A cela era triste, cinzenta e quase nua: um colchão de palha, pousado sobre duas cruzes de madeira, um cobertor esburacado, um crucifixo na parede cuja brancura inicial sofrera os atentados da humidade, um escabelo para a prisioneira se sentar e um outro suportando uma bacia e duas toalhas rugosas e, por fim, um bacio por baixo da cama, compunha toda a decoração. Aquilo parecia-se tanto com uma prisão que, uma vez lá dentro, Fiora virou-se para protestar, mas já a porta, munida de um postigo gradeado, se fechava e ela pôde ouvir a chave girar na fechadura. Que significava aquilo?
A sessão na grande sala da Senhoria fora das mais agitadas. Perante os priores e o magistrado municipal, reunidos numa espécie de tribunal, Hieronyma repetira a sua acusação apoiada por Marino, que, sempre sem ousar levantar a cabeça, relatou o que vira em Dijon num lúgubre dia de Dezembro. Mas à sua maneira rancorosa: Francesco Beltrami teria matado o marido de Marie de Brévailles para lhe tirar a criança. Léonarde, então, metera-se. Traçou de Regnault du Hamel um retrato alucinante de maldade, que aumentava na mesma proporção a imagem radiosa dos jovens amantes malditos. Falou na emoção de Francesco Beltrami, na sua cólera perante o assassínio friamente decidido de uma criança de poucos dias. Falou no velho padre, no baptismo de Fiora num quarto da Cruz de Ouro e em todos os cuidados tomados pelo negociante florentino para garantir àquela pequenita, que ele amara instantaneamente, um futuro como o que todas as crianças deveriam ter ao chegarem a este mundo demasiado duro para a sua fraqueza. Ele tinha confiança naquele Marino, que agora o traía vilmente, a despeito das benesses recebidas, com uma mulher que, ao descer até ele, se desonrara.
Sim, Francesco Beltrami quisera que aquela criança do seu coração se tornasse sua filha aos olhos de todos e, ao declará-la como tal, mal mentira: não era ela, realmente, a filha bastarda de uma dama de sangue nobre?... Por fim, fina como era, Léonarde Mercet era a primeira vez que Fiora ouvia o nome todo da sua governanta terminara a sua arenga clamando para o servidor infiel a ira do Senhor e todas as piores maldições. Predisse-lhe noites sem sono, as 12 pragas do Egipto abatendo-se sobre ele e sobre os seus bens e, para concluir, a maldição até ao fim dos seus dias com a satisfação, puramente subjectiva, aliás, de ver o miserável encolher-se ao ouvir as suas palavras e perder o sangue-frio até cair de joelhos.
Lourenço de Médicis falara por sua vez, pedindo calorosamente pelo seu amigo defunto e pela juventude inocente da criança por ele eleita. Denunciara a rapacidade da dama Pazzi e o seu estranho comportamento, por, depois de um pedido de casamento recusado, ter obrigado a jovem a pedir justiça por um acto de que não tivera culpa. Infelizmente, cometera o erro de englobar todos os Pazzi, que detestava, no mesmo anátema e Petrucci chamara-lhe a atenção asperamente.
Para a Senhoria, que contava no seu seio com muitos amigos dos Médicis mas também com alguns dos seus inimigos, a situação era confusa e difícil de julgar. Ainda por cima porque o clero se tinha intrometido na pessoa do abade do convento de San Marco, para cujas celas, entretanto, enaltecidas pelos frescos de Angélico, Lourenço gostava de se retirar, mas que, como bom dominicano, se achava um ferrabrás de Satã e das suas criaturas. Ora, para esse monge intransigente, uma criança nascida de amores incestuosos e adúlteros só podia ser uma criatura do demónio, que nenhum baptismo poderia redimir, sendo que a água benta seria mais um sacrilégio.
A sua voz troante impressionou os «magníficos senhores», dos quais alguns eram almas simples e Fiora, por um instante terrível, perguntou a si própria se não iriam preparar para ela uma fogueira no Palácio Velho... Além de que, encorajada por uma ajuda inesperada, Hieronyma voltou a atacar mais venenosamente do que nunca, suplicando aos priores que não permitissem que um tal escândalo se espalhasse por mais tempo sob os céus de Florença, o que só poderia atrair mais perigos e maldições...
Era mais do que Fiora se sentia capaz de suportar. Levada pela cólera, enfrentou a sua inimiga a quem, com voz gelada, acusara de mandar assassinar o seu primo e de querer a sua perda para ficar com a herança fabulosa.
Então, foi o tumulto, a algazarra, a mais assombrosa das desordens. Os apoiantes de ambos os lados da causa injuriaram-se e quase chegaram a vias de facto. Foi preciso que Petrucci mandasse entrar a guarda para restabelecer um pouco de calma na sala que, para dizer a verdade, já vivera muitas situações semelhantes desde os tempos heróicos dos Guelfos e dos Gibelinos. Em Florença as pessoas gostavam quase tanto de zaragata como de festas, cortejos, grandes procissões e belas-artes. Era uma maneira como outra qualquer de provarem que, apesar do poderio dos Médicis, ainda estavam numa república.
Quando, por fim, se conseguiu um certo silêncio, os priores decidiram-se, depois de deliberarem rapidamente com Lourenço. Na impossibilidade de resolverem uma situação que nunca se apresentara à sua sagacidade, decidiram que o conjunto de bens de Francesco Beltrami seria posto sob sequestro enquanto se esperava um julgamento definitivo. Por outro lado, um administrador, cuja escolha foi deixada ao banco Médicis, seria nomeado para assegurar a continuação dos negócios do negociante defunto, para que pudesse ser garantido o trabalho aos seus numerosos empregados. Quanto a Fiora, que acusara sem provas, era passível de prisão, tal como lho deu a entender o sobrolho franzido de Lorenzo. Apesar das cautelas, fora demasiado longe e o Magnífico, apesar de toda a sua influência, teria dificuldade em salvá-la se os priores decidissem aplicar a lei em todo o seu rigor. Então, houve um instante de hesitação, mas que não durou muito. O abade de San Marco voltou à carga empurrando diante de si um monge que trazia, como ele, o hábito branco, o escapulário negro e a cruz de prata dos dominicanos:
Permiti Vossas Senhorias falou ele pelo nariz que vos apresente Frei Inácio Ortega, que vem da nossa casa de Valladolid, em Castela, que impôs a si próprio viajar por toda a cristandade, como em tempos o nosso santo fundador, para pregar o Evangelho e desmontar as armadilhas do Maligno. Frei Inácio, que é um especialista em matéria de diabruras, deseja propor-vos uma solução que talvez agrade a todos...
O recém-chegado apresentou-se como um homem de meia-idade, grande e um pouco curvado. Era quase calvo por completo e a sua alta fronte em forma de cúpula dominava o arco baixo das sobrancelhas.
Tinha um nariz poderoso, uma boca severa e uns olhos que, por trás das pálpebras, escondiam o olhar. A sua presença tinha qualquer coisa de pesado e sinistro, que todos, mais ou menos, sentiram. Convidado a exprimir-se, o monge avançou, as mãos escondidas nas mangas brancas do hábito, saudou como um homem que se sabe superior àqueles a quem se dirige e depois esperou.
Sede duplamente bem-vindo, frei Inácio disse o mais idoso dos priores, que fazia as funções de presidente. Escutamos Vossa Reverência com respeito.
O recém-chegado olhou à vez para Hieronyma e para Fiora, no rosto da qual se demorou um instante e depois, num toscano fácil, mas que a sua voz áspera tornava curiosamente desagradável, disse:
Estas duas mulheres odeiam-se demasiado para que seja possível tirar-lhes a verdade, mas existe um meio de descobrir essa verdade. Proponho que apelemos ao julgamento de Deus. Submetamo-las à prova da água!
Seguiu-se um grande silêncio. Numa cidade como Florença, onde a liberdade de espírito e as luzes da filosofia grega tinham adquirido direitos de cidadania ao ponto de inquietar muitas vezes a Igreja, o juízo de Deus não era muito utilizado, já que era considerado como uma prática de outras eras. De imediato, aliás, Lourenço protestou e todos puderam ver, pelo olhar irritado que lhe lançou, que o monge espanhol não lhe agradava mais do que a sua proposta:
Não poderemos nós, antes de chegar a esse extremo, dar um voto de confiança aos homens que nesta cidade têm a seu cargo a ordem e a justiça: aos nossos magistrados, ao barguell e ao magistrado municipal Petrucci? Eu acho-os capazes de descobrir o assassino de Francesco Beltrami... ou os assassinos, se se trata de um executante.
Aquela lisonja fez descontrair a atmosfera, sentindo-se os priores satisfeitos por lhes devolverem os méritos de que eles se achavam merecedores. Lourenço, encorajado por alguns acenos de cabeça aprovadores, ia prosseguir para explorar a sua vantagem quando Hieronyma avançou e se ajoelhou aos pés de frei Inácio.
Eu estou pronta, no que me diz respeito, a submeter-me ao julgamento do Altíssimo e penso, muito reverendo padre, que tendes
1 o Chefe da polícia.
toda a razão. Só Deus me pode purificar de uma acusação infame, mas que não me espanta, vinda de tal criatura!
O estupor, face à incrível audácia daquela miserável, sufocou Fiora. Desprezaria ela Deus ao ponto de pretender associá-lo ao seu crime e fazer dele seu cúmplice? Mas já Hieronyma se levantava, triunfante e se virava para ela.
E agora tu, filha de ninguém! Que tens a dizer?
Assim interpelada, Fiora, repelindo docemente Léonarde que tentava retê-la, avançou calmamente, mas, em vez de se dirigir ao monge estrangeiro, foi diante da Senhoria que se ajoelhou:
Eu também aceito comparecer perante o tribunal de Deus e repito bem alto a minha acusação: o meu pai, que nunca ninguém me impedirá de chamar assim, foi morto por ordem desta mulher e agradeço ao venerável irmão Inácio por me permitir, assim, conseguir a prova que me falta.
Subitamente, a jovem sentiu uma grande paz. Certamente, sabia que, ao aceitar o juízo de Deus, aceitava ao mesmo tempo a morte quase certa: dentro de dois ou três dias, em camisa e estreitamente ligada por cordas que lhe interditariam qualquer movimento, seria atirada ao Arno totalmente cheio, com poucas hipóteses de reaparecer à superfície, mas, pelo menos, juntar-se-ia ao seu pai, deixando uma vida que já não a interessava. O único ser capaz de a defender já não existia, o homem que ela amava ridicularizara-a e rejeitara-a para sempre e, por fim, acabava de ver afastarem-se dela aqueles que diziam amá-la e a cidade inteira, que ainda ontem lhe sorria e a acarinhava, virar-se contra ela com a alegria feroz dos medíocres que vêm abater-se subitamente um ser até ali privilegiado.
Uma única coisa a consolava: ia morrer, sim, mas Hieronyma partilharia a sua sorte. A menos que... a menos que, no seu cérebro retorcido, concebesse um meio de escapar ao afogamento. Mas, que meio seria esse?
Visivelmente, o Magnífico fazia a si mesmo essa pergunta. O seu olhar sombrio não se afastava de Hieronyma e, assim como Fiora, não conseguia compreender o que levara aquela mulher a sujeitar-se à proposta do monge espanhol. Mas, em seguida à dupla aceitação, o tumulto recomeçou. Toda a gente falava ao mesmo tempo e foi muito difícil restabelecer a calma. Apenas Lourenço e os dois monges permaneceram impassíveis, esperando que a algazarra terminasse. Por fim, os membros da Senhoria conseguiram pôr-se de acordo e decidiram que, volvidos três dias, as duas mulheres seriam levadas para o meio do rio cada uma no seu barco e atiradas à água pela mão do carrasco, depois de se terem confessado e ouvido missa. A decisão da Senhoria dependeria, naturalmente, do resultado da prova. Até lá, as duas mulheres seriam conduzidas, tanto uma como outra, ao convento das dominicanas de Santa Lúcia, para ali se recolherem e viverem em oração até à hora do julgamento.
Fiora escondeu a sua decepção. Esperava que a tivessem deixado aguardar em sua casa, no seu ambiente familiar, o instante supremo, mas isso fora-lhe recusado. Tal como o seu pai, a viagem começada de manhã seria a última... Decididamente, Deus era, por vezes, cruel e a jovem não tinha muita esperança num milagre a seu favor.
Com as lágrimas nos olhos abraçou Léonarde, que soluçava sem reserva depois de lhe terem recusado seguir o destino da criança que tinha criado. A governanta tinha autorização de regressar ao palácio Beltrami até ao resultado da prova. Então, decidiriam o seu caso.
Não tenhas receio murmurou Lourenço de Médícis, que conseguira aproximar-se de Fiora eu cuidarei dela se...
O Magnífico não ousou formular o fim da frase, mas a jovem compreendeu que o seu cepticismo não acreditava muito nas intervenções celestes.
... levo-a para minha casa concluiu ele, mas Léonarde não estava de acordo:
Se vós permitirdes que esta criança deixe a sua vida neste julgamento estúpido declarou ela em francês não ficarei nem mais um dia nesta cidade infame e até ao meu último dia hei-de pedir a Deus que a cubra de maldições!
Esperemos para ver como Ele julgará... suspirou Lourenço, impávido.
Mas já os soldados se aprestavam a conduzir as duas inimigas ao convento. Fiora abraçou uma última vez Léonarde, que se agarrava a ela. Velai pela minha casa e por todos aqueles que nela moram. Cuidai de Khatoun. Ela não tem mais força do que um pequeno gato... No exterior voltaram a encontrar a multidão, que, por qualquer mistério, já sabia o que ia acontecer. A sua longa espera tornara-a ainda mais barulhenta do que durante o funeral de Beltrami e foi no meio de graçolas e até de injúrias que as duas mulheres chegaram ao convento, não longe da porta de San Niccolo.
Nem um único rosto amigo se mostrou durante aquele penoso trajecto, senão, no ângulo da varanda dos Priori, a grande silhueta de Demétrios Lascaris, cujo olhar acompanhou Fiora o mais possível, mas o médico não fez qualquer gesto e a jovem, recordando a ajuda que ele lhe oferecera quando ela não precisava, pensou que aquele homem, por mais estranho que fosse, era exactamente como os outros: preocupado, antes de mais, com a sua própria segurança. Aliás, pensando bem, ele não tinha razão nenhuma para se preocupar com ela... O que não impedia que aquele último abandono lhe fosse penoso e quando a pesada porta de Santa Lúcia se fechou, Fiora teve a impressão de ouvir fechar se a pedra da sua tumba...
Sentada no seu leito miserável, Fiora revivia sem cessar as horas daquele terrível dia. Sentia-se cansada e moída, como se lhe tivessem batido com um pau. Aquela cela representava para ela a última decepção, porque sabia, por ali ter ido em visita duas ou três vezes com Chiara para rezar e cuja prioresa, Madre Maddalena degli Angeli, era vagamente sua prima, que as freiras e as damas que iam fazer retiro ao convento dispunham de um cubículo austero, sem dúvida, mas de limpeza perfeita, ornamentado com imagens santas e abrindo para o claustro, no centro do qual florescia um belo jardim. A estreita janela do seu alojamento, guarnecida de duas barras de ferro em cruz, dava para o pátio traseiro, onde se amontoavam os detritos e onde se encontravam as latrinas. O odor era penoso e, prisão por prisão, Fiora lamentava que não a tivessem fechado antes numa verdadeira masmorra, porque aquele local ignóbil era a justa medida da consideração que tinham por ela.
As suas derradeiras ilusões, se ainda tinha algumas, desapareceram quando, ao cair da noite, uma irmã leiga, cujo hábito constelado de nódoas proclamava que trabalhava na cozinha, lhe trouxe um bocado de pão duro, uma bilha de água e uma malga de sopa de couves, na qual nadava um pedaço de toucinho rançoso. Enojada, Fiora repeliu a escudela:
A cozinha do convento não fez progressos desde a minha última visita troçou ela. Pensava que tinha direito a outro tratamento?
Ora vejam a delambida! exclamou a irmã, que era uma rapariga vermelhuda e com bigode. A nossa madre já faz muito ao consentir em receber aqui e alimentar uma rapariga do diabo como tu! Devias agradecer-lhe de joelhos.
Ah! Porque agora sou uma filha do diabo? Portanto, fui baptizada. Mas, não há muito tempo, quando aqui vinha, não se poupavam a lisonjas nem a doçuras para com a filha do muito rico Francesco Beltrami. E agora tenho de agradecer de joelhos uma sopa que nem os porcos quereriam? Vai dizer à tua madre superiora que quero falar-lhe!
Ninguém fala assim à madre superiora! Ela está na capela para unir as suas preces às da santa dama que nos enviaram contigo e que vai sofrer por tua culpa.
Ouvir falar de Hieronyma como de uma santa era o cúmulo! Fiora olhou para a gorda religiosa com franco nojo e encolheu os ombros:
E eu não tenho o direito de rezar? Quero que me levem à capela!
As feiticeiras fingem sempre que são melhores cristãs do que as verdadeiras. As nossas irmãs não querem sujar-se com a tua presença e, se quiseres rezar...
Com o seu dedo gordo tremendo de cólera, designou a cruz pendurada da parede:
Reza aqui! Nosso Senhor está em toda a parte, mas, claro, as tuas iguais só sabem rezar ajoelhadas em almofadas de veludo e respirando o perfume do incenso...
Desaparece! gritou Fiora furiosa. E leva esta sopa ignóbil. O pão e a água chegam...
Com um sorriso mau, a irmã deixou cair a escudela, que se partiu, salpicando a bainha do vestido negro de Fiora:
Vou dizer que foste tu que fizeste isto disse ela maldosamente. Espero que te dêem com o chicote!
Não o aconselho às tuas irmãs, senão dentro de três dias, quando estiver diante da Senhoria, direi como fui tratada nesta casa, à qual fui confiada. Aliás, di-lo-ei de qualquer maneira. Direi como fizestes diferença entre mim e a mulher que assassinou o meu pai. Ficarei surpreendida se monsenhor Lourenço ficar satisfeito.
A irmã saiu batendo com a porta, mas sem se esquecer de dar duas vezes a volta à chave. Só, Fiora foi sentar-se no leito. Nunca sentira o coração tão pesado. Estava resignada a morrer, mas seria mesmo necessário que os seus últimos dias se passassem na indignidade, na sujidade e na mesquinhez? Não seria já suficientemente duro só ter esperança na morte, quando só tinha apenas 17 anos?
Ao mesmo tempo que se esforçava por se desapegar dos bens deste mundo, a sua natureza permanecia viva e reclamava o que lhe era devido. Apercebeu-se que tinha fome, ferrou os dentes no pão que não estava excessivamente duro e bebeu alguns goles de água, que estava fresca e pura. Sentiu-se um pouco menos miserável, mas tinha frio. A janela não era mais do que uma abertura na parede e nenhuma vidraça protegia a cela contra a temperatura exterior. Ora, a chuva, que começara a cair aquando da sua chegada a Santa Lúcia, caía agora a potes, empurrada por um vento violento vindo de norte. Penetrava naquela prisão, que não era outra coisa, aumentando a poça de água gordurenta deixada pela escudela quebrada.
Fiora sentiu vontade de atirar os cacos de barro e os restos de comida que sujavam o chão pela janela fora, mas o orgulho reteve-a. Não lhe pertencia a ela fazer o trabalho de uma servente. Pretendia proteger, ao menos, a sua dignidade o mais possível. Depois do juízo de Deus, se sobrevivesse, a Providência, que não parecia mostrar grande interesse, saberia o que fazer dela. A única certeza que tinha era que combateria até ao limite das suas forças para que lhe fosse feita justiça.
Isócrates escrevera algures: «Não devemos perder a coragem quando nos expomos ao perigo por uma causa justa.» A recordação daquela frase trouxe-lhe algum conforto. Aqueles queridos filósofos gregos sabiam sempre o que era preciso dizer e correspondiam melhor ao seu temperamento combativo do que os preceitos resignados do Evangelho. Platão dizia que era preciso fugir, sem olhar para trás, dos maus, ao passo que Cristo recomendava que se amasse o próximo como a si mesmo. Ora, era impossível Fiora ter por Hieronyma sentimentos fraternais. Se tinha de morrer dentro de três dias, morreria odiando-a e sem nunca lhe perdoar, assim como nunca perdoaria aos perseguidores da sua mãe ou ao homem que, por devoção ao seu príncipe, lhe fizera tanto mal.
As doces notas do Ângelus caíram sobre aquela alma revoltada sem lhe provocar qualquer apaziguamento. Fiora nem tinha vontade de rezar, mas, como tinha frio, enrolou-se no cobertor e deitou-se para tentar conciliar o sono. Que, aliás, não se fez rogado, de tal modo o seu corpo jovem, esgotado, reclamava repouso. Alguns instantes depois de ter fechado os olhos, Fiora adormecia profundamente.
Impressionado, sem dúvida, pela angústia do que iria suportar em breve, o seu espírito arrastou-a para um pesadelo. A jovem viu-se de pé, descalça e em camisa nas margens de um rio turbulento e sulfuroso, que só vagamente se parecia com um rio familiar. Na outra margem, mesmo na sua frente, estava Philippe de Selongey; ele estendia-lhe os braços e chamava-a. Ela queria ir ter com ele, mas uns braços cada vez mais numerosos e mais pesados, impediam-na. E Philippe chamava sempre... Por fim, ela sentiu-se violentamente empurrada e a água engoliu-a; conseguiu subir à superfície e a corrente levou-a, mas, na outra margem, Philippe, agora, ria, ria dos esforços inauditos que ela fazia para chegar até ele. A jovem viu-o estender uma mão para uma mulher sem rosto que se aproximava dele e que, no seu sonho, Fiora sabia ser muito bela. Eles riram-se juntos e depois, virando-se, afastaram-se enlaçados. Fiora tentou gritar, mas nenhum»som lhe saía da boca, que se enchia cada vez mais de água...
Um abanão acordou-a. Ainda ofegante do pesadelo, a jovem ergueu-se e viu que uma religiosa se encontrava junto do seu leito, ao mesmo tempo que se apercebeu de que o dia já despontava. Já não era uma irmã leiga, antes uma verdadeira religiosa, cujo hábito impecável vestia um corpo longo e magro. Na oval estreita deixada pelo escapulário branco o rosto sem idade não deixava de ter uma certa beleza devida à regularidade dos traços, mas nenhuma doçura lhe atenuava a severidade...
Levanta-te! ordenou a dominicana e segue-me! Maquinalmente, Fiora obedeceu e então viu que a gorda irmã da véspera estava ajoelhada no chão, lavando-o. Ela levantou a cabeça quando Fiora passou por ela e escarrou com uma tal expressão de ódio que um arrepio percorreu a espinha da jovem.
Onde me levas? perguntou Fiora sem obter qualquer resposta. A alta silhueta branca e negra caminhava na frente dela com um passo deslizante que apenas imprimia um ligeiro movimento ao hábito e Fiora teve a impressão de seguir um fantasma. Atravessaram assim alguns corredores, passaram pela capela debilmente iluminada, na qual se podiam ouvir as vozes em uníssono das freiras cantando a oração da manhã e atingiram o claustro, do qual Fiora se recordava. Ali, a sua guia abriu diante dela a porta de uma cela que se encontrava no ângulo mais afastado da capela:
Para te evitar o pecado da denúncia, a nossa reverenda madre decidiu alojar-te aqui até ao dia do julgamento. Bem entendido, não sairás daqui, mas encontrarás em cima da cama roupa limpa para substituíres as tuas, sujas...
Agradece por mim à reverenda madre murmurou Fiora, acrescentando: Posso ter esperança de também assistir às orações?
Não peças demasiado! Nenhuma das nossas irmãs deseja aproximar-se de ti e eu já te disse que não sairás daqui senão para o juízo de Deus. Arrepende-te!
De quê?
Se não sabes, Deus sabe! Mas eu creio que tu não ignoras nada. É um pecado grave acusar uma inocente!
Inocente? Que sabes tu?
Pobre mulher! Seria preciso vê-la rezar na nossa capela de braços cruzados, com lágrimas e súplicas, para que a luz tocasse, enfim, o teu coração endurecido e visses como a sua alma é pura...
Porque ela reza por mim? articulou Fiora, siderada.
Apenas e só. É por isso que eu te digo: arrepende-te!
E após aquela última imposição a religiosa saiu e fechou a porta daquela nova cela com tanto cuidado como a da anterior, deixando Fiora dividida entre a cólera e a repugnância. Nunca imaginara que a hipocrisia de Hieronyma pudesse atingir tais limites. Procurou à sua volta qualquer coisa à qual aplicar o seu furor, mas se aquele novo alojamento era mais confortável e sobretudo mais limpo, era também tão desprovido de tudo como o precedente.
Uma cama, uma verdadeira cama desta vez, se bem que estreita como um catre, ocupava, com as suas delgadas e pequenas colunas de cortinas brancas, um dos lados; uma cama sobre a qual tinham colocado um hábito e um véu branco de noviça. Havia dois escabelos e uma pequena arca, sobre a qual estavam colocados um jarro e uma bacia. Por cima da arca uma mão desconhecida, mas inspirada pela obra de Frei Angélico no convento dos dominicanos de San Marco, retratara, bastante mais laboriosamente, a morte de Santa Lúcia diante do prefeito Paschasius, de Siracusa. De pé junto da mártir ajoelhada, que olhava avidamente para o céu, o carrasco degolava-a, fazendo esguichar um rio de sangue que o pintor enriquecera com tinta dourada para melhor mostrar até que ponto ele era precioso. Fiora sabia que a vida da santa, dividida numa série de frescos, ornamentava certas celas das religiosas, as outras contando a vida de Cristo e a de santa Ágata, no túmulo da qual Lúcia fora tocada pela graça.
Levada pela curiosidade e sabendo que as freiras faziam voto de pobreza, Fiora tirou os utensílios de toilette e abriu a arca, mas fechou-a
196 de imediato com um arrepio de nojo: continha, com efeito, um suplício, um cinto com pontas de ferro e um cilício de crina, destinados, os três, à mortificação do corpo e ao castigo dos pensamentos impuros... A jovem perguntou a si própria se todas as celas conteriam aquele género de instrumentos e por que aberração umas mulheres, que se queriam esposas de um Deus de doçura, amor e misericórdia, utilizavam aqueles meios. Que amores feridos, que paixões sufocadas precisariam de recorrer à dor física para apagar a sua recordação? O amor, tal qual ela o conhecera nos braços de Philippe, deixaria vestígios tão insuportáveis, ou, pelo contrário, seria a mágoa, sentida por aquelas que entravam virgens para aquela casa por não terem conhecido nada de semelhante?
Pela sua parte, Fiora não lamentava nada e, se sobrevivesse, sabia que nunca pediria a um chicote, ou a um cilício, que lhe arrancasse a recordação das carícias que tinha conhecido. O seu estranho marido só quisera uma noite de amor e tinha-lha dado, inesquecível. Nunca Fiora procuraria apagar essa recordação, bem pelo contrário e se agora desejava vingar-se era, sobretudo, pelos meios empregues para conseguir essa mesma noite... e a grossa maquia em ouro que era o seu corolário. Porque Philippe não hesitara em acordar o amor de uma jovem, sabendo muito bem que depois de a ter feito sua a abandonaria para sempre. O borgonhês concretizara os negócios do seu senhor, ao mesmo tempo que satisfizera o seu próprio desejo. Quanto à fábula que dizia que ele queria morrer, a jovem não acreditava nela. O senhor de Selongey amava, demais a vida para sonhar, sequer, perdê-la. Fazia amor demasiado bem para renunciar a ele para sempre... Outras mulheres receberiam os seus beijos, as suas carícias e, se bem que o pensamento lhe fizesse ranger os dentes de raiva, impotente, Fiora não o repudiava. Philippe soubera manobrar engenhosamente o hábil comerciante que era Beltrami, para embaraçar a sua consciência com a recordação de um casamento mesmo desonroso que renegaria no dia seguinte. Era tão fácil esquecer aquela que com tanta desenvoltura ele condenara a definhar lentamente sem marido e sem filhos na vã sumptuosidade de um palácio florentino. O mais engraçado era que ele ignoraria, sem dúvida durante muito tempo, senão para sempre, o destino trágico da efémera condessa de Selongey...
Uma ideia súbita atravessou o espírito da jovem, excitado pela cólera e pela impotência: restava-lhe um meio, talvez, um único, de frustrar as intrigas do seu marido: Philippe levara o seu dote real, sabia-o, sob a forma de uma letra sobre o banco Fugger em Augsburgo, uma letra que, se calhar, ainda não tinha sido paga. Dentro de dois dias, antes de a mandarem entrar para o barco, acorrentada, proclamaria bem alto, diante dos Médícis, aquele casamento que os ofenderia, pedindo apenas, se ainda não fosse tarde, que a contrapartida em ouro dessa letra não fosse entregue. Assim, vingar-se-ia ao mesmo tempo de Philippe e desse Temerário, ao qual ele ousara sacrificá-la! Podia morrer tranquila!
Deus sabia, no entanto, que a ideia dessa morte a horrorizava. A espécie de estado de graça que conhecera quando, no seguimento de Hieronyma, decidira submeter-se ao juízo de Deus, desaparecera. Agora, estava face a si própria: uma rapariga de 17 anos, cheia de saúde e que diziam bela, uma rapariga que tinha uma enorme vontade de viver, de respirar o ar doce da Primavera, de sentir na pele a carícia do sol, de rir com uma amiga da sua idade, de ler belos livros, de escutar os acordes do alaúde e o canto dos poetas... de amar, mesmo se, para ela, essa palavra se escrevesse como odiar. E, sobretudo, uma rapariga que não queria apodrecer no fundo das águas amareladas pelas lamas do Inverno do rio que corria diante da janela do seu quarto...
Uma oração encontrou, subitamente, o caminho dos seus lábios:
Senhor, se eu tenho razão, fazei com que não morra!
Talvez para provar a si própria que continuava viva, a jovem sentiu a necessidade de se sentir ocupada, mesmo se a estreiteza da sua prisão não lhe dava muito espaço. Deitou água na bacia, arrancou, mais do que tirou o seu vestido de tecido fino negro que cheirava terrivelmente a couves e tratou de se lavar o melhor possível. Porque não era fácil com tão pouca água e o sabão grosseiro, feito de sebo e cinza de madeira, só de longe se assemelhava aos delicados cremes perfumados que o boticário Landucci mandava vir de Veneza, mas ela sentiu um certo conforto ao sentir-se lavada. Em seguida, com o pente que encontrara, desenredou e alisou longamente os seus espessos cabelos negros, onde permanecia um vestígio do perfume caro que Khatoun lhe pusera enquanto a penteava. Lamentou-o porque não era bom evocar as imagens de um passado agradável e, esforçando-se por pensar noutra coisa, entrançou os cabelos numa espessa trança, que deixou cair sobre o ombro esquerdo. Por fim, vestiu o hábito branco que lhe tinham deixado. A lã, tecida no convento, era rude, mas, pelo menos, estava lavado e, no fim de contas, era agradável de usar...
O tinir de uma campainha atraiu Fiora à pequena janela que dava perto da porta, para as arcadas do claustro. A jovem viu a longa fila branca e negra das religiosas dirigindo-se para a capela naquele passo silencioso provocado pelas sandálias de corda entrançada. Nenhuma virou a cabeça na sua direcção, desaparecendo por trás das portas da capela entoando o Veni Creator...
O eco das suas vozes permaneceu mesmo depois de as portas se terem fechado e Fiora ficou ali a ouvi-las e a contemplar a ordem fresca do jardim interior, plantado com loureiros, teixos e limoeiros, rodeando os canteiros cercados de buxo, onde as freiras cultivavam plantas medicinais. No meio havia uma bacia de pedra com um delgado jacto de água, onde as aves iam beber. E era uma imagem tão bela, tão tranquila e doce, que a cativa ficou ali um longo momento a contemplá-la. Seria, sem dúvida, uma das últimas que lhe seria dado admirar, mas, pelo menos, os seus olhos poderiam encher-se de beleza até ao momento da partida. Depois, não teria mais do que erguê-los para o céu e fechá-los... para não mais os abrir.
Mas, coisa estranha, quanto mais Fiora se esforçava por se resignar, menos o conseguia.
