobriu que estava amarrada àquelas coisas simples. A menos que Lourenço se mostrasse magnânimo e agisse como verdadeiro amigo, o que ela não deixava de duvidar, dormiria no dia seguinte num albergue qualquer e, no outro dia a bordo do Santa Maria delFiore, o navio que a trouxera de França com a sua ama-de-leite e Léonarde e que em breve a conduziria para um destino desconhecido que a assustava um pouco, mas apenas porque temia afrontálo sem o braço tranquilizador do seu pai. Se Francesco fosse ter com ela, tudo seria mais fácil...

Bruscamente, a recordação da profecia de Demétrios atravessou-lhe o espírito. O médico dissera que ela estaria longe de Florença e que não seria feliz quando a morte levasse Simonetta, o que, para ela, era de uma evidência cega. Ela ia partir, talvez para sempre e o seu pai não estaria com ela, porque deixara de ser feliz...

Não partirei! decidiu ela em voz alta Léonarde que diga o que quiser: ficarei com o meu pai. Aconteça o que acontecer! O desastre não pode ser maior do que já é...

Decidida, voltou para o leito onde Khatoun continuava a dormir sempre protegida pela sua bem-aventurada inocência, fechou os olhos... e caiu imediatamente no sono.

Quando acordou já era tarde e injuriou Khatoun por tê-la deixado dormir até meio da manhã:

Donna Léonarde é que mandou! queixou-se a pequena. Mas Fiora não a ouviu. Prometera a si própria, durante a noite, ter uma conversa com o seu pai antes de ele partir para o palácio Médícis e, esperando que ainda não fosse tarde, lançou-se para fora do quarto. Rinaldo, que ela encontrou na galeria carregado com vários trajes para limpar, disse-lhe que Francesco partira há mais de uma hora... Então, pôs-se à procura de Léonarde, mas esta estava na cozinha e Fiora estava proibida de lá ir, salvo quando na companhia da governanta quando esta lhe ensinava os deveres de uma boa dona de casa e os segredos de administração de uma grande casa. Por outro lado, não tivera tempo de enfiar sobre a camisa outra coisa senão um ligeiro vestido interior e estava descalça.

Pensando que não podia fazer mais nada, regressou ao quarto para se arranjar. Uma vez vestida teria mais dignidade para fazer valer a sua decisão, que era esperar, acontecesse o que acontecesse, o regresso de Beltrami... Lamentava não ter podido falar-lhe antes de sair, mas Fiora decidida a não partir sem ver primeiro o seu pai, pensou que ainda não era tarde...

Compreendeu que se enganara e que já era muito tarde quando alguns minutos mais tarde, um bando aos berros e gesticulando trouxe o corpo de Francesco Beltrami para o palácio. Quando trocava algumas palavras com um cliente na confusão do Mercado Novo, uma mão desconhecida espetou-lhe um punhal nas costas.

CAPÍTULO VI REQUIEM POR UM HOMEM DE BEM

Os homens que transportavam o corpo de Francesco Beltrami depositaram-no sobre o seu leito, ao mesmo tempo que os criados faziam recuar, com grande dificuldade, a multidão volúvel e excitada que lhe servira de escolta. O palácio ressoava com lamentação barulhenta e ameaças de morte, aliás sinceras, porque o rico negociante era respeitado pela sua riqueza e amado pela sua caridade. Léonarde, que nunca perdia o sangue-frio, agradeceu do alto da escadaria, fez apelo às orações de toda aquela boa gente e, finalmente, ordenou que lhes servissem bom vinho, para os reconfortar na profunda dor de que davam demonstração. Mandou também distribuir algumas moedas pelos mendigos que ali se encontravam e todos se retiraram louvando a generosidade das damas da casa Beltrami, lamentando a perda cruel que as atingira.

Após o que a governanta regressou rapidamente para junto de Fiora que, ajoelhada junto do leito, soluçava perdidamente, o rosto enfiado na colcha de veludo sobre a qual repousava o seu pai. Mas a jovem não era a única dentro do quarto e, ao penetrar nele, Léonarde viu que estava lá um homem, alto e magro, metido num grande traje de veludo negro, de mangas pendentes e cujo colarinho alto estava fechado por um alfinete de ouro. Um barrete a condizer cobria-lhe os cabelos grisalhos, que se juntavam a uma barba curta. Com os braços cruzados no peito, olhava para Fiora sem dizer nada, respeitando a sua dor, mas, ao ouvir o barulho que Léonarde fez ao entrar, virou-se para ela.

Fiquei porque tenho coisas a dizer disse ele respondendo em francês à muda interrogação da velha solteirona, o que não deixou de a surpreender. Assisti ao crime...

E não detivestes o criminoso? Era, parece-me, a primeira coisa a fazer?

Não. A primeira coisa a fazer era assegurar-me de que messer Beltrami já estava para lá de qualquer socorro humano. Eu sou médico e esta jovem conhece-me acrescentou Demétrios, apontando com o queixo para Fiora. O assassino devia seguir a sua vítima. Aproveitou-se de uma violenta disputa entre dois mercadores de galinhas e duas peixeiras, que degenerou em pancadaria e criou um ajuntamento. Não o vi dar a facada, mas vi subitamente um punhal no dorso do vosso patrão, que, aliás, nem sequer gritou. Quanto ao assassino, desapareceu na multidão, talvez por entre as pernas das pessoas e as bancas, algumas das quais estavam de pernas para o ar. Mas hei-de encontrá-lo... graças a isto!

Da sua manga o grego tirou uma lâmina grande, de ponta afiada, uma faca com um punho de corno polido, sem qualquer marca distintiva, para a qual Léonarde olhou com desgosto.

Tirei esta arma do ferimento e peço-vos autorização para a guardar. Não penso que a sua contemplação seja agradável a donna Fiora...

Eu também não, mas, por que quereis guardá-la? O magistrado municipal há-de aparecer aqui. Não é a ele que a deveis entregar?

Ele não saberia o que fazer dela, ao passo que eu sou capaz de a fazer falar. A arma de um assassino pode ser mais faladora do que imaginais.

Nesse caso, ficai com ela! Se conseguirdes fazer com que apanhem o miserável, todos aqui vos abençoarão...

Sem responder, o médico envolveu de novo a faca no seu lenço e meteu-a na manga. Em seguida, aproximou-se de Fiora, demasiado mergulhada na sua dor para se ter apercebido da sua presença. Inclinou-se e pousou-lhe no ombro uma mão firme, sob a pressão da qual a jovem se endireitou. Esta virou para ele um rosto devastado pelas lágrimas e uns olhos que não viam nada:

Que me queres?... Não posso chorar em paz?

Preciso de te falar disse Demétrios, empregando o toscano visto que ela tinha falado nessa língua. Recorda-te! Eu disse-te que, se precisasses de ajuda, poderias chamar-me...

Recordo-me. O médico grego! Dizem que és sábio, mas não podes ressuscitar o meu pai e nada mais me interessa.

Eu não sou Deus, com efeito, mas tenho mais poderes do que pensas. E venho dizer-te que não tens tempo para lágrimas. Tens de fugir e o mais depressa possível, porque és ameaçada por um grande perigo, perigo esse que vem de uma mulher...

Fiora levantou-se para lhe fazer face:

Se sabes isso, deves poder impedir essa mulher de me fazer mal! Ela acaba de o fazer, aliás! Tenho a certeza que foi ela que contratou o assassino...