O dia foi longo. A cativa passou-o quase todo a observar o jardim e o voo dos pombos. Mas perdeu muito do seu encanto quando viu Hieronyma, sempre vestida com o seu traje fúnebre, passeando-se pelo braço da madre Maddalena, como se se conhecessem desde sempre... E, subitamente, a jovem recordou-se do que lhe dissera Chiara numa das suas visitas: a superiora das dominicanas dava-se, sem dúvida, com os Albizzi, mas tivera por mãe uma Pazzi. Era naquele parentesco que era preciso procurar a causa do tratamento de favor de que gozava a sua inimiga. Esta permanecia um membro da nobreza florentina, ao passo que a ela lhe recusavam o direito de se dizer filha de Francesco Beltrami. A outra era recebida como uma amiga, ao passo que Fiora era vista apenas como uma prisioneira.
Entretanto, a sua ameaça de denunciar publicamente o tratamento indigno a que a submetiam dera os seus frutos com aquela mudança de alojamento. E quando a meio do dia lhe trouxeram a refeição, esta, sem ser faustosa, era farta: almôndegas de vitela com puré e um bocado de pão branco. Apenas a água continuava a mesma... Fiora devorou tudo, pensando que a fome não era uma boa companheira de combate e que se luta melhor quando se está na plena posse das suas forças. Aquela ideia fez-lhe companhia durante o resto do dia, mas, quando a noite caiu, reapareceu a angústia. Teria sido agradável ter junto de si uma amiga a quem se confiar, porque naquele convento, onde ainda há pouco lhe sorriam, nenhum rosto se queria virar para ela. Pior ainda: ninguém se queria aproximar dela.
As freiras estavam de novo na capela para cantar as vésperas, que é a última oração da noite, quando de súbito, aquela que viera ter consigo de manhã apareceu de novo, sempre muito fria, sempre muito distante, de vela na mão.
Põe esse véu na cabeça! ordenou ela apontando para o tecido branco com que Fiora não julgara útil cobrir-se e segue-me!
Onde vamos?
Já vais ver! Mas aconselho-te a que tenhas uma atitude menos arrogante! No lugar onde te vou conduzir impõe-se um comportamento modesto e não esse olhar seguro e nariz arrebitado!
Desde a minha mais tenra idade que me aconselham a manter a cabeça bem erguida... seja em que circunstância for!
A religiosa encolheu os ombros, saiu da cela e encaminhou-se para a direcção oposta à que ia dar à capela. Fiora seguiu-a. A corrente de ar que ali reinava apagou a chama da vela, aliás inútil: a noite que banhava o jardim interior era suficientemente clara para que se orientassem e Fiora, que estava fechada desde manhã, respirou os odores frescos com delícia. Mas, de facto, não foram longe: até ao outro lado do claustro, onde a freira abriu uma porta baixa e mandou entrar a sua companheira. As duas mulheres encontraram-se na soleira de uma sala bastante grande, onde uma abóbada romana se apoiava em pesados pilares redondos. Ali, por trás de uma mesa sobre a qual ardia um archote de cinco mechas, estavam sentadas duas personagens, imóveis sob as pregas negras e brancas dos seus hábitos quase iguais: a madre Maddalena degli Angeli e o monge espanhol de San Marco: frei Inácio Ortega.
Obrigada, irmã Prisca! disse a prioresa. Quanto a ti, Fiora, aproxima-te. Aqui o nosso venerável irmão Inácio deseja fazer-te algumas perguntas. Não te esqueças, ao responder-lhe que ele é um enviado do nosso Santo Padre o Papa Sisto, que Deus queira conservar com a sua saúde e santidade.
Fiora inclinou-se sem uma palavra, perguntando a si própria que faria um enviado do Papa num convento de mulheres àquela hora. Também não percebia muito bem o que teria ele para lhe dizer, mas, lembrando-se que fora ele que propusera o juízo de Deus, pensou que era melhor ter cuidado.
Seguiu-se um silêncio. Apoiado na cadeira de madeira escura em que estava sentado, o monge, de olhos meio fechados, olhava para a alta e delgada silhueta branca que tinha diante de si, direita e digna, sem medo aparente, mas também sem sobranceria. As chamas do candelabro cinzelavam os traços do rosto delicado e punham reflexos dourados nos grandes olhos cinzentos sob a brancura do véu de onde deslizava, para cima de um ombro, a espessa trança de cabelos brilhantes. Frei Inácio mordiscou os lábios finos, que humedeceu em seguida com a ponta da língua. Depois, abandonando com um suspiro a sua pose descontraída, encostou-se à mesa:
Tu pretendes chamar-te Fiora Beltrami? perguntou ele depois de ter deitado uma olhadela a uns papéis pousados diante de si.
Nunca me chamei outra coisa. A reverenda madre aqui presente pode atestá-lo: ela conhece-me há muito.
Mas pode ser que tenhas abusado da reverenda madre, assim como de toda a cidade e não tenhas direito a esse nome.
Tenho o direito que me concedeu a Senhoria, ao assinar o acto de adopção que o meu pai lhe entregou.
Mas esse acto de adopção é falso, porque o teu... pai enganou conscientemente a Senhoria. Na realidade, tu és a filha de dois miseráveis que a justiça de Deus mergulhou no fundo dos Infernos.
Só Deus pode dizer que justiça é a Sua e eu creio, antes de tudo, na sua misericórdia.
A voz de Fiora permanecia tão firme como a sua atitude.
Erguendo as suas pálpebras engelhadas, frei Inácio fixou-a, como se através da intensidade do seu olhar quisesse reduzi-la à submissão. Fiora encontrou aqueles olhos sem cor definida e não baixou os seus. Um ligeiro rubor coloriu as faces magras do monge espanhol.
Atitude cómoda! Será porque temes essa justiça? No entanto, aceitaste com facilidade submeter-te à sentença do juízo de Deus! É verdade que foste um pouco obrigada... Não foste tu a primeira a aceitar, mas sim aquela que acusaste. Se ela está inocente, como tudo leva a crer, tu vais morrer. Não temes a morte?
Mentiria se dissesse que não. Eu tenho 17 anos, reverendo padre mas, se tenho razão, não morrerei. Hieronyma, pelo contrário, morrerá e é a ela que deveríeis perguntar por que razão o aceitou ela com tanta facilidade...
Mas, justamente, porque a sua consciência é tão pura como a sua alma exclamou a madre Maddalena e porque a sua fé em Deus é total. Não sei se se poderá dizer o mesmo de ti!
Erguendo a mão num gesto apaziguador, frei Inácio pôs fim à intervenção da prioresa.
Veremos isso mais tarde. Quem é o teu confessor?
Fiora hesitou. Ela confessava-se raramente, tanto ao cura de Santa Trinita como ao capelão de Orsanmichele, sem que fosse possível dizer qual tinha a sua preferência. Era uma questão de horas e de humor, porque, nunca tendo conhecido grandes pecados, parecia-lhe uma coisa sem interesse ir confiar os seus pensamentos mais íntimos a um quase desconhecido. A jovem confessou francamente essa dupla participação na sua vida religiosa e compreendeu de imediato que acabava de escandalizar frei Inácio ao ver o seu grande nariz estremecer:
O quê? Não tens um director de consciência?
Eu sempre tive confiança no juízo e rectidão do meu pai. Ele é que era o meu director de consciência...
Um homem que mentia tão bem? E que, naturalmente, não te empurrava muito na direcção da Igreja. Era a ela que devias ter sido confiada desde o teu nascimento, para que pudesses expiar, nos rigores benfazejos de um convento, o crime e o grande pecado da tua concepção, que o baptismo não foi suficiente para apagar...
O meu pai não achava que eu deveria pagar por um pecado que não cometi. Ele queria que eu acreditasse que era uma rapariga como as outras. Queria que eu fosse feliz...
É por isso, sem dúvida cortou a madre Maddalena que ele te educou nos preceitos ímpios desses filósofos antigos, cujo pensamento infecta esta cidade, onde se consagra a esses escritos profanos, às artes, às festas e ao prazer o que se devia consagrar apenas a Deus.
O sumo pontífice sabe tudo isso, minha querida irmã e preocupa-se seriamente. A desordem espiritual de Florença aflige-o ainda mais porque o exemplo vem de cima. Os irmãos Médicis fazem pouco da fé cristã e da honra das mulheres. O adultério e o deboche espalham-se livremente pela sua corte. Eles chamaram aos seus conselhos gente baixa, ao mesmo tempo que, por meio do exílio, da morte ou simplesmente do desdém, afastaram aqueles que desde sempre contribuíram para a riqueza e bom nome da cidade... Mas Deus não os esquece!
Fiora olhou com estupor para aquele monge, que parecia em estado de transe. Com os olhos postos na abóbada, como se estivesse à espera que ela se abrisse para dar passagem ao castigo celeste, erguera-se e, apoiado com as duas mãos na mesa, vociferava o seu furor fanático... e o seu ódio pelos Médícis...
Acreditais que um dia o Anticristo se afastará de nós? perguntou a madre Maddalena com as mãos unidas e os olhos marejados de água.
Frei Inácio regressou bruscamente à terra e enxugou o suor que lhe perlava o crânio calvo: É o que espera Sua Santidade e eu não fui enviado aqui se não para lhe trazer o socorro dos meus olhos e dos meus ouvidos. Eu sou estrangeiro, portanto imparcial, mas o que vi e ouvi até agora faz-me lamentar que a poderosa máquina da Inquisição, tão florescente quando estava nas nossas mãos, tenha finalmente sido confiada aos irmãos pregadores, que não se preocupam muito com ela. Entretanto, seria desejável que ela retomasse o seu rigor nestes países e aliás, a rainha Isabel de Castela, por quem fui enviado a Roma, desejaria que o Papa autorizasse a sua instalação nos seus reinos, nos quais ela prossegue a sua reconquista face aos Mouros infiéis... mas, parece-me que nos afastámos um pouco do caso desta rapariga, a quem tudo isto não diz respeito. Ela olha para nós com olhos arregalados, que devia aprender a baixar!
Não tão afastados quanto isso, muito reverendo irmão. Não é ela o pior exemplo daquilo que produz uma educação onde Deus não entra?
Ler livros nunca impediu fosse quem fosse de servir e amar o Senhor protestou Fiora, indignada. Eu acho que sou tão boa cristã como...
Como eu, talvez? Não sejas vaidosa, Fiora!...
Deixemos isso, minha irmã e acabemos com isto! cortou frei Inácio secamente. Por agora, estou aqui para tentar salvar uma alma, se ainda for a tempo. Tu disseste-me, há pouco, que temias a morte, rapariga pecadora? Quero acreditar em ti, porque, com efeito, tu és jovem... e bela, mesmo se essa beleza é obra do Maligno. Portanto, faço-te uma pergunta simples: queres viver?
Viverei se Deus quiser e se o rio não me engolir disse Fiora calmamente.
És corajosa, reconheço-o... a menos que contes com a ajuda... do Outro?
Do Outro? Qual outro?
Não te faças inocente, porque os teus olhos não têm nada de inocente. Estou a falar daquele que os feiticeiros e feiticeiras invocam e tu tens tudo o que é preciso para ser uma. Já vi iguais a ti sorrirem face a uma fogueira...
Mandastes-me vir aqui para me insultar? exclamou Fiora, revoltada. Eu não sou nenhuma feiticeira, assim como não o eram os meus infelizes pais, cujo único crime foi amar quem lhes era proibido!
Não te aconselho a invocá-los muitas vezes! Mas seja, acredito em ti: tu não és uma feiticeira disse o monge com a voz subitamente diferente, tão doce e envolvente como antes dura e cortante. Tu não passas de uma ovelha tresmalhada, por teres maus donos. É por isso que me proponho salvar-te.
Tens, portanto, o poder de evitar que eu seja atirada à água, quando toda a cidade espera isso com impaciência?
Vejo que não tens muitas ilusões sobre o que podes esperar dos teus antigos amigos! disse frei Inácio com um pequeno sorriso. Dito isto, não me é possível evitar o juízo de Deus. A única pessoa que o pode fazer és tu mesma.
Eu?
Quem mais? E basta uma pequena coisa: reconhece diante de mim, aqui mesmo, que acusaste falsamente... talvez sob o império do desgosto como vês, esforço-me por te compreender! aquela pobre mulher... Lembra-te que ela agarrou, como se fosse a sua última hipótese, a terrível prova que eu propus. Portanto, não pode ser culpada. Reconhece que te enganaste e eu farei com que os daqui se acalmem...
E se eu aceitar, que me acontece depois?
Primeiro, ficarás aqui no convento, aos cuidados da madre Maddalena. Será mais prudente, porque tu própria o disseste: estes bons florentinos só vêem em ti... uma filha de ninguém. Não poderás recuperar os bens do teu pai: Médicis ficará muito feliz por poder guardá-los para ele. Serás desonrada e atirada ao rio...
Por que razão seria obrigada a ficar aqui? Podia muito bem saír de Florença!
Mas, tu sairás de Florença. Quando os espíritos estiverem um pouco mais calmos e estiveres um pouco esquecida, far-te-ei conduzir a Roma, onde Sua Santidade, a meu pedido, te acolherá. Poderás, então escolher entre um convento agradável ou o serviço de uma nobre dama qualquer. A sobrinha do Papa, por exemplo: a condessa Catarina... Ela receberia, certamente com bondade, uma jovem indignamente abandonada e espoliada pelos Médicis.
Fiora, a princípio desorientada pelo tom subitamente amigável do monge espanhol e sem perceber os desígnios que o levavam a tentar que ela renunciasse à sua acusação, compreendeu subitamente. Vindo para fazer um inquérito acerca da depravação e supostas violências de Lourenço e Giuliano, frei Inácio contava fazer dela um dos peões do seu jogo. Se bem que pouco a par da política, sabia o suficiente para não ignorar que Sisto IV, inimigo mortal dos Médicis, porque desejoso de oferecer Florença ao seu sobrinho Girolamo Riario, marido de Catarina Sforza, esforçava-se por reunir à sua volta todos os inimigos do senhor da cidade cobiçada. Fiora juntar-se-ia em Roma a Francesco Pazzi, o vencido da giostra, de quem se dizia que estava a ser aliciado pelo Papa para os seus negócios de prata e que transferira para Roma, com a bênção do velho Jacopo, a maior parte da fortuna familiar. Entretanto, Hieronyma, reconhecida como inocente e pura, constituiria um insulto vivo para Lourenço, que tentara defender Fiora... e, certamente, conseguiria que lhe fosse atribuída pela Senhoria uma boa parte da fortuna dos Beltrami.
Vendo que a jovem se mantinha em silêncio, frei Inácio impacientou-se:
Então? Que tens a dizer? Creio que a minha oferta é generosa?
Também acho disse a prioresa. Pela minha parte, aceito manter-te aqui, onde serás tratada como a protegida da Igreja que em breve serás...
Fiora olhou para um e para outro: para ela, com os seus olhos ainda húmidos por uma estúpida ternura e para ele, com o tique enervante da boca, que mordiscava e humedecia. Tanto um, como o outro, causavam-lhe repugnância.
Agradeço-vos a ambos... muito sinceramente pelo interesse generoso que tendes por mim, mas prefiro enfrentar o juízo de Deus. Espero que ele me permita provar que tenho razão!
Frei Inácio, que voltara a sentar-se, saltou da cadeira como se tivesse sido impelido por uma mola:
Pobre louca! Acabas de assinar a tua condenação à morte! urrou ele, ao mesmo tempo que a sua companheira erguia as mãos e os olhos ao céu.
Tu não sabes nada, reverendo padre! Eu posso sobreviver ao afogamento.
Mas não ao fogo! Eu tinha razão: tu não passas de uma feiticeira e, se por infelicidade o rio te deixar viva, será à fogueira que farei com que te condenem! Como farei, talvez, com que condenem um dia o Médicis e todo o seu bando. Não ignoro que ele tem com ele um médico mágico e vidente grego, que não pode ser senão um subordinado de Satanás! Quando o Papa estender a sua mão sobre esta cidade maldita, todos eles arderão... mas tu, tu arderás antes deles, para maior glória de Deus!
O monge perdera o domínio de si próprio e à luz ondulante das velas a sua boca espumante, retorcida de raiva e os seus olhos chamejantes davam-lhe o ar de um demónio.
Será o que Deus quiser. Mas tu devias deixar que Ele próprio se encarregue da sua glória. Ele percebe certamente mais disso do que tu!
É a tua última palavra? Recusas?
Recuso. E agora, com a tua autorização, gostaria de regressar à minha cela. Faz-se tarde... e eu gostaria de rezar em paz.
Sacrilégio! O fogo do inferno espera-te depois do dos homens! O monge gritava tão alto que, temendo sem dúvida que ele fosse ouvido por toda a comunidade, a madre Maddalena apressou-se a chamar de novo a irmã Prisca batendo as palmas. A religiosa não devia estar longe, porque apareceu imediatamente. No instante seguinte, Fiora regressava atrás dela para o seu alojamento. Mal tinha entrado quando ouviu as freiras a sair da capela. A jovem ouviu-lhes os passos deslizantes e os cochichos: as filhas de Santa Lúcia deviam perguntar a si próprias por que razão a madre superiora não assistira ao ofício da noite. Depois, deixou de ouvir qualquer ruído, senão, na vizinhança, os latidos furiosos de um cão e, um pouco mais tarde, o apelo repetido dos soldados da guarda, que, nas muralhas, chamavam de uma torre para a outra.
Fiora viu que na sua ausência lhe tinham levado o jantar. Era composto por pasta de queijo com uma salada de manjericão. Mas estava tudo frio. A jovem comeu um pouco. Achando o prato pegajoso, vingou-se no pão e na água. A despeito de não se ter mexido muito durante todo o dia, sentia-se fatigada, mas era sobretudo o espírito que estava cansado... Quando as portas do convento se fecharam após a sua entrada, Fiora esperara gozar, ao menos, um pouco de paz. Ora, desde que entrara naquele lugar dedicado à oração e meditação, só encontrara maldade, mesquinhez e desprezo. Tivera de defrontar um casal de fanáticos, decididos a empregar todos os meios para lhe impingirem os seus desígnios tortuosos. O monge ameaçara-a, até, com a fogueira. Mas ela não cedera, apesar do medo que aquele monge lhe inspirava e sentia-se feliz...
Sentiu que só lhe restavam dois dias e o seu coração apertou-se, face ao tempo que fugia inexoravelmente. O seu destino, começado numa prisão, deveria mesmo acabar noutra prisão? A jovem pensou na sua mãe e em tudo o que suportara. Como Marie devia ter sofrido, no corpo e na alma, durante as horas penosas do parto, vigiada por carcereiros sem piedade, com a ideia terrível de que não teria o direito de ver viver aquele pequeno corpo saído do seu ventre e que, certamente, seria votado à morte a breve trecho! Dias e noites de agonia, talvez com o gládio do carrasco como única esperança... Mas, pelo menos, era apoiada pelo seu amor próximo, um amor que na última hora pudera pegar pela mão, ao passo que o de Fiora clamava no deserto... Como tudo teria sido diferente se Philippe a tivesse amado como Jean aquele Jean em quem ela não conseguia ver um pai tinha amado Marie!
Um dia, aquele estranho marido saberia que aquela Fiora, que ele jurara amar, defender e guardar em sua casa para o melhor e para o pior, morrera miseravelmente. Derramaria por ela uma lágrima? Ou teria pena? Não, um Selongey não devia saber chorar. Sentiria apenas um grande alívio. A vergonha deixaria de existir, a sujidade teria sido lavada... Ele poderia virar-se alegremente para outra mulher... uma mulher que talvez já ocupasse a sua vida e os seus pensamentos?
Naquela noite, Fiora não conseguiu rezar. Deus estava demasiado longe, demasiado indiferente, já que permitia que pesasse sobre uma inocente o peso de uma maldição imerecida. Quanto aos representantes da Sua glória e bondade, que Ele tinha posto no caminho da sua vítima, não conseguiam mostrar os doces rostos do Crucificado e da Sua Santa Mãe... E foi a chorar que Fiora adormeceu.
O dia seguinte foi sombrio. De manhã cedo uma outra irmã leiga apareceu para levar a escudela ainda cheia e proceder a uma rápida limpeza da cela, mas manteve os olhos obstinadamente baixos durante o tempo todo que durou o seu trabalho e não respondeu a nenhuma das perguntas que Fiora lhe fez.
Ninguém apareceu durante o resto do dia. Constatando que não lhe traziam nada de comer, Fiora pensou que tinham decidido aplicar-lhe um severo regime de penitência, consequência evidente da sua atitude face à espécie de tribunal constituído pela velha prioresa e pelo monge espanhol. A jovem resignou-se, lamentando apenas, quando soasse a hora do juízo de Deus, afrontar a prova com as forças diminuídas.
Passou o dia todo deitada na cama. Uma chuva fria caía incessantemente desde manhã, alagando o jardim onde já não havia aves e Fiora sentiu o seu coração pesar cada vez mais à medida que o tempo passava.
Para sua grande surpresa, a mesma irmã que viera de manhã, regressou à noite com pão, água e uma grande escudela com uma sopa espessa, que cheirava a legumes frescos. E para sua surpresa ainda maior, falou-lhe.
Está quente disse a leiga. Despacha-te a comê-la!
O tom era quase amigável e Fiora sentiu o seu coração aquecer. Era a primeira criatura, naquela casa, a dirigir-se-lhe como a um ser humano.
«Obrigada», disse ela com um sorriso que não lhe foi devolvido. Mas não tinha importância. Com o apetite da sua idade, atacou a sopa que lhe pareceu suculenta, se bem que tivesse um gosto um pouco invulgar, difícil de determinar. Mas a jovem não teve tempo de fazer a si própria qualquer pergunta, porque, mal meteu à boca a última colherada, a escudela escapou-lhe das mãos. Os seus olhos fecharam-se e Fiora caiu num sono profundo...
Fiora abriu os olhos para um cenário tão diferente daquele em que adormecera, que voltou a fechá-los de imediato, pensando que estava a sonhar, mas a sua cabeça, pesada e dorida, a boca seca e uma penosa sensação de náusea trouxeram-na de volta a uma realidade bem diferente. Abriu de novo as pálpebras e tentou levantar-se, mas a tontura que lhe atingiu a cabeça obrigou-a a deitar-se de novo com um gemido. Imóvel, então, contemplou sem compreender o quadro inverosímil no meio do qual se encontrava.
Aquilo parecia-se com uma estufa, porque havia uma grande selha de madeira pousada num solo de lajes, no qual estava escavado um rego para evacuação de águas, que terminava num buraco escavado na muralha. Havia também um braseiro, aliás apagado, mas cujos fumos tinham enegrecido o tecto grosseiramente rebocado. Também se parecia com uma prisão, porque a divisão era mal iluminada de cima por um respiradouro e parecia-se também, finalmente, com um quarto, porque a cama, na qual Fiora estava deitada, suficientemente grande para acolher três ou quatro pessoas, era confortável. Os lençóis e cobertores estavam limpos, mas as cortinas que a rodeavam, feitas de um tecido de grandes ramagens berrantes vermelhas e amarelas, algo desfiadas, mostravam, aqui e ali, fios brilhantes, sinal de um passado mais faustoso. Sobre uma grande arca verde cuja pintura estava escamada, um candelabro de ferro, cheio de cera sólida, suportava seis velas que iluminavam a parede, em frente da qual se encontrava o leito. Ora, essa parede estava pintada...
Grosseiramente, sem dúvida, porque não tinha a mão dos jovens génios que faziam o orgulho de Florença, antes pelo contrário um grande sentido do realismo e um verdadeiro abuso de cores, o pintor desconhecido tinha espalhado pela parede os amores de uma ninfa roliça e de um sátiro membrudo. Espantada, Fiora corou e fechou os olhos com força, para não ver aquela imagem ordinária.
Se pretendes fingir que estás a dormir disse uma voz de aguardente essa não é a maneira ideal!
Reabrindo os olhos com prudência, Fiora já não viu a pintura. Esta fora substituída por uma espécie de monstro: uma criatura talhada como um mercenário alemão, do qual tinha a voz áspera, mãos parecidas com pás de bater roupa, ombros de carregador e braços extremamente musculosos. Da posição alongada em que se encontrava Fiora, parecia imensa e quase tão larga quanto alta. No entanto, tinha de se render à evidência: a criatura era uma mulher! Atestavam-no os seios que apontavam como canhões sob a seda verde-crua do vestido e os longos cabelos ruivos crespos, que enquadravam um rosto com as dimensões do resto, mas que, talvez, tivesse alguma beleza se fosse desembaraçado da camada de pintura e se os olhos fossem maiores; pareciam-se, com efeito, com dois seixos verdes, dos quais tinham a devida ternura. Uma profusão de jóias tilintantes complementava a personagem, cintilando a cada um dos seus movimentos.
Eu não estou a fingir que durmo disse Fiora mas gostava de saber onde estou.
Isso n’é difícil: tás em minha casa.
E onde é isso, a tua casa? E quem és tu?
A mulher apoiou-se às colunas do leito que tremeu sob o choque, provocando em Fiora uma nova dor.
Na precisas de saber onde é a minha casa! Quanto a mim, chamam-me Pippa, a grande Pippa, ou ainda o Mulherão. Como não frequentamos o mesmo mundo, isso na te deve dizer grande coisa.
Não... absolutamente nada. Mas, como vim parar aqui? Eu adormeci ontem à noite no convento.
Na foi ontem: foi antes d’ontem. Tava a ver que nunca maisacordavas... A minha opinião é qo’as freiras tiveram a mão demasiado pesada co’a droga...
Uma... droga? Mas porquê?
Pippa desatou num riso relinchante, mostrando uns dentes capazes de moer o trigo:
Por pura bondade. São umas santas mulheres, sabes? Devem ter pensado qu’era mau negócio deitarem uma mercadoria tão boa à água.
Queres dizer... que foram elas que me trouxeram para aqui?
N’exageres! Tás a ver umas irmãzinhas a virem aqui? E voltou a relinchar.
Por piedade gemeu Fiora cala-te! Dói-me imenso a cabeça... e o coração! Parece que tenho lã na boca.
Pippa parou, franziu o sobrolho e pousou a sua pata na fronte da jovem:
É mesmo o qu’eu dizia: elas tiveram a mão muito pesada. Vamos já tratar disso!
A mulher regressou pouco depois com uma grande taça de barro, na qual fumegava um líquido de odor agradável. Colocou-a nas mãos de Fiora e depois, segurando-a pelos ombros, fê-la sentar-se.
Bebe tudo! Eu sei qu’está quente, mas na faz mal.
Fiora queimou-se heroicamente. Amarga apesar do mel que lhe tinham acrescentado, a tisana continha uma forte dose de limão, mentol e uma outra substância indefinível. Depois de a beber toda, a jovem ficou vermelha até à raiz dos cabelos e a transpirar como uma alcarraza. Sem querer ouvir os seus protestos, Pippa voltou a deitá-la e empilhou sobre ela tudo o que conseguiu encontrar de cobertores na arca de madeira.
Pronto! disse ela com satisfação. Dentro d’uma hora venho ver como é qu’estás. E na te mexas!
Uma hora mais tarde, o leito estava ensopado e Fiora já não tinha dores na cabeça nem no peito. Em contrapartida estava morta de fome e quando a mulher regressou com lençóis secos, perguntou se era possível dar-lhe qualquer coisa de comer. Pippa desatou a rir:
- Isso tá melhor, ha? Prefirassim. Na gosto que tejam doentes em minha casa. Já te trazem de comer daqui a pouco. Por agora, levanta-te. É preciso mudar isto tudo!
Fiora levantou-se e constatou que continuava a usar a camisa que lhe tinham dado em Santa Lúcia e que essa mesma camisa estava tão molhada como o resto.
Tira isso! ordenou Pippa, que num abrir e fechar de olhos tinha acendido o braseiro, deitado para lá umas ervas odoríferas e feito a cama. Tudo numa atmosfera de tremor de terra.
O que é que eu visto? perguntou Fiora, procurando qualquer coisa à sua volta.
Tira! Tratamos disso depois! Vamos, depressa!
Fiora tirou a camisa e estendeu a mão para um dos cobertores que Pippa acabava de tirar para se cobrir com ele, mas a mulher interrompeu-a com um brutal:
Quieta! Tenho de ver comés em pêlo. Uma bela carinha é bom, mas é preciso qu’o resto também seja... Fica quieta, estou-t’a dizer! Na m’obrigues a ir já buscar o chicote!
O chicote? exclamou Fiora, indignada. Proíbo-te de me tocares! Imaginas que vou permitir que me chicoteiem? Eu não te conheço e quero sair daqui! Sem se preocupar com a sua nudez, a jovem já se lançava na direcção da porta, mas Pippa agarrou-a em movimento com um braço e Fiora sentiu-se presa num torno:
Quietinha, ha? grunhiu a mulher. Aqui faz-se o qu’eu digo e só se sai p’ra ir ond’eu digo! Percebeste?
Fiora torceu-se sob o terrível aperto e só conseguiu magoar-se ainda mais. Tinha de se manter direita e suportar o exame da mulher, retendo lágrimas de raiva. A outra largou-a e afastou-se alguns passos para a ver de pé e depois aproximou-se de novo, apalpou-lhe os seios para lhe testar a firmeza, tocou-lhe no ventre, apalpou-lhe as nádegas, acariciou-lhe as coxas e finalmente suspirou, atirando a Fiora uma camisa de seda vermelha usada:
Seu na fizer fortuna contigo, é porque sou a rainha das lorpas! Por Belzebu, tu és um verdadeiro pedaço de reis! O cliente ficará contente, mas vai ser preciso que tu na te estragues...
O... cliente? repetiu Fiora, espantada. Qual cliente? E, antes de mais, que casa é esta? Que queres tu de mim?
Pippa colocou-se diante dela de mãos nas ancas, dominando-a com toda a sua estatura:
O cliente é o que te meteu aqui, em casa da Pippa, a alcoviteira mais famosa do Tirreno, no Adriático! Ele quer desflorar-te e dormir contigo até lhe apetecer! Ou até que tenha mais dinheiro e eu espero bem que na demore muito, porqu’agora que te vi, na tenciono vender-te qualquer um. Até tenho uma ideia...
Contrariamente ao que Pippa pensava, o facto de descobrir o horror da sua situação galvanizou a coragem de Fiora:
Porque
imaginas que eu vou deixar que me façam isso? gritou ela. Tu não sabes quem eu sou...
Quem tu eras, queres antes dizer? Porque tu já n’és nada, Fiora Beltrami, menos que nada, até: uma criminosa em fuga, uma feiticeira procurada pela Igreja e pela gente do Bargello. Queres que t’explique porquê?
É claro que quero!
Então, escuta! Ontem de manhã as irmãs de Santa Lúcia aperceberam-se de que tu tinhas fugido pelo pátio das cozinhas, subindo o muro co’ajuda d’uma escada. Encontraram o teu véu por baixo da escada. Toda a gente pensa que deste às de vila-diogo porque tinhas medo do juízo de Deus. O que quer dizer qu’és de má raça. Como não estavas lá, a Senhoria condenou-te. E ’tava lá o prior de San Marco com um monge espanhol e eles pediram que, se fosses encontrada, que fosses atirada p’ra Stinche, enquant’esperas pelo teu julgamento... e pela fogueira! Compreendeste, desta vez?
Fiora dobrou os joelhos e deixou-se cair em cima do monte de cobertores abandonado no chão. Sim, compreendera a infernal maquinação montada contra si. Certamente pelos Pazzi, pelo velho Jacopo e pela sua infame nora. Agora compreendia por que razão Hieronyma reclamara o juízo de Deus com tanto zelo: tudo devia ter sido feito antes da cena escandalosa que tivera lugar no adro do Duomo. As cumplicidades estavam à vista, a começar pelas do prior de San Marco e de frei Inácio Ortega este não vinha de Roma, onde Francesco Pazzi tinha uma boa vida na corte? e Fiora descobriu com amargura que o poder dos Médicis tinha pés de barro, que era possível, senão fácil, neutralizá-lo apelando para o povo, esse monstro de cem mil cabeças e ideias volúveis, e até para a Senhoria, onde, entretanto, Lourenço instalara homens da sua confiança. Se ela, Fiora, acabava de ser levada por aquela súbita borrasca, uma outra qualquer poderia levar os próprios Médicis, porque, mantidos afastados e meio arruinados, os Pazzi podiam ainda agir e ganhar.
Do alto da sua estatura o Mulherão, de braços cruzados no peito, gozava o seu triunfo sobre aquela bela criatura, que ela julgava quebrada. Mas conhecia-a mal, ou mesmo de todo. Bruscamente, Fiora levantou-se e fez-lhe frente:
1 Prisão de Florença.
Se acreditam que estou em fuga, não te arriscas ao manter-me aqui? perguntou ela friamente.
Na creio qu’o risco seja assim ta grande. Quem teria a ideia de procurar a filha de Beltrami numa casa com’a minha? De qualquer maneira, vale a pena. Acabo de te dizer que conto contigo para fazer definitivamente a minha fortuna...
Entregando-me aos homens que vêm a tua casa? Esqueces-te de uma coisa: muita gente me conhece em Florença; qualquer um pode...
Reconhecer-te? Achas-m’uma imbecil? É claro qu’isso pode acontecer, mas na penses que, para além daquele que te quer, te vou entregar a um qualquer, arriscando-me a qu’um bêbedo t’esventr’o pescoço c’uma faca? Tu na és mercadoria p’ra um marinheiro bêbedo qualquer. Se queres saber, os que te trouxeram p’ra aqui querem que, depois do que já sabes, te leve a Ancona, onde eu tenho alguns interesses e te venda lá discretamente... mas caro, a um pirata turco qualquer.
A Ancona? Nos Estados do Papa? Que coisa tão verosímil!
Mais do que pensas. O nosso Santo Padre actual na se preocupa com cruzadas. Sobretudo, ele gosta é d’ouro. Aliás, ele sabe sempre o que se passa nas suas costas... Mas, fica tranquila, tu não vais p’ra lá. Eu não vou fazer uma venda à pressa a um turco qualquer, quando há em Roma um cardeal que é capaz de pagar o teu peso em ouro...
Um cardeal? disse Fiora, horrorizada.
Por que não? São homens como os outros e est’inda mais do que todos os outros. Basta prometer-lh’uma bela rapariga. Chama-se Rodrigo Borgia, é o cardeal vice-chanceler, um verdadeiro touro! Verás...
Não verei nada gritou Fiora. Pensas que vou ficar aqui?
Na podes fazer outra coisa!
Nesse caso, mato-me!
Na terás ocasião. Vou manter-te vigiada, minha querida. Mas agora chega de conversa. Pensava que tinhas fome?
O encanto da tua conversa fez-me esquecê-la... Brutalmente, Pippa agarrou no rosto de Fiora, que apertou até magoá-la:
Na brinques comigo! Podes arrepender-te!
Ora, ora! Tu não és mulher para dar cabo da mercadoria...
Há outros meios sem ser o chicote. Por exemplo, um pimento colocado no lugar certo. E agora, vai-te deitar. Já te trazem de comer e depois podes dormir. Não há nada como o sono, a sério, e boa comida, para te dar uma boa pele. Amanhã tens de estar pronta p’ra agradar...
Mas Fiora não tinha vontade de dormir. Entregue a si mesma, deu a volta ao seu novo alojamento procurando uma saída, um buraco pelo qual deslizar para encontrar a liberdade. Pippa tinha-lhe dito que, lá fora, arriscava-se a uma prisão mais dura do que aquela e a uma morte terrível, mas a jovem pensava que tudo era preferível a ficar ali para ser entregue aos caprichos de um desconhecido, que ela, em vão, tentava descobrir quem era.
Infelizmente, a evasão parecia difícil, senão impossível. A porta, baixa e áspera, com as suas dobradiças de ferro e a sua grande fechadura era impossível de forçar. Aliás, quando se abria podia ouvir-se o estalar dos ferrolhos exteriores. Portanto, era impossível passar para o lado de lá, a menos que quisesse defrontar o Mulherão e isso seria pura loucura: uma pessoa não se pode medir com uma montanha...
O respiradouro, que ela conseguiu atingir subindo para um escabelo, dava para um pátio interior, uma espécie de poço cego, mas que devia ter uma saída qualquer. Â vista que teve permitiu, no entanto, que a jovem constatasse que o seu quarto se encontrava no rés-do-chão, coisa de que duvidara antes, aliás, devido à pouca luz que se escoava pelo buraco de escoamento das águas. Simplesmente, para passar, seria preciso serrar, ou arrancar, pelo menos, uma das barras de ferro que impediam a passagem. Em todo o caso, Fiora abanou uma e depois outra das três barras e constatou que uma mexia um pouco. Mas o barulho dos ferrolhos fez-se ouvir e ela atirou-se para a cama para não ser surpreendida nas suas tentativas.
Pippa encontrou-a deitada e teve um largo sorriso:
Dir-se-ia que te tornaste razoável? Nesse caso, talvez nos entendamos. Pega lá, trago-te galinha de zafferand, pão branco e doce de ameixas! Amanhã terás chianti para te dar um pouco de cor e aquecer-t’um pouco o sangue...
A mulher colocou a escudela nos joelhos de Fiora e, para grande surpresa desta, atirou-lhe mesmo um guardanapo aquela raridade que se encontrava apenas nas casas mais refinadas! pelos ombros, acrescentando que era para evitar sujar os lençóis. Em seguida, a alcoviteira observou-a enquanto a jovem pegava elegantemente nos bocados
1 Açafrão
de carne com a ponta dos dedos, que mal tocavam no molho avermelhado:
Vê-se que foste bem-educada! comentou ela. Uma verdadeira princesa, que está à-vontade no mais belo dos palácios. É pena que na te tenham ensinado a fazer amor tão bem, mas, depois do negócio d’amanhã, que talvez sej’a muito agradável p’ra ti, ensino-t’a dar prazer a um homem, mesmo que ele na tenha vontade. Tenh’a certeza qu’és dotada...
Fiora fechou as portas da sua memória à recordação sempre ardente da sua noite de núpcias. Philippe fora um professor maravilhoso, mas ela não queria recordar-se daquilo ali. Aliás, ouviam-se uns gritos nas profundezas da casa e Pippa precipitou-se para fora do quarto para ir ver o que se passava, gritando que era impossível ter uns minutos de paz «neste calabouço». Mas, quando regressou alguns minutos mais tarde, segurava no seu punho implacável um conjunto de farrapos escuros, de onde partiam uns gemidos. A mulher atirou com tudo para o chão, perto do leito:
Encontraram ist’a rondar a casa há uns minutos. Sabes quem é, por acaso?
O monte de lenços agitou-se, abriu-se e apareceu o rosto aterrorizado de Khatoun. Da fronte corria-lhe um fio de sangue.
Fiora lançou um grito e, instantaneamente, viu-se de joelhos junto da jovem tártara, cujo rosto se iluminou.
Khatoun! disse ela. Que te fizeram?
A jovem quis tomá-la nos braços para a apoiar contra o seu ombro e enxugar-lhe o sangue que corria ainda, mas Pippa repeliu-a brutalmente para trás:
Na toques! Primeiro, respondes às perguntas! Quem é?
Chama-se Khatoun. O meu pai comprou a mãe dela, que era tártara, quando ainda estava grávida. Ela nasceu no palácio e é a minha companheira desde sempre.
Uma escrava, ha?
Sim, mas eu nunca a considerei como tal. Eu... eu gosto muito dela. É preciso tratar dela, vê-se bem que está ferida.
A culp’é dela! Lutava com’um gato furioso quando Beppo, o meu irmão mais novo, lhe pôs a mão em cima. Até o arranhou. Então, ele deu-lh’uma cacetada. Mas agora é preciso saber: que faz ela aqui?
Primeiro, trata dela exclamou Fiora. Vê-se muito bem que ela está quase a morrer!
Khatoun, com efeito, tentara levantar-se, mas as forças faltaram-lhe e voltou a cair no chão, ao mesmo tempo que o seu pequeno rosto ficava esverdeado e as suas narinas se dilatavam... Sem responder a Fiora, Pippa inclinou-se, pegou nela pelos braços e pousou-a em cima do leito, resmungando que os trapos com que ela estava vestida iam estragar os lençóis. Mas era, incontestavelmente, uma mulher eficaz: num abrir e fechar de olhos, sob o olhar inquieto de Fiora, lavou a ferida, besuntou-a com uma pomada que estancou o sangue e depois passeou sob o nariz da doente um frasco de sais que deviam ser particularmente vigorosos, porque Khatoun saiu do seu desfalecimento com um espirro.
Pronto! disse Pippa. Como vês, não está morta! E agora, vai ter que falar!...
Um pouco de paciência! indignou-se Fiora. Dá-lhe qualquer coisa de beber! Um pouco de vinho!
Mas, palavra de honra, ela agora dá-m’ordens? rugiu o Mulherão, que foi, mesmo assim, buscar um frasco de vinho, do qual deu a beber uma taça a Khatoun, que, apesar de parecer completamente extenuada, recuperou o ânimo. Então, contou como, a partir do dia seguinte ao funeral do seu senhor se deslocou, disfarçada de mendiga, às imediações do convento de Santa Lúcia. O seu instinto, agudo como o de um animal fiel, dizia-lhe que Fiora estava em perigo naquela «santa» casa. Ficara por ali, não se afastando senão para comprar a pouca alimentação que as poucas moedas atiradas pelos passantes lhe permitiam...
Na tiveste sarilhos com a confraria dos mendigos? observou Pippa. Espantas-m’um pouco: os lugares diante das igrejas e os conventos são lugares de escolha. Isso paga-se, geralmente...
Não vi ninguém disse Khatoun erguendo para a imensa mulher um olhar cheio de inocência. Talvez o mendigo habitual estivesse doente?
Pouco provável! Essa raça é sólida. Ou se está vivo, ou se está morto. Não há meias-medidas. Mas, continua a tua história!
Pouco mais havia que contar. Na segunda noite de sentinela, a pequena escrava vira a porta abrir-se para a noite escura. Uns homens mascarados tinham-se aproximado e recebido um grande fardo escuro, que um deles tinha carregado aos ombros. Partiram silenciosamente e Khatoun tinha-os seguido até àquela casa, onde os tinha visto entrar. Tinha a certeza, sem poder explicar porquê, que aquele fardo não continha outra coisa senão Fiora. Compreendeu que tinha razão quando o tumulto colérico da cidade lhe disse que o julgamento não teria lugar porque a acusada tinha fugido... Desde então, ficara certa de que Fiora se encontrava naquela casa, onde vira entrar os dois homens...
Com os olhos brilhantes de esperança, Fiora seguiu apaixonadamente o relato da jovem tártara, mas não ousou, por prudência, fazer a pergunta que lhe queimava os lábios. Foi Pippa que a fez, negligentemente, como se se tratasse de uma coisa sem importância, mas brincando ao mesmo tempo com o grande alfinete que acabava de retirar da sua coifa.
Como é possível na teres pedido ajuda? Não procuraste socorro? Khatoun baixou os olhos e as duas mulheres puderam ver umas lágrimas correndo lentamente pelas suas faces cor de marfim.
Eu regressei ao palácio para procurar ajuda, mas não pude aproximar-me. Havia soldados por todo o lado, retendo a multidão. Uma multidão... que gritava «À morte!... À morte a feiticeira!» E havia mais no interior: Vasculhavam tudo e... e pilhavam; Ouviam-se os móveis, que eles atiravam para o pátio, a quebrar... Foi... terrível! E eu já não sabia para onde ir... e quem procurar. Pensei em donna Chiara, mas o porteiro expulsou-me. Então, voltei para aqui para tentar... já não sei o quê.
Com um nó na garganta, Fiora escutara aquelas frases que lhe anunciavam a sua total ruína e o fim das suas esperanças. Não era desgosto o que ela sentia o desgosto, tão cruel pela morte do seu pai, nem sequer lhe tinham dado tempo para o sentir e ela sabia que ele voltaria à carga mais tarde era simples fúria, uma raiva impotente. Tinham-lhe tirado tudo, deixando-lhe apenas a honra e, dentro de algumas horas, nem isso existiria. Seria profanada, aviltada, irremediavelmente suja, atirada para a lama, da qual o bom Francesco Beltrami quisera preservar um bebé inocente... A jovem acabou por explodir:
E Lourenço?... Lourenço de Médicis, o senhor de Florença, que fazia ele enquanto me procuravam para me matar, enquanto pilhavam a minha casa... enquanto massacravam, sem dúvida, a minha velha Léonarde? Onde estava ele, o Magnífico, o Todo-Poderoso? No seu jardim da Badia, ou de Careggi? A ver florir os loureiros e compondo versos de louvor à beleza? Ou ainda a ler algum livro raro? O meu pai tinha alguns admiráveis... mas talvez ele os tenha levado para a sua própria biblioteca?
A jovem gritava, parecendo uma daquelas carpideiras antigas, ao mesmo tempo que umas lágrimas amargas lhe corriam dos olhos... Vivamente, Pippa fechou-lhe a boca com a sua grande mão:
Cala-te! Queres que nos enforquem? Há gente nesta casa. As raparigas estão a trabalhar e os clientes a chegar.
Que tens tu a temer? perguntou-lhe Fiora com amargura. Eu acabo de te dizer que os Médícis não são tão poderosos como isso...
De qualquer maneira, têm espiões por toda a parte. É graças a isso que são os mais fortes, a isso e ao ouro! Não têm o sangue mais azul do qu’eu e ele sabe-o bem, esse Lourenço, que casou c’uma princesa romena p’ra arranjar semente de príncipe. Vamos, acalma-te! Se te dá prazer, eu compreendo-te. Custa a engolir.
É o mínimo que se pode dizer.
D’acordo, mas tu- ainda na perdeste tudo. Resta-t’esse palminho de cara... e o corpo. Quando eu t’ensinar a servires-te dele, verás que podes fazer grandes coisas com ele. Em Roma farás uma fortuna e talvez consigas, um dia, vingar-te. Por agora, deita-t’e dorme! Quant’a esta...
Que lhe vais fazer? exclamou Fiora já na defensiva e rodeando Khatoun com os braços.
Estava a pensar em matá-la, porque só os mortos é que na falam, mas talvez tenha outra coisa melhor p’ra ela...
O quê?
P’ra já, vou-lhe tirar esses lenços todos p’ra ver o qu’está por baixo! Uma escrava tártara custa caro. Ela sabe fazer o quê?
Cantar, dançar e tocar alaúde... Mas, proíbo-te que a ponhas no mercado de escravos. Ela é minha e tenho muita afeição por ela. Se nos separares, não conseguirás nada de mim. Hei-de conseguir matar-me!
Sem responder, mas com um suspiro cansado, Pippa mandou Khatoun levantar-se e começou a despi-la. Parecia um grande macaco ruivo em vias de descascar uma noz fresca. Demasiado fatigada para perceber, Khatoun deixou-se ir, mas as suas pernas vacilaram e os seus olhos fecharam-se, a despeito dos esforços que fazia para os manter abertos. Sem que ela parecesse aperceber-se, o Mulherão submeteu-a ao mesmo exame que fizera antes a Fiora. Esta esperou impacientemente que ela terminasse, mas, subitamente, sobressaltou-se, não acreditando no que os seus olhos viam e os ouvidos ouviam: sob as mãos de Pippa, que deslizavam docemente pelo seu corpo, Khatoun gemia e torcia-se, agora bem acordada a despeito de os seus olhos, meio transtornados, se fecharem. A garota ronronava como uma gata sob aquilo que se podia chamar carícias. E, subitamente, deixou-se cair de joelhos afastados e as mãos agarradas aos seios, enquanto os dedos de Pippa procuravam a sua intimidade. O jovem corpo de marfim distendeu-se como um arco, ofegando como um animal ávido, caiu com um grito e contorceu-se num longo espasmo... Pippa, que se ajoelhara, levantou-se, como se o que acabava de acontecer fosse a coisa mais natural do mundo.
A mulher lançou a Fiora, espantada, um olhar malicioso:
Deve saber mais do que dançar e tocar alaúde, esta pequena! Nunca fizeste amor com ela?
Tu és louca? exclamou Fiora, indignada. O amor só se faz com um homem... e com um homem que se ama!
Bem, ainda tens muita coisa p’raprender! Podemos prestar grandes serviços entre mulheres, serviços bem agradáveis, que fazem esquecer a brutalidade dos homens. São raros aqueles que sabem dar prazer. A maior parte comporta-se como soldados numa cidade conquistada. Ao passo que outra mulher... Queres que te mostre?
Não, obrigada! disse Fiora que, agora, olhava com um certo desgosto para o corpo inerte de Khatoun, que passara sem transição da voluptuosidade para o sono. A jovem tinha a impressão de que a sua pequena escrava acabava de ser emporcalhada... Pippa desatou a rir, baixou-se, pegou em Khatoun sem esforço aparente e atirou com ela para cima do leito:
Não faças essa cara! O que acaba d’acontecer é natural, especialmente com uma rapariga da Ásia. Fica com ela esta noite! Amanhã vou pô-la a trabalhar. Por agora, está de tal modo arrebentada que nem se lembrará do qu’acaba d’acontecer...
A mulher já ia a sair quando se virou:
Já agora! Amanhã à noite, tu também terás de trabalhar! E pode não ter graça nenhuma. Mas eu ajudo-te!
Nessa noite, Fiora não conseguiu conciliar o sono. A casa, entregue à orgia, ressoava como um tambor, ressoando também na cabeça da jovem. Ela ouvia as canções dos bêbedos, os gritos, os risos e os estertores e tudo aquilo lhe metia nojo. Por volta das duas horas, grandes pancadas de pés foram dadas na sua porta, mas a fechadura era sólida e ninguém entrou. A jovem também ouviu injúrias e gemidos dolorosos e compreendeu o que Pippa quisera dizer quando falara na brutalidade dos homens... Virando-se para o outro lado, viu Khatoun a dormir profundamente e sentiu invadi-la uma grande piedade. Ao mesmo tempo, recriminou-se por tê-la desprezado por alguns instantes. Pobre pequeno ser, que acabava de lhe demonstrar uma grande devoção, que se entregara voluntariamente ao frio, à chuva, à fadiga, ao medo, à rua, à noite e ao perigo de maus encontros para tentar, ela que era tão fraca e tão pobre, arrancar a sua patroa a um destino terrível! A ideia de que a partir do dia seguinte o Mulherão iria fazê-la entrar no seu inferno, a entregaria aos brutos que ouvia rir e injuriar-se, aterrorizava-a. Temia mais aquilo do que o seu próprio destino, porque se sentia agora com uma força que nunca suspeitara possuir. O ódio e a cupidez de Hieronyma tinham-na arrancado ao seu mundo fácil e elegante para a atirarem às feras e agora sabia que, se queria viver, teria de combater com as armas que lhe viessem parar às mãos. Mais ainda, se queria saborear um dia o sabor da vingança que lhe apertava o coração como algumas plantas más, cujas espiras mortais sufocam lentamente as suas irmãs, sem outra defesa que não as mãos do jardineiro. Mas nenhum jardineiro benfazejo viria libertar o seu coração, feito para o amor e que, pouco a pouco, estava a secar... a menos que a água da ternura viesse em seu socorro. Mas o único capaz de fazer esse milagre não queria saber e nunca quereria...
O canto do galo trouxe o silêncio à casa de Pippa. Fiora ouviu afastar-se o último bêbedo. O homem massacrava com uma voz atrozmente falsa uma canção de que Fiora gostava:
Eu andava à procura de uma flor
E vós tendes tantas no vosso branco rosto...
Ao passar por aquela voz soluçante, o romance era praticamente irreconhecível. Era a imagem daquilo em que se transformara a vida de Fiora: uma caricatura, um pesadelo, um escárnio do qual não via, do fundo da cloaca em que caíra, como poderia sair... e em que estado! Pelo menos tinha, agora, na pessoa de Khatoun, uma companheira de miséria. De uma vez só, as distâncias tinham desaparecido admitindo que as houvesse! entre ela e a jovem escrava, que se transformara numa irmã mais frágil, talvez, e que iria ser necessário proteger, mas com a qual seria possível estabelecer um plano de fuga, visto que Khatoun, pelo menos, sabia onde era a casa de Pippa.
Fiora só adormeceu com as primeiras luzes da madrugada, ao mesmo tempo que a casa ressoava com os roncos dos seus habitantes...
Um som de portas a bater e de água a correr acordou-a. Pippa, negligentemente vestida com uma espécie de roupão de seda azul-vivo, estava ocupada a deitar, na tina, o conteúdo das selhas de água que estavam diante da porta. Aparentemente, o lado estufa da estranha casa ia ter utilidade: Pippa preparava um banho.
Por entre as pálpebras semicerradas, Fiora observou-a. Descobriu que aquela mulher tinha a estrutura de um homem, à excepção dos dois seios de mármore branco que o traje descobria por instantes. Tinha uma musculatura nodosa, que lhe inchava os braços e os ombros, mas sem um grama de gordura e a pele, muito branca, parecia tão lisa como a de um bebé, salvo num dos ombros, onde uma feia cicatriz, vestígio de uma antiga facada, falava de uma existência onde o perigo tinha o seu lugar.
Quando achou que já tinha água suficiente, Pippa mergulhou nela o braço para controlar a temperatura, desapareceu por um instante e regressou com uma caixa, da qual tirou um punhado de qualquer coisa e atirou-a para dentro da tina. O odor familiar da resina de pinheiro e das flores do loureiro Léonarde, rendida aos hábitos florentinos, punha sempre aqueles perfumes nas lavagens para perfumar a roupa encheu o quarto. Mas não se tratava de uma barrela...
Sem mesmo se preocupar em ver se ela estava acordada, Pippa tirou Fiora da cama e mergulhou-a na água até aos ombros, não sem que esta protestasse:
Não era mais simples dizeres-me que me levantasse e entrasse no banho? perguntou ela.
Não é bem assim. Há pessoas que na gostam de se lavar. Assim, evito discussões.
Mas eu gosto de me lavar e Khatoun também. Em nossa casa há uma grande estufa. Eu tomava lá banho todos os dias!
Pippa fungou com um ar desconfiado:
Isso não é de mais? Um banho todos os dias deve gastar a pele!
Vês muito bem que não. E ouvi dizer que Zafolina, a famosa cortesã que é disputada pelos homens mais ricos da cidade, tomava, às vezes, dois!
Desta vez, Pippa ficou completamente siderada. Segundo a sua ética pessoal, era impensável que a filha de Francesco Beltrami pudesse saber que existiam cortesãs. Fiora explicou-lhe, então, que Zafolina era tão bem-educada, tão discreta, tão piedosa e tão generosa, que não era raro ser recebida nas melhores casas. Admiravam-lhe as toilettes, as jóias e gostavam de a ouvir falar, ou cantar. Não tinha nada a ver...
Com o que se passa aqui? completou Pippa enquanto ensaboava vigorosamente a jovem: Bem, sabes, é essa vida qu’hás-de ter se fizeres o qu’eu te digo. Simplesmente, há-de ser ’inda melhor, porque será em Roma e tu hás-de cantar p’ro Papa! Havemos de ser ricas com’a rainha do Sabat...
Do Sabá! rectificou maquinalmente Fiora, mas o Mulherão não a ouvia. Enquanto lavava meticulosamente os cabelos da sua nova pensionista, sonhava acordada, vendo-se já a dominar os negócios de uma Fiora coberta de ouro e jóias e com todo o Sacro Colégio a seus pés. Mas, para dizer a verdade, a jovem não a escutava.
Fiora reflectia enquanto saboreava aquele banho quente e perfumado, do qual tinha grande necessidade. Um prazer de que não desfrutava há muitos dias, porque era costume não ir aos banhos quando a morte passava por uma casa...
Depois do banho, no qual Khatoun a substituiu depois de ter recebido ordem para se desenvencilhar sozinha, Pippa envolveu Fiora num lençol e instalou-a de costas para o braseiro para que secasse os cabelos:
Vou mandar massajar-te e perfumar-te daqui a pouco! declarou ela abandonando o quarto para grande satisfação de Fiora, que se aproximou de imediato de Khatoun, ocupada a ensaboar-se com um cuidado maníaco.
Nunca te agradecerei o suficiente pelo que fizeste disse-lhe ela. Podes dizer-me, agora, onde estamos?
No bairro San Spirito, na outra margem do Arno. A casa fica por trás da de um mercador de velas, a meio de uma pequena ala que desemboca em frente do grande palácio inacabado...
O palácio dos Pitti? Aquele cuja construção foi abandonada?
É isso. Entra-se aqui por um corredor e não há nenhuma janela para a rua. Há é uma lanterna vermelha por cima da porta.
Por outras palavras, vai ser difícil sair daqui, senão impossível. Quem nos virá procurar aqui?
De qualquer maneira, há uma pessoa que sabe... Khatoun baixou a voz vários tons e agitou a água do banho para melhor a encobrir. Um velho mendigo que conheci perto do convento. Ele foi muito bom, muito generoso. A mulher tinha razão: é proibido mendigar sem autorização dos outros, mas ele deixou-me. Deu-me um pouco de protecção e estava comigo quando os homens te trouxeram para aqui...
Disseste-lhe porque te tinhas instalado junto de Santa Lúcia?
Disse.
E ele ajudou-te, mesmo assim?
Ajudou, mas depois aconselhou-me a voltar para casa. Mas eu não quis. Então, ele foi-se embora, dizendo-me que, se ficasse ali, ainda me prendiam... ”
Tristemente, Fiora voltou para o seu lugar junto do fogo. A ténue esperança que concebera evaporara-se como o mendigo na noite. Ele tivera piedade de Khatoun, mais nada! Basear uma esperança no interesse de um ser tão desprovido como um mendigo era pura loucura. Teria de tentar encontrar outra coisa. Mas o quê?
Quando Pippa regressou, lavou os cabelos de Khatoun, mandou-a sair da água, tirou a rolha da tina para a esvaziar e depois, virando-se para Fiora, fê-la estender-se em cima do leito para lhe untar o corpo com um óleo perfumado, enquanto, por sua vez, Khatoun se secava. Com o nariz franzido, Fiora cheirou o odor que se escapava das mãos do Mulherão.
Que perfume é esse? O que eu usava era feito de lírio-silvestre, verbena e um pouco de jasmim.
Isso deve cheirar bem, mas na deve valer grande coisa no amor. Isto é nardo e custa muito caro, p’ra qu’estejas p’rai a fazer caretas. Se souberes usá-lo, os homens ficam malucos...
Bruscamente, Fiora agarrou na mão de Pippa, que se aproximava do seu ventre.
Continua a ser... esta noite?
Qu’aquele que te quer te espera? Sim, mas não me perguntes o nome dele: não to direi. N’altura saberás...
E ela disse Fiora apontando com o queixo para a sua antiga escrava. Vais mesmo atirá-la para o inferno que eu ouvi a noite passada, dos bêbedos e dos brutos?
Na te preocupes! Vou dá-la a um que saberá apreciá-la. Uma coisinha como ela vale muito e eu posso arrancar umas massas. Além disso, ela gosta do amor...
Não tens medo que a reconheçam e que através dela venham até mim? As escravas tártaras são muito raras e a minha pode ser conhecida. Deixa-a comigo. Mais tarde, leva-la comigo para Roma. O cardeal Borgia é, certamente, suficientemente rico para a comprar, ou eu pago-ta quando tiver ganho bastante ouro...
A Fiora custava-lhe falar aquela linguagem de cortesã, mas, para salvar Khatoun de um destino terrível, teria negociado com o diabo em pessoa.
Ela na pode ficar contigo esta noite respondeu Pippa, massajando energicamente os ombros e o peito da sua pensionista. E depois, ela há-de passar uma boa noite. O cliente a quem a vou dar é um senhor muito generoso e n’é daqui. Portanto, n’é preciso ter medo...
Fiora compreendeu que não havia nada a fazer e calou-se, deixando Pippa prosseguir com a sua massagem. O seu corpo cheirava tão bem como a botica de Landucci quando ele recebia um carregamento de perfumes. Ao cabo de um momento a jovem perguntou com amargura:
E eu, também devo esperar o que tu chamas uma noite agradável? Pippa parou. Enxugando maquinalmente as mãos ao vestido, suspirou:
Não. Tu pareces-m’uma rapariga bastante corajosa e eu vou-te dizer a verdade e depois mais vale estar prevenida. Tu vais passar um mau momento porque... porqu’ele é meio louco. Mas eu estarei por perto... ou, pelo menos, não estarei longe, p’ra evitar o pior. Quanto a ti, terás de pensar no qu’eu te prometi... na tua futura fortuna!
O ouro parecia, decididamente, representar para aquela mulher o bem supremo, o fim a atingir e Fiora, que por um instante pensara que talvez fosse possível amolecer-lhe o coração, renunciou. Tinham pago a Pippa para que ela cumprisse a sua vil tarefa e se bem que tratasse a sua prisioneira com uma certa doçura, era unicamente porque, ao vê-la, descobrira que com alguma delicadeza podia conseguir tirar dela mais ouro do que pensara.
O dia decorreu com os cuidados que Pippa não cessava de lhe prodigalizar, uma refeição ligeira e algumas horas de repouso. Quando chegou a noite, o Mulherão apareceu para vestir ou não vestir Fiora com uma ampla túnica de musselina branca completamente transparente e pentear-lhe os cabelos com pequeninos ramos de jasmim e flores-de-laranjeira. Khatoun, com um vestido de seda vermelho que lhe deixava os seios livres e com uns sequins nos cabelos, tinha desaparecido...
Até pareces uma noiva recém-casada! disse Pippa contemplando a sua obra. Vais-lh’agradar. Ele é um tipo que gosta, sobretudo, de virgens. Gosta d’as abrir e já lh’arranjei algumas. Desinteressa-se depressa delas, mas tu és diferente: és tão bela!
Fiora quase disse que já não era virgem, mas achou que isso não a salvaria. Se aquele homem se tinha dado a tanto trabalho para a ter era porque a queria, por uma razão ou por outra. Procurara, em vão, imaginar quem poderia ser esse desconhecido, Mas, agora, tudo o que esperava era que ele fosse um ser fatal, sem dúvida, mas talvez acessível a certos sentimentos humanos e, esforçando-se por reforçar a sua coragem, esperou, meio deitada na cama aberta e à luz doce das velas que lhe fazia brilhar os cabelos e lhe acariciava a pele aveludada.
Mas, quando a porta se abriu sob a mão de Pippa para dar passagem ao «cliente», Fiora lançou um grito de horror e, saltando da cama, refugiou-se nas cortinas, que fechou sobre si: aquele que acabava de entrar era Pietro Pazzi, o corcunda, o coxo, a criatura horrível que Hieronyma dera à luz, o rapaz que ela lhe queria dar como marido...
Ele só tinha 20 anos, mas, na realidade, não tinha idade, porque as garras do vício já lhe tinham marcado o rosto de tez macilenta. Tinha um longo nariz achatado na ponta, os cabelos ralos e lisos, umas grandes orelhas, o queixo em forma de galocha e olhos pequenos e negros, dos quais um se fechava por instantes quando um tique habitual lhe erguia um dos lados do rosto. Apenas os dentes, muito brancos, possuíam alguma beleza.
Até ao momento, Fiora sempre tivera pena de um rapaz tão desgraçado e que a ironia da sorte fizera com que nascesse na cidade da Europa onde a beleza tinha mais importância. Aliás, nunca era visto com os rapazes da sua idade, cuja crueldade não tinha senão troça e sarcasmos para a sua deformidade. As raparigas fugiam dele, pelo menos aquelas a quem o seu nome, ou a sua fortuna o permitiam. Chiara detestava-o e tinha, até, medo dele. A jovem dizia que o diabo é que o tinha engendrado e fugia de pôr os pés no palácio Beltrami quando sabia que o jovem Pazzi lá ia. O que era raro, porque ele não saía muito da propriedade do seu avô, em Montughi, onde se dizia que se dedicava à alquimia e à criação de cães ferozes.
O terror de Fiora pareceu diverti-lo, porque desatou a rir.
Então, minha bela noiva, é este o acolhimento devido a um apaixonado? Dir-se-ia que te meto medo?
Aquela voz sarcástica devolveu a Fiora a cólera, que o medo tinha expulsado por um instante. Sem abandonar o abrigo das cortinas, ripostou:
Eu nunca tive medo de ti e tu sabe-lo muito bem. Creio, até, que sempre fui amável contigo...
Eu sei, eu sei! Amável... sim. No entanto, recusaste casar comigo. A tua «amabilidade» não vai até tal ponto, não é verdade?
Não se pode dar a mão sem dar o coração. Sinto-me desolada, Pietro, mas não te amo.
Não fiques: eu também não te amo... aliás, creio, até, que te detesto, mas queria ter-te.
Sê franco! Era o meu dote que tu querias e depois a fortuna do meu pai...