Eu não posso impedir o que já está em marcha. Por outro lado, sou estrangeiro nesta cidade, da qual conheço, no entanto, a versatilidade. Amanhã poderás ter tantos inimigos como hoje tens amigos. Portanto, afasta-te! Nem que seja para dares a ti própria tempo para reflectir.

Nós devíamos partir ao meio-dia disse Léonarde.

Eu estava decidida a não partir sem o meu pai disse Fiora enxugando os olhos e o rosto com um gesto maquinal. Perdoai-me por ter mudado de opinião, querida Léonarde, mas procurei-vos há bocado para vo-lo dizer e depois... aconteceu isto e já não posso partir. Tu dizes que esta cidade pode virar-se contra mim? Talvez o faça, mas, se eu partir, abandonando a estranhos o corpo do meu pai, fá-lo de certeza. Eu quero prestar-lhe os últimos deveres de uma filha que o amava muito... e quero vingá-lo!

Se te acontecer uma desgraça, como poderás vingá-lo? Foge!

Não. Quero ficar. Mais tarde, quando o meu pai puder descansar em paz, partirei, sem dúvida... porque esta justiça que quero prestar não é a única que me é exigida.

A entrada do velho Rinaldo interrompeu-a. Ele vinha anunciar a chegada do magistrado municipal, que, um instante mais tarde, entrou no quarto.

Cesare Petrucchi era um homem de 60 anos, pequeno e robusto, que vestia com a devida majestade o manto vermelho da sua função. Vindo de uma antiga família originária de Siena, conseguira, graças a uma vontade tenaz e a uma ausência total de indulgência, elevar-se até à Senhoria, onde se dizia que reinava pelo medo sobre os outros «senhores». Tinha-os firmemente na mão desde um certo Conselho em que, não conseguindo obter um voto que decidiria um assunto espinhoso, mandara trazer as chaves da sala e sentara-se em cima delas, declarando que dali só sairiam depois de votarem convenientemente. Tudo o que consentiu em fazer foi alimentar os seus colegas, até que eles acabaram com todas as hesitações...

Fiora sabia que ele não gostava do seu pai, ao qual censurava uma fortuna demasiado grande sem ousar formular acusações precisas, mas a quem adoraria apanhar em falta, fosse no que fosse. Também sabia que não poderia esperar dele compaixão nem verdadeira ajuda de qualquer espécie e que, pelo seu lado, Francesco Beltrami desprezava um pouco, ou, pelo menos, desconfiava do magistrado municipal de justiça.

Quando ele entrou, precedido por uns guardas em casacas verdes

as cores da Senhoria Fiora saudou-o como convinha e esperou que ele falasse. Por seu lado, Petrucci começou por se inclinar diante do corpo e depois aproximou-se da cabeceira para o olhar mais de perto.

Apanharam o assassino? perguntou ele em tom importante.

Não, magnífico senhor respondeu Fiora. E os desta casa põem doravante todas as suas esperanças na justiça de Florença, da qual tu és a encarnação!

Podes estar certa de que faremos essa justiça que reclamas. O teu venerado pai, que Deus tenha na Sua Santa Guarda tinha inimigos?

Qual é o homem rico que não os tem? No entanto, não imaginávamos que houvesse alguém suficientemente cobarde para esfaquear de morte e por trás um homem que se esforçou pelo bem durante toda a sua vida. Um homem...

A sua voz extinguiu-se. Aquela comédia protocolar a que a obrigavam era-lhe insuportável, mas era impossível dispensá-la, já que o «magnífico senhor» era daqueles que, vindos do comércio, mais agarrados eram às formas exteriores devidas à sua função. Felizmente, Petrucci, pouco condoído com a sua dor, virou-se para Demétrios Lascaris, que, impassível e de mãos metidas nas mangas, o media do alto da sua estatura:

Que fazes tu aqui? perguntou azedamente o magistrado. Pertences a esta família? És um amigo chegado?

Nem uma coisa, nem outra e tu sabe-lo bem, magnífico senhor

respondeu o médico, cuja voz profunda deixou passar uma nota sarcástica. Vim trazido pela multidão indignada, da qual tu podes ainda, daqui, ouvir os clamores. (Com efeito, ouvia-se barulho no exterior, provando que a multidão continuava em frente do palácio Beltrami.)

Acontece que eu estava no Mercato Nuovo quando messerBeltrami foi ferido e quis prestar-lhe os meus cuidados infelizmente inúteis, porque ele morreu do golpe. Enfim...

Talvez seja bom ouvirmos-te! cortou Petrucchi. Tu és uma testemunha preciosa...

-- Que não te poderá dizer mais do que todos aqueles que estavam presentes. Enfim, dizia eu, pensei que monsenhor Lourenço ficaria feliz por um dos seus amigos se encontrar no local para dar um pouco de conforto àquela que acaba de ficar órfã por causa de um crime e cuja dor merece o maior respeito. Nesta hora, donna Fiora precisa de amigos, mais do que de magistrados.

Petrucchi ficou tão vermelho como o seu traje ao ouvir aquele reparo às conveniências e ao poder dos Médicis. Resmungou umas vagas palavras de condolências e retirou-se com grande dignidade. Os seus passos, que se queriam com a solenidade da lei, ressoaram na galeria e depois extinguiram-se. Então Fiora, que queria ficar só, virou-se para Lascaris:

Obrigada! disse ela com sinceridade. Não sei por que te interessas tanto por mim, mas estou-te reconhecida... assim como pelo que disseste àquela personagem vaidosa.

Continuas a não querer seguir o meu conselho?

Não posso, nem quero. Estou nas mãos de Deus...

Há muito tempo que sei que não se pode ir contra o destino e que é mais difícil ainda impedir que um homem siga o caminho que escolheu. Quanto às mulheres... Lembra-te, no entanto, do que te disse: chama-me quando não souberes para que lado te hás-de virar...

O médico saudou-a e desapareceu como uma sombra, deixando Fiora desorientada. Na verdade, a jovem não sabia o que pensar. Aquele homem parecia possuir o dom de ler o futuro, mas sem lhe distinguir os pormenores. Por outro lado, a jovem não conseguia compreender o que pretendia ele ao aproximar-se tanto dela, uma jovem florentina como tantas outras. Enfim, não conseguia confiar naquela personagem bizarra, nem, aliás, sentir por ele uma verdadeira simpatia. Havia em Demétrios qualquer coisa que a atraía e afastava ao mesmo tempo. Mas o quê?

Léonarde, que saíra para dar algumas ordens, regressou e encontrou-a só, contemplando dolorosamente a longa forma imóvel, tão pálida sobre a cor púrpura do leito, aquela aparência que fora, duas horas antes, um homem cheio de inteligência e vida, um homem que queria lutar pela felicidade daquela que elegera como filha... A governanta segurou-lhe gentilmente no braço.

Vinde, minha filha, tendes de me deixar tratar, juntamente com as outras criadas, da toilette do vosso pai. Vós mesma deveis preparar-vos, porque a jornada será longa e penosa, tal como a de amanhã e a de depois de amanhã. No vosso quarto, onde vos espera Khatoun, dispus tudo aquilo de que precisais... Mas, antes, repousai um pouco! Ides precisar de forças.