Não te deprecies tanto! disse ele com uma risada de troça, que passou como uma lima pelos nervos tensos da jovem. É evidente que queria a fortuna dos Beltrami e ela pertence-me, visto que tu não és nada. Mas queria-te, para te ensinar a viver à minha maneira. Para te submeter a todos os meus desejos, a todos os meus caprichos... Ah, a bela vida que eu te teria proporcionado, acorrentada dias e noites à minha cama, como uma cadela... Nunca viste os meus cães, pois não?... É pena... São belos, fortes e lambem-me as mãos para conseguirem carícias. Terias vivido com eles, partilhando a sua ração... Até já tinha mandado fazer uma bela coleira de couro bordada a prata para esse lindo pescoço. Ah, como teríamos sido felizes os dois! Já te via a dormir nua no tapete do meu quarto, ao lado de Moloch, o meu molosso favorito, vindo a mim ao menor estalo do chicote... Este mesmo chicote, estás a ver?... E de sob o manto negro que trazia negligentemente atirado para cima dos ombros tirou uma longa correia de couro entrançado, que fez estalar. Mas ainda não é tarde, sabes? Primeiro vou casar contigo à minha maneira, ali, naquela cama de bordel... e depois, veremos como havemos de realizar esse belo sonho... Mas, agora, vem, minha doce querida, vem ao teu senhor!
Ele era louco, não havia dúvida. Com os olhos esbugalhados e um fio de baba a escorrer da boca, Pietro era aterrorizador, demoníaco...
Nunca! gritou Fiora, desvairada. Proíbo-te que te aproximes de mim!
Proíbes-me? Tu podes proibir seja o que for ao teu senhor? Vais-te arrepender... Eu disse aqui! Aqui, de joelhos!
Pippa, assustada com a reviravolta dos acontecimentos, interveio:
Um pouco de paciência, senhor! Serve-te desse chicote mais tarde, quando ela estiver mais habituada a ti disse ela com uma voz mansa, que pretendia fosse suave. Pensa que tens diante de ti uma rapariga doce, uma virgem pura, que nunca imaginou, sequer, as alegrias de uma união contigo... Começa por tomá-la! Depois, estou certa, ela ficará doce... e submissa!
O olhar de Pietro vacilou. Respirou duas ou três vezes com muita força e deixou cair o chicote:
Tens razão. Celebremos, primeiro, as bodas! Traze-la aqui! Pippa não se fez rogada. A despeito da defesa desesperada de Fiora,
arrancou-a ao seu abrigo precário e forçou-a a deitar-se na cama, onde a jovem imediatamente se enroscou. O seu coração batia-lhe com toda a força no peito, porque, com um grito de raiva, Pietro voltara a pegar no chicote e fustigava-lhe os ombros e o dorso que ela lhe oferecia. Ele ia voltar a fustigar, mas o Mulherão, compreendendo que ele era capaz de matar a sua preciosa pensionista, deteve-lhe o braço.
Já t’aconselhei a teres um pouco de paciência, senhor! É inútil bateres: o sangue sujar-te-ia. Eu seguro-ta!
Segura-a bem, então! Ela é capaz de me arranhar!
Não receies! Eu trato disso. Despe-te! e, em voz baixa, sussurrou ao ouvido de Fiora: Por amor de Deus, deixa-t’ir! El’é capaz de te matar!
Que Pippa invocasse o amor de Deus num tal lugar e num tal momento era significativo da sua inquietação, mas não precisava da ajuda de ninguém: precisou de pouca força para quebrar a resistência da infeliz, que se viu estendida de lado na cama com os ombros e os braços solidamente seguros.
Entretanto, Piero tirara o seu grande manto, que atirou para um canto:
Eu nunca me dispo para desflorar uma rapariga. Elas acham esta roupa mais agradável. Excita-as!
O gibão que ele trazia estava, com efeito, constelado de pequenas placas de ferro pontiagudas, que, sem causarem ferimentos graves, deviam arranhar cruelmente a pele das suas companheiras.
Por todos os diabos! sussurrou Pippa, estupefacta. No entanto, sabia que o filho de Hieronyma não era normal e, na sua casa, já encontrara muitos homens cruéis, mas aquilo confundia-a.
Vendo que ele se aproximava, Fiora fechou os olhos com força e apertou nervosamente as pernas, mas o monstro abriu-lhas com um violento golpe de joelhos e depois, à-vontade, entrou nela brutalmente... mas retirou-se de imediato arranhando os seios e o ventre da jovem, que não conseguiu reter um gemido:
Ela não é virgem! urrou ele.
Ela não é virgem? repetiu Pippa, aturdida. Deves’tar enganado, senhor! Entraste com muita força!
Eu não sou estúpido, Pippa e sempre soube quando uma rapariga é nova, ou não! Esta já serviu... mas ela vai-me dizer a quem! Ouves, putazinha porca? Com os teus grandes ares, não és melhor do que as que se arrastam pelas tabernas do rio! Mas, agora, vais falar!
E atirou-se a ela de novo, apertando-lhe a garganta e começando a apertar, a apertar. Pippa lançou um grito:
Como queres tu qu’ela fale s’a estrangulas? Deixa-a... Estou-te a dizer p’ra deixares!
E o Mulherão já segurava no monstro pelos punhos quando, subitamente, surgiu um homem sem que ela pudesse adivinhar de onde, um homem vestido com uns trapos que lhe davam o ar de um rato careca, tão grande e tão negro que ela pensou ver o diabo em pessoa. E mal teve tempo de aperceber o brilho do punhal com que, por duas vezes, ele feriu Piero no dorso...
O corcunda lançou um grito e abateu-se. As suas mãos largaram a presa mesmo a tempo para Fiora, que sufocava. Pippa, que estava de joelhos no outro lado da cama para melhor imobilizar a jovem, ergueu-se penosamente. Os seus olhos espantados iam do corpo inerte para o homem vestido de farrapos, que, com uma mão e sem esforço aparente, agarrou no morto pela gola do gibão e afastou-o de Fiora, sobre a qual estava estendido pesadamente, para o atirar por terra com nojo, como uma coisa imunda. O corpo da jovem apareceu coberto de pequenas arranhadelas, de onde corria sangue; o homem não se perturbou. Com as asas do nariz meio fechadas, Fiora respirava com dificuldade...
Fizeste-a linda! murmurou Pippa, que olhava com horror para a mancha de sangue a aumentar nas costas de Pietro. E, já’gora, quem és tu?
Alguém que poderia mandar-te enforcar... ou, até, queimar, se este monstro tivesse matado madonna Beltrami em tua casa. Já é suficientemente grave ter prisioneira uma mulher raptada do asilo de um convento disse tranquilamente Demétrios, que apalpava com suavidade o pescoço dorido, para se assegurar de que não havia nada quebrado. Tu és cúmplice. Seguravas-lhe os braços enquanto ele a estrangulava.
Não o teria deixad’ir até ao fim! Juro por...
Não jures, Pippa! É tempo perdido. Farias melhor se tratasses dela. Ele pô-la num lindo estado!
O médico grego tirou de sob o seu vestuário imundo um pequeno frasco, que aproximou dos lábios brancos de Fiora; umas gotas deslizaram-lhe para a boca e nos segundos que se seguiram todo o corpo da jovem foi percorrido por um longo arrepio. Por fim, Fiora abriu os olhos e olhou com imensa surpresa para o rosto barbudo inclinado para si. Reteve a tempo uma exclamação, porque Demétrios lhe pousou rapidamente um dedo sobre a boca:
Isso vai melhor?
Sim sussurrou ela. Sim... obrigada!
Entretanto, Pippa mexia-se. Acabou de arrancar o que restava da túnica de musselina, lavou o corpo com água de laranjeira e foi buscar um pequeno púcaro, do qual tirou uma noz de pomada que espalhou por todos os ferimentos, prodigalizando à vítima palavras tranquilizadoras, sem por isso deixar de espreitar, pelo canto do olho, o seu estranho visitante:
Pronto, minha pomba! Não é nada! Uma boa noite de sono em cima disto e desaparece logo!
Estou de acordo com a boa noite de sono disse Demétrios mas não aqui! Veste-a com o que encontrares à mão. Eu vou levá-la!
Subitamente, Pippa reencontrou toda a sua combatividade. Pondo-se nos bicos dos pés, fez frente ao grego, de mãos nas ancas, formidável e ameaçadora:
Levas mas é nada! Já me fizeste muito mal ao matar assim um bom cliente. Mas ela, sou eu que fico com ela! ’tás a perceber? No fim de contas, quem és tu? Na passas d’um mendigo e eu tenho aqui um tipo ou dois que me podem muito bem ajudar. Sem contar que posso gritar oh-da-guarda. E hei-de dizer a verdade: que mataste um nobre e é a ti qu’hão-de enforcar! E pensando bem... por que não hei-de eu gritar já?
E ia gritar, mas Demétrios estendeu um braço, os dedos separados dirigidos aos olhos da mulher, que ficou de boca aberta. Sem mudar de posição, o grego avançou um passo e Pippa recuou um passo e assim sucessivamente até que ela ficou encostada à parede, tão hirta como uma prancha. Os olhos negros que Demétrios dardejava sobre ela flamejavam como velas.
Tu não vais chamar ninguém, Pippa disse ele com uma voz calma e sem deixar de olhar para ela. Pelo contrário, vais obedecer-me... Ouves a minha voz?
Sim... sim, ouço a tua voz! Fala! Obedecerei! A voz da mulher estava diferente, longínqua...
Então, ouve: vais vestir esta jovem e depois vais acompanhar-nos até à porta. De seguida, chamarás o teu irmão e quando a tua casa estiver vazia, levareis este corpo até ao rio, para onde o atirareis depois de o terdes lastrado com uma ou duas pedras grandes. Depois, regressareis. Só então acordarás, mas terás esquecido tudo do que acaba de se passar aqui. Quanto à tua prisioneira, conseguiu fugir enquanto os bêbedos que entraram aqui lutavam uns com os outros...
Toda a sua força parecia concentrada no olhar e na mão que pregava Pippa à parede. O médico destacava claramente cada sílaba, como para melhor as fazer entrar no espírito da mulher. Esta tinha os olhos muito abertos e estava absolutamente imóvel. Parecia uma grande estátua, para a qual Fiora olhava com estupor. Entretanto, Demétrios, após um curto silêncio, perguntou:
- Compreendeste as minhas ordens?
Sim.
Executá-las-ás? Sem faltar nada?
Sem faltar nada...
Então vai, obedece! acrescentou ele com uma voz forte, deixando cair lentamente o braço. Pippa vacilou, como se lhe faltasse subitamente um apoio e meteu mãos à obra com gestos bizarros de autómato. Vestiu Fiora que não ousava mexer-se, vestiu-lhe a roupa que a jovem trazia à chegada e que tirou de uma arca: a sua camisa, o hábito branco de noviça e as sandálias de corda entrançada. Demétrios pegou então no manto negro que Pietro abandonara, entregou-lho para que ela envolvesse a jovem e estendeu a mão a esta.
Vem! disse ele. E não temas! Ela vai, tal como lhe ordenei, acompanhar-nos até à porta...
Pippa, com efeito, tão indiferente como se estivesse só, acendeu uma vela no candelabro e dirigiu-se para a porta. Mas Fiora resistiu à mão que a levava:
E Khatoun? Eu não posso partir sem ela!
A pequena tártara que te é tão devotada? Onde está ela? Fiora fez um gesto vago:
Não sei. Algures nesta casa, com um homem... um estranho. Pippa disse que ia dá-la a alguém que a apreciaria... É preciso encontrá-la!
Demétrios franziu as sobrancelhas:
Esta noite é impossível! Esta casa é grande e não podemos vasculhar tudo. Além disso, não posso adormecer uma multidão como adormeci esta mulher. Temos de partir sem ela.
Não! disse Fiora. Recuso-me a abandoná-la. Deus sabe o que lhe pode acontecer, entregue a esses demónios!
Não vejo que possas fazer grande coisa para a proteger. Mas, descansa: ela não arrisca nada. Pippa sabe muito bem o valor de uma rapariga bonita. Aliás, amanhã mandarei buscá-la. O Mulherão não resiste muito tempo ao ouro e vai tê-lo. E agora vem, temos pouco tempo!
Pippa esperava na soleira da porta como uma criada bem ensinada. Quando Demétrios e Fiora se aproximaram, pôs-se em marcha precedendo-os e levando na mão a vela para iluminar o caminho. Percorreram um corredor mergulhado na noite e que desembocava num pátio interior, o mesmo para onde dava o quarto-estufa de Fiora. Ouviram-se gritos e risos quando passaram sob uma abóbada onde desembocava uma escadaria. Estavam tão próximos que a fugitiva sentiu uma angústia ao pensar que podia abrir-se uma porta, deixando sair alguns dos que, lá dentro, faziam uma verdadeira bacanal.
Não tenhas medo sussurrou Demétrios. Com ela não temos nada a temer. Aliás, ela evitou a grande sala... E já estamos quase lá fora...
No fim de um último corredor, Pippa abriu uma porta e afastou-se para deixar passar os seus companheiros. Em seguida, voltou a fechá-la. Com uma alegria infinita, Fiora olhou para o grande céu azul-escuro, ponteado de estrelas, no qual o intervalo das silhuetas das casas encostadas umas às outras da ruela formava fitas cintilantes. A jovem respirou a plenos pulmões o ar húmido que arrastava odores de peixe, azeite e madeira queimada e apertou com mais força a mão de Demétrios:
Como agradecer-te... começou ela, mas ele fê-la calar-se.
Mais tarde teremos todo o tempo para conversar. Por agora, temos de nos abrigar até ao fim da noite. Ao nascer do dia, quando as portas forem abertas, levar-te-ei para minha casa, em Fiesole...
Onde vamos?...
A casa do amigo a quem devo este espólio... e outras coisas...
Os dois saíram da ruela com infinitas precauções e só quando tiveram a certeza de que o passo da milícia se afastava, em lugar de se aproximar. Na sua frente estendia-se o que parecia um amontoado de ruínas e que, de facto, era um estaleiro inacabado: o de um grande palácio que só tinha o rés-do-chão e uma parte do primeiro andar, mas que não deixava de ser impressionante pelas pedras enormes, meio desbastadas, rugosas e bárbaras da sua construção. As pessoas do bairro não se aproximavam dele porque tinha má fama. O homem que o quisera construir, Luca Pitti, um dos homens mais ricos de Florença, pedira os planos a Brunelleschi, o arquitecto genial que tinha erigido o Baptistério e coroado o Duomo com a sua enorme bolha cor de coral. Queria-o como o maior, o mais rico da cidade, à altura da sua ambição desenfreada. Após a morte de Cosimo, o avô de Lourenço, Pitti conspirara com Soderini, o administrador municipal de então, para arrancar o poder das mãos mais fracas de Piero o Gotoso, filho de Cosimo, mas a conspiração fracassara e Pitti, arruinado e exilado, morrera longe da cidade amada. A imaginação popular, que não se satisfazia com um fim simples, pretendia, em voz baixa, claro, que os restos mortais de Luca Pitti, assassinado pela gente dos Médicis, estavam enterrados sob o seu palácio inacabado e como as lendas têm vida longa, as mulheres benziam-se ao passar pelos muros enormes e pelas grandes arcadas vazias, para onde abriam os olhos cegos das grandes janelas rectangulares. Ninguém se atrevia a ir buscar uma daquelas pedras abandonadas, que diziam malditas. Aquilo durava há 35 anos...
No entanto, Demétrios arrastou a sua companheira pelo meio do estaleiro abandonado sem se deixar impressionar pelo temor que ela manifestava.
Uma rapariga cujo espírito foi iluminado pela luz grega não se deixa perturbar por uma lenda idiota! disse-lhe ele à guisa de conforto...
Um arrastando o outro contornaram o palácio, encontraram um esboço de jardim que deveria estender-se sobre uma colina e entraram por uma das portas que nunca tinham recebido batentes. Tacteando na
1 O palácio Pitu foi recuperado e a sua construção terminada um século mais tarde por Cosme de Médias
escuridão, Demétrios viu um fino raio de luz filtrando-se por baixo de um conjunto de pranchas e bateu segundo um código particular. Do interior, uma voz áspera perguntou:
Quem vem lá?
Mendici
Aquilo que fazia de porta abriu-se, descobrindo o que deveria ter sido uma divisão de serviço. A luz provinha de um pequeno fogo aceso no meio, no solo de terra batida. Quanto àquele que acolheu os visitantes, era um homenzinho esquelético, cujo rosto pergaminhado estava ornamentado com uma barba rala e onde se enquadravam uns longos cabelos grisalhos. O homem deitou uma rápida olhadela aos visitantes e voltou a acocorar-se junto do fogo para mexer algo dentro de um pote de argila:
Parece que conseguiste?
Sim. Graças a ti, Bernardino. Mas foi mesmo a tempo. Tive de matar Pietro Pazzi. Tinha sido ele que tinha mandado raptar Fiora e ia estrangulá-la quando cheguei. A esta hora Pippa e o irmão devem estar a atirá-lo ao Arno com algumas pedras, para evitar que volte a subir.
Menos um bandido! aprovou o velhote. Quanto a ti, rapariga, sê bem-vinda! Estás em casa de um amigo... aliás, tu conheces-me, porque me deste esmola várias vezes.
A jovem lembrava-se, com efeito, daquele velhote, que mendigava sempre perto das portas do Duomo, lamuriando sempre a mesma queixa...
Agradeço-te disse ela mas... eu pensava que eras cego e surdo?
Ele riu docemente e depois explicou com orgulho que era preciso uma grande experiência para conseguir não mostrar senão o branco dos olhos e que não era difícil parecer surdo.
E agora podes dormir um bocado, porque deves precisar. A minha cama é esta acrescentou ele apontando para um dos montes de trapos que serviam de móveis à sua casa. Quando o galo cantar, acordo-te...
Tu acolhes-me em tua casa e, portanto, arriscas a vida. Suponho que sabes isso?
1 Mendigos
Arrisco menos do que imaginas, garota. Não ligues ao cenário miserável em que vivo, porque disponho de um poder que faria inveja a muitos príncipes. A confraria dos mendigos, a mais numerosa que há, é reconhecida em todo o Mediterrâneo e para lá dele através da única palavra MendicHe eu reino sobre os de Florença: os estropiados verdadeiros ou falsos, os carteiristas e os mendigos de toda a espécie. É um exército cujos golpes, por serem dados muitas vezes nas trevas, não são menos temíveis. Quando estala um motim, nós estamos sempre no coração da agitação. Mas, vê lá tu, esta vida que me é tão cara devo-a ao homem que te acompanha, porque o seu saber salvou-me. E Bernardino paga sempre as suas dívidas!... E agora dorme e tapa as orelhas, porque nós temos de conversar, o grego e eu...
Estendida sobre o monte de trapos malcheirosos como sobre as almofadas mais suaves, Fiora, esquecendo o seu corpo arranhado e a garganta dorida, caiu quase de imediato no sono mais profundo. A alguns passos dela, acocorados um em frente do outro de cada lado da fogueira como estranhas aves nocturnas, o médico grego e o rei dos mendigos entretiveram-se em voz baixa com os seus negócios subterrâneos até às primeiras luzes da madrugada. Quando o galo fez ouvir o seu canto, Demétrios tirou de sob os seus farrapos um punhado de florins, que pousou na garra do seu companheiro. Em seguida levantou-se e abriu os longos membros:
Achas que consegues? perguntou ele.
O outro encolheu os ombros e passou as moedas de ouro de uma mão para a outra com deleite:
É o bê-á-bá da profissão. Dentro de duas horas, o clamor de que a rapariga não fugiu do convento e foi, em vez disso, raptada correrá por todos os adros e mercados com tanta velocidade como o vento suão.
Tens a certeza que nem tu nem os teus irmãos se arriscam a cair nas mãos do Bargello?
Não se pode parar o vento. Nasce sem que se saiba porquê nem de onde vem e passa, mas nós faremos com que não se extinga demasiado depressa. Não tenhas receio! Nós somos hábeis e as comadres ganharão bem o seu dinheiro.
Demétrios abanou a cabeça, sorriu e foi acordar Fiora. Uma hora mais tarde, depois de terem atravessado toda a cidade no meio de carroças de legumes e de criação a caminho do mercado, transpuseram, perante a indiferença geral e sem que os soldados de guarda lhes concedessem um olhar, a porta Pinti que dava para Fiesole, percorria o muro do convento dos Camáldulos e o do maravilhoso jardim de la Badia, construído outrora para Cosimo de Médícis.
O ar da manhã era leve, puro e transparente, com aquela bela luz irisada que anuncia um dia de sol, mas o coração de Fiora, se bem que livre do medo, permanecia pesado enquanto caminhava junto de Demétrios na poeira do caminho tantas vezes percorrido outrora ao trote do seu cavalo ou no alegre carrilhão das campainhas de uma mula. Lá em cima estava a sua casa, da qual podia ver o grande telhado trigueiro, a doce casa entre os loureiros, onde Philippe lhe tinha dado algumas horas de felicidade maravilhosa e a jovem pestanejou sob a luz, como uma ave nocturna projectada, subitamente, para a luz do Sol. As coisas já não tinham o mesmo rosto nem a mesma cor e Fiora via-se uma estranha, uma rainha deposta transformada numa mendiga no meio daquela bela região que ela amava com todas as fibras do seu corpo, com toda a ternura do seu coração e que não a reconhecia.
Demétrios, que a observava pelo canto do olho, ao vê-la tropeçar numa vala deixada pelas últimas chuvas, segurou-a pelo braço e não a largou mais:
A encosta é rude e o caminho parece-te amargo, Fiora Beltrami, porque caíste do alto e as tuas feridas ainda sangram, mas fica a saber que aquele que quer atingir o topo da montanha não pode abster-se de subir a encosta.
Crês que ainda pode existir um topo para mim? Estou cansada, Demétrios...
Já to disse: ainda sangras, mas as cicatrizes tornam a pele mais dura. Eu vou curar-te e poderás, então, ver de novo o horizonte. Descobrirás que terás vontade de... amar e ser amada.
Nunca! Nunca mais voltarei a amar! Há demasiada amargura no meu coração para que o amor possa entrar de novo nele, um dia. Tudo o que desejo, agora, é vingar o meu pai, a minha mãe e vingar-me a mim mesma. Pensa que me tiraram tudo, que a minha casa foi pilhada, devastada, que talvez tenham matado aquela que velou pela minha infância, a minha querida Léonarde, na qual mal ousava pensar naquela casa de onde tu me tiraste...
Posso assegurar-te que ninguém foi morto quando o palácio Beltrami foi invadido. Os criados que não fugiram, dispersaram-se.
Bernardino, o mendigo, informou-se. A tua Léonarde encontrou um refúgio.
Onde? Todas as portas se lhe devem ter fechado, até as daquela Colomba, a governanta da minha amiga Chiara Albizzi. A menos que... que tenha podido ir para casa da sobrinha dela, a Jeanette, que casou com um fazendeiro do Mugello! Oh! Se eu pudesse ter a certeza?
Eu hei-de encontrá-la, descansa! Quanto à vingança, é natural que penses nela.
Eu só penso nela! Mas já não tenho nada para me ajudar a persegui-la, nada senão estas duas mãos acrescentou ela com amargura, estendendo diante de si os seus dedos esbeltos que, com as unhas quebradas, pareciam incrivelmente frágeis para tão pesada tarefa.
Não és capaz de confiar em mim? As armas que te faltam, encontrá-las-emos juntos. Não percas a esperança! Eu sei que a estrada é longa e que te reserva muitas surpresas. Tenho muito que te ensinar...
Fiora olhou para o seu companheiro com curiosidade:
Tu és um homem estranho e não é a primeira vez que reparo nisso. Eu não esqueci a tua profecia, na noite do baile, no palácio Médicis...
Nem, espero, a promessa que te fiz, de te socorrer se precisasses?
Não a esqueci... mas não acreditava nela. Perdoa-me, porque acabas de me salvar de um destino bem pior do que a morte e nunca te poderei agradecer o suficiente. No entanto, confesso-te, metes-me um certo medo. Onde arranjaste tu esses poderes estranhos? Ontem, com um simples gesto, transformaste o Mulherão numa criada obediente e...
Chhh! Falaremos disso mais tarde. Nunca se sabe para onde o vento leva as palavras... Ficas apenas a saber o seguinte: podemos apoderar-nos facilmente do espírito de um ser quando ele está sob os efeitos de uma emoção...
Os dois prosseguiram o caminho em silêncio. Abandonando a estrada, Demétrios escolheu uma vereda íngreme entre muretes de pedra seca, que retinham a terra sob as vinhas e as oliveiras. O Sol subia no céu. Espalhava o seu calor primaveril pelas colinas salpicadas aqui e ali de grandes ciprestes negros. Empoleirado na folhagem prateada de uma velha oliveira, um melro começou a cantar. Fiora parou por um instante para o escutar e também para repousar. O suor perlava-lhe a fronte, o lábio superior e os pés, cobertos de poeira nas suas sandálias de corda, doíam-lhe:
Por que viemos por aqui? perguntou ela. Este caminho não é mais longo?
Pelo contrário, é mais curto para quem vai para minha casa. E depois... evita que passemos perto de uma casa que te deve ser duplamente querida? Não foi lá que te tornaste a esposa do conde de Selongey, o enviado do Temerário?
Fulminada por aquelas palavras, Fiora ergueu para o seu bizarro companheiro um olhar espantado e quase fez o sinal da cruz.
Para saber isso tens de ser o diabo em pessoa! murmurou ela. O médico grego desatou a rir e ela ficou vagamente escandalizada,
como se aquela manifestação humana estivesse deslocada numa personagem tão singular que não podia evitar achá-lo um pouco sulfuroso.
Não disse ele tranquilamente. Simplesmente, sei sempre o que preciso de saber. E agora retomemos, se não te importas, o nosso caminho! Precisamos os dois de roupas limpas, um pouco de repouso..., e um copo de vinho fresco!
A casa do médico grego erguia-se afastada do burgo de Fiesole, no extremo de uma fila dupla de altos ciprestes, que erguia em redor do visitante duas muralhas de verdura. Construída dois séculos antes, no tempo das lutas fratricidas entre os Guelfos e os Gibelinos, era um pequeno castelo que devia reforçar, em tempos, a defesa das muralhas da antiga cidade etrusca. Tinha umas paredes altas, avermelhadas, cujas antigas seteiras tinham por cima um grande telhado pouco inclinado. Uma torre quadrada, coberta também ela, acentuava o aspecto guerreiro da construção, mas os jardins que a rodeavam não ficavam a dever nada aos das mais ricas casas e suavizavam as suas velhas paredes, ao ponto de as tornar agradáveis.
Grandes pinheiros pára-sol, junto dos quais corria uma fonte preguiçosa, refrescavam um grande tanque quadrado e formavam um oásis resguardado, onde desabrochavam à-vontade sebes de loureiro-rosa e loureiro-comum! moitas de roseiras-bravas, grandes íris azuis e negras, tufos de lavanda, grandes peónias brancas, romãzeiras de flores púrpuras, limoeiros e laranjeiras plantados em grandes potes de barro vermelho e, em grandes canteiros rodeados de cordões de buxo, todas as plantas medicinais e todos os «simples» de que um médico podia ter necessidade. Havia também árvores frutíferas: cerejeiras, ameixeiras, pereiras e enfim, por trás de um ressalto da colina, um grande quadrado de legumes, unido pelas construções de uma herdade. Além disso, uma espécie de terraço, feito a partir de uma antiga parede, estendia-se por trás da casa à sombra de uma velha vinha ainda vigorosa. Tal era a casa que Demétrios devia à generosidade de Lourenço.
Como seu médico, possuo também um quarto no palácio da via Larga, assim como nas suas outras residências, mas ele sabe que eu gosto de viver livre e afastado. Foi por isso que me deu esta casa. Não é suficientemente grande, ou bela para excitar a cobiça e eu sinto-me bem e trabalho nela tranquilamente, ainda por cima porque as gentes daqui me arranjaram uma reputação de feiticeiro e mantêm-se afastadas. É verdade que no extremo do meu jardim passa o caminho que vai dar a Fontelucente...
Sobre aquele assunto, Fiora não precisava de explicações. Como todos os habitantes da região, a jovem sabia que as grutas de Fontelucente abrigavam uma comunidade de feiticeiros tão célebre como a de Norcia, perto de Spolete. Nunca Beltrami permitira que a Sua filha dirigisse os seus passeios naquela direcção perigosa. Portanto, não conhecia a casa de Demétrios, se bem que não fosse muito afastada da villa Beltrami.
Um homem abriu perante os recém-chegados a pesada porta de grandes pregos de ferro ferrugentos que fechava a casa. Era tão baixo e atarracado como Demétrios era alto e magro. Tinha um rosto quadrado, de nariz partido e expressão atrevida. Com o pescoço grosso, os ombros poderosos e a boca forte era bastante mais novo do que o seu patrão e devia ter 35 anos. Uns cabelos negros, duros e rebeldes completavam a personagem, que os acolheu com uma alegria tão evidente quanto aliviada:
Pensei que nunca mais voltasses, patrão! disse o homem. Sua Senhoria de Médicis perguntou por ti duas vezes...
E tu, que respondeste?
O que tu me disseste: que tinhas ido a Prato para tocar na Sagrada Cintura com um bálsamo que tinhas feito para os rins dolorosos de madonna Lucrezia, a mãe de Sua Senhoria...
E da segunda vez?
Que ainda não tinhas regressado...
Óptimo aprovou Demétrios com um meio sorriso. Fiora acrescentou ele pousando uma mão no ombro do seu criado apresento-te Esteban. É de Toledo, em Espanha. Foi lá que o encontrei há alguns anos. É ao mesmo tempo meu assistente, meu mordomo, meu jardineiro, executor das minhas vontades e, também por vezes, os meus olhos e ouvidos... Tu não o conheces, mas ele conhece-te bem... Foi ele que, numa certa noite de Inverno, viu umas pessoas dirigirem-se ao convento vizinho e saírem de lá... numa ordem diferente. Juntamente com Samia, uma escrava egípcia que o palácio Médicis me emprestou e que é, felizmente, muda, compõem a minha criadagem.
Esteban saudou com uma flexibilidade inesperada num homem tão pesadamente constituído e depois bateu as palmas. Uma grande rapariga de pele escura, vestida com uma túnica azul-escura e presa nas ancas por um lenço vermelho-vivo, apareceu e inclinou-se:
Esta é donna Fiora disse-lhe o grego. Deverás servi-la tão bem como a mim mesmo. Ela está esgotada de fadiga, está suja e tem fome. Sabes o que tens a fazer. Queimarás a roupa que ela traz vestida e tratarás, como te ensinei, os ferimentos que tem no corpo. Quanto a ti, Fiora, deves repousar e, antes de tudo, esvaziar o espírito. Dorme até te apetecer. Não há melhor remédio.
Depois de se ter inclinado de novo, Samia pegou na jovem pela mão. Juntas, atravessaram a entrada, que era uma grande sala caiada de branco sem outro ornamento que não umas abóbadas de arestas pintadas de vermelho e azul. O solo era feito de pequenos tijolos e nas paredes estavam penduradas arreios de cavalos, rédeas, cabrestos e chicotes, por cima de utensílios de jardinagem pousados por terra... No extremo daquela sala, que devia ter sido em tempos uma casa da guarda, uma porta dava para um pequeno pátio, por onde se entrava para a habitação propriamente dita. Samia dirigiu a sua companheira para a grande cozinha, onde pairava um perfume provocado pelo guisado que fervia numa marmita por cima do fogo e pelas tranças de cebolas, alhos, pimentos e ramos de tomilho, loureiro, manjerona e alecrim que pendiam da abóbada.
Sabendo que qualquer conversação era difícil, senão impossível, Fiora deixou-se conduzir. Samia despojou-a das roupas, que atirou para um canto para as queimar mais tarde, meteu-a numa grande tina onde a lavou em muita água, secou-a rapidamente, vestiu-lhe uma camisa fina de algodão e pantufas de veludo um pouco grandes de mais, mas confortáveis e instalou-a à mesa para lhe servir uma grande escudela do seu guisado de carneiro com ervas, uma grande fatia de queijo e pequenos bolos de amêndoa, tudo regado com um generoso Chianti, que devolveu as cores às faces da evadida dos bairros de má fama.
Fiora, que literalmente devorou aquela deliciosa refeição, sentiu de imediato a fadiga do corpo e do espírito. Deixou-se levar docemente até um quarto no andar superior, onde só viu uma coisa: uma cama muito branca esperava-a, aberta. A jovem deitou-se com uma sensação de felicidade nos lençóis que cheiravam a lavanda e adormeceu mal a sua cabeça repousou na almofada.
Samia ficou por uns instantes junto dela e depois, constatando que dormia, correu as cortinas do leito e saiu do quarto para se juntar na cozinha a Demétrios e Esteban, que, por sua vez, já se tinham sentado à mesa. O médico grego tinha tirado os trapos e vestido um dos seus trajes de veludo negro de que tanto gostava, após ter feito uma toilette rápida na fonte do jardim.
Enquanto Esteban cortava grandes fatias de pão que estava em cima da mesa, Demétrios encheu uma taça de vinho, que bebeu lentamente com a visível satisfação de um homem que há muito não saboreava nada tão bom:
A hospitalidade dos nossos amigos mendigos é generosa, mas os costumes não são os mesmos. É bom regressar a casa...
O médico atacou com apetite o guisado que a sua escrava lhe serviu, bebeu mais um copo e virou-se para Esteban:
Fizeste o que te ordenei?
Sim, patrão... No outro dia, quando as duas jovens partiram para o convento de Santa Lúcia, aproximei-me do homem que me tinhas designado...
Marino Betti, aquele que, a despeito do seu juramento, contou a história de Beltrami na Borgonha à dama Pazzi?
Fica tranquilo, que não cometi erro nenhum. No meio daquela gente, que falava toda ao mesmo tempo, ele tinha um ar desorientado. Então, brinquei aos entusiastas. Disse-lhe quanto o admirava por ter cumprido o seu dever de cidadão de Florença e até de cristão ao denunciar a fraude cometida pelo falso Beltrami, desprezando assim os seus próprios interesses, porque com essa atitude ia perder uma intendência que não lhe devia dar tão pouco dinheiro como isso... As minhas palavras tiveram o condão de lhe fazer subir o moral, ainda por cima porque os outros tinham tendência para se afastar dele. Partimos juntos...
Esteban deteve-se para beber um gole de vinho.
E depois? perguntou Demétrios.
Fomos para uma taberna de marinheiros na margem do rio e eu mandei vir de beber. Ele despejou duas taças uma atrás da outra, como alguém que tem grande necessidade. Naturalmente, voltei a servi-lo, ao mesmo tempo que tentava fazê-lo falar, mas ele só me respondia por monossílabos e havia medo no seu olhar, que lançava por cima do meu ombro. Ele voltou a beber, mais lentamente. Então, mandei vir pão, presunto e queijo, dizendo sempre que não era bom beber com o estômago vazio e também nisso ele esteve de acordo. Começámos a comer. Eu tirei a minha faca e ele a sua, mais ou menos igual à que me confiaste...
A do assassino!
Sim, mas a dele tinha um cabo de madeira, em vez de corno. Bebemos mais e eu fingi que estava bêbedo.
E ele?
Ele é um antigo recoveiro: aguenta bem, mas, mesmo assim, começou a vacilar um pouco e eu pensei que tinha chegado o momento. Pus-me a fazer grandes gestos e a faca caiu da mesa abaixo. Baixei-me para a apanhar e troquei-a pela outra. Ele não pareceu ter-se apercebido, de imediato, da troca. E depois, subitamente, viu-a. Ficou muito pálido e eu até pensei que os olhos lhe iam sair da cabeça. Levantou-se bruscamente e pegou na arma para me esfaquear, mas eu estava prevenido e evitei o golpe. A mesa virou-se e vimo-nos frente-a-frente, armados. Ele olhou para mim com olhos de louco, mas eu esperei por ele. Pus-me a rir e disse-lhe: «Disseram-me que as pessoas daqui têm muito medo dos fantasmas. Qualquer coisa me diz que não voltarás a dormir tão bem como antes! Um patrão traído e assassinado deve ser um espectro bem desejoso de vingança!» Não pensei que provocasse um tal efeito. Se alguma vez vi o terror no rosto de um homem, foi dessa vez. O homem recuou como se o fantasma em questão se erguesse entre ele e eu e desatou a fugir, como se todos os diabos do inferno lhe fossem no encalço.
E tu, que fizeste?
Deixei-o ir... e paguei os estragos concluiu Esteban com filosofia. Ainda pensei correr atrás dele para o matar, mas, em plena rua...
Fizeste bem. A vida desse miserável pertence àquela que dorme lá em cima...
Sem dúvida, mas ela é uma dama e não a vejo com uma faca na mão. Anota que eu estou pronto a fazer esse serviço no seu lugar!
- Ela não recuará, porque está desejosa de vingança. O seu horóscopo, que eu fiz, disse-me que nesta bela mulher, feita para o amor e para a felicidade tranquila que uma bela fortuna proporciona juntamente com todos os seus atractivos, existe uma impiedosa Nemesis. Repara que bastou pouco mais de uma semana de ódio e cupidez para uma mulher lhe arrancar tudo o que ela amava, a começar pelo seu pai e pela sua fortuna... e a terminar no seu orgulho de mulher e na sua honra. Foi em casa de Pippa, a alcoviteira do bairro de San Spirito que a encontrei, no momento em que Pietro Pazzi, o corcunda, ia estrangulá-la, depois de a ter violado. Matei aquela coisa podre... A propósito de Pippa, tu vais selar o teu cavalo e vais a casa dela para lhe comprar uma pequena escrava tártara chamada Khatoun, que pertence a donna Fiora e que foi apanhada ao tentar libertar a dona. Leva este ouro!
Para quê? Eu tenho uma espada e um punhal. Deve chegar como instrumento de negociação... ”
Prefiro o ouro. O Mulherão é capaz de ser mais forte do que tu! É perigosa e tem protectores. Além disso, deve andar morta de medo, desde que um Pazzi foi morto em sua casa. Se ela atira a sua gente e os clientes contra ti, não te safas. Antes de partires, sela a minha mula. O Magnífico já esperou o suficiente por mim... Já agora, sabes onde ele está?
Ele estava na Badia, mas deve ter regressado ao Palácio para receber um emissário do rei Eduardo de Inglaterra.
Como sempre que o tempo o permitia, Lourenço de Médicis ia para o seu jardim. Tão bom poeta como homem de Estado, gostava de repousar os olhos e o espírito na verdura abundante, ouvir o canto dos pássaros e sentir por cima da cabeça apenas o azul do céu infinito. No espaço forçosamente restrito de um palácio urbano, os seus jardineiros, preferindo o buxo a todas as outras plantas, tinham-no esculpido sob a forma de cães, cervos e elefantes. Havia até uma galera com as velas desfraldadas, tudo aquilo em redor de uma obra-prima: a Judite de Donatello, que se erguia em cima de uma grande taça de granito. Sob as colunas que davam acesso ao jardim, podiam ver-se três sarcófagos romanos, um antigo Marsyas habilmente restaurado e o admirável David de Donatello.
Quando Demétrios chegou, parou sob aquelas colunas e procurou, até, abrigo à sombra de Marsyas. O Magnífico, com efeito, não estava só: na sua frente e na de Judite, à qual se apoiava, estava o hábito branco e o escapulário negro de frei Inácio. Mas não se tratava de uma reunião secreta, porque a voz do monge soava como a trombeta do juízo final, na intenção de se fazer ouvir pelo maior número de pessoas possível. Demétrios, por trás do seu sátiro, não precisou de apurar o ouvido:
Não tens conhecimento do rumor, vindo não se sabe de onde e que corre pela cidade desde esta manhã? trombeteou o espanhol. A rapariga que devia ser submetida ao juízo de Deus e que desapareceu do convento de Santa Lúcia, não fugiu, o que, não to escondo, não me surpreende: foi raptada.
Eu sei. Madonna Lucrézia, a minha mãe, ao regressar esta manhã da missa, contou-me. Mas dizes bem: não se sabe de onde vem o rumor. Portanto, é difícil acreditar nele.
Entre nós, diz-se que não há fumo sem fogo...
Também entre nós, mas o que tu ignoras, porque não és deste país, é que não há nenhum povo com mais imaginação do que o de Florença. Ele gosta do maravilhoso, do fantástico e sabe tão bem contar as velhas histórias como inventar outras...
No seu hábito branco, o corpo magro do monge ficou ainda mais hirto.
Parece-me que tu enfrentas este problema de ânimo bem leve! Não achas que se impõem buscas?
Já mandei procurar Fiora Beltrami sem resultado. A Senhoria também e também sem sucesso. A pobre criança deve ter deixado a cidade...
Chamas pobre criança àquilo que eu chamo feiticeira! Essa criatura do diabo tem aqui mesmo, na tua cidade e talvez até no teu palácio, apoios que a conseguiram subtrair à justiça de Deus, assim como à dos homens.
Um clarão atravessou os olhos escuros do Magnífico-.
No meu palácio? Estás a insinuar que sou o autor do rapto e que a escondo aqui?
Perante a cólera que vibrava na voz rouca de Lourenço, frei Inácio bateu em retirada:
Perdoa-me se me exprimi mal e pensa que é apenas o zelo que me inspira o serviço de Deus que me anima. Eu não falei de ti. Há muita gente no teu palácio e tu não podes saber o que fazem todos os teus numerosos amigos... amigos esses que, se calhar, não são os que seria conveniente ver em redor de um grande príncipe...
Eu não sou um príncipe, apenas o primeiro dos cidadãos desta cidade. Aqui, estamos numa república, frei Inácio! Portanto, tenho o direito de escolher os amigos que me agradam!
Não jogues com as palavras. Se não és um príncipe, é-o a tua esposa, os teus filhos sê-lo-ão e não convém que crianças de alto nascimento, votadas a grandes destinos, sejam educadas fora da religião cristã. Ora, tu deste-lhes um indigente como mestre, saído não sei de onde, que fala grego e que lhes serve como modelo os demónios a quem os antigos chamavam deuses...
Não podemos limitar-nos a um assunto? perguntou Lourenço com voz cortante. De que vieste falar-me, afinal, monge? Do rapto eventual de uma infeliz, que eu pergunto a mim mesmo, em vão, por que razão a odeias tanto... ou da educação dos meus filhos?
Vim falar-te da tua cidade disse frei Inácio com ênfase da tua cidade, que esquece Cristo e que é menos ardente quando escuta a Sua palavra do que quando escuta canções da tua cidade que tu arrastas para o caminho da perdição. É essa a maior preocupação de Sua Santidade...
Pára aí, monge! Sua Santidade, como tu dizes, está sobretudo preocupado em fazer cair Florença e a sua região nas mãos do seu sobrinho Riario, o antigo alfandegário. Daí o seu grande interesse.
Vergonha e infelicidade para ti, Lourenço de Medícis, se não te decides a escutar o apelo de Deus que eu te trago! O Papa Sisto IV envia-me...
O Papa dispõe de 40 cardeais, um exército de bispos e abades e envia-te a ti, um espanhol, para me trazeres a sua palavra?
Para avaliar o que vale a minha coragem e o meu ardor no serviço de Deus face a uma cidade de perdição, antes de me mandar de volta para o meu país, onde a tarefa que me espera é imensa. Pelo menos, é o que eu penso. A rainha Isabel de Castela anda preocupada, com efeito, com as desordens que os judeus e os conversos andam a fazer no seu reino e pediu, através da minha voz, a ajuda de Sua Santidade, que lhe quer bem.
Um sorriso sarcástico enrugou a grande boca de Lourenço e aproximou o seu grande nariz do queixo:
Pensava que a rainha Isabel tinha problemas mais graves do que o estado da Igreja? Coroada rainha de Castela em Dezembro último em Segóvia, contra a vontade da maioria dos seus grandes e sem ter associado a essa sagração o seu esposo, o príncipe Fernando de Aragão, está hoje em guerra com o rei Afonso V de Portugal, que casou com a filha bastarda, dizem? do defunto rei de Castela Henrique IV, do qual Isabel é apenas irmã. Como vês, estou ao corrente... como, aliás, de tudo o que se passa na Europa.
Imagino que tens espiões por toda a parte, mas eles andam mal informados. A rainha Isabel coloca Deus acima de tudo. Ela tenciona, em Seu nome, reconquistar tudo o que o mouro tem ainda nas garras negras e espera poder estabelecer, enfim, nos seus reinos, a Santa Inquisição...
Da qual tu gostarias de ser o chefe! Reconheço que pareces feito para isso... mas Florença não precisa de um Grande Inquisidor. Frei Inácio, peço-te que deixes de te meter nos meus assuntos... e, melhor ainda, peço-te que regresses a Roma. Entregar-te-ei, para o Papa, uma carta, atestando, tanto o teu zelo, como as tuas capacidades.
Partirei quando a filha da iniquidade se sujeitar, tal como aceitou, ao juízo de Deus. Manda vasculhar a cidade rua por rua, casa por casa... sem esquecer as dos teus amigos... e o teu próprio palácio! Encontra-a e eu ficarei satisfeito... por agora. Só a Igreja sabe como tratar os seres desta espécie.
A ela... ou à sua fortuna?
O hábito que uso deveria poupar-me a esse género de insinuações. Que me importa a sua fortuna?
A ti, talvez não, mas interessa muito a um amigo próximo do nosso Santo Padre, um certo Francesco Pazzi.
; Eu não conheço esse homem.
Melhor para ti. Seja como for... no caso de o encontrares mais tarde, diz-lhe que a fortuna dos Beltrami nunca irá enriquecer os Pazzi. Quer encontremos Fiora, quer não!
Donna Hieronyma tem todos os direitos!
Donna Fiora foi adoptada oficialmente. Sob uma história falsa, talvez, mas é um ponto de direito que deve ser discutido e que talvez nunca venha a ser decidido. Entretanto, o banco Médicis assumirá a guarda e o desenvolvimento dessa fortuna. Sob o controlo da Senhoria, claro acrescentou Lourenço com um sorriso que um observador desprevenido talvez qualificasse de diabólico. Mas o rosto de frei Inácio era ainda menos agradável de contemplar. O seu rosto tornou-se mais amarelo, como se a bílis, deixando as suas vias naturais, se tivesse infiltrado no seu sangue. Os seus olhos faiscaram e erguendo para o céu o seu braço magro descoberto pela manga:
Não canses a paciência de Deus, Médicis! fulminou ele. Um dia...
A entrada em cena de Demétrios cortou-lhe a palavra. O grego, pensando que a sua chegada desembaraçaria, talvez, Lourenço do monge espanhol, decidira-se a abandonar o abrigo do seu Marsyas. O sorriso de Lourenço fê-lo pensar que tinha agido bem.
Disseram-me que me procuravas, senhor? Estás doente? Perdoa-me por te ter interrompido, santo homem. É só a pressa de trazer socorro a quem precisa. Dizias?
Frei Inácio deixara cair o braço ameaçador e metia agora as mãos nas mangas, mas os seus olhos tinham adquirido a dureza do granito ao olhar para o importuno. Com uma careta de desgosto, atirou:
Que um dia o raio se abata sobre este ninho de heréticos! Como ousas dirigir a palavra a um homem de Deus, feiticeiro» ajudante de Satanás? Para trás! A tua respiração empesta o ar...
Aquele que se sente incomodado é que deve retirar-se disse calmamente Lourenço. Boa noite, frei Inácio!
Formalmente despedido, o dominicano afastou-se sem saudar, mascando maldições por entre os dentes cerrados. Os dois homens observaram-no enquanto atravessava as arcadas, depois o cortile e finalmente o portão do palácio.
Ave agoirenta! grunhiu Demétrios. Que veio ele fazer aqui? Lourenço desatou a rir com um riso jovem e alegre mas tonitruante
e que fez um casal de rolas cinzentas e cor-de-rosa, que se tinham empoleirado no ombro de Judith, levantar voo:
Então, Demétrios? Sabes tão bem como eu. Pensas que não te vi, há bocado, quando te refugiaste por trás de Marsyas? Fizeste bem, aliás.
Abandonando por fim o apoio da estátua, o Magnífico reapertou em redor dos rins o cinto que retinha as pregas pesadas do seu longo traje de veludo escuro guarnecido com uma faixa de pele de marta e meteu o braço no do médico:
Vamos para dentro, meu amigo. Este monge estragou-me, por hoje, o encanto do jardim. Vamos para o meu studiolo...
Lado a lado, os dois homens subiram a íngreme escadaria que subia ao primeiro andar. Lourenço caminhava olhando para os pés e não dizia nada. O médico respeitou o seu silêncio, adivinhando, em parte, os pensamentos que se agitavam sob aquela grande fronte inteligente. Juntos, percorreram as salas de recepção atafulhadas de obras de arte e aquecidas com tapeçarias preciosas e tapetes cintilantes vindos dos longínquos mercados do Oriente e chegaram, por fim, a uma grande sala rodeada de armários de carvalho com sólidas dobradiças de ferro, dos quais alguns, abertos, deixavam ver que estavam repletos de livros encadernados a veludo ou couro de Espanha e ricamente decorados. Um homenzinho entre duas idades, vestido como um cónego e usando umas lunetas na ponta do nariz, trabalhava diante de um desses anuários, sentado a uma mesa embutida... Levantou os olhos à entrada dos dois homens, sorriu e quis levantar-se, mas a mão de Lourenço manteve-o sentado na cadeira:
Deixa-te estar, Marsile! É o amigo, mais do que o médico, que eu recebo e a tua sabedoria pode ser-nos de grande ajuda.
Está ao teu inteiro serviço disse o homenzinho e voltou a sentar-se... Marsile Ficino, filósofo platónico, médico e cónego da igreja de San Lorenzo tripla função da qual se desembaraçava com originalidade vivendo como um sibarita, deixando a medicina para os outros e pregando Platão do púlpito era um dos mais próximos comensais do Magnífico.
Este foi sentar-se a uma mesa em cima da qual brilhava um extraordinário vaso talhado numa enorme ametista e engastado com pérolas. Não dizia nada, mas Demétrios notou o ar com que ele procurou o apoio da mesa.
Tu sofres, senhor disse ele. Terás realmente necessidade do teu^médico, tu que és jovem e tão bem constituído? Nesse caso, perdoa o tempo que demorei em vir ao teu encontro!
A minha garganta doeu-me um pouco, mas já está melhor. Aliás, disseram-me que andavas numa missão santa por conta da minha mãe acrescentou ele com um sorriso trocista. Terás achado útil aproximar esse bálsamo destinado aos rins dolorosos dela do cinto da Virgem? Tu, que não crês em Deus nem no diabo? Espero que o meu tio Paolo, que é o grande preboste da catedral de Prato te tenha acolhido bem? Um descrente da tua qualidade!
Tinha dado ordens para que dessem essa resposta caso perguntasses por mim. Ignorava que criado encarregarias desse apelo. O recurso ao milagre é sempre bem visto pelo povo...
Bem pensado! Mas, se não estavas em Prato, onde estavas tu?
Trabalhava para a justiça, ao mesmo tempo que o meu criado seguia o assassino de Francesco Beltrami.
Lourenço teve um arrepio e endireitou-se, o olhar inflamado:
Encontraste-o?
Encontrei. É Marino Betti, o intendente de Beltrami, que o traiu pelos bonitos olhos da dama Hieronyma. Aliás, eu já desconfiava...
Tens provas?
Não, mas tenho a certeza absoluta...
E Demétrios contou o que se passara na taberna da margem do rio.
Ele não o matou por achar que não era a ele que cabia fazer justiça acrescentou ele.
Sem provas, a Senhoria nunca aceitará mandá-lo prender. Ficou muito satisfeita por poder entregar o palácio Beltrami à pilhagem dos seus esbirros e, se eu não estivesse lá, já teria posto a mão na herança fabulosa... Cada um reclama a sua parte dos lucros.
Esteban não pensava nessa justiça, pensava na que a filha da vítima tem o direito de exercer!
Fiora? perguntou Lourenço com um encolher de ombros. Seria preciso saber o que lhe aconteceu! Desde esta manhã que correm os boatos mais contraditórios. Diz-se que fugiu, o que me espantaria muito. Agora fala-se de rapto e há pouco recebi a visita da jovem Chiara Albizzi. Reclamava justiça para a sua amiga e ainda gritava mais do que o monge espanhol. Chegou mesmo a dizer que, segundo ela, Fiora Beltrami teria sido assassinada, tal como o pai.
Uma amiga fiel suspirou Demétrios que presente dos deuses! Isso supõe uma certa coragem, quando uma cidade inteira se transforma numa matilha sedenta de sangue lançada na pista de uma pobre corça.
Enquanto os filósofos não forem reis nas cidades citou Marsile Ficino os males dos homens não terão fim...
O gosto do sangue e o amor pela prata são males incuráveis, quer se seja filósofo, quer não! disse Demétrios. E Platão nem sempre tem razão. Quanto à pequena Albizzi, talvez tenha razão: donna Fiora pode muito bem ter sido assassinada...
Quando? Por quem? E como é que tu sabes?
Quando? A noite passada. Por quem: Pietro Pazzi. Onde? porque tu te esqueceste de perguntar onde em casa do Mulherão.
Lourenço saltou da cadeira. O seu rosto ficou vermelho como um tomate.
Em casa dessa mulher?... Mas, o que é que...
O que é que a filha querida de Francesco Beltrami estava lá a fazer? Eis uma boa pergunta, à qual eu vou ter o prazer de responder, porque fui eu que, ao apunhalá-lo, impedi o corcunda de estrangular donna Fiora! Senta-te, senhor, para evitar a vertigem, porque vou abrir diante de ti uma extensão do inferno que Dante se esqueceu de mencionar...
Puxando para si um escabelo sobre o qual sentou a sua grande pessoa, Demétrios traçou para os seus ouvintes o calvário de Fiora desde que a tinham arrancado ao seu desgosto para a obrigarem a defender a própria vida. Fê-lo sem ênfase, com frases curtas, precisas e cortantes quanto baste. O médico sabia que a imaginação dos outros dois faria o resto. Mas, muito antes do fim do seu relato, Lourenço, atirando para trás a sua cadeira, que caiu sobre as lajes preciosas sem que ele fizesse tenção de a erguer, pôs-se a andar de um lado para o outro na sala, de cabeça baixa e as mãos atrás das costas. Quando Demétrios se calou, o Magnífico explodiu:
As religiosas de Santa Lúcia capazes de entregarem assim um ser que lhes foi confiado! Os Pazzi tramam as suas conspirações ignóbeis na minha cidade, mesmo por baixo do meu nariz! Fiora, tão bela, tão pura... entregue à prostituição!
Lourenço cessou bruscamente o seu passeio agitado em frente do médico grego:
E, naturalmente, ela está em tua casa?
Onde querias que estivesse? Só espero acrescentou Demétrios com um sorriso que não o vás dizer ao teu amigo frei Inácio? Atirava-nos aos dois para a mesma fogueira...
Pelo olhar que Lourenço lhe lançou, o grego compreendeu que fora longe de mais e desculpou-se, pondo a sua frase infeliz na conta da indignação sentida há pouco ao escutar o monge espanhol. E acrescentou à guisa de conclusão:
Só falta dizeres o que queres que eu faça.
Lourenço não respondeu. Reflectia. Mas o cónego-filósofo tomou a palavra:
Há uma coisa que me intriga, Demétrios e peço-te que me perdoes se te pareço indiscreto. Tu já não és novo e és um homem de ciência, muito afastado das loucuras da juventude. Por que te interessaste tanto por essa jovem? Pela sua beleza? Isso pode explicar-se num grego...
É verdade que não suporto ver arruinar uma obra de arte. Mas, no que diz respeito a donna Fiora, há outra coisa... Tu sabes que eu consulto os astros e que me acontece ter, do futuro, certas visões inexplicáveis. Ora, tive uma, quando na noite da giostra encontrei essa jovem...
O que é que tu viste? perguntou Ficino com curiosidade.
Prefiro não dizer. Mas no seguimento disso, consegui obter a data e o local de nascimento e fiz um horóscopo que, em certas coisas, se parece com o meu. Soube, com toda a certeza, que ela ia perder em breve o seu defensor natural, que teria necessidade de ajuda e decidi unir-me a uma estrela cuja luz era incerta, mas que, um dia, talvez emitisse um grande brilho...
Lourenço, que se reaproximava, escutara as palavras do grego. O Magnífico pousou-lhe uma mão no ombro: Se sabes o destino dela, por que razão me perguntas o que hás-de fazer?
Eu não sei tudo... e tu és o senhor. Agora sabes a verdade no que a ela diz respeito. Por que não fazer-lhe justiça? O pai dela só tem contra si uma mentira bem natural e ela é inocente. Não sofreu já o suficiente?
Se entendes por justiça restituir-lhe o palácio, os seus bens e pôr as coisas no estado em que estavam antes, é impossível. O povo não o permitiria. A imagem que tem dela é a de uma criatura diabólica. Seria preciso mantê-la escondida dia e noite. E depois... Eu não tenho assim tanta certeza da lealdade do defunto Beltrami...
Como é isso possível? indignou-se Marsile Ficino. Ele era o homem mais generoso, mais franco e mais honesto que eu já conheci... depois de ti!
Nesse caso, como é que explicas isto?
Lourenço foi a um armário e trouxe um pequeno cofre de malaquite, do qual tirou um rolo de pergaminho, que desenrolou e estendeu diante de si entre as duas mãos:
Angelo Donati, a quem confiei, de acordo com a Senhoria, a administração provisória dos negócios de Beltrami, recebeu do banco Fugger, em Augsburgo, o pedido de reembolso de uma letra, aceite por Francesco Beltrami e sacada por messire Philippe de Selongey, no valor de cem mil florins de ouro...
Livra! disse Ficino: que bela soma! Um resgate real!
Por que prisioneiro? O mais curioso é que, a pedido de Selongey, a soma foi depositada directamente no tesouro do duque Carlos da Borgonha. Eis porque, hoje, duvido da lealdade de Beltrami. Ele sabia da minha estreita aliança com o rei Luís de França e, no entanto, contribuiu e em que proporções para o tesouro de guerra do seu inimigo, que, portanto, também é nosso. Se o Temerário conseguir levar a cabo o seu sonho de império, a guerra estalará em breve entre nós, Sabóia e Milão e os seus aliados todo-poderosos... Eu chamo a isto traição!
Não julgues enquanto não tiveres na mão todos os dados do problema disse Demétrios. Deve ter havido uma razão... simples, mas que te escapa por agora. Confia nesse morto de quem gostavas e diz-me o que decides acerca da filha dele!
Fica com ela em tua casa! Está lá bem segura, na condição de não sair sob que pretexto for e que não veja ninguém. Ela é conhecida em Fiesole. Depois, veremos: tenho de reflectir.
O tom era seco e Demétrios pensou que seria pouco sensato, ou até perigoso, insistir. Lourenço, sabia-o, podia ser extremamente cruel se se achasse traído e as profundezas da sua alma tinham obscuridades insuspeitadas. O médico levantou-se para sair e saudou profundamente:
Direi as tuas palavras a donna Fiora, mas, antes de te deixar, posso pedir-te um favor?
Pede!
Aquela pobre criança está preocupada com uma certa Léonarde, que a educou e a quem é muito ligada. Essa mulher desapareceu no dia em que o palácio foi pilhado. Pode ser que donna Chiara Albizzi saiba onde ela está. Ora, eu não posso ir a casa dela sem levantar suspeitas e desagradar, talvez, à sua família...
Se Chiara souber alguma coisa, também eu saberei. Vai em paz! Assim que ele acabou de dizer aquelas palavras, o silêncio que envolvia o palácio Médicis explodiu sob os acordes de uma música alegre e com o eco de uma canção que acompanhava o passo dos cavalos e as campainhas das mulas. Um brilhante cortejo a cavalo atravancava a rua e acotovelava-se para penetrar no pátio do palácio. Giuliano e os seus amigos regressavam de uma festa no campo e enchiam a via Larga com um espantoso fresco colorido. Os fatos eram rosa, brancos, coral, verde-pálido ou amarelo-solar e era como se o vento, passando por todos os jardins de Florença, tivesse arrebatado as pétalas das flores para as depositar no coração da cidade. As montadas estavam arreadas de vermelho ou de azul debruado a ouro; as jovens traziam todas grandes ramos de lilases brancos, cujo perfume sensual as envolvia com uma nova sedução. Todos os rostos tinham a frescura da Primavera, todos os rostos sorriam em redor de Giuliano e de Simonetta, luminosa e diáfana como habitualmente, que não olhavam senão um para o outro... As flautas e as violas só pareciam tocar para eles...
Demétrios, que descia a escadaria, abraçou com o olhar o grupo turbulento e notou a ausência de Chiara Albizzi, o que não era nada de espantoso, pois a jovem estivera no palácio durante a tarde, mas notou, pelo contrário, a presença de Luca Tornabuoni. Soberbo numa túnica curta amarela bordada a prata, os caracóis negros dos cabelos brilhando à luz do Sol poente, o jovem assediava visivelmente com atenções e sorrisos uma rapariga loira de olhos azuis, que ria enquanto lhe passeava sob o nariz a haste perfumada de um ramo de lilases... Em seguida, todos desceram dos cavalos e o grego reparou de novo que, ao ajudar a companheira, Luca a manteve apertada contra si mais tempo do que o necessário...
Obedecendo a um impulso, Demétrios aproximou-se dos dois jovens e, dirigindo-se à adolescente:
Não deixes que esse rapaz te roube o coração, donzela, porque ele é a coisa mais inconstante que existe neste mundo!
O jovem Tornabuoni ficou rubro de cólera:
Os privilégios que o meu primo Lourenço te concede não te dão o direito de me insultares.
Insultei-te ao dizer uma simples verdade? Há uma semana amavas outra, mas a tua chama não resistiu uma hora, uma hora sequer, ao vento da infelicidade... E dizes tu que és um homem... Toma cuidado para que o destino não te atinja um dia e vejas os teus amigos afastarem-se de ti!
De púrpura, Luca, sob o olhar cintilante do médico, tornou-se lívido:
Que queres dizer? És algum feiticeiro? Tens o poder de ler o futuro?
Talvez... mas não tem importância. Tu também não tens importância. Vive a tua vida fútil, meu rapaz, não foste feito para outra coisa! De qualquer maneira acrescentou ele com um sorriso sardónico ela não te amava.
E girando nos calcanhares foi buscar o seu cavalo, que estava preso a um dos grossos anéis de ferro que pendiam, para o efeito, das paredes do palácio. Sentia uma alegria cruel por ter apagado a daquele casal despreocupado. A sua felicidade tivera nele o efeito de mais uma injúria dirigida àquela que, despojada de tudo, nem sequer tinha destino e esperava, lá em cima, que uma multidão imbecil quisesse esquecê-la. Era, da sua parte, uma maneira como outra qualquer de lhe prestar homenagem.
Também não se sentia nada satisfeito com as reacções de Lourenço, porque tinha a impressão que a letra dos banqueiros de Augsbourg chegara mesmo a propósito, para justificar a tomada de controlo de uma fortuna que pertencia a Fiora e a mais ninguém. Sob a tortura, Marino Betti teria confessado o seu crime e, sem dúvida, denunciado Hieronyma, mas Lourenço nem sequer queria mandá-lo prender com receio da reacção da Senhoria e da de um povo cujo carácter versátil e cruel ele bem conhecia. Quem poderia dizer se, naquele receio, não estava a íntima satisfação de poder controlar, doravante, os bens que, de outra maneira, lhe seriam sempre estranhos? Demétrios não tinha nenhuma dúvida que o Magnífico tinha medo daquela multidão que agora o aplaudia e lisonjeava. O médico sabia que, quando caminhava pelas ruas, Lourenço vestia uma cota de malha sob os seus trajes de veludo, ou de tecido fino. Ele era o primeiro de uma cidade que se queria livre e não o tirano de uma cidadela submetida pela força, se bem que tivesse o devido instinto...
Deixando as rédeas descansar em cima do pescoço do seu cavalo, Demétrios subiu a via Larga a passo. Era a hora a que as lojas fechavam as portas e a hora a que começavam as conversas. Pequenos grupos formavam-se à entrada das portas, enquanto outros os homens sobretudo se dirigiam isolados, ou em companhia, para as praças, onde estavam certos de encontrar os comensais habituais. Demétrios afastou com as costas da mão uma mosca precoce que anunciava um Verão quente, mas terminou o gesto numa saudação: da porta da sua loja, o livreiro Bisticci fez-lhe sinal. O médico aproximou-se:
Tens novidades para mim?
Tenho... e excelentes! Encontrei um jovem árabe que tem uma caligrafia soberba. O tratado de Ibn Sina já está a ser copiado. Tê-lo-ás dentro de um mês ou dois!