Uma hora mais tarde, Fiora, vestida até ao queixo de negro baço e com um véu sobre os cabelos severamente entrançados, esperava junto do seu pai, no quarto que haviam decorado de negro, a visita do senhor de Florença. Segundo o costume da República, que queria todos os cidadãos iguais na morte, o corpo de Francesco Beltrami fora vestido com um simples tecido branco forrado de tafetá e um gorro sem qualquer ornamento na cabeça. Nem jóias, nem qualquer sinal de riqueza. Por baixo tinham-lhe posto a enxerga obrigatória, mas essa enxerga estava sobre o grande leito cor de púrpura, que, na decoração fúnebre, gritava como uma enorme mancha de sangue, na qual a brancura do defunto figurava como reflexo. Dois círios apenas, mas muito grossos, ardiam de cada lado do leito transformado em catafalco. Arderiam assim até à hora do funeral, no qual o corpo, unicamente coberto por um pano branco, seria levado à sua sepultura. Única derrogação da lei, que fazia do cemitério comunal o único local do último repouso, Beltrami, o mais poderoso dos da arte de Calimala, seria enterrado na igreja de Orsanmichele, que era a da corporação.

Fiora já não chorava. O fogo que ardia nela tinha-lhe secado as lágrimas e não permitia que elas corressem. Quando o Magnífico entrou, acompanhado dos seus amigos Poliziano e Ridolfi, a jovem atirou-se-lhe aos pés:

Justiça, senhor Lourenço! Justiça para o meu pai assassinado dentro da tua cidade! Eu, sua filha, não terei descanso até que o seu assassino caia nas tuas mãos soberanas!

Curvando a sua alta estatura, o Magnífico segurou nas mãos suplicantes que se estendiam para ele.

Eu, Lourenço, não terei descanso enquanto o assassino não balançar, pendurado pelos pés, na varanda da Senhoria! Levanta-te, Fiora!

O teu pai era um dos melhores da nossa cidade e era meu amigo. Prometo-te vingança...

Segurando sempre Fiora pela mão, o Magnífico avançou para o corpo, que contemplou por um instante. A chama dos círios cinzelava o perfil nítido de Francesco, que, na morte, parecia ter reencontrado a juventude.

Quem quer ser feliz, apressa-se murmurou ele porque ninguém sabe o dia de amanhã! Francesco possuía tudo o que pode fazer um homem feliz e, no entanto, uma mão suficientemente criminosa e cobarde matou pelas costas aquele que nunca tinha feito mal a ninguém. Quem será o dono dessa mão?

Acabas de o dizer, senhor: um cobarde que, sem dúvida, não agiu por conta própria.

Que significa isso?

Que se pode armar alguém quando não temos coragem para o fazermos nós próprios. Os rufias não faltam, dizem, nos bairros de má fama e tudo se compra, mesmo a vida humana. Tudo depende do preço que se pretende pagar...

Lourenço olhou para Fiora com uma atenção que o fez semicerrar os olhos míopes:

Estás a pensar em alguém? Sabes que uma acusação sem provas é uma coisa que pode ser punida por lei?

Não acusarei ninguém enquanto não tiver provas. Mas então...

Então, será a mim que dirá respeito disse Lourenço severamente. Depois, mais docemente: Agora, estás só, Fiora e és muito jovem para tanta solidão. O teu pai não desejava casar-te ainda, mas agora precisas de um companheiro. Não só porque herdas uma grande fortuna, mas também devido a negócios complexos. A afinação dos tecidos não chegava a Francesco. A eles juntou um banco, navios, dos quais dois estão fundeados em Veneza, sem contar com o Santa Maria del Fiore, o seu barco pessoal, que está atracado naquele pequeno porto de Livorno, do qual ele desejava, eu sei, fazer um grande porto mercante, uma mina de alúmen em Volteira e também casas em Paris, Londres, Bruges... e talvez outras coisas, que eu ignoro. Precisas de um homem à cabeça disso tudo... e eu sei que o meu jovem primo Luca Tornabuoni está profundamente apaixonado por ti. Pensarás nisso... mais tarde, quando a tua dor for menos viva?

Mais tarde... talvez. Por agora não quero casar-me.

A jovem ficou surpreendida com a firmeza com que aquela mentira acabava de passar pela sua boca. Nem sequer tinha corado ao dar esperança ao Magnífico naquele casamento impossível com o seu primo, mas, por outro lado, sentia-se um pouco chocada com a pressa posta por Lourenço na candidatura de Luca. O desgosto, para ele, era uma coisa e os negócios outra e desejava, evidentemente, ver o pequeno reino de Beltrami unir-se aos bens, já imensos, da sua família.

Depois de se ter inclinado de novo perante os despojos mortais do seu amigo, Lourenço saudou Fiora e dirigiu-se para a porta, mas, subitamente, virou-se:

Terás tu alguma razão para temeres pela tua própria vida, tu que és a única filha de Francesco? Até esta manhã não tinha respondeu a jovem. Mas, agora, já não sei.

Todas as precauções são boas. Vou mandar-te Savaglio com alguns guardas.

Agradeço-te, mas valerá a pena? Não podes manter esta casa guardada indefinidamente. E eu estou rodeada de criados fiéis. Pelo menos, acho que sim...

De qualquer maneira, a presença de homens armados leva a desencorajar certas tentativas e precisamos de tempo para encontrar o assassino. Não saias até ao funeral, que terá lugar depois de amanhã. Naturalmente, estaremos lá todos...

Agradeço-te do fundo do coração. A tua protecção e amizade são-me preciosas, senhor Lourenço...

Poderão ser impotentes para te preservar, se não escolhes rapidamente um marido...

Ele não disse mais nada, mas Fiora sabia que ele era tenaz. Voltaria certamente à carga e seria preciso, um dia, dizer-lhe a verdade. Por outro lado, tinha razão quando dizia que era necessário um homem à cabeça dos negócios de Beltrami e Fiora lamentou a sua ignorância. Se fosse um rapaz, o seu pai, dois ou três anos antes, teria começado a iniciá-lo na sua obra, a fim de que, mais tarde, pudesse assumir a sucessão, mas ela, tão sabedora noutras matérias, não sabia grande coisa das difíceis transacções comerciais. A morte, tão brutal e prematura do seu pai deixara-a desarmada...

O senhor Lourenço é sábio e só quer a vossa felicidade disse por trás dela a voz tranquila de Léonarde...

Na condição de que essa felicidade esteja de acordo com o interesse dos seus. Por outras palavras, que eu case com Luca...

O que é impossível por agora, mas talvez haja uma solução. Por que não pedir ao senhor Lourenço que ponha alguém inteligente, alguém de toda a confiança na direcção dos vossos negócios? Ele ficaria, certamente, lisonjeado e isso permitir-vos-ia iludir, por algum tempo, o seu projecto de casamento. Aliás, o vosso luto não permitirá acender, antes de muitos meses, os archotes de um noivado.

O conselho é sábio. Depois de o meu pai... sair desta casa para sempre, falarei nisso a Lourenço de Médicis.

O lúgubre protocolo mortuário já estava em campo. Os anunciadores da morte percorriam a cidade, parando nos mercados para proclamar o óbito de Francesco Beltrami, ao mesmo tempo que os encarregados das pompas fúnebres escolhiam as carpideiras entre as mulheres pobres dos bairros de má fama. Entregavam-lhes grandes vestidos com capuzes de fazenda negra, cosidos de maneira a poderem em seguida fazer deles trajes decentes, mas nenhum fausto devia presidir às exéquias, porque não convinha fazer de um funeral uma festa. Todo o brilho da cerimónia estaria reservado para aqueles que iam assistir a ela e só seriam servidos, na refeição tradicional, dois pratos.