Demétrios mostrou uma alegria que estava longe de sentir. Esperara tanto por aquele livro... mas, dentro de dois meses, onde estaria? Um daqueles pressentimentos, que por vezes lhe fazia as vezes de segunda visão, dizia-lhe que por essa ocasião o castelo na encosta da colina estaria vazio e que ele estaria longe. Mas onde?... Aliás, pouco lhe importava, porque desde a juventude que a sua vida era uma longa vagabundagem em busca da sabedoria, mas a entrada de Fiora na sua existência permitia-lhe poder aceder, finalmente, a um sonho: ver um dia a seus pés o cadáver do último daqueles duques da Borgonha, daqueles Grandes Duques do Ocidente, que enchiam o mundo com o seu esplendor, o seu poder e o seu orgulho, mas cuja presunção matara o seu jovem irmão Teodósio, tão certo como o carrasco turco que o empalara! O seu irmãozinho! O único ser que jamais amara!
Separavam-nos 15 anos e, depois da morte dos seus pais, tinham ficado sós no grande palácio de Phanar, em Bizâncio, onde Teodósio nascera. Demétrios, esse, vira a luz do dia na ilha de Cós, pátria de Hipocrates, onde o seu pai tinha umas propriedades. A«sua vocação nascera lá.
Quando em 1453 o sultão turco Maomé II cercou as muralhas de Bizâncio, Demétrios tinha 35 anos e Teodósio 20. Um já era um médico sábio, enquanto o outro pertencia à juventude dourada, como convinha ao descendente de uma rica e antiga família, que tinha, um dia, acedido ao trono e o irmão mais velho sorria com indulgência face às loucuras do mais jovem. E depois, fora preciso combater. Ambos o tinham feito, cada um no seu lugar: Teodósio com o elmo prateado dos guardas do imperador Constantino, pelo qual tinha uma verdadeira devoção e Demétrios no hospital que tinha improvisado sob o seu próprio tecto para as dezenas de feridos que ali afluíam todos os dias...
A notícia da investida dos Turcos naquela triste manhã de 23 de Abril, em que os Bizantinos, espantados, se aperceberam que as galeras do inimigo navegavam no Corno de Ouro depois de terem transposto a colina, chegou como uma tempestade ao palácio-hospital. Demétrios foi juntar-se aos últimos combatentes. No dia 29 de Maio, perto da porta de São Romão, viu cair o Basileu, que só conservara como sinais exteriores do império as suas campagia púrpuras, os borzeguins ornamentados com a águia bicéfala. Conseguiu arrastar Teodósio, que queria morrer ali.
À custa de mil dificuldades, os dois Lascaris conseguiram fugir da cidade em chamas, encontraram um barco e chegaram a Veneza, onde a notícia da catástrofe pesava como um sudário. Todo o Ocidente cristão estava indignado, reclamava a guerra santa contra o sultão e com
1 O Imperador
mais força ainda, talvez, do que os outros príncipes, o duque Filipe da Borgonha. Teodósio, que só sonhava com a vingança, arrastara o seu irmão mais velho até à corte da Borgonha, onde foram bem recebidos. Os fugitivos de Bizâncio foram festejados e disputados, sobretudo o mais novo, porque Demétrios, com a sua clarividência, pressentiu que toda aquela agitação era artificial. Mas Teodósio não.
Ainda mais quando foi dado assistir aos dois irmãos, em Lille, à mais fabulosa festa de todos os tempos, aquela que a História recordaria sob o nome de «o juramento do Faisão»...
Tratava-se de um antigo costume: quando senhores e cavaleiros se empenhavam num combate maior e queriam conferir ao seu juramento uma importância particular, gostavam de o fazer sobre uma ave nobre, como um faisão, por exemplo. No decurso de um festim solene a ave era trazida assada e enfeitada com todas as suas penas. Um cavaleiro trinchava-a de maneira a que cada um dos conjurados recebesse um pedaço, estabelecendo assim uma aliança misteriosa entre companheiros de armas e relembrando a Última Ceia e a Távola Redonda.
O dia 17 de Junho de 1454 viu essa festa do Faisão, durante a qual se usaram os trajes, decorações e maquinarias mais magníficos e singulares. Sobre uma soberba ave com um colar de ouro e pedrarias, o duque Filipe, o seu filho Carlos, os cavaleiros do Tosão de Ouro e os mais altos dignitários presentes juraram partir em cruzada contra Maomé II e reconquistar Bizâncio...
Desde logo ficou tudo dito para Teodósio, que chorou de alegria e que, encorajado pelos Borgonheses, quis partir de imediato, a fim de anunciar a boa nova ao que restava do povo dos seus antepassados e prepará-los para a luta. Demétrios, atormentado pelos piores pressentimentos, partiu com ele. Durante meses percorreram as terras e as ilhas gregas, anunciando a vinda da caizada como um novo Evangelho, mas esta não havia meio de vir... Teodósio recusava a evidência: o juramento do Faisão não passara de uma ocasião para grandes divertimentos. Nem o duque Filipe, nem o seu filho, tinham vontade de abandonar o que era quase um reino para irem combater um inimigo longínquo, apesar de o considerarem o Anticristo. Tinham-se limitado a dar prazer a si próprios, ressuscitando as antigas tradições cavaleirescas, às quais tanto um como outro se proclamavam muito ligados. Nada mais!
Teodósio não acreditava. Ele tinha fé num juramento solene, o qual não se podia quebrar sem desonra. Instalado em Atenas com o seu irmão, esperava a chegada dos cruzados, pregando a esperança e a resistência.
Infelizmente não foi a brilhante armada da cruzada que ele viu chegar, mas sim ainda e sempre o Turco invencível. Em 1456, Atenas caía por sua vez e Teodósio era feito prisioneiro. Demétrios, ocupado a tratar dos feridos num outro ponto da cidade, não estava perto dele, mas, vira-o sofrer atrozmente, porque, prisioneiro, continuara a anunciar que o Grande Duque do Ocidente viria em breve castigar os inimigos de Cristo. Demétrios quase enlouquecera. Chegada a noite, apunhalara Teodósio para lhe abreviar o sofrimento e fugira. Fora a partir desse dia que deixara de acreditar em Deus e que jurara vingar-se daqueles por culpa de quem o seu jovem irmão tivera um fim abominável. Mas a Borgonha ficava longe, era rica e poderosa, os seus príncipes eram bem defendidos e ele só tinha o alforge onde guardava os instrumentos de que podia necessitar.
Então, durante anos, Demétrios esforçara-se por adquirir cada vez mais saber, porque esperava tirar dele o poder que lhe faltava. Procurara-o por toda a parte: no Egipto e nas areias da Arábia, em África e no último reino mouro de Espanha, junto dos judeus de Toledo onde fora iniciado na kabala, na célebre universidade de Montpellier onde permanecia a recordação dos grandes Arnauld de Villeneuve e Guy de Chauliac; procurara-o, também, nos antros negros dos feiticeiros e dos mágicos. Estudara o curso dos astros e a sua relação com o destino dos homens. Desenvolvera, através do jejum muitas vezes obrigatório os seus dons de vidência e aprendera, de um médico judeu de Malta, os estranhos poderes de um olhar quando unido a uma vontade inflexível. Pensando, então, que detinha enfim esse poder tão desejado, embarcara com Esteban, que se ligara a ele em Castela, para Marselha. Uma tempestade tinha-os atirado aos dois para o fundo do golfo de Génova, mais despojados do que nunca e doentes. Um mercador recolhera-os, reconfortara-os e dissera a Demétrios que um primo seu, Constantino Lascaris, célebre gramático, estava ligado à corte de Milão. Ele poderia, certamente, ajudar um médico de tanto valor.
O primo Constantino mostrara-se amável, mas não desejava ver aumentar a família Lascaris em Milão e obtivera do seu duque uma carta de recomendação que ele próprio escrevera, aliás para, Lourenço de Médícis, sempre ávido de homens cultos vindos das terras gregas.
Demétrios estava cansado. Desejava um pouco de repouso. Encontrara-o em Florença, onde o Magnífico o tratara como amigo e instalara acima dos seus desejos. No seu castelo de Fiesole, o vagabundo encontrara sossego. Trabalhava numa obra sobre a circulação sanguínea, na qual refutava vigorosamente as teorias de Galileu, o todo-poderoso, o menino querido da Igreja, que elevara as suas obras ao estatuto de acto-de-fé. Quem não estava de acordo com as ideias do defunto médico de Pergamo arriscava-se a ser acusado de heresia. Mas naquela Florença impregnada de humanismo, Demétrios não tinha razões para temer a ira da Igreja. Dedicava-se com ardor à sua tarefa de sábio e, naquela paixão que o enchia, o gosto da vingança esbateu-se um pouco. E depois, no mesmo dia, encontrara Fiora e aquele enviado do Temerário, cuja presença acordara o velho ódio. Espiara este último e vira desenrolar-se o breve romance com a jovem florentina, que lhe inspirara algumas visões.
A revelação do seu nascimento só confirmou o que lhe dissera o horóscopo da jovem, que comparou, empurrado por uma das suas intuições, ao de Carlos da Borgonha. Compreendeu então que, com ela, tinha a arma que não esperara encontrar. E dedicara-se à tarefa de a salvar custasse o que custasse...
O grito intenso de um corvelo, afastando-se de uma moita, tirou Demétrios do seu sonho amargo. O médico sacudiu-se, viu que estava na estrada e que as portas da cidade já tinham ficado há muito para trás. A noite anunciava-se nos últimos reflexos malva e laranja do sol. O médico apressou um pouco o passo da montada. Tinha pressa de chegar a casa, porque não repousava há mais de 36 horas.
Encontrou Fiora sob a ramada do terraço. A jovem usava uma túnica de seda púrpura pertencente a Samia, e Demétrios concluiu que ia ser preciso arranjar-lhe alguma roupa, constatando, apesar de tudo, que aquele traje simples ia às mil maravilhas com a sua beleza pura. Com os cabelos atados simplesmente com uma fita, parecia uma jovem grega.
Esteban estava sentado perto dela e parecia encantado. Era verdade que a jovem falava com ele em castelhano e que o antigo explorador era sensível a tudo o que lhe fazia lembrar um país que amava, a despeito de tudo o que o fizera sofrer. Aproximando-se, Demétrios compreendeu, pelas palavras trocadas e pelas lágrimas que brilhavam nos olhos de Fiora, que Esteban lhe dava conta da sua missão em casa de Pippa e que essa missão resultara num fracasso.
Não a trouxeste? perguntou ele. O Mulherão recuou? No entanto, disse-te o que tinhas a fazer.
O Mulherão não recusou nada. Até me teria dado a alma se lha tivesse pedido, de tal maneira queria o que eu lhe oferecia, mas a rapariga tártara já não está em casa dela. O cliente com quem ela passou a noite apaixonou-se, ao ponto de a querer comprar a qualquer preço. Como oferecesse uma bela soma, Pippa deixou-se convencer. Ainda por cima porque não tinha de ficar com uma testemunha tão comprometedora...
Ela falou num estrangeiro disse Fiora. Disse, ao menos, um nome, ou para onde ia?
Para Roma, mas não sabe o nome dele. Sabe apenas que é um médico, a quem chamava serSebastiano... Também disse... que a rapariga parecia feliz por partir com aquele homem, que era jovem... e não era feio!
Fiora não disse mais nada. Sentia-se desorientada... Teria Khatoun encontrado a felicidade numa casa como a de Pippa? Ou então, acreditando-se abandonada por Fiora, teria escolhido deliberadamente a primeira tábua de salvação que se lhe oferecia?
De qualquer maneira suspirou Demétrios, que tinha seguido o curso dos seus pensamentos é-nos impossível lançarmo-nos em sua perseguição. Além disso, se ela estava contente, por que não dar-lhe uma hipótese de ser feliz?
Podemos confiar numa mulher como Pippa? perguntou Fiora.
Por que não? Ela não tinha razão para mentir, a partir do momento em que lhe ofereciam ouro. E agora vamos jantar! Eu estou muito... cansado.
Demasiado cansado para contar a Fiora, nessa noite, o que se passara entre Marino Betti e Esteban. Aquilo podia esperar... Há muito tempo que não se sentia tão cansado... Pela primeira vez pensou que já não era novo...
Fiora, essa, ficou muito tempo no jardim. Tendo dormido uma parte do dia, não tinha sono e a noite estava magnífica. Olhou longamente para as estrelas cuja linguagem Demétrios conhecia, mas que, devido à sua ignorância, não passavam de um espectáculo maravilhoso. Teria gostado, no entanto, de saber qual era a sua... e se se juntaria, um dia, à da pequena Khatoun, sua última amiga e que, por a ter perdido, sentia como lhe era querida.
Que vais fazer de mim? perguntou Fiora.
Sentado a escrever a uma grande mesa cheia de livros mais ou menos poeirentos e papéis cheios de algarismos e desenhos estranhos, Demétrios ergueu os olhos e olhou para a jovem.
Aborreces-te?
Não. E não quero parecer-te ingrata, mas não posso ficar indefinidamente sentada no teu jardim a olhar para os pássaros, ou na tua cozinha a olhar para Samia enquanto ela prepara as refeições. Eu preciso de fazer qualquer coisa. Nem que seja para esquecer que, de todos aqueles que amava, não me resta nenhum.
Ontem disse Demétrios com um suspiro fiz ao senhor Lourenço essa mesma pergunta.
E que respondeu ele?
Que não saias daqui sob nenhum pretexto e que não te deixes ver por ninguém da região.
Fiora encolheu os ombros com irritação. Não fazer nada... esperar! Ao mesmo tempo que ardia de desejo de se lançar no encalço dos seus inimigos, de atacar por sua vez...
Lembra-te das tuas palavras! Não me prometeste dar-me as armas de que preciso para vingar os meus?
Prometi-te e mantenho a minha palavra. Mas tens de saber o seguinte: a primeira das armas é a paciência. Receio que tenhas dificuldade em aprendê-lo e é normal: és jovem, impulsiva. Pareces uma ave que acabam de meter numa gaiola para a manterem afastada do gato que a espreita. Não compreende e voa em todas as direcções, conseguindo apenas ferir-se. Tu sabes que estás em perigo. Deixa que os espíritos se acalmem!
E que Hieronyma triunfe?
Por que não? Não há nada mais perigoso do que o triunfo! Torna as pessoas cegas, embota as faculdades, baixa as defesas, adormece-as, dando-lhes uma segurança enganadora... Deixa essa mulher acreditar que é vitoriosa e impune! Só chegarás a ela com mais facilidade. Ela já está ferida, mesmo se o ignora ainda, porque perdeu o filho... Mas a paciência é isso: esperar! Saber esperar na sombra, na noite, na ruela. Eu, há 20 anos que espero! O quê?
A mesma coisa que tu: uma vingança! Perguntaste-me por que razão me interesso por ti desde que te conheço e por que razão te propus, logo, a minha ajuda! Talvez tenhas imaginado que tinha intenções equívocas, que a tua beleza me atraía?
Nunca imaginei tal coisa! disse Fiora encolhendo os ombros.
E fizeste bem! Não sinto nada por ti: nem desejo, nem amor. Talvez, agora, um pouco de amizade, porque és corajosa. Não, ofereci-te a minha ajuda porque sabia que ias necessitar dela, mas com o segundo pensamento de obter, em seguida, a tua ajuda para os meus próprios projectos. Os astros disseram-me que isso era possível.
Os astros? Eles preocupam-se a esse ponto com os humanos?
Eles não se preocupam, mas as suas posições e evoluções, no momento do nascimento, permitem aos iniciados ler muitas coisas neste grande livro que é o céu. Repara!
Demétrios vasculhou num armário por trás do espaldar da sua cadeira e tirou dele uns rolos de pergaminho. Desenrolou dois e fixou-os sobre a mesa com a ajuda de diversos objectos:
Este é o meu horóscopo e este é o teu. Tive muita dificuldade para obter a data do teu nascimento e foi-me impossível descobrir a data, bem entendido. É por isso que o teu horóscopo está incompleto e um pouco vago, mas as linhas essenciais estão aí. E encontro muitas concordâncias com o meu. Os nossos destinos unem-se durante um certo lapso de tempo...
E este? perguntou Fiora, apontando para o terceiro pergaminho ainda enrolado e atado com uma fita vermelha:
Mais tarde veremos esse, se quiseres. Mas agora... sempre se quiseres e como não tens nada para fazer acrescentou o grego com um dos seus raros sorrisos quero contar-te uma história; a minha história! Depois, dir-me-ás se aceitas subscrever o pacto que te vou oferecer.
E se eu não aceitar?
Demétrios olhou por um instante para a jovem e depois voltou a sorrir:
Pelo simples prazer de recusar, não é verdade? Espantar-me-ia muito, mas, se assim for, ficarás aqui o tempo que quiseres, eu dou-te depois um pouco de dinheiro, um cavalo e abrirei a porta diante de ti, para que vás para onde muito bem te apetecer.
Fiora desembaraçou um escabelo dos livros que se acumulavam em cima dele e sentou-se:
Sempre gostei de histórias disse ela simplesmente. Sou toda ouvidos!
Demétrios retomou o lugar na sua cadeira, apoiou-se nos cotovelos e fechou os olhos:
Eu nem sempre fui esta ave nocturna em que me tornei e que mete medo às criancinhas... e às outras pessoas. Já fui jovem, rico e príncipe, porque os Lascaris reinaram em Bizâncio. Tinha um palácio, como tu, e tinha um irmão mais novo...
E perante os olhos, primeiro frios e indiferentes e depois cada vez mais atentos da jovem, Demétrios desenrolou a sua vida como se fosse uma grande tapeçaria de personagens. A sua voz profunda possuía uma força espantosa de evocação e a sua jovem ouvinte em breve esqueceu o cenário que a rodeava, a grande sala de paredes caiadas de branco com os seus armários de madeira escura, o fogão de tijolos refractários que ocupava um canto sob uma espécie de chaminé invertida de chapa enegrecida, o grande fole de pele de cabra e as prateleiras, onde se alinhavam potes de boticário, ramos de ervas secas e toda uma miscelânea de retortas, frascos e almofarizes. No seu lugar viu Bizâncio, azul e dourada, pousada como uma jóia em cima do Bósforo e do Corno de Ouro, alfinete precioso entre a Europa e a Ásia, viu os véus vermelhos do sultão infiel e depois a guerra, o sangue e o massacre. Viu Teodósio, que lhe pareceu um herói pelo seu coração, coragem e loucura. Viu o fausto delirante da festa do Faisão e, de pé sobre aquele pano de fundo cintilante, os rostos dos dois homens que ela já aprendera a detestar: o duque Filipe e o seu filho Carlos, esse homem que ignorava a piedade, esse cavaleiro que não cumpria os seus votos, esse príncipe, enfim, por cujas lágrimas Philippe a tinha colhido e depois rejeitado...
Mas se o contador pusera chama e cor na sua história até à morte de Teodósio, mostrou-se conciso quanto aos acontecimentos da sua própria vida, que resumiu em algumas frases. Do que tinham sido os seus estudos, as suas descobertas e daqueles a quem as devia, não falou. Pertenciam ao seu domínio privado e não pretendia deixar que Fiora entrasse nele. Aliás, esta não fez qualquer pergunta. Quando Demétrios se calou, contentou-se em apontar com o dedo para o rolo de pergaminho que ele não tinha aberto.
Esse horóscopo é o do duque da Borgonha, não é verdade?
És inteligente. Nunca duvidei.
E esse pacto de que falaste há pouco?
Creio que já compreendeste: ajudar-te-ei na tua vingança se tu me ajudares na minha.
De boa vontade, já que também eu tenho contas â ajustar com esse a quem chamam o Temerário. Mas, confesso-te que não vejo muito bem como será isso possível?
No entanto, terá de ser! Tive a certeza quando vi o enviado da Borgonha dirigir-se a ti, voltar a procurar-te e, por fim, desposar-te...
Não me fales dele! exclamou Fiora, presa de súbita cólera.
No entanto, é preciso falar. Tu és, na realidade, a senhora de Selongey, sua mulher ele terá de te acolher. Mas, deixemos isso, por agora. Aceitas o tratado que te ofereço?
De boa vontade, já que já cumpriste uma parte. Não mataste Pietro? Devo escrever o meu compromisso sob o teu ditado?
Não. O laço de sangue parece-me mais sólido do que uma folha de papel. Fará de ti minha irmã, uma irmã que eu saberei tornar terrível, juro-te.
Os olhos negros e os olhos cinzentos cruzaram-se como duas mãos que se apertam.
Aceito! disse Fiora.
Demétrios tirou o estilete preso à sua cintura numa bainha de couro.
Dá-me a tua mão esquerda!
A jovem obedeceu. Com um golpe leve, o médico fez-lhe, no punho, um pequeno corte, de onde o sangue brotou. Em seguida fez o mesmo no seu braço direito e juntou os dois golpes.
Os nossos sangues estão misturados disse ele. Doravante estamos unidos, tanto no bem, como no mal!
Procurando um frasco, fez correr umas gotas do seu conteúdo sobre o punho de Fiora. O sangue estancou. O médico fez o mesmo a si próprio. Fiora olhou, fascinada:
Ensinas-me alguns desses segredos? perguntou ela.
Ensinar-te-ei muitas coisas. A arte dos filtros que subjugam e dos venenos que matam, a arte de ler um carácter nos traços de um rosto, a arte de...
Espera! Por que os venenos?
Podem ser muito úteis...
A mim, não! Conhecer as drogas que provocam o sono, sim, mas o veneno, não. Prefiro outras armas: as dos homens, por exemplo. Eu sou uma boa amazona, creio, mas gostaria de saber manejar a espada, servir-me de um punhal...
Pela primeira vez Fiora ouviu Demétrios rir:
Isso é mais do domínio de Esteban. Ele é de uma extrema habilidade e terá muito prazer em te ensinar: creio que o seduziste...
Em virtude do adágio que diz que mal se fala do burro aparecem logo as orelhas, a personagem em questão entrou bruscamente no gabinete...
Mestre! Vêm aí dois monges!
Monges? De que espécie?
Pelos hábitos são irmãos pregadores, como os lá de cima explicou Esteban com um movimento de cabeça na direcção aproximada do convento onde Fiora se tinha casado...
^Devem ter-se enganado no caminho. Vai ter com eles e indica-lhes o caminho certo! De qualquer maneira, vou ver.
Demétrios deixou a sala nos calcanhares do seu servidor e Fiora seguiu-os até à sala de entrada. Pela porta aberta a jovem apercebeu, à luz vermelha do Sol poente e no meio da alameda de ciprestes dois monges que, de capucho sobre o nariz, avançavam no passo vagaroso das suas mulas. Um dos monges era magro, mas o outro, o que cavalgava à frente, devia ser bastante gordo, porque o seu hábito era mais cheio do que o do seu companheiro. Fiora viu Esteban correr ao seu encontro, fazendo grandes gestos para explicar aos viajantes que iam pelo caminho errado, mas os monges recusaram retroceder. Após terem trocado algumas palavras, toda a gente se pôs em marcha na direcção da casa.
Esconde-te! ordenou Demétrios à jovem. Vou ver o que nos querem.
Contrariada, Fiora retirou-se para o pátio interior, mas de maneira a poder ver o que se passava diante da casa. Demétrios abordou os dois cavaleiros que, ao vê-lo, tiraram os capuchos... Com um grito de alegria, Fiora, esquecendo toda a prudência, lançou-se na sua direcção: o monge gordo era Colomba e o outro era Léonarde...
Rindo e chorando ao mesmo tempo, a jovem caiu nos braços da sua velha governanta, que saltara da montada rapidamente para a receber. As duas mulheres abraçaram-se na soleira da porta sem parecerem aperceber-se dos esforços que Demétrios fazia para as empurrar para o interior...
Vós? balbuciou Fiora, reencontrando automaticamente a língua francesa vós, minha Léonarde? Não esperava voltar a ver-vos... Temia... Pensava... Oh! meu Deus! Digo cada disparate! disse ela afastando-se para melhor olhar para aquela que regressava. Mas, por que milagre?
Não é milagre nenhum, donna Fiora ceceou Colomba são apenas precauções! Na manhã seguinte à tua prisão em Santa Lúcia pobrezinha! Como está mal servida! Tenho de lhe queimar umas velas!
que é que eu estava a dizer? Ah sim!... Na manhã seguinte, portanto, fomos a tua casa com donna Chiara e levámos donna Léonarde connosco. Sabíamos que lhe aconteceria qualquer coisa se ficasse sozinha no palácio. Os criados estavam todos mortos de medo... e, aliás, tínhamos razão. Quando penso no que aconteceu! Aqueles soldados abomináveis, aquela bela casa toda pilhada! Realmente, há gente que não teme Deus nem o diabo!
Quando Colomba se lançava era tão difícil fazê-la parar como reter a corrente tumultuosa de um rio. Mas Fiora, desta vez, escutava-a com encanto, à espreita do primeiro silêncio que lhe permitisse exprimir a sua gratidão. Segurava Léonarde por um braço, como se temesse vê-la desaparecer de repente. A velha solteirona, entretanto, olhava para ela com estupor:
Mas, como estais vestida, meu anjo? perguntou ela por fim.
Essa coisa vermelha... quando estais de luto?
Esta túnica pertence a Samia, a criada de Demétrios. Não tenho mais nada para vestir. O meu vestido preto ficou no convento...
Donna Chiara pensou nisso continuou Colomba. Trazemos connosco uma mula carregada de vestidos para ti e para Léonarda e outras pequenas coisas que conseguimos arranjar. Poveretta! Tanta coisa má ao mesmo tempo! Nem sequer te deixaram chorar em paz... E agora ainda te vão fazer chorar mais...
Algo gelado se colou à alegria de Fiora sem a conseguir apagar por completo, mas fazendo renascer aquela angústia que fora sua companheira durante todos aqueles dias passados. O seu olhar procurou o de Demétrios, como para lhe pedir socorro. Entretanto, Léonarde repreendia a sua amiga:
Era preciso falar já disso? Acabamos de chegar...
E precisais de repouso e comida completou o médico. Vinde à cozinha! Aproxima-se a hora da refeição e Samia acrescentará o que for preciso. Esteban vai pôr as vossas mulas na estrebaria, porque creio que não regressareis esta noite, pois não, donna Colomba? Não seria prudente e as portas da cidade fechar-se-ão dentro de poucos instantes...
Aquela torrente de palavras, tão pouco usual em Demétrios, conseguiu reduzir ao silêncio a excelente mulher. Esta resmungou que donna Chiara só a esperava no dia seguinte e que ficaria contente por comer qualquer coisa.
O médico empurrou toda a gente para a cozinha: Samia, prevenida por Esteban, meteu mãos à obra. Pôs duas galinhas no espeto e começou a cortar espessas fatias de presunto que retirou de uma viga. Colomba olhou para aqueles preparativos todos com satisfação e instalou-se junto do fogo, propondo virar o espeto se quisessem dar-lhe um dedo de qualquer coisa «reconfortante», porque o passo da sua mula fizera-lhe mal ao estômago. Demétrios apressou-se a satisfazê-la indo desenganchar um garrafão, que deixou, aliás, em cima da mesa depois de a sua gorda visitante ter engolido de um trago meia taça de grappa... Colocou, até, outras taças em cima da mesa, propondo a Léonarde que provasse a reconfortante bebida. A pobre mulher, com efeito, tinha a cara desfeita e os olhos avermelhados devido a lágrimas recentes, o que, na alegria do reencontro, ninguém tinha ainda reparado, mas recusou:
Talvez daqui a pouco. O que tenho a dizer é tão terrível! Fiora também pode vir a precisar...
Mas, enfim interrogou a jovem que se passou?
Um horror, que não tem nome em língua nenhuma, meu cordeirinho. Nunca pensei que houvesse gente capaz de uma tal infâmia, de um sacrilégio tão abominável...
Em meia dúzia de frases rápidas que ela pareceu escarrar com medo que lhe envenenassem a boca, contou a história. Nessa manhã, ao entrar na igreja de Orsanmichele para preparar o altar para a primeira missa, o sacristão descobrira um espectáculo que o atirara para a rua aos gritos: a tumba ainda fresca de Francesco Beltrami fora aberta. Mãos criminosas tinham tirado o corpo, tinham-no cortado em pedaços e tinham-no abandonado ali, sem sequer tentarem dissimular aquela obra abominável... Branca como a cal e os olhos esbugalhados de pavor, Fiora levantara-se:
Porquê?... mas porquê?
Para lhe tirarem o coração respondeu Colomba. É uma velha ideia daqui: para impedir o fantasma de um morto de vir importunar as noites dos vivos, fazem isso. Já o expliquei a Léonarde: é preciso queimar o coração e atirar as cinzas ao vento... Foi certamente o assassino que o fez. Demétrios não tinha qualquer dúvida, porque se lembrou da ameaça que Esteban ouvira a Marino Betti na taberna... Mas vendo que Fiora tremia dos pés à cabeça, fê-la sentar-se docemente e obrigou-a a beber um pouco de grappa.
Encontraram cinzas na igreja? perguntou ele.
Não respondeu Colomba o homem devia ter medo de ser descoberto se fizesse fogo dentro da igreja. Levou o coração com ele. Mas a cidade está de pernas para o ar e como ninguém sabe a quem acusar, toda a gente corre em todas as direcções gritando «à morte!» sem saber bem porquê.
No entanto, não há qualquer mistério nessa abominação disse Demétrios. O assassino de ser Francesco temia pela tranquilidade das suas noites...
Mas ninguém sabe quem é? perguntou Léonarde, ao mesmo tempo que Fiora erguia para o grego um olhar cheio de censura.
Pensava que a faca te diria qualquer coisa? Tinhas prometido encontrar o assassino do meu pai.
E encontrei. Ou antes, Esteban é que o encontrou para mim. Se ainda não to disse foi porque queria que tu tivesses aqui alguns dias de repouso, de que tanto precisas...
Eu já repousei o suficiente! Quem é?
Quem queres tu que seja? Marino Betti, claro. Matou o teu pai por ordem da dama Pazzi.
E o médico contou como Esteban tinha, na taberna do rio, adquirido a certeza da culpa do intendente. De imediato, Fiora tomou uma decisão.
Dai-me esse hábito de monge, querida Léonarde ordenou ela
e tu, Demétrios, dá-me uma arma e um cavalo! A nossa propriedade só fica a uma légua daqui e eu não quero que esse miserável, que tanto receia os fantasmas, veja uma nova aurora!
Calma! disse Demétrios apoiando a mão no ombro da jovem.
Para uma coisa dessas é preciso um pouco de preparação. O homem é mais forte do que tu. Também queres morrer esta noite? Montughi fica muito perto da cidade. Se houve assim tanta algazarra, Marino deve ter sido informado. E como tem medo, está de sobreaviso. Talvez até esteja escondido!
Bem, é preciso encontrá-lo. Senão ele, pelo menos a sua cúmplice, que ainda é mais criminosa do que ele. Eu quero lá ir!
E vais. Tu, eu e Esteban, mas só na próxima noite. Léonarde tomou Fiora nos braços, mas não sem alguma dificuldade, porque a jovem estava hirta como uma prancha:
É a sabedoria que fala pela voz dele. Escutai-o, meu anjo e concedei-me esta noite em que nos encontrámos. Tudo foi feito pelo vosso pobre pai por ordem de monsenhor Lourenço. O corpo, novamente benzido e incensado, foi metido de novo na tumba. Uns guardas patrulham em redor da igreja profanada, que o bispo virá purificar amanhã. A cólera é grande entre os da Calimala, da qual é santuário. Estou certa que se monsenhor Lourenço soubesse quem matou o nosso bom patrão...
Ele sabe cortou Demétrios. Eu disse-lhe ontem...
O médico aproximou-se de Fiora, que, nos braços de Léonarde, continuava rígida como uma estátua. Parecia nada ver e nada ouvir, mergulhada no horror do que acabava de ouvir numa espécie de transe. Inclinou-se para ela e, mergulhando o seu olhar no da jovem, segurou-lhe a cabeça com as mãos e começou a massajar-lhe a testa e as fontes com os polegares, ao mesmo tempo que murmurava umas palavras que ninguém compreendeu. Depois, docemente, acrescentou:
Volta a ti, Fiora! Volta para nós! Deixa o teu corpo descontrair-se e acalmar-se! Acalma também essa chama que te queima! Amanhã, levar-te-ei até ao teu inimigo e ele pagará pelos seus crimes... Amanhã, Fiora, amanhã...
Um longo arrepio percorreu o corpo da jovem e a vida regressou ao seu olhar:
Amanhã... murmurou ela.
Em seguida, sem transição, abrigou-se nos braços de Léonarde,! sacudida por soluços e chorando como uma fonte. Deixa-a chorar disse Demétrios as lágrimas vão levar para longe a ameaça que acaba de pairar sobre ela. Qual ameaça? perguntou Léonarde em voz baixa. A loucura! Ela tem sofrido muito... Já era tempo de isto parar., No dia seguinte, caída a noite, três cavaleiros deixaram o castelo calçados com botas ferradas e armados. Demétrios abandonara os seus trajes compridos por uns calções justos e um gibão negro. Quanto a Fiora, descobrira com surpresa, por entre os vestidos que a sua amiga Chiara lhe enviara, um fato de rapaz de um verde-alegre, sobre o qual estava espetado, com um alfinete, um pedaço de papel com as simples palavras: «Podes vir a precisar! Gosto muito de ti...». E ao vesti-lo, nessa noite, agradecera, de todo o seu coração, à previdente, louca e sincera] amiga...Fiora ia à cabeça porque conhecia de cor o caminho que, através das colinas e do vale de Mugnone, que atravessaram perto da Badia, ia, numa distância de quatro léguas aproximadamente, da aldeia de Fiesole à propriedade dirigida por Marino. A noite de Abril estava bela e doce. Todas as estrelas estavam presentes e envolviam os campos com um manto de veludo azul salpicado de uma quantidade enorme de pequenos diamantes. Cheirava a lilás e a pinheiro, a terra ainda húmida de uma breve chuva que caíra ao fim do dia. Por vezes, segundo os caprichos do caminho, a jovem avistava as muralhas de Florença onde ardiam as lanternas das sentinelas, os campanários e as cúpulas, que pareciam difundir luz própria. A cidade aproximava-se à medida que avançavam, mas depois de uma curva do caminho deixaram de a ver. A alguma distância do lugarejo de la Pietra, onde toda a gente dormia, Fiora meteu a sua montada por um caminho que mergulhava por | entre duas moitas de arbustos e seguiu-o durante alguns minutos, até que se desenharam na noite as silhuetas negras das grandes construções da propriedade, precedidas por um imenso pinheiro cuja larga copa espalhava uma mancha cor de tinta no céu. A jovem apontou para elas com a sua chibata:
Chegámos sussurrou ela. Deve estar tudo a dormir. Não se vê luz nenhuma.
De qualquer maneira, deixemos os cavalos aqui disse Esteban que comandava a expedição, já que estava mais habituado aos golpes de mão do que o seu patrão. Este aprovou silenciosamente.
Os três cavaleiros puseram pé em terra, ataram as montadas a uma árvore e avançaram fazendo o menor barulho possível. O caminho arenoso facilitava-lhes, aliás, a tarefa:
Não há cães? perguntou Demétrios.
Há respondeu Fiora mas estão no pátio da propriedade e, aliás, conhecem-me...
Eu, se fosse a ti, não me fiava. Trazes roupa a que eles não estão habituados. Quanto a nós, não nos conhecem de todo... Mas, descansa, tenho o que é preciso.
De qualquer maneira é estranho continuou a jovem um instante mais tarde. Por pouco barulho que façamos, eles deveriam ouvir-nos. Ora, nem sequer ladram... E, olhai! O portão está aberto!
Com efeito, o portão duplo que vedava o acesso à propriedade estava escancarado, deixando ver um grande pátio vazio e ao fundo uma casa baixa, cuja porta estava também aberta e que não dava qualquer sinal de vida.
Mas, dir-se-ia que não está ninguém? sussurrou Fiora. Onde estão os cães e...
Subitamente, Esteban, que ia à cabeça, fez meia volta, regressou para junto de Fiora e colocou-se diante dela, os braços afastados para a impedir de avançar:
Leva-a para os cavalos, patrão! Acabo de ver uma coisa que não é para os olhos de uma jovem dama...
Seja o que for, quero ver protestou esta. Esqueces-te que estamos em casa do assassino do meu pai e que vim aqui para o matar com as minhas mãos.
Não terás esse trabalho: já foi feito! Eu bem me parecia que este odor não era natural, mesmo numa quinta.
Com efeito, desde há uns instantes que uns eflúvios insípidos e enjoativos expulsavam o perfume fresco dos campos. Esteban afastou-se contrariado e depois estendeu o braço para o grande pinheiro que dava sombra à entrada da propriedade. De um dos seus ramos pendia um fruto abominável: o corpo esventrado de Marino Betti. O odor era o do sangue e o da morte.
Ao invés do que Esteban temera, Fiora olhou sem fraquejar o horrível cadáver. O seu carrasco abrira-o do externo ao baixo ventre e de uma anca à outra. As entranhas pendiam. Além disso, tinham-lhe cortado o punho direito... Demétrios tirou da algibeira uma pederneira e uma espécie de pavio, raspou aquela para acender este e ordenou a Esteban:
Leva-a daqui! Já viu o suficiente. Eu quero examinar umas coisas.. Contrariamente ao que os dois homens esperavam, Fiora deixou-se levar sem resistência. Perante aquele acto de justiça bárbara, a jovem experimentara uma manifestação repentina de alegria selvagem, se bem que incompleta: a mão que assassinara o seu pai fora cortada, mas a cabeça ficara. Todavia, sentira uma espécie de alívio bem natural. Nunca tendo morto ninguém até à data, desconfiava de si própria e temera, durante o caminho todo, fraquejar no momento de ferir. Graças a Deus, Marino encontrara o seu castigo sem que ela tivesse de sujar as mãos, mas talvez a Providência não fizesse sempre o seu trabalho! No futuro, não poderia ceder à sua natural sensibilidade feminina.
Então? perguntou ela quando Demétrios se lhe juntou limpando os dedos a um lenço. Que descobriste?
O homem foi torturado disse ele. Queimaram-lhe os pés. E levaram-lhe o coração.
Como não tenho nada a ver com isto, pergunto-me quem o poderá ter feito! disse Esteban. Dir-se-ia trabalho de talhante, ou de cirurgião, de tal modo os cortes são precisos...
Ou de um homem qualquer habituado a manejar armas! cortou Fiora. Para que é preciso procurar tantos pormenores? Fez-se justiça Divina, é tudo!
Tu não és curiosa observou Demétrios. Eu inclinar-me-ia mais para a justiça de Lourenço de Médicis. Uma justiça discreta mas à sua maneira, quando não pode fazer as coisas de outro modo. O seu capitão, Savaglio, não tem hesitações nem piedade quando se trata de um serviço para o seu senhor. E, como muito bem disseste, Fiora, ele maneja as armas com virtuosismo. Sim, pode muito bem ter sido ele... se não fosse o coração arrancado!
Ele não arrancou o do meu pai? É justo, parece-me?
Talvez... mas, neste caso, não havia qualquer razão para o levar e eu não vi vestígios dele. É verdade que Marino deve ter sido morto a noite passada e que os cães devem ter passado por aqui... Ninguém nos poderá informar. Não há vivalma nesta quinta. O terror fez fugir toda a gente...
O médico pensava em voz alta, sem se preocupar com os companheiros:
Sim... é isso, sem dúvida prosseguiu ele. A menos que Savaglio, se foi ele, tenha querido levar ao seu senhor uma prova da execução! Também é possível, claro... no entanto, não acredito.
Porquê? perguntou Fiora sem paciência para aquelas cogitações sem sentido para ela...
Porque hoje é dia 28 de Abril...
E depois?
Depois de amanhã será dia 30.
É evidente. E depois?
É o seguinte: a noite entre o último dia de Abril e o primeiro dia de Maio é uma grande noite para os feiticeiros de todos os países. Na Alemanha, nas montanhas do Harz onde se realiza a grande reunião, chamam-lhe Walpurgisnacht, a noite de Walpurgis. Depois de amanhã, os feiticeiros de Norcia encontrar-se-ão todos... assim como os de Fontelucente!
Continuo a não ver a relação entre isso e o que acabamos de ver! Sem responder, Demétrios dirigiu-se ao seu cavalo, fê-lo virar-se
e içou-se para a sela. Depois, esperou que os outros fizessem o mesmo.
Sempre fui curioso por natureza disse ele tranquilamente. E qualquer coisa me diz que será interessante saber o que vai acontecer nessa noite...
A madrugada não vinha longe quando regressaram ao castelo. Léonarde, que partilhava a cama com Colomba e não pudera conciliar o sono, esperava debruçada da janela. Mas apenas os seus olhos interrogaram a jovem quando esta entrou no quarto tirando o capuz à moda francesa que lhe escondia os cabelos e atirando-o para cima de uma arca. Desde que a sua «pequenina» a deixara, anunciando a sua intenção de matar Marino Betti, a pobre mulher deixara de viver... Fiora teve para ela um meio sorriso:
Quando lá chegámos ele já estava morto disse ela. Eu não fui perdida nem achada...
Deus seja louvado! Eu não suportava a ideia de que vós, meu anjo, pudésseis...
Léonarde! Léonarde! Peço-vos... tendes de compreender que já nada é como era e nunca mais será. Agora já sabeis o que aconteceu depois de nos afastarmos uma da outra. Eu já não sou a Fiora inocente que vós embalastes e vistes crescer. Agora sou outra... outra que, a bem dizer, ainda não conheço muito bem e que talvez um dia destes vos cause um desgosto.
Nunca! Nunca, façais o que fizerdes! Vós sois a pequenina do meu coração e nada nem ninguém... nem sequer vós mesma, poderá mudar seja o que for. Pensai apenas que a vingança, se bem que tenha sempre alguma coisa de exaltante, deixa sempre um gosto amargo e Deus..
Não me faleis de Deus! Não me faleis d’Ele nunca mais! exclamou Fiora. Não cessa de deixar cair em cima de mim cada vez mais golpes e sem eu ter cometido qualquer mal. Trata-me como uma inimiga, uma rejeitada! Que crimes são estes, que abominações são estas, que não cessam de me cair em cima? A vontade de Deus? Pensava que Ele era bom e misericordioso...
Ele próprio não aceitou o sofrimento ao permitir que o seu filho suportasse o suplício da cruz? perguntou Léonarde com uma grande tristeza.
O sofrimento de um deus é o mesmo de um homem, ou de uma mulher? Só podemos chegar a Ele pela dor, a Ele que é tão grande? Não, Léonarde: peço-vos, deixai-me com a tarefa a que me propus e não me faleis mais de Deus!
Se assim o quereis! Mas não me impedireis de Lhe falar de vós... Dois dias depois, quando Demétrios, depois do jantar, se preparou para ir ter com os feiticeiros, Fiora declarou-lhe que tencionava acompanhá-lo. Ele lançou-lhe um olhar oblíquo:
Não estou certo de que seja um espectáculo para ti. Passam-se lá coisas desagradáveis e, além disso, é perigoso.
Não te preocupes com os meus olhos! E deixa-te de dúvidas. Quando falaste dessa reunião sabias muito bem que eu iria contigo.
Sim... sim, sabia, mas estou arrependido de te ter falado nela. Não seria melhor parares por um momento e não ires até ao fundo desta descida aos Infernos que começaste? Gostaria que tu própria te poupasses...
O primeiro passo é que custa. Pelo menos, verei se Dante tem razão no seu inferno, ao mostrar os feiticeiros com a cabeça virada ao contrário, de maneira que as lágrimas lhes caem pelas costas abaixo...
Fontelucente gozava de uma detestável reputação. Era, em notoriedade e terror público, o mais famoso covil de feiticeiros de toda a Toscânia. Tinha alinhamentos rochosos, uma gruta e cabanas onde viviam criaturas que de humano só tinham a aparência exterior. Na sua maior parte eram infelizes reduzidos pela miséria, pela doença, ou pela loucura, a uma condição quase larvar e que tinham tirado da sua nudez e da natureza envolvente receitas bizarras. Perseguidos e acossados por toda a parte, tinham-se afastado do céu e de uma misericórdia em que já não acreditavam, para tentarem manter com as forças infernais um comércio que os vingava e lhes permitia semear um medo que os protegia. Tinham-no conseguido na perfeição e o medo que inspiravam com os seus encantamentos e magia era tal que o deserto se fizera em redor daquele local risonho e fértil, mas que diziam maldito. No entanto, uma nascente pura, uma nascente esplendorosa brotava naquele local, sustentando uma vegetação espessa naquele lugar rejeitado, de onde as pessoas se afastavam com medo de sortilégios. Apesar disso, em certas noites escuras, figuras mascaradas e envoltas em mantos sombrios deslizavam até Fontelucente. Uma rapariga procurando esconder o fruto de amores proibidos, uma mulher ciumenta encarniçada contra a sua rival, um rapaz apaixonado desdenhado pela sua bela e até uma dama nobre, reduzida pelas suas paixões a procurar um socorro infame, pago com resgate de reis. Esses conseguiam do seu medo, do seu ódio ou do seu amor a coragem para irem ter com os feiticeiros, dos quais alguns eram mais ricos do que pareciam.
A viver assim, no seio da natureza, aquela gente descobrira muitos segredos. Para não falar das receitas assombrosas, nas composições terríveis ou repugnantes, nos filtros e nos encantos que vendiam à sua clientela. Por vezes, as suas receitas revelavam-se eficazes e o doente curava-se. Então, o reconhecimento servia-lhes de salvaguarda, quase tanto como o medo.
Em datas precisas, mas mais frequentemente em noites de lua cheia, os feiticeiros reuniam-se com os confrades disseminados pela região e até com outros, vindos de muito mais longe, para festejar e venerar o seu protector, o deus das trevas, o seu príncipe do mal, aquele cujo nome os humildes não ousavam pronunciar e a quem os da Igreja chamavam Satã enquanto se benziam. Mas, por prudência, o local de reunião mudava sempre e a palavra era passada por meio de mensagens de aparência inocente, que percorriam os caminhos e os mercados. Assim, Demétrios, tendo ido nessa manhã à cidade, recebera-a de Bernardino, que mendigava, como habitualmente, em frente do Duomo e lha sussurrara em troca de uma bela moeda de prata.
Desta vez tratava-se de um campo no flanco do monte Ceceri, encostado a um pequeno bosque e fechado, longe de qualquer habitação, dentro dos velhos muros arruinados de um antigo priorado abandonado. Era quase meia-noite quando Demétrios, Fiora e Esteban chegaram à vizinhança do campo. Por prudência, tinham vindo a pé e por caminhos difíceis, que serpenteavam por silvados e alinhamentos rochosos.; O grego caminhava com passo seguro, como homem que sabe aonde vai. E parou, por fim, por trás de um dos muros arruinados que formava, naquele local, uma pequena concavidade coroada por espessa vegetação.
Daqui veremos tudo sem nos arriscarmos a ser vistos. Eu conheço bem este local, onde já vim meditar algumas vezes...
Mandou Fiora sentar-se sobre uma grande pedra e mostrou-lhe como, afastando ligeiramente os ramos de um espesso comiso protegido por um matagal, teria uma vista satisfatória. Para melhor protecção, a jovem, tal como os seus companheiros, trazia uma máscara negra e as luvas espessas preconizadas por Demétrios. Estavam, assim, invisíveis e suficientemente protegidos contra os espinhos do matagal. Em frente da jovem o campo formava um largo espaço descoberto no meio das ruínas de antigas construções conventuais, uma grande toalha sombria entre formas incertas. Não se ouvia qualquer som, salvo, vindo do bosque vizinho, a voz triste de uma coruja que soou por três vezes, provocando no campo como que uma espécie de grande suspiro.
Subitamente, um homem saiu das ruínas transportando um archote, com a ajuda do qual acendeu rapidamente duas fogueiras preparadas à direita e à esquerda do prado e essa parte iluminou-se de um só golpe, como uma cena de teatro descobrindo um cenário aterrador. Entre as duas fogueiras estava uma mesa grosseira feita de duas pedras e uma laje, disposta diante de um pequeno montículo coberto de hera, que suportava uma estátua de madeira pintada, tão realista, que Fiora sentiu as têmporas apertarem-se-lhe e os cabelos eriçaram-se-lhe na cabeça.
Era, sobre umas patas de bode inclinadas, o corpo de um homem nu com uma cabeça hedionda. As orelhas pontiagudas, os longos cornos enrolados e a barba fibrosa eram de um bode, mas o longo nariz adunco, a boca vermelha e desdenhosa e os olhos reluzentes brancos e vermelhos eram quase humanos. Entre os cornos estavam pousadas três velas que o homem acendeu, enquanto numa das suas mãos em forma de garra a estátua tinha uma foice e na outra uma taça dourada...
O diabo! sussurrou Fiora que, maquinalmente, se benzeu. Mas já Demétrios lhe apoiava sobre a boca uma mão peremptória:
Nem mais uma palavra! cochichou ele ao seu ouvido. Arriscas-te a que nos prendam...
Com efeito, o acender das fogueiras revelara, em redor do hediondo simulacro, uma fileira de fantasmas envoltos em tecidos escuros, que, num mesmo movimento, tiraram os seus mantos e fizeram aparecer, vestida de ouropel matizado, a mais estranha colecção de figuras de pesadelo que um cérebro febril poderia imaginar: velhas desdentadas de lábios retraídos, homens disformes de olhos reluzentes e cabeleiras sujas, mulheres ainda jovens mas já secas pelo deboche, os de Fontelucente e mais alguns seus iguais estavam ali, imóveis e silenciosos como gárgulas de catedral, pouco menos repulsivos do que o mestre a quem se tinham entregado.
Entretanto, o homem do archote espetou este no solo, afastou-se e reapareceu com um pano negro; estendeu-o por cima da mesa e colocou-lhe em cima dois candelabros de ferro com grossas velas de cera negra, que acendeu. Um fumo espesso e acre desprendeu-se e subiu na direcção da cabeça do ídolo. Então, ouviu-se uma melopeia emitida pelas bocas fechadas dos feiticeiros, a princípio surda, mas que se foi ampliando e, num ritmo lento, homens e mulheres começaram a balançar em conjunto, da esquerda para a direita, sempre de olhares fixos na sua frente e as mãos cruzadas em cima dos joelhos. Aquilo adquiriu um som vagamente musical, que se estendeu pela pradaria com as pesadas volutas de fumo. Pouco a pouco, o campo começou a animar...
Às duas, às três, ou isoladamente, silhuetas mascaradas saíram dos bosques e das muralhas arruinadas. Quando abriram os mantos, Fiora, cujos olhos dilatados não perdiam um pormenor, viu que havia ali camponeses, homens e mulheres, velhos em trajes negros e usados cujas frontes desguarnecidas e olhos fatigados traíam longas vigílias em busca de segredos impossíveis de encontrar, mendigos, entre os quais ela pensou reconhecer Bernardino, rapazes robustos e algumas raparigas bonitas. Estupefacta, a jovem notou também a presença de três mulheres mascaradas, cujo vestuário luxuoso traía uma alta condição e de alguns homens, também eles mascarados e de trajes bordados. Mas o mais extraordinário era a espécie de fraternidade que unia toda aquela gente, uma dama entre um mendigo esfarrapado e um camponês, todos eles com a mesma expectativa no fundo dos olhos. As chamas das fogueiras, para as quais tinham atirado resina, emitia uma luz amarela que uniformizava os rostos. Impassíveis, os feiticeiros continuavam a balançar cantando a sua melopeia lenta e lúgubre que parecia não ter fim e que os recém-chegados imitavam. Fiora, fascinada, teve de se agarrar aos ramos que a escondiam para não fazer como eles, mas o espinho de uma silva, ao atravessar-lhe a luva, sacudiu aquela espécie de feitiço... Subitamente, um som grave e profundo fez-se ouvir, parecido com o de um gongo e instantaneamente fez-se silêncio. Das ruínas saiu um cortejo... À cabeça, transportando uma cruz na qual estava pregado o cadáver de um cão, vinha um negro atlético vestido com uma casula escarlate, cujas rachas deixavam entrever o seu corpo reluzente, como bronze. Atrás dele vinham duas raparigas quase nuas, com túnicas brancas transparentes. Traziam coroas de hera e uma transportava um incensório, enquanto a outra erguia entre as mãos uma taça cheia de grãos de trigo e azeitonas negras. Um homem, que parecia um padre, fechava a marcha. Este vestia a réplica exacta de uma casula de celebrante cristão, mas branca, debruada a escarlate e bordada com grandes chamas negras. A cruz era substituída por uma cabeça fazendo uma careta hedionda. Uma espécie de elmo negro, apertado e ornamentado com dois cornos, cobria-lhe a cabeça barbuda e transportava na mão um cálice coberto com um véu vermelho. À sua passagem, os feiticeiros levantavam-se e inclinavam-se. Estes afastaram-se do altar, pois de um altar se tratava, para fazerem duas filas, formando duas alas de assistentes. O padre pousou o cálice no altar, caiu de joelhos, ergueu os dois braços para a estátua demoníaca e exclamou com voz forte: Pai do mal e do pecado, pai do vício e do crime, Satã, deus do prazer e da riqueza, fonte eterna da virilidade e das paixões proibidas, senhor da luxúria e da fornicação, vem até nós esta noite, a este lugar onde nos reunimos para te honrar e adorar!...
A despeito das recomendações de Demétrios, Fiora teve de perguntar em voz muito baixa:
Quem é aquele homem?
Um monge despadrado. É preciso ter sido padre para poder celebrar a missa negra...
Ele vai...
Vai, mas cala-te e, por mais que vejas, não digas mais nada! Desenrolou-se uma nova fase da cerimónia: primeiro os feiticeiros
e depois os assistentes, todos avançaram dois a dois, um homem e uma mulher, para saudar o demónio. Prostraram-se diante do altar e da estátua e regressaram depois aos seus lugares como fiéis numa igreja. Uma mulher ficou sozinha, a última, uma das três que deviam pertencer à alta sociedade. Transportava entre as mãos uma espécie de patena de prata, sobre a qual havia qualquer coisa indistinta. Ajoelhando-se, a mulher estendeu o pequeno prato ao padre, que o ergueu para o ídolo:
Aceita, oh pai da mentira e do crime, estes corações arrancados a um mentiroso e a um assassino e que a tua serva te oferece, para que a cubras com as tuas mercês! Ela também se oferece, para que o sacrifício que vamos celebrar seja realizado sobre o seu corpo.
Demétrios, sentindo Fiora tremer, rodeou-a com um braço e fechou-lhe, de novo, a boca com a mão, temendo uma manifestação involuntária.
Eu disse-te sussurrou-lhe ele ao ouvido que isto era uma descida aos Infernos... Coragem!
Entretanto, à luz das fogueiras, a mulher despiu-se por completo e, nua, foi estender-se sobre o altar. A despeito da máscara, Fiora, horrorizada, já tinha reconhecido Hieronyma. O cálice foi pousado sobre o seu ventre branco. Apesar de já não ter 20 anos, tinha um corpo copioso mas firme, que devia atrair o desejo de muitos homens e explicava a influência que tivera sobre Marino Betti.
A missa, se assim se podia chamar àquela sucessão de imprecações e sacrilégios, começou. Fiora, com os ouvidos a zumbir, não ouviu grande coisa. Estava hipnotizada por aquela mulher nua, cujos cabelos artificialmente louros tocavam no solo.
Subitamente passou-se uma coisa tão odiosa que Fiora, sob a mão de Demétrios, mordeu os lábios até sangrarem. Das primeiras filas da assistência acabava de sair uma mulher com um êxtase imbecil no olhar. Nas mãos estendidas transportava um recém-nascido, que estendeu ao oficiante. Este pegou nele, pousou-o sobre o corpo de Hieronyma e, com um golpe rápido de faca, abriu-lhe a garganta. Ouviu-se apenas um pequeno grito, mas uma espécie de arrepio percorreu toda aquela gente. Fiora pensou que era de horror, mas só viu em todos aqueles rostos uma alegria estúpida, uma crueldade bestial, um prazer perturbador. O sangue trazia àquela monstruosidade o elemento que lhe faltava.
O padre recolheu-o no cálice. Molhou nele os lábios, marcou os seios de Hieronyma e passou-o a uma das suas acólitas, para que ela o fizesse circular pela primeira fila da assistência. Ao mesmo tempo, a outra rapariga trouxe um jarro cheio de um vinho no qual tinham misturado uma decocção que lhe duplicava a acção. Todos beberam e comeram uns bolos que foram distribuídos. Em seguida puseram-se a dançar ao som da flauta tocada pelo grande negro. Dançavam costas com costas, de mãos unidas e as cabeças viradas, de modo a juntarem as faces.
O ofício sacrílego estava a acabar. O oficiante, desembaraçando-se da sua casula sob a qual estava nu, deitou-se em cima de Hieronyma. Foi o sinal para uma inverosímil cena de deboche à luz vermelha dos braseiros que enfraqueciam. Os casais rolavam um pouco por toda a parte, ao acaso, sem distinção de idades ou de estatuto social, velhos com jovens, a grande dama com um criado de quinta. Fiora, que se sentia enlouquecer, fechou os olhos. Então, Demétrios largou-a:
Sobretudo, não te mexas! sussurrou ele. Deixo-te com Esteban. Eu já venho ter convosco...
Onde vais?
Como resposta ele pousou-lhe um dedo na boca e desapareceu na sombra sem sequer fazer mexer um ramo. Já não se ouvia, nem o canto, nem a flauta; apenas suspiros, gemidos e sons de tecido rasgado. Fiora nem sequer ousou virar os olhos para Esteban, do qual ouvia, perto de si, a respiração entrecortada. E, subitamente, ouviu-se um grande grito:
A milícia! Salve-se quem puder!
Foi o pânico. Cada um, esquecendo o seu companheiro, ou companheira de momento, só pensou em fugir. O padre maldito arrancou-se de Hieronyma e desapareceu na noite, ao mesmo tempo que o seu acólito e as duas raparigas levavam o diabo de madeira pintada. Fiora viu Hieronyma, que tirara a máscara que a sufocava, tentar levantar-se, mas uma silhueta alta e negra apareceu na sua frente com um braço estendido e três dedos apontados para os seus olhos transtornados...
Ela tentou, em vão, lutar contra o poder invisível daquele homem e voltou a cair sobre o altar, inanimada...
Demétrios inclinou-se, agarrou no pequeno corpo do bebé sacrificado que tinha sido atirado por terra, pousou-o sobre o da mulher já suja do seu sangue e afastou-se a correr. A luminosidade de numerosos archotes e o eco de passos ferrados fazia-se ouvir...
Um instante mais tarde, Demétrios juntava-se a Fiora e Esteban:
Vinde! ordenou ele. Depressa! Ainda temos tempo de fugir...
É mesmo a milícia que está a chegar? perguntou Fiora.
É. Mesmo à hora que eu indiquei. O senhor Lourenço seguiu bem as minhas explicações.
Quem deu o alerta?
Eu, claro. Não queria que todos estes infelizes, que procuram uma compensação para a sua miséria, fossem atirados para a prisão, para a tortura e para o fogo... A dama Hieronyma acabará a noite numa masmorra, enquanto espera que a entreguem ao carrasco...
Mas, como sabias que ela estaria aqui esta noite?
Eu disse-te que sabia sempre aquilo que preciso de saber... E agora apressemo-nos um pouco. Não convém nada que venham atrás de nós...
Uma hora mais tarde estavam de regresso ao castelo onde Léonarde, que mandara Samia deitar-se, os esperava. Ignorando ao certo o que era aquela expedição em que se tinham lançado, acolheu-os sem uma palavra, mas serviu-lhes logo vinho quente com canela, que cozia lentamente nas cinzas da chaminé. A governanta olhou para Fiora, cujo rosto pálido e expressão tensa lhe diziam que não tinha vivido momentos muito agradáveis, mas a jovem, agarrando com os dedos gelados a taça cheia do líquido fumegante, sorriu-lhe com tanta ternura que ela, vexada por não ter sido posta ao corrente, não aguentou mais:
Pareceis muito cansada, meu cordeirinho, mas há muito tempo que não vos via um sorriso assim. Sentis-vos feliz, esta noite?
Sinto... e pela primeira vez desde há muito tempo! A morte do meu pai foi vingada, minha querida Léonarde, assim como tudo o que sofri por culpa de Hieronyma. Amanhã conto-vos tudo. Por agora, morro de sono...
Sendo assim ser-vos-á feita justiça e podereis, então, regressar a casa?
Não sei... Talvez, porque agora os meus inimigos já não existem...
Continuam a existir disse Demétrios severamente, que aquecia as longas mãos pálidas nas chamas reanimadas. Mas é isso o que tu queres: voltar para casa, reencontrar a tua fortuna e não pensar em mais nada? Já te esqueceste que... Que concluímos um pacto? Esqueci-o tanto que agora quero reencontrar o homem que me abandonou no dia seguinte ao do nosso casamento e vingar-me daqueles que levaram os meus pais ao cadafalso. Mas confesso que gostaria, por algum tempo, de reencontrar a paz da minha casa, rever a minha amiga Chiara, poder, como antigamente, passear pelas ruas de Florença sem ouvir gritos de morte ou levar com pedras, ir pôr flores na tumba daquele que será sempre o meu pai, deixar acalmar este furor que vive em mim há«tantos dias, ser uma florentina como as outras e adquirir a certeza de que no regresso das viagens que vou empreender me sentirei em minha casa... Isso é pedir muito?
Demétrios desviou os olhos daquele olhar que implorava uma resposta e saiu da cozinha. Ouviram os seus passos na escadaria da torre, para o topo da qual ele gostava de se retirar para observar as estrelas e prestar atenção à sua linguagem. Mas naquele fim de noite, porque a alvorada iria em breve aparecer, o médico desviou o olhar do céu para olhar para a cidade adormecida. Sabia que Florença já não queria saber de Fiora Beltrami, mas não tinha coragem de lho dizer...
O rumor, partido do rio onde os marinheiros se afadigavam, correu pelas ruas e praças, atingiu primeiro a milícia que tinham chamado de imediato, o Bargello e a Senhoria e depois o resto da cidade, como se fosse um tição lançado para uma meda de palha: um pescador tirara do Arno o corpo de Pietro Pazzi, apunhalado entre as duas espáduas...
Esteban, que tinha ido às compras ao Mercato Vecchio como sempre fazia três vezes por semana, ouviu-o enquanto comprava queijo, voltou a ouvi-lo na vendedeira de criação e ficou com as orelhas cheias quando chegou ao balcão do talhante, mas com variantes, porque a festa do «diz-se» estava lançada. Cada um pretendia saber mais do que o seu vizinho e as versões mais fantásticas começavam a circular...
Esteban não gostava de tagarelice. Em Castela tinha causado a morte da sua mãe, acusada por um vizinho de lhe ter envenenado a água do poço e de ter feito um feitiço ao seu filho. Apesar de ser uma boa cristã, a anciã fora parar à fogueira e o seu filho, desesperado, dera tudo o que tinha em dinheiro ao carrasco para que ele a estrangulasse antes de as chamas a atingirem. Em seguida matara o vizinho, o filho e lançara fogo à sua quinta. Demétrios Lascaris, que acabava de chegar ao país, levara-o consigo pouco antes de o prenderem, salvando-lhe assim a vida e ganhando para sempre a sua dedicação e reconhecimento...
Não, Esteban não gostava de bisbilhotices. Odiava-as quase tanto como os padres, que a meias com o alcaide da sua terra tinham condenado a sua mãe, porque o acusador era rico e ela pobre... A sua vida ao serviço do médico grego, filósofo, astrólogo e mágico convinha-lhe às mil maravilhas, porque, para além de pequenas tarefas domésticas quotidianas, tinha uma certa liberdade: nunca Demétrios lhe reprovara o seu gosto pelo vinho e pelas mulheres e ele amava ambas as coisas quase tanto como o combate, as armas e a guerra, que eram a sua vida desde os 12 anos de idade...
Decidido a obter informações tão claras quanto possível, o castelhano confiou a sua mula já carregada ao albergue da Croce di Malta onde o conheciam e dirigiu-se ao palácio da Senhoria e seu complemento, a loggia del Priori, onde era quase sempre certo encontrar três ou quatro notáveis a conversar. Aquilo permitiu-lhe ver chegar o velho Jacopo Pazzi, que ocupava então a sua casa florentina e que entrou de rompante, carregando como um touro furioso, no velho palácio. Saiu de lá um momento mais tarde escoltado pelo Bargello e por um esquadrão de guardas. Um arrepio percorreu, então a praça: o patriarca fora preso? Mas durou apenas um instante. A tropa dirigiu-se para a Ponte Vecchio. Esteban seguiu a pequena multidão que se formara instantaneamente, o que lhe permitiu assistir à prisão do Mulherão e do seu irmão. Pippa resistiu de tal modo que foram necessários cinco homens para a segurar. Levaram-na finalmente para a Stinche, a prisão da cidade, vociferando e berrando imprecações e injúrias, às quais os assistentes se apressaram a responder, porque, apesar de ignorarem o que se passava, os Florentinos não perdiam uma ocasião para se fazerem ouvir e manifestar. Quando alguém era levado para a prisão, ouvia-se sempre gritar «À morte!» ao acaso, com boas hipóteses de errar apenas uma em duas vezes.