As visitas afluíam à casa. Amigos e simples curiosos chegavam continuamente, porque a notícia da morte trágica do negociante não esperara pelos anunciadores para se difundir. Percorrera a cidade com a velocidade do vento, as pessoas amontoavam-se na rua para poderem saudar o corpo e entrar, aqueles que nunca tinham tido oportunidade, no palácio Beltrami, satisfazendo o seu desejo de contemplar todas aquelas riquezas. Felizmente para Fiora, o capitão Savaglio, que Lourenço havia posto de guarda à sua casa, efectuava uma separação que nem sempre era isenta de brutalidade.

Se eu não puser ordem nisto confiou ele a Léonarde, que lho dera a entender todas as putas e rufias da cidade desfilarão pela vossa casa. Vestem à vez um vestido ou um fato conveniente e aparecem beatificamente, porque a ocasião para visitar uma casa rica é demasiado bela para perder. Infelizmente para eles, conheço-os quase todos!

Luca Tornabuoni acorreu no rasto do Magnífico. Fiora, já na defensiva, esperava grandes protestos de amor e até um imediato pedido de casamento, mas o jovem, após ter saudado o defunto, inclinou-se profundamente perante a jovem, contentando-se em dizer-lhe:

Chamai-me se precisardes dos serviços de um amigo fiel, que gostaria infinitamente de poder apaziguar, por pouco que seja, o vosso desgosto.

Ela ficou-lhe reconhecida e, espontaneamente, estendeu-lhe a mão.

Obrigada, Luca! Não me esquecerei...

Para sua grande surpresa, Simonetta e Marco Vespucci, flanqueados pelo primo Amerigo, também apareceram. Branca e radiosa como era seu hábito, a despeito do vestido escuro que trazia por respeito, a Estrela de Génova beijou Fiora com uma gentileza e uma emoção que comoveram a jovem.

Em breve sentir-vos-eis muito só neste grande palácio disse-lhe ela. Por que não vindes viver algum tempo para junto de mim? Nós nunca falámos muito uma com a outra, mas eu gostaria que vísseis em mim uma irmã mais velha, ou, pelo menos, uma amiga verdadeira...

Fiora retribuiu-lhe o beijo com sinceridade e até com um pouco de vergonha. Como detestara aquela jovem maravilhosa, na qual se obstinara a ver uma rival dois meses antes!... Ou dois séculos antes!. Na verdade, nada impedia que a esposa, se bem que desdenhada, de Philippe de Selongey, se tornasse amiga de Simonetta. E a jovem sentiu subitamente uma grande pena ao recordar a profecia do grego, desejando de todo o seu coração que não se cumprisse...

Marco Vespucci apoiou o convite da sua mulher, mas o primo Amerigo, sempre a meio caminho das estrelas, causou uma ligeira perturbação ao virar as costas a Fiora para beijar devotamente a mão de Léonarde, que sufocou, o melhor que pôde, uma risada. Simonetta, erguendo para o tecto um olhar acabrunhado, salvou a situação ao arrastar o atordoado para fora da câmara mortuária em passo de corrida.

Chiara, que fora de manhã cedo com o tio para a sua vinha de San Gervasio, chegou como uma bomba, trazendo a reboque a gorda Colomba e um criado carregado com uma mala de roupa.

Não te deixo mais! declarou ela enquanto beijava Fiora. Instalo-me junto de ti até estares farta. E não tentes impedir-me. Algo me diz que podes vir a precisar de ajuda dentro de pouco tempo.

Sem esperar pela resposta, foi-se ajoelhar junto do leito e, de mãos no rosto, ficou absorta numa profunda oração. Com o coração reconfortado por tanta ternura espontânea, Fiora observou-a a rezar por uns instantes e regressou ao dever esgotante de acolher todos aqueles que se apresentavam, apesar de um cansaço cada vez maior. Sabia, porém, que o pior estava para vir, que a menos que acontecesse um milagre, teria, dentro de pouco tempo, de receber a odiosa Hieronyma, que ela acreditava tinha mandado assassinar o seu pai... A sua única esperança residia no facto de que no meio de todo aquele luto a dama não ousaria reclamar a resposta à escandalosa oferta de casamento que formulara na véspera. Mas conhecia-a mal...

A asquerosa mulher chegou com a noite e os ecos do palácio encheram-se com os clamores e os soluços de uma dor barulhenta que eriçou a pele de Fiora. Saindo do quarto onde há já uma hora o pintor Sandro Botticelli, sentado a um canto, desenhava a carvão, silencioso e com os olhos marejados de lágrimas a última efígie de um homem que sempre acreditara no seu génio, a jovem foi esperar na galeria a chegada da sua inimiga. A sua intenção era interditar-lhe o acesso à sala onde repousava o seu pai.

A visão de Hieronyma, envolta em roupagens fúnebres como uma matrona da Roma antiga e o rosto marejado de lágrimas, provocou-lhe vómitos. Ia gritar, ordenar que pusessem na rua aquele monstro de hipocrisia, mas Chiara deteve-a:

Mesmo que tenhas razão para acreditar no que acreditas, deves recebê-la.

Eu não quero que ela se aproxime do meu pai!

Não podes impedi-la. Ela é da família. Não deves dar azo a qualquer crítica.

Silenciosa mas ao mesmo tempo roendo o freio, Fiora saudou com uma inclinação de cabeça e abriu ela própria, diante da visitante, a porta do quarto, por onde esta se lançou, gritando:

Onde estás, Francesco? Meu primo fraternal... meu irmão! Nunca saberás a que ponto me eras querido, a que ponto...

Pelo contrário, creio que, lá onde está, o meu pai sabe perfeitamente quais são os sentimentos de cada um! disse secamente Fiora, incapaz de se calar por mais tempo. Por favor, põe um travão a essa tua expressão de... dor, prima! O meu pai não gostava que se exteriorizassem os sentimentos.

Falas do que ignoras! Nós, os Florentinos, gostamos de dar livre curso, tanto às nossas alegrias, como às nossas dores. Mas, para compreender, é preciso ser do nosso sangue...

Hieronyma foi ajoelhar-se à cabeceira do leito, escondendo assim a cabeça do defunto a Botticelli. Com um suspiro, o pintor parou. Teve de esperar um grande quarto de hora. A oração de Hieronyma, entrecortada de invocações à alma de Francesco, prolongou-se, irritante até mais não para Fiora, que, de pé do outro lado do leito, observava a prima. Finalmente, esta inclinou-se, pousou um beijo na fronte fria e declamou num tom melodramático:

Repousa em paz, Francesco! Eu fico com o testemunho! Doravante eu é que velarei por tudo o que te era querido, juro-to!

A megera levantou-se penosamente, envolta como estava nos seus véus fúnebres. O olhar gelado de Fiora seguia cada um dos seus movimentos:

Juramento inútil, prima! Ninguém, aqui, te pediu nada e o meu pai menos do que ninguém! Eu sou a mais velha da família. Doravante, sou eu o chefe e estou pronta a prová-lo. No entanto, consinto em dar-te a escolher o futuro. Preferes vir morar sob o meu tecto, ou que venhamos, eu e os meus, instalar-nos aqui?

A impudência de Hieronyma quase cortou a respiração de Fiora, mas o ódio e a cupidez que ela via luzir nos olhos sombrios da mulher galvanizaram-na.

Nem uma coisa, nem outra! Como ousas dispor assim do que não te pertence e, além disso, da minha pessoa?

O que ainda não me pertence não tardará a pertencer. Quanto a ti, é tempo de esqueceres esses ares de princesa. Em breve não passarás da esposa submissa do meu filho Piero... como decidimos, o meu primo e eu!

Como ousas, enquanto ele continua presente e nos ouve, proferir tais mentiras? Pensas que ignoro o que foi dito, ontem, na sala do Órgão? O meu pai repudiou com desdém um casamento que o ofendia...

... mas que não podia evitar. E ele era demasiado inteligente para não o compreender. A partir do fim do luto, procederemos aos esponsais.

Nunca! Nunca poderás forçar-me! Apelarei a monsenhor Lourenço! Subitamente, Hieronyma desatou a rir:

O teu senhor não poderá fazer nada. Nós ainda estamos numa república, apesar dos grandes ares dele. Terá de ceder à vontade do povo! Verás, verás... E desatou a rir a bandeiras despregadas.

Então, largando o papel e o lápis, Botticelli, pálido de cólera, lançou-se a ela para a pôr na rua.

És louca? rugiu o pintor. Ousar rir, ousar ameaçar na câmara de um morto? Isso não traz nada de bom, donna Hieronyma, e tu devias temer a cólera de Deus!

Deixa-me, maldito pinta-monos! Fica-te bem invocar a ira do céu, tu que vives, tal como os teus iguais, no vício e na luxúria!

É sem dúvida, por essa razão que as igrejas e os conventos não cessam de nos fazer encomendas. Retira-te sem fazer barulho, donna Hieronyma! Não tens aqui ninguém a quem convencer e perturbas a paz de um morto!

Com um gesto furioso, Hieronyma arrancou o braço da mão do pintor, pôs ordem na sua toilette depois de lançar a tudo o que a rodeava um olhar de ameaça, transpôs a porta que Léonarde mantinha aberta para ela:

Em breve rirei mais e mais alto do que hoje e aqui mesmo, sem que ninguém me possa impedir! Voltarás a ver-me, Fiora! E não demorará muito!

É a segunda vez que ela te ameaça observou Chiara, que tinha seguido a cena sem dizer nada. Onde arranjou ela o direito?

Fiora não respondeu de imediato, hesitando ainda em confiar a uma estranha o drama que manchara o seu nascimento e perscrutando o rosto amável para tentar adivinhar a sua qualidade. Chiara seria suficientemente sua amiga para ir mais além, ou afastar-se-ia com repugnância? E, subitamente, tomou a decisão. Valia a pena tentar e se a filha dos nobres Albizzi não o suportasse, Fiora só ficaria mais só face ao desastre cada vez maior em que a sua vida parecia mergulhar a cada dia que passava:

Vem! disse ela. Já vais saber...

Acendendo uma vela na chama de um dos dois círios, a jovem pegou na chave do studiolo que estava dentro do pequeno cofre onde o seu pai costumava guardá-la e depois de um último olhar para o invólucro que abrigara uma alma tão forte e generosa, Fiora guiou a sua amiga pela galeria mal iluminada pelos archotes que, no pátio, ardiam dentro de garras de ferro.

A porta abriu-se sem um rangido, descobrindo o esplendor dos embutidos preciosos. Fiora fez entrar Chiara, fechou-a cuidadosamente e foi direita ao retrato. Com uma mão, tirou o veludo protector, ao mesmo tempo que, com a outra, iluminava o rosto louro que, subitamente, pareceu ganhar vida...

Mas disse Chiara és tu!... e, no entanto, não és verdadeiramente tu... Talvez seja dos cabelos louros...

Fui eu que posei, aliás sem desconfiar, mas este retrato é da minha mãe, Marie de Brévailles.

Pensava que nem sequer sabias o seu nome?

É verdade. Só o soube há pouco tempo. E agora vou, se tu quiseres, contar-te a sua história. Foi por isso que te trouxe aqui... Queres?

À guisa de resposta, Chiara instalou-se numa das cadeiras, cruzou os braços e esperou, enquanto Fiora acendia uma após outra as lâmpadas do grande candelabro.

Por que tanta luz? perguntou Chiara.

Porque vou abrir perante ti um abismo sangrento. As sombras serão menos densas, até para mim. Imagina que foi apenas ontem que o meu pai me contou tudo! Ontem... e agora parece-me que sempre o soube...

Queres mesmo falar? Podes calar-te, se preferires!

Não. Vou contar-te tudo, mas não me vou sentar ao pé de ti. Vou ficar aqui, perto desta janela, para que tu não me vejas. Depois... quando eu acabar, poderás deixar esta sala e esta casa sem sequer olhares para trás, se assim o desejares!

Mas...

Não digas nada! Como não sabes, ignoras o que pensarás quando eu acabar e eu quero que sejas livre de decidir. Acrescento apenas que, se partires, não quero que voltes!

Lentamente, Fiora afastou-se da zona luminosa. O seu vestido preto fundiu-se com as sombras da sala. Impressionada, Chiara apertou as mãos uma contra a outra e fechou os olhos, esperando o que se ia seguir com uma angústia da qual não se podia defender. A voz quente e calma de Fiora chegou-lhe como se viesse do fundo dos tempos.

Todos aqui acreditam que eu nasci secretamente em lençóis de fino linho num castelo francês. Nada de mais falso! Eu abri os olhos em Dijon, na palha da prisão onde a minha mãe aguardava a morte... e não sou filha de Francesco Beltrami.

Ignorando o oh» estupefacto da sua amiga, Fiora, com uma espantosa segurança de memória, refez para ela o relato do seu pai sem omitir o menor pormenor; mas, ao passar por aquela voz jovem, umas vezes surda, outras vibrante, o romance trágico de Jean e Marie de Brévailles encheu-se de cores de rara intensidade. Com os olhos fixos no retrato, Chiara mal ousava respirar, suspensa como estava daquela voz na sombra, que fazia renascer para ela as chamas de uma paixão irresistível, inflamada pela atmosfera triste de um quotidiano sórdido, a fuga para uma vida em comum impossível, o cerco, enfim a sentença de morte, a execução e os seus pormenores ignóbeis, contra os quais se erguera o amor súbito e total, absoluto, de um viajante. A jovem florentina pensava que estava a ouvir uma daquelas histórias fantásticas que os contadores de fábulas contavam nos mercados, mas aquela tinha as ressonâncias inimitáveis da verdade. E o encanto subsistia ainda um momento depois de a voz de Fiora se apagar. Seguiu-se um silêncio, profundo, que em breve se tornou insuportável à contadora. A espera de um veredicto que lhe metia medo, apertou-lhe a garganta. Entretanto, Chiara continuava a não reagir. A sua expressão estava hirta e os seus olhos arregalados contemplavam o vazio. Não dizia nada.

Subitamente, a jovem levantou-se com um movimento brusco e o coração de Fiora parou... Mas, em vez de se dirigir para a porta, Chiara foi direita à amiga:

Por que pensaste que eu te ia virar as costas?

Teria todo o sentido, parece-me?

Para mim, não. Primeiro, responde a uma pergunta: que sentes quando pensas nos teus pais? Vergonha?