Bastante mais frio, Esteban achou que já tinha visto o suficiente e que já era tempo de ir prevenir o seu patrão do que se passava, tanto mais que o cortejo de Pippa, ao voltar a transpor a ponte, tinha mais uma unidade: frei Inácio, que se juntara ao velho Pazzi, regulando o seu passo pelo do velho e falando-lhe com loquacidade. Ora, o castelhano detestara instintivamente o seu compatriota, que achava falso, cruel e pérfido, e não se enganava muito. A aproximação entre aqueles dois homens pareceu-lhe extremamente inquietante...
Servindo-se dos cotovelos para afastar a multidão, o castelhano foi buscar a sua mula, ao carregamento da qual acrescentou uma pequena bilha de azeite, foi beber a sua taça de vinho habitual para não despertar a curiosidade e deixou a cidade rapidamente, não sem reparar no ajuntamento que já se formava defronte do palácio dos Médicis fazendo um barulho terrível, porque toda a gente falava ao mesmo tempo e com grandes gestos.
Ao regressar a Fiesole encontrou Demétrios no seu gabinete, ocupado a embalar cuidadosamente alguns livros em pedaços de tecido e a guardá-los numa pequena arca pousada em cima de um escabelo. A um canto da mesa, sobre uma pele de gamo, estavam alinhados, brilhantes de uma limpeza recente e numa ordem perfeita, os instrumentos de cirurgia: lancetas, escalpelos, trépanos, agulhas direitas ou curvas, pinças e outros, que tinham seguido o médico desde Bizâncio e que ele tinha conseguido conservar apesar das vicissitudes das suas longas peregrinações. O velho saco de couro, que os continha habitualmente, estava pousado ao lado e aberto.
Esteban abraçou com um olhar rápido aqueles preparativos:
Mestre disse ele vais partir?
É preciso estar sempre pronto para partir, meu rapaz. Mas, tu, diz-me porque regressaste mais depressa do que habitualmente? Vejo pela tua cara que tens qualquer coisa para me dizer.
É verdade e também é verdade que estou preocupado.
O castelhano não era homem de grandes narrativas. Em meia dúzia de frases contou o que tinha visto, espreitando no rosto do grego o efeito das suas palavras. Mas Demétrios, que acabara de encher a arca, contentou-se em fechá-la e dizer:
Ah!
Em seguida, aproximando-se dos seus instrumentos, enxugou-os cuidadosamente um a seguir ao outro e depois enrolou-os na pele de gamo, que introduziu no saco. Esteban observou-o em silêncio, percebendo que o médico reflectia. Ao cabo de um momento, Demétrios ergueu para ele os olhos:
Vai chamar donna Fiora! Ela está no jardim a dar de comer aos pombos...
Fiora entrou um momento mais tarde, uma silhueta delgada de negro e branco, asseada e convencional. A evadida do convento num hábito branco e sandálias de corda, a jovem grega de túnica púrpura e o pajem de gibão verde tinham desaparecido para dar lugar àquela jovem de luto, de cabelos sensatamente entrançados e Demétrios surpreendeu-se a si próprio ao lamentá-lo, mas os grandes olhos cinzentos continuavam os mesmos e o grego sabia que eles podiam reflectir todas as tempestades do céu e que aquela aparência elegante e serena escondia as chamas de um coração ardente e de um carácter orgulhoso e corajoso. Como se viesse em visita, Léonarde acompanhara-a e mantinha-se perto da porta com as mãos cruzadas no regaço, como convinha à acompanhante de uma dama nobre. Demétrios teve a tentação de lhe pedir para os deixar a sós, mas pensou que, agindo assim, aproximava-se das convenções sociais que tanto o irritavam. Por outro lado, Léonarde já tinha embarcado no mesmo barco batido pelos ventos e incessantemente ameaçado da sua aluna. Era inútil esconder-lhe fosse o que fosse, tanto mais que seria posta ao corrente logo depois, i O castelhano entrara atrás dela... Esteban acaba de regressar com notícias que eu acho inquietantes disse Demétrios. Deves ouvi-las. Ela ouviu-as e não pareceu ficar muito perturbada. Apenas a menção ao monge espanhol a fez franzir as sobrancelhas.
Ainda esse homem! suspirou ela. Como é possível ele ligar-se assim à causa dos Pazzi? Parece querer defendê-los contra tudo e contra todos... Se ele é na verdade o enviado secreto do Papa Sisto IV, fica tudo explicado, porque também é, certamente, o mandatário do seu favorito, Francesco Pazzi... Pensava que tinhas compreendido isso?
Sem dúvida! Mas ele é um desses padres fanáticos obcecados | pelo diabo e que vêem feiticeiros em toda a parte. Ora, a milícia, na | outra noite, deve ter encontrado Hieronyma no estado em que nós a deixámos: nua, estendida em cima de um altar satânico, marcada com o sangue do sacrifício e com o corpo do bebé degolado em cima do peito. Parece-me que isso deveria interessar frei Inácio em primeiro lugar? No entanto, Esteban viu-o a falar com Jacopo Pazzi como se fossem amigos!,|
Como se fossem amigos! aprovou Esteban como se fosse o eco. Tens razão, é estranho! disse Demétrios, que se virou para o seu criado: De facto, tu não desempenhaste completamente a tua ’ missão. Ouviste falar na dama Hieronyma, que a milícia deve ter atirado para a prisão?
O castelhano abanou a cabeça de cabelos hirsutos:
Não. Não ouvi dizer nada. Tinha acabado de chegar ao mercado quando soube que o corpo do seu filho acabava de ser retirado da água. Só se falava disso...
Estranho! A cidade devia estar em sobressalto. Quanto ao monge, era o suficiente para pedir a cabeça da família toda... e fala amigávelmente com o patriarca? É difícil de compreender!... Mas é preciso saber! Sela a mula, Esteban!
Onde vais? perguntou Fiora.
Ver o senhor Lourenço. Foi com ele que combinei a intervenção da milícia no monte Ceceri. Ele deve saber o que se passou a seguir!
Não vás! Qualquer coisa me diz que corres perigo pediu a jovem, angustiada. Estás a ver, sou eu que, hoje, estou com um pressentimento. Eles prenderam Pippa. Sabe Deus o que essa mulher vai dizer!
Ela não pode dizer nada. Só viu um mendigo...
Dotado de poderes pouco comuns. Tens a certeza que não subsiste qualquer recordação depois de se acordar do sono que tu provocas? O Mulherão é hábil, astuto; para salvar a vida, dirá seja o que for e acusará seja quem for...
Ou dirá que não sabe nada. Que o jovem Pazzi saiu de casa dela tal como entrou...
Talvez, mas uma coisa é certa: o velho Jacopo sabia tudo e por que razão o seu neto foi a casa de Pippa naquela noite. Fica aqui, peço-te! Esperemos um pouco! Lourenço, certamente, dar-te-á notícias...
A jovem tremia e a sua emoção atingiu Demétrios. Aliás, Esteban veio em seu socorro:
Ela tem razão, patrão. Não há pressa. Deixemos passar o dia e a noite. Amanhã, se quiseres, irei saber notícias assim que as portas se abrirem. Poderás dar-me uma carta para eu entregar ao senhor Lourenço... Não te reconheço, tu que nunca te deixas apanhar pela impaciência.
O médico encolheu os ombros e passou pelo rosto uma mão um pouco febril. Foi até ao saco de couro que fechara há pouco e apoiou-se nele como se procurasse nele a energia que lhe faltava. Em seguida, virando-se, olhou para Léonarde, que continuava junto da porta tão muda e imóvel como uma estátua:
E vós, dame Léonarde disse ele em francês qual é o vosso conselho?
Não sabia que a minha opinião tinha alguma importância aos vossos olhos, mas suponho que esperais um acontecimento qualquer desde esta manhã... um acontecimento que vos pode obrigar a partir. Se não, por que essa arca, esse saco, essas arrumações que ainda não cessastes de fazer?
Eu devia saber que nenhum pormenor deste género escapa ao olhar de uma boa governanta disse ele com um sorriso. É verdade: desde a noite passada que espero uma coisa qualquer sem saber dizer o quê. Sinto que se aproxima a hora de deixar esta casa. Nesse caso, que seja de livre vontade! Segui o conselho de Esteban! Umas horas a mais ou a menos não mudarão nada... Demétrios acenou com a cabeça e sem acrescentar mais nada, abandonou a sala. Fiora seguiu-o. Um atrás do outro e sem trocarem uma palavra, subiram ao alto da torre. A jovem procurava compreender por que razão, ainda há pouco, se opusera tão frontalmente à partida do grego, mas uma coisa era certa: naquele instante soubera, tão claramente como se uma voz secreta lho tivesse gritado, que, se Demétrios fosse a Florença, não voltaria a sair de lá vivo. E a ideia de perder aquele último amigo que, para a ajudar chegara ao ponto de matar, tornara-se-lhe insuportável. Aquele homem estranho e curioso, do qual ela tivera medo em tempos, tinha um lugar no seu coração, agora. Não era a profunda ternura sentida por seu pai nem o amor ardente que Philippe lhe inspirara e que ela suspeitava estar ainda vivo sob as cinzas, nem a afeição que votava à sua velha Léonarde e da qual Khatoun levara um pouco, nem a alegre amizade que a ligava a Chiara Albizzi, era antes um sentimento feito de reconhecimento, amizade e também de respeito um pouco receoso, parecido com aquele que votava antigamente aos mestres que lhe tinham aberto o espírito para a cultura ’ e para a beleza. Era, em resumo, uma coisa sólida e forte. Aliás, não estavam ambos ligados por aquele pacto que tinham concluído e pelo qual os seus sangues se tinham misturado?... Quando chegaram ao alto da torre, Fiora chegou-se a Demétrios, que se aproximara com um gesto familiar da velha seteira e pousou a sua mão na dele. |
Nós dois já não temos família disse ela docemente. (
Tu tens um marido... Não. Isso foi um sonho que eu tive e que se transformou numa coisa ridícula. Se o quero encontrar é para o fazer pagar o meu sofrimento e o seu desprezo. Ele levou-me tudo sem nada me dar, senão um nome que eu nunca usarei. Ao passo que tu salvaste-me e até, com | risco da tua própria segurança, assumiste a minha vingança. E como misturámos os nossos sangues, gostaria que visses em mim... uma filha. Uma filha! Eu podia ser teu avô, Fiora. Além disso, não sabemos | o que o futuro nos reserva...
Nem tu?
Nem eu! O véu do destino nem sempre se ergue e o curso das estrelas omite muitos pormenores. Talvez seja melhor não nos deixarmos apanhar na armadilha da afeição! Podemos vir a sofrer. Unimo-nos, os dois, para sermos companheiros de combate: tentemos ficar por aí, mas velarei por ti... como um avô. E não esquecerei nunca o que acabas de me oferecer: o meu primeiro instante de alegria depois da morte de Teodósio...
Por sua vez, o médico pegou na mão de Fiora, pousou nela um beijo ligeiro e depois tomou-lhe o braço:
É hora de comermos. Desçamos para evitar que Esteban suba cá acima para nos vir chamar.
Ao fim do dia voltaram ambos a subir à torre. Da cidade vinha um rumor juntamente com nuvens de poeira. Passava-se lá qualquer coisa que desencadeava a agitação popular, sempre à flor da pele entre os Florentinos. Não era um tumulto, porque a Vacca, o grande sino da Senhoria, que servia apenas para tocar a rebate, continuava mudo. Subitamente, fizeram-se ouvir toques de trombeta e Demétrios inclinou-se, pondo’ a mão em pala diante dos olhos:
Repara! O Sol ainda não se pôs e já estão a fechar as portas... Era verdade. Mesmo àquela distância podia ouvir-se o barulho das grades que caíam e o ranger da ponte levadiça que subia. O olhar agudo de Demétrios, ajudado pelo ar puro das colinas, conseguira aperceber aqueles movimentos. A cidade fechava-se mais cedo do que habitualmente. Parecia, até, que havia mais soldados nas muralhas...
Estará um inimigo em marcha contra nós? perguntou Fiora.
Se assim fosse, a Vacca teria tocado para chamar às armas. Não, é no interior que se passa qualquer coisa e querem evitar que a agitação se espalhe ao campo... Mas, repara! Há qualquer coisa que arde lá em baixo...
Com efeito, num ponto da cidade, perto do rio, uma espessa fumarada negra, atravessada por chamas vermelhas, subia...
Meu Deus! gemeu Fiora. É uma loucura acender uma fogueira numa cidade onde há tantas casas de madeira! E, dir-se-ia que é perto de nossa casa...
Demétrios não respondeu. Os dois ficaram ali um momento, vendo aquele fumo subir a sul e o Sol a mergulhar no mar. Os campos tornaram-se violetas e a calma da tarde permitiu distinguir melhor o alarido que reinava no interior da cidade fechada... Fascinados, o grego e a jovem não conseguiam desviar os olhares daquela espécie de caldeirão fervilhante, onde até os telhados, sob a poeira e à luz incerta, pareciam mover-se, como vagas. A voz ofegante de Esteban, que eles não tinham ouvido chegar, estalou de súbito:
Patrão! O senhor Lourenço acaba de chegar! Quer ver-te, a ti e a donna Fiora! Depressa!
Desceram os três à pressa, mal acreditando no que estava a acontecer. Mas Lourenço tinha mesmo chegado. Metido no traje verde de que tanto gostava, estava de pé perto da janela do gabinete de Demétrios na companhia do seu amigo Poliziano, que brincava com as suas luvas, encostado a um dos armários. A preocupação marcava-lhe o rosto magro, mas pareceu a Fiora maior do que da última vez que o vira, sob as abóbadas da Senhoria. Ao ouvi-los entrar, o Magnífico saiu da janela e virou-se para eles:
Tu aqui, Senhor? perguntou Demétrios inclinando-se, ao mesmo tempo que a sua companheira dobrava ligeiramente um joelho numa saudação rígida. Que grande honra.
Era necessário que viesse, porque o tempo urge. Há pouco saí da cidade pela Badia, onde decorre uma reunião da nossa Academia platónica, mas tendo dado ordem para que fechassem as portas logo a seguir. Elas só se voltarão a abrir à hora habitual, amanhã. É preciso que esta noite vos afasteis o mais possível daqueles que querem a vossa morte!
Podeis dizer-nos o que se passa, senhor? perguntou Fiora com a voz gelada. Sabemos que o corpo de Pietro Pazzi foi pescado do Arno e que Pippa foi presa, mas não vejo por que razão nos querem matar, a nós!
Porque essa mulher falou. Ela acusa-te de teres apunhalado o corcunda com a ajuda de um feiticeiro vestido de mendigo...
Eu? E como é que entrei em casa dela?
Ela diz que te conhece há muito tempo, que tu... ias a casa dela para te encontrares com homens e que, naturalmente, foi a casa dela que foste buscar refúgio quando fugiste do convento... Pietro era... um dos que ias encontrar lá, porque ele estava apaixonado por ti...
E que mais? exclamou a jovem. Nesta cidade, na tua cidade, pode-se dizer seja o que for? E acreditaram nela, claro?
Acredita-se sempre no que diz a populaça.
A sério? Nesse caso, diz-me como é que a populaça recebeu a notícia da prisão de Hieronyma? Como é possível que o seu sogro tenha pintado a manta na Senhoria?
O povo não soube nada dessa prisão.
Lourenço desviou os olhos daquele rosto jovem resplandecente de cólera e a sua voz rouca pareceu ensurdecer ainda mais quando disse:
Hieronyma fugiu da Stinche antes de a notícia se saber. Está em fuga e ninguém sabe por onde anda...
O quê? gritaram ao mesmo tempo Fiora e Demétrios, mas foi o grego que retomou a palavra:
Como foi isso possível?
Na milícia havia dois sujeitos dos Pazzi, que preveniram imediatamente o velho Jacopo. Ele foi com a sua gente e com o monge espanhol buscar a nora, que estava inconsciente, aliás. O que lhes permitiu dizer que ela fora vítima de uma terrível maquinação e de um sortilégio... A repescagem do corpo de Pietro e as declarações do Mulherão só serviram para deitar mais achas para a fogueira. Aquele frei Inácio pregou durante todo o dia, nas praças e nos mercados, para que te apanhem, Fiora, e a ti, Demétrios...
E tu? lançou Fiora que fazias tu enquanto tudo isso acontecia? Tu, o senhor de Florença, o todo-poderoso, o Magnífico? Que fazias tu enquanto assassinavam o teu amigo, o meu pai, que fazias tu enquanto me punham em Santa Lúcia, enquanto me arrancavam do conVento para me atirarem para o Mulherão, para ser entregue a um qualquer e, sobretudo, a esse miserável Pietro, que até já tinha começado a estrangular-me? Eu estaria morta sem Demétrios, porque tu não fizeste nada. Tu deixaste que me despojassem de tudo, deixaste...
Que pusessem fogo ao palácio Beltrami disse docemente o grego. É o palácio Beltrami que está a arder, não é?
Fiora virou-se e olhou para ele com horror:
É... a minha casa?
É, Fiora disse Lourenço é a tua casa. Quando compreenderás tu que nós vivemos numa república e que eu não tenho poder, apesar de fazer esta mesma república rica, feliz e poderosa?
Estou a ver. Preferes deixar um monge estrangeiro manipular a população enquanto discutes com os reis e os grandes deste mundo! Mas, sabias que esse homem, esse enviado oculto de um Papa que te odeia, ainda é mais teu inimigo do que meu? Eu sou um peão no xadrez dele, um pretexto, apenas.
Que sabes tu? Sei mais do que tu... E rapidamente, a jovem contou o que se passara na sala capitular de Santa Lúcia. Deixa o monge acabar a sua obra! acrescentou ela com desprezo e em breve o sobrinho de Sisto IV será o senhor de Florença, um senhor que, esse, saberá impor a sua vontade! À medida que ela falava, o rosto simiesco se bem que sedutor de ’ | Lourenço ia ficando esverdeado, como se o seu traje de veludo tivesse, subitamente, desbotado para a sua pele.
O monge dorme em San Marco. Esta noite mesmo será preso e conduzido sob escolta à fronteira de Florença. Agradeço-te por me teres dado a prova do que eu já suspeitava. Demétrios pode confirmá-lo...
Sem dúvida! disse este com ironia mas nós continuamos sujeitos à vingança pública... ao passo que a dama Pazzi corre pela estrada fora.
Prometo-te que a mandarei procurar, mas é verdade que não posso fazer nada por vós, senão dizer-vos que partais e que arranjeis um lugar seguro...
Eu hei-de procurá-la sozinha lançou Fiora furiosamente. Não te preocupes comigo, já que nem sequer foste capaz de vingar o meu pai, assassinado e vilipendiado...
Marino Betti está morto. E fui eu que mandei Savaglio matá-lo.
De noite e em casa dele, não em pleno dia e na praça pública! O que faz com que, aos olhos de todos, o meu pai continue a ser um miserável, um mentiroso e por que não um traidor?
Por que não, com efeito? perguntou Lourenço, cuja cólera subia. Tenho todas as razões para suspeitar que ele traiu a república, favorecendo com o seu ouro as armas do duque da Borgonha. Os Fugger reclamaram o reembolso de uma letra de cem mil florins, pagáveis ao tesouro da Borgonha através da conta de messer Philippe de Selongey. Que tens a dizer a isto?
Nada... a não ser uma pergunta: a soma foi paga?
Ao banco Fugger? Certamente que não. O teu pai morreu e os seus bens estão sob o controlo...
Sob o teu controlo! E sem qualquer direito!
Era a única maneira de evitar que caíssem nas mãos dos Pazzi, porque a tua adopção está cheia de equívocos! Quanto aos Fugger, tanto pior! Eles que se arranjem com o duque da Borgonha...
E assim disse Fiora lentamente o meu pai passa, não só por miserável e mentiroso, mas também por desonesto, ele, cuja palavra nunca foi posta em dúvida? Esse dinheiro era o meu dote!
O teu dote?
- Sim. Na noite que precedeu a sua partida, aqui mesmo, na capela do convento vizinho, casei com o enviado da Borgonha. Ele sabia a verdade acerca do meu nascimento e exigiu o casamento, porque tu te tinhas recusado a ajudar o senhor dele. Eu sou a condessa de Selongey.
Provas! Tu tens provas disso? exclamou Lourenço, cujo rosto, depois de empalidecer, estava a ficar púrpura. Fiora ia responder que não sabia onde estavam as provas quando uma outra voz se fez ouvir:
Ei-las aqui, senhor! disse tranquilamente Léonarde, que avançou com um rolo na mão, de onde pendia uma fita verde. Encontrarás aí a certidão de adopção de donna Fiora, o seu contrato de casamento assinado e selado pelo seu marido, a cópia da carta de câmbio e até um atestado com a assinatura e o selo do padre António, o prior do convento. Ser Francesco Beltrami, na véspera da sua morte e porque se sabia vigiado por inimigos, entregou-me tudo isso...
O Magnífico pegou no rolo e estendeu-o a Poliziano, que perdeu de imediato a sua imobilidade de estátua e, com passo pesado, foi sentar-se na cadeira alta de braços de Demétrios.
Lê! disse ele apenas.
O poeta desfez o laço da fita, percorreu os documentos com um olhar habituado e voltou a enrolá-los de novo:
Está tudo em ordem, senhor!
Existe outra prova disse Léonarde. E, tirando do corpete o anel de ouro com as armas dos Selongey, mostrou-o a Lourenço e depois, com um tudo nada de solenidade, meteu-o no dedo de Fiora, que fechou a mão sobre ele sem poder evitar um arrepio.
Portanto murmurou Lourenço tu és a mulher de um dos homens mais importantes da Borgonha? O Magnífico deu uma pequena risada sem alegria e acrescentou: Nesse caso, por que razão o teu marido não veio, quando ainda era tempo, reclamar-te diante dos que te acusavam? Por que não exigiu ele uma reparação pelas armas da ofensa involuntária feita ao seu nome?
Porque a esta hora disse Fiora com amargura eu sou, certamente, uma viúva. Messire de Selongey estava decidido a morrer para se punir por ter, ao casar comigo, desonrado o seu nome... Ele vendeu-se para ajudar o Temerário!
Lourenço levantou-se, deu alguns passos para reencontrar um pouco de calma e depois, parando diante de Fiora, cujas lágrimas caíam em silêncio pelo rosto imóvel:
Pobre criança! disse ele com infinita doçura. Conseguirás tu, um dia, voltar a acreditar na lealdade e no amor de um homem?
Incapaz de articular uma palavra e sentindo-se de súbito infinitamente cansada, ela abanou a cabeça, negativamente.
Em todo o caso continuou Lourenço se o teu marido morreu, foi há muito pouco tempo. No dia em que o teu palácio foi pilhado ele estava lá!
De repente, o sangue subiu às faces de Fiora:
É impossível! disse ela com voz fraca...
Não disse Poliziano é verdade. Eu vi-o e a princípio hesitei em reconhecê-lo, porque estava vestido como um homem qualquer de baixa condição. Estava na multidão; olhava. E vi que falava a alguém. Sem dúvida perguntava o que queria aquilo dizer. Como não sabia o que o atraía ali, hesitei por um momento em abordá-lo. Quando me decidi, a multidão impediu-me de me aproximar e ele desapareceu sem que lhe pudesse seguir o rasto...
Eu pensei que ele tinha vindo espiar continuou Lourenço. Mandei vasculhar os albergues e as tabernas, mas ninguém o tinha visto, ninguém pôde dizer o que lhe tinha acontecido...
Fiora, de olhos brilhantes, escutava aquelas palavras como se estivesse a ouvir os anjos a cantar:
Ele voltou! suspirou ela. Ele voltou, quando tinha jurado não me voltar a ver...
Perdoa-me o que te vou dizer, Fiora disse Lourenço mas tens a certeza que ele andava à tua procura?
E de quem havia de ser?
Do teu pai!... A cidade de Neuss continua a resistir ao borgonhês e antes de ontem, primeiro de Maio, a trégua assinada há três anos entre a França e a Borgonha, e prorrogada por duas vezes, chegou ao fim... definitivamente!
Ousas insinuar que ele vinha em busca de mais dinheiro?
Que outra coisa havia de ser? Ele deve ter sabido o que te aconteceu, se perguntou às pessoas que estavam na rua... e, no entanto, voltou a partir, sem sequer te procurar...
Ao ver Fiora oscilar nas pernas como uma grande flor sacudida pelo vento, Demétrios interveio e, oferecendo à jovem o apoio do seu braço:
Não podemos, ao menos, conceder-lhe o benefício da dúvida? reprovou ele. É mesmo necessário que ela parta desesperada? Recordo-te respeitosamente que, ao chegar aqui, tu insististe que era urgente que nós fugíssemos desta cidade. É grave, parece-me e já que nos expulsam...
Eu não vos expulso disse Lourenço, aborrecido tento, antes, salvar-vos, porque, apesar de não acreditardes, sois-me muito queridos, um e outro. E a prova está aqui!
O Magnífico tirou do traje uma carta selada com as suas armas, que estendeu a Demétrios:
Esta carta é para o rei Luís de França, a quem te envio. Ele acolherá o hábil médico que tu és, porque ele sofre, sem se poder curar... de umas hemorróidas bem incomodativas. Além disso, digo-lhe que tu és meu amigo.
Agradeço-te. E... ela? perguntou Demétrios apontando com a cabeça para Fiora, que Léonarde estava a ajudar a sentar.
Pensei que pudesses conduzi-la a Paris, onde ela... onde Beltrami tinha um primo, que lhe geria o balcão local. Ali não lhe faltaria nada, pois Donati, que gere actualmente os negócios do seu pai, velaria por ela. Mas o que acabo de saber muda muitas coisas. Arranja-me com que escrever, enquanto vos preparais para a partida...
No que me diz respeito, está tudo pronto disse Demétrios.
Nós também! disse Léonarde.
O médico tinha disposto em cima da mesa o necessário para escrever e Lourenço já pegava na pena quando Fiora o deteve:
Que vais fazer?
Recomendar-te ao rei Luís, para que...
... a mulher de Philippe de Selongey possa servir-lhe de refém? Tu próprio acabas de dizer que não conto nada para o homem a quem fui unida.
Não disse Lourenço gravemente. Para lhe dizer que lhe envio a filha... infeliz de Francesco Beltrami, o amigo que perdi. O seu nome é conhecido na corte de França.
Ele ia começar a escrever, mas ela agarrou na folha de papel ainda virgem e rasgou-a:
Deixa nas minhas mãos o meu destino! Enquanto não for reconhecida inocente de tudo o que me imputaram e os meus direitos restaurados aos olhos de todos... e por ti, não quero saber das tuas recomendações.
Fiora, suplico-te.- deixa passar o tempo!
O tempo? Em que poema é que Petrarca diz: «Antes de eu alcançar a margem desejada, o loureiro perderá as folhas verdes...»? Tu nunca ousarás ir contra a vontade do povo, Lourenço... mas toma cuidado, que um dia ele pode deixar-se atrair por um novo ídolo! E toma cuidado com o Papa!
Direita e orgulhosa, a cabeça erguida como se caminhasse para a glória em vez de dar os primeiros passos numa direcção cujo destino final ignorava, Fiora virou as costas ao Magnífico, ao homem em quem estava encarnada toda a graça e esplendor da sua juventude... e saiu da sala.
Um quarto de hora mais tarde, entretanto, vestida com o gibão verde que lhe fora dado por Chiara, pousava o pé no estribo que Lourenço lhe segurava. Era o seu próprio cavalo que ele lhe dava, tal como Demétrios e Léonarde recebiam os cavalos que tinham trazido Poliziano e Savaglio. Os três homens regressariam a Badia a pé. Esteban tinha a sua montada habitual e a mula, que o servia a ele e ao seu patrão indistintamente, levava as poucas bagagens.
Demétrios, antes de o deixar, olhou para o pequeno castelo que lhe oferecera a sua primeira paragem tranquila e doce, após tantos anos de vagabundagem. Ia ser fechado a menos que a multidão furiosa lhe pegasse fogo no dia seguinte! e a bela Samia regressaria a Badia ou ao palácio da Via Larga. O grego sabia que, apesar de tudo, deixava algumas amizades: Poliziano abraçara-o chorando e o próprio Lourenço o apertara nos braços... murmurando-lhe que havia ouro nas sacolas do seu cavalo, assim como nas da montada de Fiora... Mas o médico não estava triste: pensava na sua vingança, que ia, por fim, ser possível graças àquela bela mulher que o céu... ou o diabo fizera sua companheira e talvez sua cúmplice...
Além disso, estava demasiado habituado às partidas frequentes para que uma tal coisa lhe fosse penosa.
Sem o querer confessar, Léonarde sentia-se feliz. Reencontrara a sua pequenina e ia rever a sua terra natal, aquela Borgonha que a beleza de Florença nunca conseguira fazê-la esquecer. Pelo menos, era um país realmente cristão, onde não se cantava a missa depois de se louvarem divindades pagãs!
Esteban não pensava em nada. Iria para onde fosse o homem ao qual se ligara, mas, ao mesmo tempo, estava contente por partir. Amava de mais a aventura e a zaragata para se satisfazer com os prazeres do mercado e com uma vida tranquila no seio de uma natureza agradável. Era verdade que as coisas se tinham tornado mais apaixonantes com a entrada nessa vida daquela que ele chamava para si próprio «a madona dos olhos cinzentos», mas ainda bem que iam para outros horizontes... Horizontes onde havia guerra.
Fiora escutava a noite. O vento levantara-se, trazendo com ele os ruídos da cidade que não acalmaria tão cedo. Conseguia ver as luzes instáveis e os fumos leves que, apertados na cintura da muralha, evocavam a cratera de um vulcão que desperta... Era a sua morte que pediam lá em baixo e ela bem podia perder qualquer esperança de regresso. No entanto, a despeito do que sofrera, as raízes do seu coração permaneceriam mergulhadas na cidadela da Flor-de-lis Vermelha. A voz de Lourenço, que segurava ainda as rédeas do cavalo, chegou-lhe como que num sonho...
Não me dizes adeus, Fiora? Mesmo que me detestes, quero que saibas que nada será como dantes. Tu levas um pouco da beleza desta cidade...
Adeus, senhor Lourenço! Se amas a beleza da tua cidade, vela por Simonetta Vespucci... não vás perdê-la também... disse ela, lembrando-se da profecia de Demétrios.
Que importa Simonetta! Não é a mim que ela ama... e tu, agora, parece-me que poderia ter-te amado...
O Magnífico entregou-lhe as rédeas e ela pegou nelas com mão firme. Na obscuridade, ela viu brilhar os olhos escuros de Lourenço e, subitamente, obedecendo a um impulso, inclinou-se e, por um curto instante, pousou os lábios nos do Magnífico.
Nesse caso, lembra-te de mim, monsenhor!
Ela ia afastar-se; ele reteve o cavalo com uma força que a sua magra silhueta não permitia suspeitar.
Quem me deu esse beijo? Foi Fiora Beltrami, ou foi a dama de Selongey?
Nem uma, nem outra. Foi uma filha desta terra. Uma florentina... uma simples florentina!
E porque não queria que ele visse as lágrimas que lhe subiam aos olhos, ela deu a volta ao cavalo e partiu a galope pela longa alameda de ciprestes, mas, chegada ao fundo, reteve o animal para esperar pelos seus companheiros. Demétrios foi o primeiro a chegar até ela.
Temos de ir apanhar a estrada de Prato disse ele com a sua voz baixa e tranquilizadora É preciso passar pelas colinas... Deixa-me guiar-te!
Ela sorriu-lhe:
Desde que me leves onde eu quero ir!... Hieronyma escapou, mas um dia hei-de encontrá-la. Entretanto, temos outras contas a ajustar.
Para sentir mais uma vez o ar das colinas nos cabelos, a jovem tirou o capuz e levantou a cabeça. A noite estava bela e doce, cheia de todos os odores da Primavera. Uma noite feita para a felicidade e que, no entanto, era para ela a noite do exílio... Tornado ainda mais agudo pela distância, o sino do convento de Fiesole tocou para o último ofício da noite. Fiora fechou os olhos para melhor gravar o eco na sua memória. Ao mesmo tempo, a sua mão procurou por baixo do gibão o anel de ouro que tinha retomado o seu lugar no fio:
Philippe murmurou ela para si própria e tão baixo que nem o vento a ouviu Philippe... por que voltaste?
Saint-Mandé, 1 de Maio de 1988.