Não... oh não! Uma grande piedade, na qual há muita ternura. Eu tenho quase a idade da minha mãe quando ela morreu e mal imagino que possa ser sua filha. Os meus pais, sinto-os muito próximos de mim, como um irmão e uma irmã. Quanto aos que os levaram ao cadafalso, não consigo evocá-los sem cólera: aquele marido abominável, aquele pai que não apenas entregou a sua filha a um tal homem, mas que não ousou lutar contra uma morte pública, que, entretanto, o desonrava. E depois aqueles príncipes sem piedade, aquele duque Carlos, sobretudo, que Jean de Brévailles tinha servido com tanta lealdade, que amava como...

A jovem mordeu os lábios. Ia dizer «como Philippe o ama...», mas não queria falar daquele homem a quem estava ligada por um casamento mentiroso e continuou muito depressa:

Quanto a esses só tenho ódio e desejo de vingança...

De vingança? Como poderás vingar-te? Se o duque Philippe já morreu e tu ignoras se o senhor du Hamel e o teu avô ainda estão vivos?

Não o chames assim! Ele não tem qualquer direito. Enquanto eu viver, Francesco Beltrami será sempre o meu pai, o único que conheci e a quem amo. Mas creio que um dia, talvez em breve, irei à Borgonha para acertar as minhas contas. E se Deus ainda não dispôs das suas vidas, eu porei ordem nelas. Aliás, resta um culpado: o duque Carlos!

És louca? Queres haver-te com um príncipe que, dizem, é mais poderoso do que todos os outros? Queres morrer como a tua mãe?

De qualquer maneira, ainda não chegámos lá. Primeiro, tenho de me vingar do miserável... ou da miserável que mandou matar o meu pai. É o sangue dele que grita mais forte! Os outros virão depois.

Chiara estremeceu, como se o frio da morte tivesse entrado subitamente na sala elegante e efeminada: «.

O teu desgosto perturba-te, Fiora! Deixa a justiça para aqueles que a têm a cargo! Lourenço de Médicis não pretende deixar impune o assassino de messer Beltrami e tu podes ter confiança nele. Quanto a essa infeliz história que dormia no coração do teu pai há 17 anos, farias bem se pensasses nela o menos possível e eu estou certa de que, se ele ainda fosse vivo...

Mas, pensa bem no que estás a dizer! Já te esqueceste de Hieronyma? Achas que, possuindo esta arma contra mim, ela não se vai servir dela? Eu acabo de recusar, tal como o meu pai, um casamento com o filho dela... e tu ouviste.

É verdade. Tinha-me esquecido. Nesse caso, só tens uma solução, a que o teu pai queria tentar: dizer tudo a Lourenço! Ou muito me engano, ou ele ajuda-te!

Fiora foi buscar a cobertura de veludo e, com gestos muito doces, cobriu o retrato com ela...

Vou seguir o teu conselho. Na noite do funeral vou-lhe pedir que me oiça...

Toda a Florença estava na rua dois dias depois, quando Francesco Beltrami deixou a sua casa para a sua última viagem, sobre uma padiola transportada por seis homens, os mais poderosos da arte de Calimala e coberto com um pano branco. O cortejo fúnebre, como o exigia a lei, era modesto: quatro monges transportando círios precediam o corpo, seguido por uma vintena de carpideiras conscienciosas nos seus vestidos negros mal cosidos. Por fim, Fiora, uma longa silhueta enquadrada por Léonarde e Chiara, seguia à cabeça dos seus criados e de todos aqueles que, nas suas diversas casas, tinham trabalhado para o grande negociante. Não havia música nem cânticos, mas, caindo do céu cinzento, por onde corriam as nuvens e as andorinhas, ouvia-se o toque a finados de todos os sinos de Florença. Assim o tinha decidido o Magnífico...

Lourenço também ordenara, para que todos pudessem assistir, que a cerimónia religiosa tivesse lugar no Duomo, antes de o defunto ser levado para a igreja de Orsanmichele, onde seria inumado.

Durante o caminho, a multidão que assistia era heteróclita, mas em redor do fabuloso Baptistério e nos acessos à catedral polícrona, todos aqueles que eram alguém na cidade estavam ali reunidos: as Artes maiores: Calimala, a Lã, a Seda, a Banca, os Juristas, os Boticários e os Peleiros, cada um com o seu estandarte particular e depois as Artes menores: talhantes, ferreiros, sapateiros, carpinteiros, taberneiros, estalajadeiros, curtidores, mercadores de azeite, sal e queijos, armeiros e, por fim, padeiros, que formavam a corporação menos apreciada da cidade, porque mais acessível... Toda a Senhoria ocupava a varanda do Bigallo, em frente da porta sul do Baptistério. Por fim, à entrada do Duomo, Lourenço e Giuliano de Médicis, vestidos de veludo negro e rodeados pela sua família e amigos. Todos os poetas, filósofos e pintores estavam presentes! Sandro Botticelli estava presente, assim como Verrocchio com os seus alunos: Perugino, Leonardo da Vinci e também os aprendizes, que moíam as tintas, limpavam os pincéis e velavam pelo abastecimento da equipa. Também lá estava... mas era impossível dar um nome a todos os rostos.

O esplendor vinha todo da igreja. Em frente das portas abertas da catedral, ao fundo da qual ardia uma floresta de círios, as capas douradas, os vestidos púrpura, as mitras cintilantes do bispo e dos abades de vários mosteiros compunham um fresco fabuloso, evocando a magnificência inaudita do paraíso para o qual ia a alma de Francesco Beltrami.

O som dos sinos caía do alto do campanário esguio, cujas ricas cores o tempo cinzento do dia não conseguia apagar, ao mesmo tempo que no interior da igreja se elevavam as vozes profundas dos órgãos, às quais se juntariam as de uma trintena de meninos de coro quando o defunto penetrasse no santuário.

Os carregadores já avançavam para seguirem o clérigo que começava a entrar, quando, subitamente, uma mulher envolta em véus negros se postou diante deles de braços abertos:

Para trás! O homem que transportais para este santo local morreu em estado de pecado! Não entrará aqui enquanto a verdade não for conhecida de todos!

Hieronyma! gemeu Fiora. Meu Deus, que vai ela fazer?

Até tenho medo de pensar murmurou Léonarde. Era todo o caso, não lhe falta audácia! Como messer Francesco morreu sem confissão, ela veio aqui denunciá-lo!

Tenho a certeza! Infelizmente, não podemos provar o contrário e ela sabe-o...

Entretanto, formava-se na multidão uma ondulação, de onde se elevava um burburinho que era impossível dizer se era de cólera ou de espanto. O capitão Savaglio, que seguira até ali, ladeando a multidão, a marcha de Fiora, avançou para repelir a perturbadora, que se debatia vigorosamente ao mesmo tempo que berrava:

Não me farão calar! É preciso que se faça justiça e que cesse o escândalo!

Está calada, mulher e sai daqui! bradou Savaglio. A tua conduta é que é escandalosa e sacrílega! Se alguém tem direito a clamar por justiça é o morto, que assassinaram vilmente...

Já pedia ele socorro aos seus homens com um gesto quando o magistrado municipal se aproximou:

Deixa essa mulher! A lei e a honra da nossa cidade dizem que qualquer cidadão pode exprimir-se livremente.

Livremente, sim, mas não em qualquer ocasião!

Essa também é a minha opinião disse a voz rouca de Lourenço de Médicis, que interveio por sua vez. Nós estamos aqui para dizer o último adeus a um dos nossos, um dos melhores e isto é indecente! Retira-te, Hieronyma Pazzi. Se tens uma queixa a fazer, serás ouvida mais tarde! Não se faz esperar um morto diante da casa de Deus!

Mas Hieronyma sabia que entre aquela gente havia quem tivesse ciúmes e detestasse Francesco Beltrami e que, ao falar de um escândalo, despeitava muitas curiosidades maldosas. Com toda a força da sua voz, gritou:

Este morto é do meu sangue. No entanto, apelo para o julgamento do povo, porque ele utilizou a mentira e o fingimento! Ele não merece a pompa que o espera aqui. Ele traiu Florença e aviltou a sua qualidade de cidadão da nossa república ao fazer passar por sua filha uma criatura nascida nas circunstâncias mais desonrosas!

Tu calas-te? rugiu Lourenço. A tua indignação virtuosa, que me parece um pouco tardia já que Fiora Beltrami era um bebé quando Francesco a trouxe para cá, não virá antes de um desejo grande de te fazeres atribuir uma herança interessante?

Só descobri a intrujice há pouco tempo e...

Balelas! Nós sabemos todos que donna Fiora nasceu dos amores de Francesco com uma nobre dama francesa!

Tu dizes que são balelas, mas eu digo que são mentiras! O meu primo Beltrami recolheu esta rapariga do sangue do cadafalso onde acabavam de morrer o seu pai e a sua mãe pelo duplo crime de incesto e adultério!

A mulher berrara com tanta força que Lourenço teve um movimento de recuo, como se o sopro dela fosse o do próprio inferno. O magistrado municipal Petrucchi aproveitou para usar da palavra, consciente da imperceptível mudança que começava a produzir-se na multidão, uma multidão florentina apaixonada e versátil, capaz, num acesso de humor, de enviar à noite para o cadafalso aquele que idolatra pela manhã. Parecia uma daquelas vagas, curtas e rápidas, que se erguem subitamente num mar calmo, um arrepio que anuncia a febre e pressagia a tempestade...

Monna Hieronyma disse ele as palavras que acabas de pronunciar são muito graves e compreenderás que a Senhoria não as pode aceitar sem provas. Tens essas provas?

Tenho. Recebi as confidências de um homem que estava presente em Dijon, na Borgonha, no dia da dupla execução, no dia em que o meu primo adoptou esta... esta podridão! Aliás, está aqui outra testemunha: esta mulher acrescentou ela apontando para Léonarde que veio com ele para tratar deste ser que deviam ter atirado para o esgoto e não coberto com o belo nome de florentina e que está ali, atrás do corpo do meu infeliz primo, adornada com um nome que só pode ser devido a uma maquinação do demónio...

Desta vez, a multidão rugiu. Hieronyma sabia o que estava a fazer ao evocar as práticas da feitiçaria e, com uma alegria maldosa, sentiu que estava quase a ganhar. Com um pouco de sorte, a multidão pegaria fogo e atirar-se-ia àquela Fiora que ela odiava e que, de mãos no rosto, se esforçava por nada ver, para a desfazer em pedaços... Mas Lourenço, a princípio surpreendido, não tencionava deixar-se levar assim por uma mulher histérica, nem que o povo, que reconhecia a sua autoridade porque o enriquecera, lhe dissesse qual era o seu dever. Por fim, porque detestava desde sempre os Pazzi, dos quais desconfiava como da peste.

Chega! gritou ele. Já disse e repito que esta cena em frente de uma igreja é escandalosa e que o funeral de um homem respeitado e admirado não deve servir de pretexto para um ajuste de contas. Se Francesco Beltrami desrespeitou, pelo que só pode ter sido um impulso do coração, as leis da nossa cidade, julgá-lo-emos mais tarde... Por agora...

Peço-te que me desculpes interrompeu Petrucci mas que queres dizer com esse «mais tarde»?

Quero dizer depois de Francesco Beltrami estar em repouso na tumba que o espera.

Aceitas, portanto, que logo a seguir aquela a quem chamamos sua filha, a governanta e a acusadora, assim como a testemunha desta sejam levadas à Senhoria para ali serem ouvidas e confrontadas?

O Magnífico hesitou. O seu olhar sombrio percorreu o seu grupo de amigos, de guardas e depois todas aquelas cabeças e rostos, onde podia ler a mesma hesitação. Viu Fiora em lágrimas, amparada por uma Léonarde lívida e por uma Chiara Albizzi cujos olhos faiscavam de cólera, mas já alguns gritos se ouviam um pouco por toda a parte:

Justiça! Que se cumpra a lei! e até, infelizmente À morte a feiticeira!

Lourenço compreendeu que não ganharia nada em se opor ao pedido do magistrado municipal. Sabia muito bem que devia o seu poder à adesão do maior número possível e que um assunto como aquele podia ser um excelente pretexto para uma rebelião.

Seja! disse ele por fim. Que se faça segundo a lei na nossa cidade.

Nesse caso, guardas da Senhoria, prendei estas mulheres e levaias para o palácio, onde elas aguardarão que seja estatuída a sua sorte!

Compreendendo então que lhe iam roubar o direito de acompanhar o seu pai bem-amado até à sua última morada, Fiora revoltou-se:

Eu quero gritou ela assistir ao funeral do meu pai! Ele era o que eu tinha de mais querido neste mundo...

Se ele não era teu pai troçou Petrucci não tens nada com isso!

Eu fui legalmente adoptada perante esta mesma Senhoria.

Mas, aparentemente, sob falsas declarações. E nós não gostamos de falsas declarações!

Talvez. No entanto, aceitais, como se fossem palavras do Evangelho, as acusações desta mulher, que ainda ontem pediu ao meu pai que me desse em casamento ao seu filho! A ignomínia do meu nascimento não pareceu incomodá-la muito em comparação com a fortuna que cobiçava... e que continua a cobiçar!

Isto é verdade? perguntou severamente Lourenço a Hieronyma.

É falso berrou ela. Não há nada mais falso! Eu, pertencente a uma nobre família...

Tu querias que eu fosse para tua casa como tua nora. A tua última visita, na véspera da morte do meu pai, teve testemunhas. A despeito das ameaças que proferiste, ele recusou casar-me com Piero... e, no dia seguinte, foi assassinado!

Hieronyma uivou como se uma serpente tivesse desenrolado os anéis a seus pés.

Tu ousas acusar-me, tu, uma larva miserável, que vais regressar em breve para o lodo de onde saíste?

Eu não acusei ninguém respondeu Fiora. Mas se a carapuça te serve, a culpa não é minha! Quanto à tua testemunha, vai buscála! Eu sei quem é: é Marino Betti, o intendente da nossa propriedade, um homem que o meu pai pensava ser fiel, que cumulou de benesses e que, dizem, é teu amante.

Enfurecida, pronta a bater-se diante de todos contra aquela mulher ignóbil que acabava de lançar a sua lama sobre o sudário imaculado do seu pai, Fiora ia lançar-se sobre ela com as garras todas de fora quando Lourenço a segurou e obrigou a ficar quieta:

A cólera cega-te, Fiora, mas tens de compreender que tudo o que acaba de ser dito é de uma extrema gravidade e que nem com a melhor vontade do mundo podemos deixar as coisas como estão. Submete-te de bom grado ao julgamento dos priores! Eu estarei lá, podes estar certa.

Então, também tu me recusas o direito de ficar ao pé dele até ao último instante? disse ela dolorosamente, apontando para o corpo que os seis notáveis, rígidos como se se tivessem transformado em pedra, mantinham aos ombros.

Deixa-me substituir-te! Quando tudo voltar ao normal poderás rezar sobre a sua tumba o tempo que quiseres...

Ela olhou-o nos olhos com um pequeno sorriso.

Depois do que acabas de ouvir, senhor Lourenço, continuas a desejar que eu me case com o teu primo? murmurou ela de maneira a ser ouvida apenas por ele. Luca diz que me ama... porém, vai-me deixar ir sozinha para um combate do qual depende a minha vida...

Fiora não falava sem razão. Uns minutos antes, ao chegar defronte do Duomo, avistara Luca Tornabuoni à esquerda de Giuliano de Médicis. Ele cobrira-a, então, de olhares apaixonados, mas agora tinha desaparecido. Por sua vez, Lourenço procurou o jovem com os olhos e ficou corado, bruscamente, por não o encontrar:

Peço-te perdão disse ele em voz baixa. Mas pode ser que esteja enganado... Talvez ele não tenha vindo. ”

Mentes muito mal, senhor Lourenço...

Ele estava aqui, com efeito disse subitamente a voz tranquila de Demétrios, que acabava de aparecer por trás do Magnífico. Mas eu vi-o partir subitamente, quando esta mulher falou do teu nascimento, donna Fiora. Creio que se lembrou, de repente, que um dos seus cavalos estava doente e reclamava os seus cuidados...

Então, que fazemos? impacientou-se Petrucci.

Fiora virou-se para ele depois de ter chamado Léonarde para o pé de si.

Deixemo-nos conduzir à Senhoria... magnífico senhor! Esperarei lá a decisão dos nobres priores. Mas não te esqueças de exigir que essa mulher apresente a sua testemunha!

A testemunha em questão não estava, naturalmente, longe. Saiu da multidão de olhos no chão e aproximou-se daquela que diziam sua amante. Fiora perguntou-lhe, sarcástica:

Não receias que a sombra do meu pai te venha atormentar as noites, fiel Marino? No teu lugar, tinha cuidado...

O homem não respondeu e pareceu curvar-se sobre si mesmo. Mas já os guardas da Senhoria os rodeavam, a ele e a Hieronyma, assim como também rodearam Fiora e Léonarde. O clérigo, desorientado pelo que acabava de acontecer, reapareceu sob o pórtico para retomar a cabeça do cortejo. Os carregadores, visivelmente cansados, recomeçaram a marcha e Fiora, imóvel de braço dado com Léonarde entre quatro soldados, viu desaparecer sob o mármore do portal a silhueta branca do seu pai, que era forçada a deixar ir assim, despojada do único amor real que ela lhe inspirava.

O sargento que comandava os soldados esperou que a igreja se enchesse, mas esta não podia conter aquela enorme multidão e tiveram que deixar as portas abertas. Não sem pena, Fiora conseguiu que Chiara se afastasse. Indignada com o que acabava de ver e ouvir, a jovem recusava-se ferozmente a abandonar a sua amiga. Pretendia que a conduzissem também a ela à Senhoria como testemunha e talvez Fiora não tivesse conseguido impedi-la, se o seu tio Giorgio Albizzi não a tivesse segurado pelo braço:

Vem! ordenou ele secamente. O teu lugar não é aqui.

A despeito da sua coragem, Fiora sentiu as lágrimas subirem-lhe aos olhos face àquela fria manifestação de desprezo. Albizzi fora amigo de Francesco e no entanto, à primeira acusação, afastava-se, retirando a Fiora um dos seus mais fiéis apoios. Por entre as lágrimas, a jovem viu desaparecer no meio da multidão que agora olhava para ela com a curiosidade habitualmente reservada para a jaula dos leões, o pequeno rosto em pranto da sua única amiga.

A jovem virou-se e, dirigindo-se ao sargento que comandava a sua guarda:

Então? perguntou ela rudemente. Que esperas para nos levares?

Aquela soberba criatura tinha uma tal autoridade que o soldado, atrapalhado, respondeu-lhe:

Às tuas ordens!

Puseram-se em marcha através da multidão, que se afastou diante deles. Pelas portas abertas do Duomo, as notas tempestuosas do Requiem acabavam de rasgar o ar.

Após um instante de hesitação, a maior parte da assistência, achando o funeral bem menos interessante do que aquilo que se ia seguir, seguiu-lhes as pisadas. A distância não era grande do Duomo ao Palácio Velho, sede da Senhoria que se aproximava dos dois séculos de existência e, pela via Calzaiuoli a rua dos fabricantes de meias percorreram-na rapidamente. Apoiada no braço de Léonarde, Fiora sentia reforçar-se nela a impressão absurda de ter deixado um mundo agradável, doce e cuidadosamente arranjado, por um outro, ameaçador e estranho, povoado de visões hostis e bocas escarrando injúrias. Todas aquelas pessoas, que ainda no dia anterior a saudavam com um cumprimento, um sorriso ou mesmo alguns-versos, se tinham transformado, ao ouvir a voz vingativa de Hieronyma, em outros tantos inimigos, que talvez a tivessem lapidado sem a barreira de ferro com que a tinham rodeado.

Por que razão murmurou Léonarde, que se esforçava por não ouvir as injúrias que assinalavam o seu percurso por que razão não lhes dizeis que não sois desta cidade, que, pelo casamento, sois uma nobre dama da nossa Borgonha?

Porque não tenho qualquer prova do meu casamento. Não sei onde pôs o meu pai os papéis...

Eu sei. Na noite anterior à sua morte, o vosso pai disse-me muitas coisas...

Das quais, se calhar, não vos podeis servir. Não sabemos o que vai ser de nós e é por vós que eu receio mais... Porque posso contar uma história diferente da de Hieronyma? Não receeis, eu sei defender-me. Além disso, acredito sinceramente que podeis contar com o senhor Lourenço. Ele parece decidido a apoiarvos, defendendo a memória do vosso pai...

É por isso que eu não posso proclamar o meu casamento com Philippe. Arriscar-me-ia a perder o meu último defensor. E o mais poderoso. Mas, lembrei-me agora: sabeis onde está Khatoun? Não a vejo desde que saímos de casa...

Ainda lá deve estar. Ela não queria assistir ao funeral de messer Francesco, porque teme tanto as cerimónias fúnebres como a própria morte...

Prefiro assim. Esta abominável Hieronyma, que nunca foi suficientemente rica para comprar um escravo, seria capaz de a vender em leilão público já amanhã, ou, pior ainda, acusá-la também de feitiçaria...

Estavam a chegar. A silhueta esmagadora do Palácio Velho, com as suas pedras salientes, o caminho de ronda e a alta e esguia torre de Arnolfo, que evocava vagamente uma flor-de-lis ainda em botão, erguia-se diante daquelas que bem podiam ser chamadas de prisioneiras. Uns criados em libré verde abriram-lhes as portas e elas subiram pela estreita escadaria que ia dar à sala do Conselho onde, dentro em pouco, se jogaria o destino de Fiora e daqueles que lhe permaneciam fiéis.

Ao transpor a porta baixa da grande sala, Léonarde benzeu-se e Fiora, quase maquinalmente, imitou-a. Agora, era preciso ir até ao fim. Mas onde estava o fim?

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